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Salvador
2006
IARA DE MENEZES PEREIRA
Salvador
2006
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente a Deus, que me deu a chance de converter meu sonho em realidade.
Aos meus pais, José Alberto e Iara Garcez, que sempre me incentivaram a trilhar os caminhos
do conhecimento.
À minha professora e orientadora nas disciplinas Pesquisa Orientada I e II, Mirela Figueiredo,
pelo carinho, cuidado e paciência para ensinar o caminho certo.
Às minhas queridas amigas Núbia Britto e Ericka Lúci, pela amizade e incentivo genuínos.
E a todos que contribuíram de alguma forma para que este trabalho fosse realizado.
RESUMO
Este artigo é resultado de uma pesquisa para se compreender a atuação dos psicólogos no
sistema prisional da cidade de Salvador, através dos significados atribuídos às suas práticas.
Teve como objetivos ressaltar e descrever as práticas realizadas por psicólogos que trabalham
no sistema prisional de Salvador; compreender os significados atribuídos à atuação
profissional a partir dos seus discursos; entender aspectos da sua identidade profissional e a
maneira como percebem a repercussão de seu trabalho no contexto em que atuam. Foram
realizadas entrevistas semi-estruturadas com três psicólogas. O método qualitativo foi
utilizado para a análise dos dados, porque permite evidenciar as crenças, valores e
significados dos sujeitos envolvidos. O discurso de psicólogos que atuam na área jurídica,
encontrado na literatura, apresenta insatisfações e questionamentos em relação ao lugar que
ocupam nas instituições jurídicas, inclusive nas prisões. Da mesma forma, existem psicólogos
frustrados com suas funções, com um discurso repleto de críticas ao sistema ao qual estão
submetidos e às limitações do trabalho desenvolvido. O presente estudo sinaliza para a
necessidade urgente de mudanças em suas práticas profissionais e repensar as políticas
públicas para o sistema prisional.
This article is resulted of a research to understand the performance of the psychologists in the
prisional system of the city of Salvador, through the meanings attributed to its practical. It had
as objective to stand out and to describe the practical ones carried through for psychologists
who work in the prisional system of Salvador; to understand the meanings attributed to the
professional performance from its speeches; to understand aspects of its professional identity
and the way as they realize the repercussion of its work in the context where they act.
Interviews half-structuralized with three psychologists had been carried through. The
qualitative method was used for the analysis, because it allows to evidence the beliefs, values
and meanings of the involved citizens. The speech of psychologists who act in the legal area,
found in literature, presents no satisfactions and questionings in relation to the place that they
occupy in the legal institutions, also in the arrests. In the same way, psychologists frustrated
with its functions were detected, with a speech full of critical to the system to which is
submitted and to the limitations of the work developed. The present study signals for the
urgent necessity of changes in its practical professionals and to rethink the public politics for
the prisional system.
key words: Legal psychology; Prisional System; Professional Identity; Meaning of the
practical ones.
SUMÁRIO
1 Introdução...........................................................................................................................7
3 Método...............................................................................................................................11
4 Resultados e Discussão..................................................................................................14
4.1 Escolha do campo profissional...........................................................................................14
4.2 O sistema prisional e o lugar do psicólogo.........................................................................15
4.3 Questões éticas....................................................................................................................16
4.4 Reflexões sobre a prática profissional e trabalho em equipe..............................................18
4.5 Identidade profissional, formação e organização dos psicólogos.......................................19
4.6 Outras possibilidades de atuação........................................................................................20
5. Considerações finais.......................................................................................................24
Referências.............................................................................................................................26
1 INTRODUÇÃO
A participação da Psicologia nas questões jurídicas ocorre por meio da interface com
as disciplinas dos cursos de Direito e Medicina, a partir do século XIX. Esta aproximação
entre a Psicologia e o Direito então provê a fundamentação de um campo do conhecimento
que atualmente se denomina Psicologia do Testemunho, cujo objetivo é “verificar, através do
estudo experimental dos processos psicológicos, a fidedignidade do relato do sujeito
envolvido em um processo jurídico” (ALTOÉ, 2001:1).
Inicialmente, quando caminhava para se consolidar enquanto campo de atuação, a
Psicologia Jurídica “favoreceu o desenvolvimento de pesquisas experimentais, buscando com
isso obter dados que pudessem ser cientificamente comprovados e que servissem como
subsídio para as decisões judiciais” (BOMFIM, 1994: 288).
A tradução da reedição do livro Manual de Psicologia Jurídica de Mira y Lopez,
também pode ser considerada como outro importante marco para o surgimento do campo da
Psicologia Jurídica no Brasil – ocorrido em 1955 –, despertando o interesse de psicólogos
para a pesquisa e desenvolvimento de um novo campo de atuação (BOMFIM, 1994).
A atuação do psicólogo jurídico é determinada, em grande parte, por legislações
específicas da área1. Em relação à atuação do psicólogo em penitenciárias, fica restrita ao
cumprimento da legislação, na qual está prevista a realização de entrevistas com pessoas
(sentenciados e/ou familiares), requisição de dados e informações a respeito do condenado,
cumprimento de diligências e exames que se julgar necessário, como forma de complementar
as avaliações.
1
A Lei n.º 210 de 17 de julho de 1984 previa para o sistema penal brasileiro, no artigo 6o, a existência de uma
Comissão Técnica de Classificação, que deveria elaborar o programa individualizador e acompanhar a execução
de penas privativas de liberdade. A comissão seria composta por, no mínimo, dois chefes de serviço, um
psiquiatra, um psicólogo e um assistente social.
colhidos e participação em reuniões de síntese criminológica; orientação a detentos e seus
familiares.
Em nossa formação [clínica] ouvimos, o tempo todo, que temos que ouvir os
pacientes despidos de nossos valores, sem nos preocupar jamais com o que é certo
ou errado. Fica então fortemente expressa a contradição entre o modo de pensar do
psicólogo e do advogado. O Direito, no caso de um crime, busca saber quem foi o
criminoso para puni-lo, enquanto que ao psicólogo interessa saber o que o motivou
ao crime, como é o mundo mental daquele indivíduo (ANAF, 1999, p. 92).
2
Rosalice Lopes também foi membro do CRP-06, atuou como conselheira na gestão de 1995 a 1997.
Como profissional que se insere neste contexto, com o objetivo de atender aos
requisitos do juiz, o psicólogo cumprirá o papel do agente da ressocialização, através das suas
ações no resgate da cidadania do sentenciado. Dessa forma, o psicólogo perito deve atentar
para o descumprimento dos direitos humanos dentro das instituições penais e, ainda, conciliar
a questão da ética profissional, que inclui o sigilo e o cuidado quanto à adição de informações
nos laudos entregues ao juiz.
Por outro lado, o psicólogo precisará atender às demandas do jurídico sem fazer com
que seu trabalho seja mais um instrumento de controle e estigma social. Portanto, suas ações
não podem se limitar apenas à confecção de um documento, dando ênfase à técnica,
desconsiderando os sujeitos envolvidos, que se constituem no verdadeiro veículo para as
ações desse profissional.
Brito (1999) destaca as críticas impostas à Psicologia, onde “os conteúdos encontrados
nos laudos criminológicos não passavam de moralistas, preconceituosos e aprisionadores” (p.
92). Corroborando com esta mesma linha de pensamento encontram-se os estudos de Rauter
(1994:21 apud ALTOÉ, 2001:5) ao revelarem que “a maior parte do conteúdo destes laudos
era bastante preconceituosa, bem estigmatizante, e nada tinha de científico... Os laudos
repetiam os preconceitos que a sociedade já tem com relação ao criminoso, com relação a
alguém que vai para a prisão”.
Levando-se em consideração um instrumento que norteia as ações do psicólogo, no
caso o Código de Ética Profissional, vale ressaltar um dos seus princípios fundamentais para o
exercício dessa profissão: “o psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica
e historicamente a realidade política, social e cultural”. Tomando a prisão como palco, onde
tal realidade é circunscrita, torna-se dever do psicólogo basear a sua atuação nesta análise da
realidade social, como forma de assegurar um trabalho ético, compromissado e de qualidade.
A atuação dos psicólogos em instituições penais, portanto, tenderá a se voltar para a
promoção da saúde mental e resgate da cidadania. Assim sendo, o diagnóstico perde sua
exclusividade e as possibilidades de atuação se ampliam.
Bock (1999), ao falar da identidade profissional dos psicólogos e de desafios futuros,
inclui como principal tarefa um maior compromisso desses profissionais com a realidade
social, dando ênfase às demandas da maioria da população brasileira. A partir dessa
concepção, a autora discute a ação psicológica interferindo diretamente na sociedade,
desmistificando a idéia de que “o mundo psicológico nada tem a ver com o mundo social” (p.
326). E complementa:
Assumir compromisso social em nossa ciência é buscar estranhar o que hoje já
parece familiar; é não aceitar que as coisas são porque são, mas sempre duvidar e
buscar novas respostas. Compromisso social é estranhar, é inquietar-se com a
realidade e não aceitar as coisas como estão (BOCK, 1999, p.327).
Nesse cenário, o psicólogo tende a perder parte de seu discurso romântico e passa a
sentir-se impotente diante do maquinário jurídico. O ambiente que o acolhe como profissional
diferenciado poderá transformá-lo, ao longo dos anos de atuação, em profissional impotente
diante da realidade apresentada.
3 MÉTODO
Foi utilizado o método qualitativo para a análise dos dados, por este permitir a
consideração das crenças, dos valores e significados dos sujeitos envolvidos. A partir do
relato das entrevistadas, vieram à tona questões subjetivas que possibilitaram compor a
trajetória pessoal de cada uma delas.
3
O Complexo Penitenciário do Estado da Bahia está localizado na estrada da Mata Escura s/n, Salvador/Ba, é
composto pelas seguintes unidades: Casa do Albergado e Egressos, Centro de Observação Penal – COP,
Penitenciária Feminina, Penitenciária Lemos Brito – PLB e Presídio de Salvador.
Psicóloga Idade Ano de formação Instituição Forma de Tempo de Outras
Ingresso atuação atuações
4
Cada participante assinou um termo de consentimento livre e esclarecido. A pesquisa realizada esteve pautada
nos princípios defendidos na resolução do Conselho Nacional de Saúde – CNS. Como forma de assegurar os
direitos das participantes, incluindo seu anonimato, todos os sujeitos assinaram termo de consentimento,
considerando os princípios éticos postulados pelo Conselho Federal de Psicologia – CFP 016/2000, que trata
sobre a realização de pesquisas com seres humanos em Psicologia.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
[...] foi uma escolha por um vínculo empregatício; eu queria ingressar no Estado.
Na verdade, eu queria trabalhar na Secretaria de Saúde, mas no momento não
estava tendo concurso para Secretaria de Saúde e eu acabei me inscrevendo nesse
que era para a SJDH (Psicóloga A.).
Da mesma forma, a segunda entrevistada também relatou que não optou por trabalhar
em instituições prisionais; prestou o concurso com a pretensa idéia de obter estabilidade num
emprego público e, quando aprovada, foi informada de que seria para atuar em unidade
prisional, o que lhe provocou um assombro; porém, decidiu se enveredar por essa nova
realidade profissional:
[...] me motivava muito a curiosidade de conhecer essa realidade nova, eu sempre
achei que o sistema penitenciário era um lugar muito farto de trabalho [...] achava
que eu podia ser útil; durante anos eu me dediquei muito ao trabalho, sempre
busquei fazer meus laudos, sempre bem feitos. Na entrevista sempre busquei ter
uma escuta muito respeitosa, muito ética, pelo menos naquele momento oferecer
minha escuta de uma forma aberta, de coração realmente aberto, sem julgar o
crime e nada (Psicóloga B).
Apenas uma delas relatou que, desde a graduação, tinha interesse em realizar um
trabalho voltado para uma população diferenciada, tendo prestado o concurso sabendo onde
iria atuar. “Eu sabia que provavelmente iria trabalhar no sistema prisional” (Psicóloga C).
De acordo com essa entrevistada, a questão da estabilidade foi apontada como um dos fatores
motivacionais para seguir desempenhando as suas funções: “Eu tinha a necessidade,
precisava trabalhar, é um emprego que tem segurança profissional... O Estado paga pouco,
mas paga” (Psicóloga C).
As relações estabelecidas com o local onde atuam e ocupam na instituição prisional
baseiam-se na estabilidade oferecida por um emprego público:
[...] Eu não sabia que era psicólogo perito e isso, de certa forma, me frustrou um
pouco, porque quem queria fazer alguma coisa social, realmente como perito não
faz. [...] Faz um trabalho muito mais voltado para a questão jurídica propriamente
dita, é bom; ajuda eles [os presos] de alguma forma, mas a mim não me satisfaz,
tanto que eu fui trabalhar na questão social no terceiro setor (Psicóloga C).
Este relato confirma o que foi encontrado nos artigos relacionados à área de Psicologia
Jurídica, os quais enfatizam o questionamento sobre o lugar do psicólogo em instituições
prisionais, bem como nas outras diversas áreas jurídicas. Todas as entrevistadas apontaram
para as atividades realizadas como psicólogas peritas, como sendo restritas à demanda do
Juiz, após a mudança na Lei de Execuções Penais, em dezembro de 2004, que excluiu a
obrigatoriedade da realização do exame criminológico com todos os sentenciados.
Atualmente, segundo as três profissionais, são encaminhados alguns casos, nos quais se
procede à avaliação, devendo constar se o sentenciado sofre ou não de algum transtorno
mental ou comportamental.
Ao responderem às solicitações do Juiz, cabe ao profissional posicionar-se diante das
limitações da sua prática e da ética, de acordo com o que foi ressaltado pelas profissionais:
[...] acho complicadíssimo a atuação do psicólogo num lugar desses, aliás, acho
impossível, é um lugar “do cão”, como chamamos aqui, embora a palavra seja
pesada [...] eu me queixo que o trabalho é muito limitado a exame criminológico.
(Psicóloga B).
Eu acho que é lamentavelmente uma farsa, não acho que o psicólogo atue
efetivamente [...] É uma atuação que não traz nada de significativo. (Psicóloga C).
De acordo com Rauter (1994, apud BRITO, 1999), o psicólogo não pode fazer
previsões futuras, por não possuir ‘bola de cristal’. Tal afirmação recai sobre a especificidade
dos instrumentos de avaliação psicológica, uma vez que estes são retrospectivos, somente
descrevem aspectos das ações realizadas pelo indivíduo, até o momento presente. Além disso,
as entrevistas para avaliação podem se constituir num momento de escuta da qual o
sentenciado dispõe para retratar seu confinamento e, até mesmo, se queixar de maus tratos;
porém, o objetivo principal da avaliação não é a escuta.
[...] eu gosto muito dessas entrevistas; então, sem querer, eu tendo a criar um clima
de empatia, termino gerando um clima de confiança, o que eu às vezes não acho
bom, porque assim, ele vai, vai gostando e vai soltando tudo, e é preciso escrever
um laudo pericial, é preciso mandar para o Juiz (Psicóloga B).
A questão ética está envolta na atuação dos psicólogos peritos, pois estes são
convocados a emitir laudos periciais. Portanto, sua função é de técnico, apesar de ser um
profissional que atua na área da saúde e clínica. Outras formas de atuação como psicoterapia
breve com os sentenciados deve ser realizada por outro profissional, pois esta conduta é
considerada antiética.
[...] eu acho um lugar muito difícil; eu acho que os psicólogos, a gente precisa
abrir um espaço de discussão sobre isso, acho que a gente precisa se apoiar, que o
psicólogo precisa construir uma rede de proteção do psicólogo que atua nesses
lugares, proteção psicológica e proteção formal mesmo (Psicóloga B).
[...] Ela (a Lei de Execuções Penais) mudou porque o que estava proposto não era
feito na prática exatamente: uma situação ideal, principalmente em função do
número de sentenciados. O trabalho é uma avaliação que pode ser feita pelo
psicólogo ou pelo psiquiatra, onde avaliaremos se o interno tem algum transtorno
mental que o impeça de conviver com a sociedade, voltar para a sociedade ou não
(Psicóloga A).
[...] Acho que a unidade não sabe o que demandar do psicólogo, só sabe o que está
ali no papel, e aquilo é muito pouco [...] acho que o próprio Conselho, a própria
comunidade de psicólogos, a própria classe dos psicólogos desconhece essa função
do psicólogo jurídico. Agora que isso está sendo discutido, muito recentemente.
(Psicóloga B).
[...] eu acho que tem que criar regras, talvez leis. [...] Se o psicólogo escolar, o
psicólogo organizacional tem regras, tem uma regulamentação, a gente também
precisa, sobretudo com relação até estudar um pouco qual é a postura que o
psicólogo deve ter numa perícia [...] (Psicóloga B).
A instituição prisional tem uma proposta que fracassou desde o começo. Eu acho a
proposta de recuperação enquanto correção; essa proposta é um discurso que
sempre foi vazio, em todas as sociedades, desde o advento da instituição prisional
no século XVI; mas eu acho que a prisão, muito pouco recupera o sujeito, acho que
foi ao contrário, uma instituição muito cheia de vícios, só mesmo aqueles que
conseguem trabalhar lá dentro é que conseguem viver a prisão de uma outra forma
[...] eu só vejo a prisão como castigo e segregação, hoje, como sempre. (Psicóloga
C).
O local que o psicólogo ocupa no sistema prisional também foi definido como
inexistente, onde o psicólogo estaria compactuando com uma farsa, visto que seu trabalho não
é representativo, não tem sentido de existir. Identifica-se, neste ponto, o ápice da insatisfação
em relação às atribuições do psicólogo inserido nas prisões, lugar este que não lhe dá
subsídios para desenvolver suas práticas e contribuir para o bom andamento das questões
judiciais:
[...] Nós estamos lá ancorados no discurso da ressocialização, esse discurso
lamentavelmente é vazio; ele tem uma função de existir, ele precisa existir, mas
enquanto discurso, enquanto prática não. Nós estamos ocupando um lugar que é o
de sustentar esse discurso para aparentar que existe uma prática [...] Essa prática
é uma falácia, não existe. (Psicóloga C).
Para França (2004), outras formas de atuação, além das perícias, são possíveis, pois “o
psicólogo jurídico pode atuar fazendo orientações e acompanhamentos, contribuir para
políticas preventivas, estudar os efeitos do jurídico sobre a subjetividade do indivíduo, entre
outras atividades e enfoques de atuação”. Popolo (1996, apud FRANÇA, 2004), por sua vez,
defende que a Psicologia Jurídica deve transcender às demandas jurídicas, transformando-se
em instrumento para melhor exercício do Direito.
A insatisfação em relação ao lugar em que ocupam não gerou apenas críticas ao
sistema prisional e ao Estado, mas também possibilidades de mudança da realidade de
trabalho disponível. A partir da discussão a respeito das limitações em relação à atuação no
Complexo, foram sugeridas pelas psicólogas algumas possibilidades de mudança do quadro
atual, no que se refere à realização de perícia, assim como à emissão de pareceres técnicos:
A gente não ficaria só nesse lugar de perícia, poderia até existir esse lugar, mas a
gente faria muito mais do que isso; poderia fazer várias coisas: trabalhos de
grupos, reflexões com os presos, não aquela terapia tradicional, mas a psicoterapia
breve, onde pudesse estar criando um espaço para se discutir as questões da vida,
dos conflitos psíquicos, proporcionando esse amadurecimento que a gente tanto
quer ver quando a gente faz a avaliação. Mas se nunca é criado nenhum tipo de
trabalho, para que isso ocorra... A gente teria de criar diante das condições, do
possível (Psicóloga A).
[...] levar essa pessoa [o sentenciado] a refletir alguma coisa sobre a vida dela,
pela primeira vez, fazendo com que ela saia daqui com uma centelha de reflexão,
uma centelha de necessidade de mudança de consciência [...] ser útil a essa pessoa
também, não ser útil só ao juiz, fazer com que esse trabalho possa ter um benefício
subjetivo (Psicóloga B).
[...] No decorrer desses onze anos, quando eu saí (de uma unidade do Complexo
para outra), eu peguei uma pilha de projetos que eu fiz e nunca, nenhum foi
absorvido pelo Estado, nunca houve interesse [...], eu desisti do Estado, eu faço
meus projetos como consultora para organizações não-governamentais, porque o
governo, realmente, não se interessou (Psicóloga C).
Um dos desafios encontrados por uma das psicólogas no desempenho da sua função
foi o de servir à demanda do Juiz e, ao mesmo tempo, contribuir de alguma forma para que
aquele indivíduo volte recuperado para a sociedade. Durante a entrevista de avaliação, disse
acreditar que nesse momento, mesmo que curto, ele (o sentenciado) poderá refletir sobre a
necessidade de mudança, produzindo assim um benefício, considerado por ela como sendo
subjetivo.
A discussão de profissionais da área em relação aos limites de atuação, portanto, gira
em torno da submissão às questões jurídicas e da falta de espaço e liberdade para desenvolver
outras práticas voltadas para projetos junto à população carcerária, aos agentes penitenciários,
à família dos sentenciados, dentre outros. É preciso que esses profissionais se agreguem em
torno de uma pauta, a fim de discutirem suas práticas, o lugar em que estão inseridos,
tentando reverter a realidade de muitas instituições penais, muito mais preocupadas com a
objetividade de suas decisões, afastando-se assim do seu objetivo primordial: a
ressocialização. Isto sim estaria de acordo com as leis brasileiras, onde não há prisão perpétua,
e os criminosos então confinados, voltariam ao convívio social.
Fato é que a atuação do profissional no sistema prisional, da forma como se configura,
gera insatisfação nesses mesmos profissionais que demonstram interesse na inclusão social
dos detentos, haja vista que o mesmo sistema reforça o paradoxo do caráter repressor e
excludente, impedindo assim a garantia de cidadania e direitos humanos preconizada pela
Carta Magna. Basta se ater à quantidade de denúncias de maus-tratos e mortes ocorridas nas
prisões brasileiras.
Diante disso, constata-se que, no seu exercício profissional em presídios, o psicólogo
praticamente fica impedido de cumprir o pressuposto no Código de Ética. Sobre o assunto,
Atoé (2001) destaca:
[...] o sentimento da gente, não só meu como acho de todos os psicólogos que eu já
vi no sistema, é de frustração [...] o terceiro setor consegue fazer coisas boas, a
pastoral carcerária, por que não o governo? (Psicóloga C).
A partir do que foi discutido neste estudo, percebe-se que a Psicologia Jurídica é um
campo de saber e atuação muito amplo. Apesar de bastante atrelada às questões do judiciário
e de unir-se a este pela necessidade da avaliação das questões subjetivas que permeiam a
execução das leis, é visível que a área está cada vez mais buscando seu papel para a promoção
da cidadania, de modo a perceber e respeitar as pessoas envolvidas no processo jurídico seja
ele de qualquer natureza.
Existiu ainda a diferença entre os objetos de estudo da Psicologia e do Direito e a
principal questão é saber reunir ambos os saberes, a fim de se validar as decisões do mundo
jurídico, sem desconsiderar os seus sujeitos. Observa-se a identidade do profissional atuando
em instituições de justiça que se perguntam ‘qual papel deve desempenhar, o de clínico para o
qual foi preparado, ou o de membro de uma equipe do judiciário?’. Tais inquietações remetem
à complexidade tanto do sistema quanto da atuação do profissional junto ao poder judiciário,
na sua prática cotidiana de trabalho e os atores sociais nele envolvidos.
Para entender o que pensavam as psicólogas das instituições prisionais sobre sua
própria atuação, se fez necessário entender primeiramente o contexto em que estavam
inseridas. As instituições carcerárias de Salvador, assim como tantas outras do nosso país, não
oferecem boas condições de trabalho para seus profissionais, incluindo os psicólogos. O
ambiente de trabalho, por si só, acarreta insegurança, submissão às autoridades que regem o
sistema e limitações quanto ao trabalho desenvolvido que, neste caso, muitas vezes se resume
à confecção de um laudo a ser entregue ao juiz.
Essas questões emergiram do discurso das profissionais entrevistadas e serviram de
base fundamental para o desenvolvimento da pesquisa. Foi possível avaliar que, na sua
maioria, as atribuições do psicólogo jurídico (previstas em lei), conseguem ser realizadas na
prática, apesar das barreiras encontradas, das limitações e dificuldades in loco no exercício
profissional.
Notou-se que o discurso dessas profissionais está de acordo com a discussão de outros
profissionais da Psicologia Jurídica estudados. Discurso esse repleto de questionamentos e
insatisfações com o trabalho desenvolvido, com o lugar que ocupam e o sistema ao qual estão
subjugadas. Percebeu-se um tom de discurso pessimista, reflexo das situações reais às quais
estavam submetidas.
A princípio, esperava-se que o discurso encontrado, a partir do relato das
entrevistadas, fosse outro, voltado para a questão da garantia dos direitos humanos e não um
relato de insatisfações e idéias que não podem ser executadas. Como profissional que tem o
ser humano como principal objeto de estudo, o psicólogo deve estar compromissado com a
garantia de uma atuação que beneficie a sociedade.
A falta de liberdade para atuar foi um dos pontos principais encontrados no relato das
entrevistadas, pois a atuação desse profissional, nesse contexto, já está de antemão subjugado
a outro campo de saber, mais tradicional e consolidado – o Direito, que aponta o
encarceramento como única e imediata solução, como eficácia de controle social para a
questão da criminalidade.
Existe uma importante contradição quanto ao discurso de duas áreas do conhecimento
que divergem no olhar sobre o mesmo objeto – o sujeito submetido às sanções do judiciário.
O Direito, com seu olhar objetivo, se ocupa em averiguar os fatos e enquadrar os sujeitos nas
leis específicas; o psicólogo, por sua vez, adentra os portões das prisões buscando
compreender as motivações subjetivas que levaram o sujeito a cometer os crimes.Até que
ponto essa visão é deformada, quando se conhece as atuais funções do psicólogo no contexto
prisional? Neste cenário, o psicólogo atua de forma limitada e pouco contribui na
transformação da realidade que se apresenta.
Encontramos psicólogos frustrados com suas funções, com um discurso repleto de
críticas ao sistema ao qual estão submetidos e às limitações do trabalho desenvolvido. O
presente estudo aponta então para uma necessidade urgente de mudanças em suas práticas
profissionais e de repensar as políticas públicas para o sistema prisional.
Antes de encerrar, não se pode descartar aqui o fato de que é imprescindível atentar
para a valorização desses profissionais, para que lhes possa ser franqueado o poder de
reflexão crítica e inovadora, de forma a legitimar seu trabalho e contribuir para a tão
preconizada e urgente inclusão social, se quisermos fazer parte de um sistema mais justo e
eqüitativo.
Esta parceria multidisciplinar, principalmente, com o campo do direito, deve acrescer
saberes e, ao mesmo tempo, convalidar autonomia das funções dentro do sistema judiciário.
No entanto este processo de diálogo e de convívio de saberes necessariamente deve se dar
dentro de um complexo entendimento de que tudo está intrinsecamente interligado, em
contínua transformação.
REFERÊNCIAS
ANAF, Cláudia. Formação em Psicologia Jurídica. IN: Anais do III Congresso Ibero
Americano de Psicologia Jurídica. São Paulo, 1999.
BANDEIRA, Maria Márcia Badaró. Linhas de fuga: uma breve reflexão da prática do
psicólogo na prisão. Ciência e Profissão- Diálogos- nº 2, mar./2005, p.
CIAMPA, Antônio da Costa. Identidade IN: LANE, Silvia T. M; CODO, Wanderley (orgs.).
Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2004.
FRANÇA, Fátima. Reflexões sobre Psicologia Jurídica e seu Panorama no Brasil. IN:
Psicologia: teoria e prática - 2004, 6 (I): 73-80.
______________. Cidadania Valoriza Psicologia Jurídica. IN: Jornal psi, ed.138. CRP - São
Paulo. Disponível em: < http://crpsp.org.br/a_acerv/jornal_crp/ >. Acesso em: jun.2006.
Indico o trabalho para publicação on-line e ao prêmio Silvia Lane principalmente pela
relevância do tema. As observações e preocupações manifestas neste trabalho são de extrema
importância, para que futuros psicólogos possam buscar outras possibilidades concretas de atuação. É
preciso estimular iniciativas de reflexão realizadas apenas por uma parcela ainda restrita de
profissionais, incluindo os de psicologia, que só agora começam a repensar suas práticas nas prisões
para além da Avaliação Psicológica. A luta será longa e precisamos ter coragem para produzir a crítica
necessária que viabilize e implemente a inclusão social. A sensibilização para a realidade das
condições de trabalho e o potencial de atuação do psicólogo nas prisões necessita atingir o poder
público e principalmente a sociedade, que apresenta uma rejeição imensa ao tema, dificultando as
discussões para outras soluções que não sejam apenas as de enclausuramento de pessoas. A iniciativa
da autora, dentre outras dão continuidade a uma discussão responsável sobre o sistema prisional. Vale
lembrar que a população de origem afro - descendente tem sido a mais atingida pela perversidade do
sistema; e a Psicologia necessita se posicionar, apresentar propostas concretas e produzir
conhecimento específico envolvendo a população carcerária e principalmente possibilitar que
psicólogos e outros profissionais envolvidos possam rever seus conceitos e suas práticas contribuindo
para um trabalho de inclusão social.
O artigo apresentado atende aos objetivos do TCC, idealizados pelo Curso de Psicologia da
FBDC. Contêm considerações relevantes em relação ao problema, aos objetivos do estudo, a
metodologia e a bibliografia encontrada, abordando aspectos importantes sobre a prática do psicólogo
no sistema prisional. Considero que foram realizados levantamentos básicos sobre a prática do
psicólogo, que indicam a necessidade de investimentos efetivos na formação do profissional de
psicologia, para atender a uma demanda de pessoas que sofrem os mais perversos tipos de tratamento
no cotidiano, reduzindo suas possibilidades de reintegração social. A autora conseguiu visualizar
mudanças para este campo de atuação dos psicólogos, ainda tão pouco explorado frente o potencial de
nossa categoria. Concluo desejando que as reflexões e críticas apresentadas neste artigo possam
repercutir positivamente na trajetória profissional de pessoas envolvidas nesta atuação e contribuir de
fato com mudanças no campo da Psicologia Jurídica.
Atenciosamente,
Marilda Castelar
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