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JORNAL DA USP
22/10/2020
Samba e rap, apesar de serem estilos de música diferentes, podem guardar semelhanças e serem mais “íntimos” entre si.
A nal, ambos representam, em diversos momentos, as camadas mais pobres da população brasileira, com suas
di culdades e realidades. “Os dois estilos podem trazer, em alguns casos, guras da marginalidade que povoam a cultura
brasileira”, descreve a jornalista Rachel D’Ipolitto de Oliveira Sciré.
E foi escutando samba e pontos de umbanda sobre o universo da malandragem que a jornalista passou a pensar mais
profundamente nestas guras da marginalidade. “De que forma incorporam nossa realidade? Para quais sabedorias dão
passagem? O que articulam sob a forma de transgressão?”. Tais questionamentos levaram Rachel a dar início, em 2016, a
uma pesquisa no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. O trabalho investigou as semelhanças e diferenças entre
as personagens do malandro e do bandido, a partir de sambas sobre a malandragem na obra de Germano Mathias, e de
raps sobre o “mundo do crime” na obra do grupo Racionais MC’s.
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13/12/2020 Narrativas do samba e do rap guardam semelhanças entre si que vão além das origens – Jornal da USP
Os mais de dois anos de pesquisas e análises resultaram no estudo de mestrado intitulado Ginga no asfalto: guras de
marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC’s, apresentado no IEB em 2019, e que contou
com a orientação do professor Walter Garcia. Após a apresentação de seu estudo no IEB, Rachel pretende publicar a
dissertação em livro.
“
As narrativas presentes nessa pesquisa nos ajudam a pensar sobre os processos históricos, econômicos e sociais que dizem
respeito à experiência de marginalização em nossa sociedade”
O malandro e o bandido
O estudo foi realizado a partir da análise de sambas interpretados por Germano Mathias e raps do grupo Racionais
MC’s. Rachel realizou uma análise estética das obras e não chegou a entrevistar os músicos. É a partir das análises que
ela re ete: “As narrativas presentes nessa pesquisa nos ajudam a pensar sobre os processos históricos, econômicos e
sociais que dizem respeito à experiência de marginalização em nossa sociedade”. Para a pesquisadora, o lugar do
marginal, do excluído, do periférico e do fora-da-lei não é eventual em nossa cultura.
Além das análises das narrativas, Rachel também investigou as representações dos malandros, dos bandidos e da
violência urbana no acervo on-line do jornal O Estado de S. Paulo. “Essa pesquisa trouxe resultados interessantes que
favorecem a quebra de estereótipos, quando se pensa, por exemplo, na gura clássica do malandro que povoa o universo
do samba”, aponta Rachel. A imagem cultural do malandro simpático, de chapéu de palha, camisa de seda e sapato
bicolor, que frequenta o mundo do samba, contrasta com as diversas guras apresentadas como malandros nas “Notas
Policiais” do jornal. “Como um japonês que falsi cava molho de pimenta com terra, um rapaz negro que aplicava golpes
por saber falar inglês, um soldado do exército que cometia furtos no ônibus, batedores de carteira chilenos, curandeiros
discriminados como exploradores da ‘credulidade popular’, vendedores de maconha ou de cocaína, desordeiros,
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assaltantes, exploradores na zona do meretrício, entre outros tipos, que agiam amparados na esperteza ou no uso de
armas brancas ou de fogo.”
Ao comparar, por exemplo, as narrativas do samba “Senhor Delegado”, gravado por Germano Mathias em 1957, e de
um rap como “Homem na Estrada”, do Mano Brown, em 1993, Rachel a rma que é possível refazer uma trilha que liga
as antigas “prisões para averiguação” aos modos extralegais de eliminação de suspeitos que são observados na
atualidade. “Os dois protagonistas são incriminados de forma antecipada e enfrentam di culdades para se defender,
mas essas situações ganham escala com o passar dos anos – enquanto o malandro do samba está sendo preso pelo
delegado, o homem na estrada é assassinado em sua própria casa pela polícia.”
Rachel explica que “o malandro, no samba, e o bandido, no rap do Racionais, são guras que utilizam formas de
expressão particulares, como a gíria”. Nas narrativas cantadas, segundo a estudiosa, eles aparecem como representantes
das camadas pobres da população e têm uma inserção precária na estrutura produtiva. “Um dos pontos que unem
malandros e bandidos, por exemplo, é a questão da sobrevivência, que surge nas letras de diferentes maneiras”, aponta
Rachel. Abaixo, trechos das duas letras, “Senhor Delegado” e “Homem na Estrada”, que evidenciam as semelhanças, por
exemplo, na di culdade de sobrevivência que aparece nas narrativas por meio da luta para se manter vivo num cotidiano
violento, seja no universo da malandragem ou no mundo do crime.
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Persistência histórica
Por mais que haja uma diferença de tempo entre as duas músicas, pois Germano Mathias e Racionais não são
contemporâneos, é possível reconhecer a persistência histórica de alguns temas e práticas na realidade brasileira.
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13/12/2020 Narrativas do samba e do rap guardam semelhanças entre si que vão além das origens – Jornal da USP
“Podemos citar como exemplo o uso da violência no dia a dia”, descreve Rachel.
O samba “Senhor Delegado” foi gravado em 1957. Já o rap “Homem na Estrada” é de 1993. As duas obras permitem
veri car que a representação e a associação cam evidentes pelos ambientes. “Por exemplo, sambas que se passam em
morros e favelas, ambientes de diversão popular, como escolas de samba, ga eiras, ou que descrevem situações de
opressão direcionada aos mais pobres”, descreve a pesquisadora. “Nos raps, as narrativas também tematizam o cotidiano
nas periferias, por meio de discussões que versam sobre a pobreza, o racismo, o encarceramento em massa e a
violência.”
Os artistas
Germano Mathias nasceu, em 2 de junho de 1934, no bairro do Pari, em São
Paulo. Tornou-se sambista em meio aos engraxates e outros trabalhadores + Mais
informais que praticavam o samba no cotidiano, em rodas de batucada e de
tiririca espalhadas pelas praças da cidade, tendo recebido também in uência dos
sambas tocados no rádio nas décadas de 1940 e 1950.
O Racionais MC’s é um grupo de rap paulistano, considerado o mais importante do gênero no País, formado por
Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue. Surgiu no nal da década de 1980, em meio ao desenvolvimento da
cultura Hip Hop no Brasil. Possui dois EPs, quatro álbuns de estúdio, dois álbuns ao vivo, uma coletânea e um
DVD. Entre as produções, destaca-se o disco Sobrevivendo no Inferno, que, entre outros reconhecimentos, ocupa a
14ª posição na lista dos 100 melhores discos de música brasileira da revista Rolling Stone, superou 1,5 milhão de
cópias vendidas (disco triplo de diamante) e, em maio de 2018, foi incluído à lista de obras obrigatórias para o
vestibular 2020 da Unicamp, no gênero poesia.
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