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Anais do IV Colóquio

Filosofia e Literatura:
Poética
ISBN 978-85-7822-593-3

São Cristóvão/SE
05 a 07 | julho.2017
GeFeLit - Grupo de estudos
em Filosofia e Literatura
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética
São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

REITOR REVISÃO
Angelo Roberto Antoniolli Jacqueline Ramos

VICE-REITOR
Iara Maria Campelo Lima EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Julio Gomes de Siqueira
DIRETORIA DO CECH Jessica Andrade Almeida
Maria Leonia Garcia Costa Carvalho

COMISSÃO ORGANIZADORA REALIZAÇÃO:


Alexandre de Melo Andrade (UFS)
Carlos Eduardo Japiassu de Queiroz (UFS)
Christine Arndt de Santana (UFS)
Jacqueline Ramos (UFS)
José Amarante Santos Sobrinho (UFBA)
Luciene Lages Silva (UFS)
Maria A. A. de Macedo (UFS)

COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandre de Melo Andrade (UFS) APOIO:
Carlos Eduardo Japiassu de Queiroz (UFS)
Christine Arndt de Santana (UFS)
Fabian Jorge Pineyro (Pio Décimo)
Jacqueline Ramos (UFS)
José Amarante Santos Sobrinho (UFBA)
Luciene Lages Silva (UFS)
Maria Aparecida A. de Macedo (UFS)
Oliver Tolle (USP)
Romero Junior Venancio Silva (UFS)
Tarik de Athayde Prata (UFPE)
Ulisses Neves Rafael (UFS)

Imagem da capa: Jules Olitski, Cleopatra Flesh, 1964

FICHA CATALOGRÁFICA

Colóquio Filosofia e Literatura (4. : 2017 : São Cristóvão, SE).


Anais [recurso eletrônico] / IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética, 05 a 07 de julho, 2017 /
organizado por Jacqueline Ramos. – São Cristóvão/SE : Editora UFS, 2017. 320 p.; 27cm x 36,1cm.
Evento realizado pelo Grupo de Estudos de Filosofia e Literatura (GeFeLit) da Universidade Federal de
Sergipe com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES

ISBN 978-85-7822-593-3
1. Filosofia. 2. Literatura. 3. Crítica Literária. 4. Crítica Filosófica. I. Grupo de Estudos de Filosofia e
Literatura. II. Título.
CDU – 1:82-09
Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Sumário

Apresentação 6

Programação 8

Conferências (resumos)
A poesia pré-modernista brasileira: uma crítica da crítica
Alexei Bueno – Poeta, ensaísta e editor 12
A Poética de Aristóteles e o Averroes de Borges: Literatura, diversidades e conflitos
Profa. Dra. Maria das Graças de Souza – Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo 13
Linguagem: seus lances e limites
Prof. Dr. Lourival Holanda – Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco 14

Mesas-redondas (resumos)
A imagem e seus confins: uma proposta de leitura da explicação fulgenciana para o surgimento dos deuses
José Amarante Santos Sobrinho (Letras/UFBA) 16
Poesia e Filosofia em Orides Fontela
Alexandre de Melo Andrade (Letras/UFS) 17
Ação, paixão e felicidade na tragédia de Sófocles
Orlando Luiz de Araújo (Letras/UFC) 18
O gótico e os limites do iluminismo: o caso Wuthering heights
Marcos Fonseca Ribeiro Balieiro (Filosofia/UFS) 19
O ataque de Sexto Empírico às téchnai (in: M I-VI) e seu caráter político pedagógico
Rodrigo Pinto de Brito (Filosofia/ UFS) 20
O furor de Hipólito na Phaedra de Sêneca
Tereza Pereira do Carmo (Letras/UFBA) 21
Ernesto Grassi e a reabilitação da tradição humanista: literatura e retórica como formas de conhecimento
Eduardo Cesar Maia Ferreira Filho (Comunicação/Letras/UFPE) 22
Camus e Sartre na autoficção ionesconiana
Maria A. A. de Macedo (Letras/UFS) 23
A letra e a terra: Clarice e o devaneio poético em A maçã no escuro
Fernando de Mendonça (Letras/ UFS) 24
A presença da ideia de combate no teatro de Voltaire
Vladimir de Oliva Mota (Artes Visuais/UFS) 25

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Fenômenos de intermitência em Passenger


Maria do Carmo de Siqueira Nino (Artes/UFPE) 26
A poética cômica de Aristófanes nas Dionísias de Acarnenses
Ana Maria César Pompeu (Letras/UFC) 27
A concepção Sartreana da imaginação e a linguagem literária
Tárik Prata (Filosofia/UFPE) 28
Uma investigação dos conceitos do imaginário e do simbólico no tocante ao processo de recepção literária
Carlos Eduardo Japiassú de Queirós (Letras/UFS) 29
A “ressurreição da barbaria”: perspectivas intelectuais e literárias acerca das expressões populares
no Brasil na Primeira República
Ulisses Neves Rafael (Antropologia/UFS) 30
Poéticas do cômico na literatura brasileira do século XIX: zombaria, malandragem e ironia
Jacqueline Ramos (Letras/UFS) 31
Poética do drama e esclarecimento: Diderot,Teatro e Educação
Christine Arndt de Santana (Teatro/UFS) 32
Mimesis e não-diferenciação estética na filosofia da literatura de Hans Georg Gadamer
Cecília Mendonça de Souza Leão Santos (Filosofia/UFS) 33
Para além da divindade: formulações plutarqueanas sobre o acaso
Luciene Lages Silva (Letras/UFS) 34
A disposição do artista: invenção e imaginação na Teoria geral das belas-artes de Sulzer
Oliver Tolle (Filosofia/USP) 35
A lógica do código: Spock, Sherlock e os robôs de Asimov
Beto Vianna (Letras/UFS) 36

Comunicações
O gênero “poema em prosa” repaginado na vanguarda literária: ecos de Baudelaire na ficção de
Nuno Ramos
Lara Angélica Vieira de Aguiar (Filosofia/UFOP) 38
Por trás de Um ninho de mafagafes cheios de mafagafinhos
Jessica Andrade Almeida (Letras /UFS) 46
Leitura do romance Teatro, de Bernardo Carvalho, a partir da territorialização de Deleuze-Guattari
Juliana Nascimento Berlim Amorim (Letras/UFRJ) 66
Concepções materialistas nas estéticas de Brecht e Lukács
Alexandre Sales Macedo Barbosa (Filosofia/UFAL) 74
A linguagem poética como meio aprazível de ensinar filosofia de Epicuro no texto de Lucrécio
Eduardo da Silva Barbosa (Filosofia/UFF) 84
O eros de Platão no mundo de Lavínia: entre o desejo e o pecado
Fernanda Carvalho (Letras/UFS) 96
Maurice Merleau-Ponty e a expressão literária na Fenomenologia da percepção
Ybine Dias (Filosofia/UFS) 105
À espera de Godot: uma leitura interpretativa de Beckett à luz do pensamento heideggeriano
Poliana Marques Cordeiro Costa (Comunicação Social/UFS) 118

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A poesia como potência de orientação e expressão da vida helênica no período arcaico


Emerson Fernandes (Filosofia/PUC-Rio) 138
A arte poética de Horácio: uma crítica romana sobre a produção grega
Iasmim Santos Ferreira (Letras/UFS) 148
Comicidade em José Cândido de Carvalho
Maria Renata Santos Ferreira (Letras/UFS) 160
Salvação e mediação em O sol se põe em São Paulo
Sérgio Murilo Fontes de Oliveira Filho (Letras/UFS) 168
A galinha e o conhecimento do ovo: uma análise de Clarice Lispector a partir da epistemologia kantiana
Alexandre Bartilotti Machado (História/UNEB) 176
Sujeitos históricos e ficcionais: Machado de Assis e a interioridade no discurso filosófico
Ana Carla Lima Marinato (Letras/UFPE) 186
Esforço imaginante e imagem seminal na criação literária
Igor Gonçalves Miranda (Letras/UFS) 195
A tragédia sofocliana sob o olhar de Nietzsche
Ivanildo Araujo Nunes (Letras/UFS) 209
O cômico na obra de Clarice Lispector
Geovaneide Santos dos Reis (Letras/UFS) 217
Os poetas do futuro: um diálogo entre Nietzsche, Heidegger e Manoel de Barros
Gabriel Kafure da Rocha (Filosofia/UFPE) 228
A literatura sob o viés filosófico: intercruzamentos
Ramon Ferreira Santana (Letras/UFS) 243
Linguagem e poesia: o fazer poético de Manoel da Barros à luz de Martin Heidegger
Gilvanio Moreira Santos (Filosofia/UFPE) 254
O repertório poético de Sílvio Romero
Luziane dos Santos (Educação/UNIT) 270
Nas veredas da comicidade e do riso
João Paulo Santos Silva (Letras/UFS) 277
Henri Bergson e Evaldo Coutinho: em torno da ideia de “intuição filosófica”
José Paulo Maldonado de Souza (Filosofia/UEPE) 295
“Eu, comigo e Deus”: uma autoanálise inquietante
Patricia Gonçalves Tenório (Letras/PUC-RS) 308

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Apresentação

“A filosofia não deixa de ser filosofia


tornando-se poética, nem a poesia deixa de ser
poesia tornando-se filosófica”
Benedito Nunes

“(…) objeto do olhar e modo de ver


são fenômenos de qualidade diversa: é o
segundo que dá forma e sentido ao primeiro.”
Alfredo Bosi

Nesta quarta edição do Colóquio Filosofia e Literatura, promovido pelo Grupo de Estudos
em Filosofia e Literatura (GeFeLit), procuramos abrir espaço para o debate acerca da poética.
Poética se refere tanto à linguagem artística quanto aos estudos acerca dessa manifestação de
linguagem. E dela se ocuparam filósofos e literatos em suas reflexões e em suas escrituras.
Poesia de vocação filosófica, o fenômeno da heteronímia em Pessoa, ao configurar perspec-
tivas diversas, apresenta uma reflexão acerca da relação entre sujeito e objeto, questão ne-
vrálgica da filosofia. Filosofia que recorre ao poético, como a opção platônica por diálogos,
que não deixa de ser um drama em que se encena o fazer filosófico, em que o sentido surgiria
como resultado do embate discursivo.

Tema de amplo espectro e que agregou inúmeras perspectivas como pode ser percebido nes-
tes Anais que documentam o evento. Como descrito na programação que se segue, houve em
cada noite do evento uma conferência com renomados intelectuais. Além das conferências, o
evento contou com 21 palestras (organizadas em sete mesas) e 34 comunicações (organizadas
em dez sessões), totalizando 58 trabalhos alinhados ao tema e/ou à interface filosofia/litera-
tura. Participaram da programação professores, pesquisadores, pós-graduandos, graduados
e graduandos de 15 diferentes universidades em sua grande maioria públicas (UFS, UFPE,
UFBA, UFMG, USP, UFRN, UNEB, UFG, UFF, UFC, UFOP, UFRJ, UFAL, PUC-RIO, UNIT).

E tal diversidade é propícia para o salutar intercâmbio que se espera no âmbito da pesquisa
e da formação do pesquisador. Nesse sentido, a organização do evento procurou sempre ga-
rantir um tempo razoável de exposição dos trabalhos (20 minutos para comunicações e 30
minutos para as palestras das mesas) e o tempo para a interlocução ao final de cada sessão
de trabalhos (30 minutos ao menos), garantindo, assim, que as instigantes apresentações ali-
mentassem o diálogo e as reflexões acerca da poética.

O GeFeLit registra seus agradecimentos à Capes, cujo apoio financeiro foi imprescindível
para custear a vinda de nossos conferencistas e palestrantes. Registre-se, ainda, que o evento
congregou perto de 200 interessados entre pesquisadores, profissionais, estudantes de gra-
duação e pós-graduação de diversas localidades e universidades.

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Nestes Anais, em conformidade com as orientações do Comitê Científico, registramos o


evento através da edição do resumo das conferêcias e mesas e dos textos completos das ses-
sões de comunicação. Seguindo a tradição do grupo, os textos completos das conferêcias e
palestras serão editados no n. 10 de nossa revista A Palo Seco (www.gefelit.net), que será
publicada até o final deste ano.

Comissão Organizadora

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Programação

05 | julho.2017 – quarta-feira (Auditório da Didática 6)


16:30h – 19:00h | Credenciamento
19:15h | Abertura do evento
19:30h | Conferência:
A poesia pré-modernista brasileira: uma crítica da crítica
Alexei Bueno – Poeta, ensaísta e editor
21:30h | Confraternização

06 | julho.2017 – quinta-feira
13:30h – 15:30h | Sessões de Comunicações
16:00h – 18:00h | Mesas-Redondas
19:00h | Conferência (Auditório da Didática 6):
A Poética de Aristóteles e o Averroes de Borges: Literatura, diversidades e conflitos
Profa. Dra. Maria das Graças de Souza – Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo
21:30h | Confraternização

07 | julho.2017 – sexta-feira
13:30h – 15:30h | Sessões de Comunicações
16:00h – 18:00h | Mesas-Redondas
19:00h | Conferência (Auditório da Didática 6):
Linguagem: seus lances e limites
Prof. Dr. Lourival Holanda – Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco
21:30h | Confraternização

Sessões de Comunicações & Mesas

06 | julho.2017 – 13:30h | Sessões de Comunicações


Sessão 1 – Auditório BICEN
A “comédia” Megarense segundo Aristóteles e Aristófanes – Francisco Alison R. da Silva (UFC) – Coordenador
Apontamentos sobre a má fama da personagem mitológica Helena – Greicymara dos S. Silva (UFS)
A arte poética de Horácio: uma crítica romana sobre a produção grega – Iasmin Santos Ferreira (UFS)
A tragédia sofocliana sob o olhar de Nietzsche – Ivanildo Araújo Nunes (UFS)
O monólogo de Hippolytys na peça Phaedra, de Sêneca – Matheus Santiago Gonçalves Dias (UFBA)

Sessão 2 – Auditório ADUFS


Devenir Evita: entre o sagrado, o abjeto e o êxtase – Débora Duarte dos Santos (USP/UFS) – Coordenadora
Pierre Menard, autor do Quixote, ou: o que é uma personagem literária? – Italo Lins Lemos (UFSC)
Por trás de Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos – Jessica Andrade Almeida (UFS)
O gênero “poema em prosa” repaginado na vanguarda literária: ecos de Baudelaire na ficção de Nuno Ramos – Lara Angelica
Vieira de Aguiar (UFOP)
Comicidade em José Cândido de Carvalho – Maria Renata Santos Ferreira (UFS)

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Sessão 3 – Auditório Computação


Por uma poética de travessia: a linguagem enquanto performance na poesia de Manoel de Barros – Ramon Diego Câmara
Rocha (UFS) – Coordenador
Roupnel e Bachelard: devaneios e espacialidades – Gabriel Kafure da Rocha (UFRN)
Linguagem e poesia: o fazer poético de Manuel de Barros à luz de Martin Heidegger – Gilvanio Moreira Santos (UFPE)
Blanchot: filosofia e literatura – Lucila Lang Patriani de Carvalho (USP)

Sessão 4 – Auditório Ciências Sociais


A estética da existência na ficção de Mário Bortolotto – Antonio Eduardo Soares Laranjeiras (UFBA) – Coordenador
Esforço imaginante e imagem seminal na criação literária – Igor Gonçalves Miranda (UFS)
Henri Bergson e Evaldo Coutinho em torno da idéia de “intuição filosófica” – José Paulo Maldonado de Souza (UFPE)
A literatura como espaço heterotópico em As palavras e as coisas – Juliana Damazio Carvalho (UFG)
Escrever o infinito: a sinfilosofia de Schlegel entre fragmento e romance – Uriel Massalves de Souza do Nascimento (PUC-Rio)

Sessão 5 – Auditório CECH


Caldeirão: quando a memória revela a história – Aretha Ludmilla Pacheco Lira Barros (UFS) – Coordenadora
Concepções materialistas nas estéticas de Brecht e Lukács -Alexandre Sales Macedo Barbosa (UFAL)
À espera de Godot: uma leitura interpretativa de Beckett à luz do pensamento heideggeriano – Poliana Marques Cordeiro Costa (UFS)
A literatura sob o viés filosófico: intercruzamentos – Ramon Ferreira Santana (UFS)

06 | julho.2017 – 16:00h | Mesas/Palestras


Mesa 1 – Auditório BICEN
Poesia e Filosofia em Orides Fontela – Alexandre de Melo Andrade (Letras/UFS)
A letra e a terra: Clarice e o devaneio poético em A Maçã no Escuro – Fernando de Mendonça (Letras/ UFS)
A concepção Sartreana da imaginação e a linguagem literária – Tárik Prata (Filosofia/UFPE)

Mesa 2 – Auditório ADUFS


A imagem e seus confins: uma proposta de leitura da explicação fulgenciana para o surgimento dos deuses – José Amarante
Santos Sobrinho (Letras/UFBA)
Para além da divindade: formulações plutarqueanas sobre o acaso – Luciene Lages Silva (Letras/UFS)
O ataque de Sexto Empírico às téchnai (in: M I-VI) e seu caráter político pedagógico – Rodrigo Pinto de Brito (Filosofia/ UFS)

Mesa 3 – Auditório Computação


Poética do drama e esclarecimento: Diderot,Teatro e Educação – ChristineArndt de Santana (Teatro/UFS)
O gótico e os limites do iluminismo: o caso Wuthering heights – Marcos Fonseca Ribeiro Balieiro (Filosofia/UFS)
A presença da ideia de combate no teatro de Voltaire – Vladimir de Oliva Mota (Artes Visuais/UFS)

07 | julho.2017 – 13:30h | Sessões de Comunicações


Sessão 1 – Auditório BICEN
Poesia, filosofia, verso e prosa na Grécia Antiga – Martim Reyes da Costa Silva (UFMG) – Coordenador
A linguagem poética como meio aprazível de ensinar a filosofia de Epicuro no texto de Lucrécio – Eduardo da Silva Barbosa
(UFF)
A poesia como potência de orientação e expressão da vida helênica no período arcaico – Émerson Fernandes (PUC-Rio)
O Eros de Platão no mundo de Lavínia: entre o desejo e o pecado – Fernanda Carvalho (UFS)
In quantum memoriae enteca subrogare potuit: memória e esquecimento em Fulgêncio, o mitógrafo – Shirlei Patrícia Silva
Neves Almeida (UFBA)

Sessão 2 – Auditório ADUFS


Nas veredas da comicidade e do riso – João Paulo Santos Silva (UFS) – Coordenador
A galinha e o conhecimento do ovo: uma análise de Clarice Lispector a partir da epistemologia kantiana – Alexandre Bartilotti
Machado (UNEB)
O cômico na obra de Clarice Lispector – Geovaneide Santos dos Reis (UFS)

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Como dizer existência? Considerações sobre os usos formal-indicativo e poético da linguagem na fenomenologia – Marília
Mendonça de Souza Leão Santos (UFPE)
Drama e encontros da linguagem em Benedito Nunes – Saulo Matias Dourado (UFBA)

Sessão 3 – Auditório da Computação


Addie Bundren no reino do indefinível: uma leitura desconstrutiva de William Faulkner – Leila de Almeida Barros (UNESP) –
Coordenadora
A literatura, um empreendimento de saúde em Gilles Deleuze – Ícaro Gomes da Silva (UFC)
Leitura do romance Teatro, de Bernardo Carvalho, a partir da territorialização de Deleuze-Guattari – Juliana Nascimento
Berlim Amorim (UFRJ)
Sexualidade, erotismo e transgressão: leituras sobre A história do olho e O erotismo, de Bataille – Manoela dos Santos Barbosa (UNEB)
Maurice Merleau-Ponty e a expressão literária na Fenomenologia da percepção – Ybine Dias Correia (UFS)

Sessão 4 – Auditório Ciências Sociais


A poética do expressionismo em diálogo com a filosofia de Arthur Schopenhauer – José Rafael Santana Valadão (UFS) –
Coordenador
Sujeitos históricos e ficcionais: Machado de Assis e a interioridade no discurso filosófico – Ana Carla Lima Marinato (UFPE)
Aspectos filosóficos da morte no soneto “Agregado infeliz de sangue e cal” de Augusto dos Anjos – Lys Lins Calisto (UFAL)
Relações entre pensamento e sofrimento: a leitura das cartas de Artaud feita por Maurice Blanchot – Natália Leon Nunes (USP)
O pessimismo amoroso da humanidade em Augusto dos Anjos – Salomão Davi Xavier da Silva (UFPB)

Sessão 5 – Auditório CECH


Reler para ficcionalizar: uma conversa com Silvia Cusicanqui e Makota Valdina – Hilda Ferreira da Costa França (UFBA) –
Coordenadora
O repertório poético de Sílvio Romero – Luziane dos Santos (UNIT)
“Eu, comigo e Deus”: uma autoanálise inquietante – Patrícia Gonçalves Tenório (UFPE)
Salvação e mediação em O sol se põe em São Paulo – Sergio Murilo Fontes de Oliveira Filho (UFS)

07 | julho.2017 – 16:00h | Mesas/Palestras


Mesa 1 – Auditório BICEN
Uma investigação dos conceitos do imaginário e do simbólico no tocante ao processo de recepção literária – Carlos Eduardo
Japiassu de Queirós (Letras/UFS)
Mimesis e não-diferenciação estética na filosofia da literatura de Hans Georg Gadamer – Cecília Mendonça de Souza Leão
Santos (Filosofia/UFS)
A disposição do artista: invenção e imaginação na Teoria geral das belas-artes de Sulzer – Oliver Tolle (Filosofia/USP)

Mesa 2 – Auditório ADUFS


A poética cômica de Aristófanes nas Dionísias de Acarnenses – Ana Maria César Pompeu (Letras/UFC)
Poéticas do cômico na literatura brasileira do século XIX: zombaria, malandragem e ironia – Jacqueline Ramos (Letras/UFS)
Camus e Sartre na autoficção ionesconiana – Maria A. A. de Macedo (Letras/UFS)

Mesa 3 – Auditório Computação


Ernesto Grassi e a reabilitação da tradição humanista: literatura e retórica como formas de conhecimento – Eduardo Cesar
Maia Ferreira Filho (Comunicação/Letras/UFPE)
Ação, paixão e felicidade na tragédia de Sófocles – Orlando Luiz de Araújo (Letras/UFC)
O furor de Hipólito na Phaedra de Sêneca – Tereza Pereira do Carmo (Letras/UFBA)

Mesa 4 – Auditório Ciências Sociais


A lógica do código: Spock, Sherlock e os robôs de Asimov – Beto Vianna (Letras/UFS)
Fenômenos de intermitência em Passenger – Maria do Carmo de Siqueira Nino (Artes/UFPE)
A “ressurreição da barbaria”: perspectivas intelectuais e literárias acerca das expressões populares no Brasil na Primeira
República – Ulisses Neves Rafael (Antropologia/UFS)

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Conferências
(resumos) 
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A poesia pré-modernista brasileira:


uma crítica da crítica

Alexei Bueno Finato


Poeta, ensaísta e editor

A conferência busca dar uma visão de conjunto da poesia pré-moder-


nista brasileira, a partir da diluição e fusão das influências parnasianas e
simbolistas, ainda marcantes na obra inicial da quase totalidade dos po-
etas brasileiros depois classificados como modernistas, ao mesmo tem-
po que analisa acertos e equívocos da crítica em relação a essa espécie de
sincretismo presente nas três primeiras décadas do século XX, e procu-
ra delinear a diferença entre moderno e modernista, bem como traçar
considerações sobre a denominação consagrada em relação ao lirismo
brasileiro desse período.

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A Poética de Aristóteles e o Averroes de Borges:


literatura, diversidades e conflitos

Maria das Graças de Souza


Filosofia | USP

Parto da análise do conto de Borges “A busca de Averrois”, para exami-


nar as possibilidades da literatura como meio de conhecimento da di-
versidade das culturas e das identidades construídas historicamente. No
conto, estudando a Poética de Aristóteles, o filósofo árabe não consegue
entender o que é uma tragédia, e acaba interpretando-a a partir de mo-
delos da escrita do Alcorão. O conto nos remete à questão da diversidade
das culturas, de sua articulação ou de sua impenetrabilidade recíproca:
o que impedia o Averrois posto em cena por Borges de compreender a
tragédia era precisamente o fato de ele não levar em conta que se trata-
va de dois mundos radicalmente distintos: o mundo grego (e a tragédia
grega, que se serve da ação) e o mundo islâmico (cuja literatura se serve
da narração). Em seguida, recorro à posição de Sartre em O que é a lite-
ratura, segundo a qual toda literatura é situada historicamente, ou, em
outras palavras, toda literatura, queira ou não o escritor, sem renunciar
a nenhum de seus atributos específicos, é constituída pelo contexto em
que é produzida e ao mesmo tempo constitui este contexto. A palavra do
escritor desvela o mundo e suas contradições, de tal modo que ninguém,
escritor ou leitor, pode se dizer inocente; nem mesmo Aristóteles, Aver-
roes ou Borges.

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Linguagem:
seus lances e limites

Lourival Holanda
Letras | UFPE

A crítica radical da linguagem, pondo a nu sua constituição e seus limi-


tes, foi momento decisivo da cultura ocidental contemporânea. Começa
então a suspeição de que somos nossa linguagem. Consequentemente,
isso afetaria as estruturas morais, políticas, estéticas. E, enfim, nossa
compreensão do que significa conhecer – e se a linguagem poderia dar
conta da complexidade do real. Somos nossa linguagem. E, se não sus-
peitamos do que nos parece evidente, é porque dada estrutura de lingua-
gem nos aprisionou, cegou, conformou. A patologia da linguagem que as
[ainda] novas mídias [Facebook, Twitter] veiculam deixam patentes, no
desnorteio semântico, o desmantelamento de certos elementos que até
então imantaram a cultura; também tal desconstrução abriu brechas à
inventividade insuspeitadas. O debate político, a argumentação filosófi-
ca ou parlamentar, a criação literária ou a retórica jornalística, em tudo
há sintoma de uma outra atitude face a linguagem; um desinvestimento
análogo à tagarelice. Daí a necessidade de investigar a percussão de tal
prática diante das novas massas, e das pós-verdades. E a gravidade que
disso resulta, na comunicação e criação contemporâneas.

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Mesas-redondas
(resumos) 
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A imagem e seus confins: uma proposta de leitura da


explicação fulgenciana para o surgimento dos deuses

José Amarante
Instituto de Letras/UFBA

Fulgêncio é conhecido principalmente por sua obra mitográfica intitu-


lada Mythologiae e por sua interpretação dos mitos tendo por base a
filosofia moral cristã. Neste trabalho, analisa-se o foco que o autor dá
à fábula Vnde idolum, que abre o livro, não apenas reconhecendo sua
base cristã, como também procurando mostrar outras possíveis fontes
clássicas para a explicação do surgimento dos ídolos conhecidas pelo
autor. Propõe-se, e reforçando o papel didático de sua obra, que estrate-
gicamente Fulgêncio faz uso de uma imagem fronteiriça, documentada
numa fonte bíblica, mas já conhecida em fontes clássicas.

Palavras-chave: Fulgêncio; Mythologiae; Vnde idolum; Ídolos.

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Poesia e filosofia em Orides Fontela

Alexandre de Melo Andrade


Letras/UFS

A primeira obra de Orides Fontela, intitulada Transposição, foi lançada


em 1969 e obteve reconhecimento por parte da crítica paulistana ligada
à universidade, o que lhe possibilitou novas publicações. Dentre tantos
aspectos que chamam a atenção, um dos mais recorrentes (inclusive no
próprio discurso da crítica) é a profunda relação entre poesia e filosofia
que sua obra apresenta. Tendo cursado filosofia e se interessado por teo-
rias orientais de meditação e autoconhecimento, Orides Fontela suscita,
pelo seu verso enxuto, um tom filosofante que a revela dotada de refle-
xão filosófica e especialmente alinhada a temas como a fala, o silêncio, a
linguagem e o ser. O propósito da comunicação é, assim, discorrer sobre
essas relações inerentes à sua obra.

Palavras-chave: Orides Fontela; Poesia; Filosofia.

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Ação, paixão e felicidade na tragédia de Sófocles

Orlando Luiz de Araújo


Letras/UFC

A comunicação pretende abordar a felicidade (eudaimonía) na tragédia


de Sófocles, especialmente, nos contextos em que a personagem incor-
pora o papel do homem bem nascido e de boa vida, cujo estado de alma
revela o contentamento, a alegria ou a satisfação inesperada e momen-
tânea. Para tanto, estabeleceremos um cotejo desse estado de bem-estar
com as paixões (páthe) que podem modificar e agitar a alma. A análise
parte da categoria ação como apresentada por Aristóteles na Ética a Ni-
cômaco, bem como da noção de ação do filósofo na Poética.

Palavras-chave: Sófocles; Aristóteles; Eudaimonia.

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O gótico e os limites do iluminismo:


o caso Wuthering heights

Marcos Fonseca Ribeiro Balieiro


Filosofia/UFS

Trataremos, em um primeiro momento, de examinar a obra Wuthering


heights, de Emily Brontë, com vistas a estabelecer os aspectos que per-
mitem associá-la à tradição gótica. Em seguida, passaremos a mostrar
de que maneira essa filiação permite que essa obra seja lida como uma
tentativa de recusa do modelo de sociabilidade estabelecido por parte da
filosofia das luzes britânicas, notadamente no que diz respeito a aspec-
tos como a polidez e o tratamento destinado às mulheres.

Palavras-chave: Gótico; Iluminismo; Wuthering heights.

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O ataque de Sexto Empírico às téchnai (in: M I-VI)


e seu caráter político pedagógico

Rodrigo Pinto de Brito


Filosofia/UFS

Neste trabalho demonstrarei como Sexto Empírico avança seu ataque às


téchnai (artes/ofícios) em Contra os professores (M I-VI). Primeiramen-
te mapeamos o conceito de stoicheîon/stoicheîa (elemento/elementos)
em Aristóteles. Após, passo para a abordagem de Sexto Empírico, que se
dá seguindo um paradigma interno da própria sistematização da arte,
no caso, especificamente da Arte Gramática. Finalmente, encerrarei ex-
traindo algumas conclusões políticas sobre a ataque sextiano à essa arte.

Palavras-chave: Ceticismo; Gramática; Artes.

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O furor de Hipólito na Phaedra de Sêneca

Tereza Pereira do Carmo


Instituto de Letras/UFBA

Apresentaremos neste trabalho algumas notas para um estudo do dis-


curso de Hipólito em Phaedra, do tragediógrafo romano Sêneca. Partin-
do do estoicismo que trabalha com a ideia de paixão como doença inte-
lectual que priva a alma da saúde, pois uma alma saudável é uma alma
racional, apontaremos para a presença do irracional na personagem Hi-
pólito tendo o furor presente em suas palavras e ações. A partir da análise
da personagem queremos mostrar que Sêneca aproveita o abandono da
razão pela paixão como um erro de julgamento que contradiz a proposta
estóica. Para Sêneca, todos os homens estão sujeitos à paixão, mas dei-
xar-se dominar pelo pathos, pelo irracional tem consequências funestas.

Palavras-chave: Sêneca; Estoicismo; Furor; Hipólito.

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Ernesto Grassi e a reabilitação da tradição humanista:


literatura e retórica como formas de conhecimento

Eduardo Cesar Maia Ferreira Filho


Comunicação Social/UFPE

O filósofo italiano Ernesto Grassi (1902-1991) propôs uma visão parti-


cular a respeito do problema da palavra na história da filosofia. Após
revisar detidamente uma série de pensadores que sempre foram deixa-
dos à margem da filosofia “oficial” (Dante, Petrarca, Quintiliano, Cícero,
Angelo Poliziano, Coluccio Salutati, Lorenzo Valla, Albertino Mussato,
Leonardo Bruni e, principalmente, Giambattista Vico), Grassi defendeu
a revalorização estritamente filosófica do pensamento humanista e, por-
tanto, da literatura e da retórica como formas legítimas de especulação
sobre o real.

Palavras-chave: Humanismo filosófico; Ernesto Grassi; Retórica.

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Camus e Sartre na autoficcção ionesconiana

Maria A. A. de Macedo
Letras Estrangeiras/UFS

O teatro da “dérision” é um termo comumente preferido por Ionesco


àquele do teatro do absurdo – este sim, cunhado por Esslin (1961), e di-
fundido para assinalar um novo teatro surgido no início de 1950. Se esse
autor franco-romeno é conhecido por sua dramatização de um absurdo
existencialista, desconhece-se suas inúmeras obras autoficcionais, em
que o existencialismo descola-se da cena e torna-se objeto de uma crí-
tica singular – singular por estar também aí desenvolvido o aspecto da
“dérision”. Sobre Camus, sua referência é, na maioria das vezes, implí-
cita, tendo ela um desenvolvimento em que é possível reconhecer a sua
aproximação do teórico do absurdo. Sobre Sartre, a posição do pensa-
dor franco-romeno é iconoclasta. Dessa maneira, as referências ao líder
do Existencialismo, tal como o conhecemos, são explícitas e virulentas,
tendo elas como alvo tanto a adjetivação do existencialismo “humanis-
ta” sartriano, como o seu engajamento político. De qualquer maneira, a
posição do autor do teatro da “dérision” está desdobrada na revolta e na
cumplicidade com esses existencialismos e será explanado, no colóquio,
a partir de suas obras autoficcionais.

Palavras-chave: Autoficção; Ionesco; Camus; Sartre.

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A letra e a terra:
Clarice e o devaneio poético em A maçã no escuro

Fernando de Mendonça
Letras/UFS

O romance A maçã no escuro (1961), de Clarice Lispector, será aqui ilu-


minado por uma das abordagens fenomenológicas que Gaston Bache-
lard dedicou aos elementos da natureza: a potência criadora da terra.
Com base em A terra e os devaneios da vontade, e na sequência A ter-
ra e os devaneios do repouso (originalmente publicados em 1948), será
interpretado o percurso do protagonista Martin, que culmina em um
movimento de escrita poética e uma ampla reflexão sobre o processo de
criação literária.

Palavras-chave: Devaneio poético; Criação literária; Fenomenologia.

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A presença da ideia de combate no teatro de Voltaire

Vladimir de Oliva Mota


Artes Visuais/UFS

O que aqui se pretende é apresentar a ideia de combate no teatro de Vol-


taire, indicando esse gênero como a mais importante artilharia do seu
arsenal filosófico. Para tal, a dramaturgia voltairiana será considerada
em bloco e em períodos distintos da produção do filósofo: desde sua
primeira peça, ainda na adolescência, até suas obras de velhice, Voltaire
orientou sua poética teatral em vista, prioritariamente, do combate, isto
é, da crítica/polêmica a tudo o que pareça um obstáculo à felicidade.

Palavras-chave: Voltaire; Teatro; Combate.

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Fenômenos de intermitência em Passenger

Maria do Carmo de Siqueira Nino


Teoria da arte/UFPE

Passageiro profissão repórter (1975) narra a trajetória de um persona-


gem, David Locke (Jack Nicholson), que vindo a entrar em conflito com
seu próprio eu, resolve eclipsa-lo, e para tal assume uma nova identida-
de. Mas para produzir seu efeito, um desaparecimento deve necessaria-
mente deixar traços, e o filme do diretor Michelangelo Antonioni nos dá
a possibilidade de considerar os três conceitos fundamentais lacanianos,
o simbólico, o imaginário e o real, à luz desta historia de duplo e os fenô-
menos de intermitência.

Palavras-chave: Identidade; Duplo; Intermitência.

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A poética cômica de Aristófanes


nas Dionísias de Acarnenses

Ana Maria César Pompeu


Letras/UFC

Nossa pesquisa pretende estabelecer uma poética da comédia antiga gre-


ga, através do próprio comediógrafo Aristófanes, único representante do
gênero, na fase mencionada, de quem temos peças completas, que ante-
cipa a filosofia platônico-aristotélica em conceitos fundamentais acerca
do fazer poético. A investigação se faz, primeiro, pela demonstração de
que a comédia Acarnenses é o paradigma da comédia antiga aristofâni-
ca. Apresentamos então a gênese da comédia pela paródia de um canto
fálico, na celebração das Dionísias Rurais, pela paz recém-adquirida por
Diceópolis.

Palavras-chave: Poética; Aristófanes; Acarnenses.

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A concepção sartreana da imaginação


e a linguagem literária

Tárik Prata
Filosofia/UFPE

Sartre enxerga na fenomenologia de Husserl uma concepção da cons-


ciência como um fenômeno intencional. Isso o leva a concebê-la como
um perpétuo movimento rumo ao que está para além dela. Mas isso não
significa que ele veja a consciência como pura adequação às coisas que
a transcendem, pois a consciência é capaz, também de negar o real e,
assim, criar algo novo. Essa feição dinâmica da consciência, enquanto
uma espontaneidade criadora, é aquilo que Sartre denomina “imaginá-
rio”, modo da consciência que está na base da criação artística. O traba-
lho abordará o impacto da concepção sartreana da imaginação sobre sua
visão acerca da linguagem literária.

Palavras-chave: Sartre; Linguagem; Imaginação.

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Uma investigação dos conceitos do imaginário e do


simbólico no tocante ao processo de recepção literária

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz


Letras/UFS

A visada do trabalho proposto circunscreve a literatura enquanto dis-


curso específico que só se realiza enquanto tal quando de uma recepção
por parte de um leitor que se consagrará como fator necessário no pro-
cesso de interpretação do conteúdo expresso pelo texto. Nesse sentido, a
existência de uma especificidade de um discurso cunhado como literário
deve ser investigada no cerne de um processo resultante da conjunção de
suas características formais e sua repercussão no imaginário do leitor no
ato de uma dada recepção. Para efetivarmos nosso objetivo de análise,
adotaremos como base teórico-metodológica a Corrente de Estudos do
Imaginário e a Estética da Recepção, a partir das quais aprofundaremos
os conceitos de imaginário e de simbólico, com o objetivo de descrever-
mos um modo específico de relação e/ou atuação fenomênica do discur-
so literário na imaginação do leitor.

Palavras-chave: Imaginário; Simbólico; Estética da Recepção.

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A “ressurreição da barbaria”: perspectivas intelectuais


e literárias acerca das expressões populares
no Brasil na Primeira República

Ulisses Neves Rafael


Antropologia/UFS

O tema da nossa apresentação gira em torno do papel dos intelectuais


brasileiros, mais especificamente dos literatos da chamada Geração Bo-
êmia de 1889, que, na eufórica passagem da monarquia para a república,
melhor traduzem o esforço da elite nacional de inserção numa moder-
nidade tardia. A boemia, nesse sentido, constitui-se numa existência
que se contrapõe ao modelo ordenado de relações sociais e às rotinas da
vida burguesa predominantes. Trata-se de uma geração, cuja produção
literária se afirma dentro de um campo autônomo dotado de elemen-
tos suficientes para uma compreensão do mundo habitual e das rotinas
do cotidiano carioca e cuja centralidade pode ser representativa de uma
postura comum e generalizada com relação à realidade social envolven-
te, sobretudo com as expressões culturais populares.

Palavras chave: Boemia literária; Elites intelectuais; Cultura popular.

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Poéticas do cômico na literatura brasileira


do século XIX: zombaria, malandragem e ironia

Jacqueline Ramos
Letras/UFS

Há três modos diversos da comicidade, que implicam em concepções


e funcionalidades diferentes, na produção literária brasileira do sécu-
lo XIX. A vasta produção de comédias de costumes no período vale-se
da ridicularização. A zombaria, sempre com certa carga de agressão, é
tomada aqui, naquele sentido descrito por Bergson de reprimir desvios
comportamentais, visando a uma maior coesão social. Caso único, mas
não menos importante, é Memórias de um Sargento de milícias, cuja ne-
opicaresca apresenta a malandragem como estruturante da sociedade
brasileira. Finalmente, com Machado de Assis o aproveitamento da tra-
dição luciânica, que vincula o cômico ao filosófico, é percebida em suas
comédias, romances e crônicas.

Palavras-chave: Comicidade; Zombaria; Malandragem; Ironia.

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Poética do drama e esclarecimento:


Diderot, teatro e educação

Christine Arndt de Santana


Teatro/UFS

No século XVIII francês, o ser humano esclarecido é aquele instruído nas


ciências e dotado de valores morais que o orientem em suas ações; ou
seja, espera-se que neste ser esclarecido sejam unificadas as qualidades
do sábio (esclarecido) e do bom (virtuoso). Diderot, ao pensar sobre o
esclarecimento e em como alcançá-lo, entende que o teatro possui um
poder pedagógico eficaz pois possibilita consolidar uma educação es-
tética capaz de unificar as duas qualidades descritas. Nesse sentido, o
drama é um instrumento eficaz na formação do ideal humano. O Phi-
losophe, ao tornar a arte da representação mais próxima da “verdade da
natureza”, ou seja, ao encampar mudanças que tornam a cena mais re-
alista, mais próxima dos espectadores, tem como finalidade fazer com
que a arte dramática possibilite o alcance do ideal humano descrito.
Nesse sentido, as reformas diderotianas à cena foram fundamentais para
o surgimento do drama burguês e revolucionou a mise en scène, uma vez
que o surgimento deste novo gênero rompe com a maneira neoclássica
de escrever e encenar as peças de teatro na França do século XVIII. Este
escrito pretende expor a poética do drama em Diderot; poética esta que
permite ao Philosophe colocar em prática o seu projeto de esclarecimen-
to, uma vez que sua revolução dramática tem como finalidade tornar o
gênero humano esclarecido.

Palavras-chave: Diderot; Poética; Drama; Esclarecimento; Teatro;


Educação.

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Mimesis e não-diferenciação estética na filosofia


da literatura de Hans Georg Gadamer

Cecília Mendonça de Souza Leão Santos


Filosofia/UFS

O trabalho objetiva investigar a reabilitação da mimesis grega na gêne-


se de um conceito ainda pouco explorado na hermenêutica filosófica: a
não-diferenciação estética. Examinarei como Gadamer desenvolve uma
original exegese da mimesis arcaica a fim de recuperar contemporanea-
mente algo da conexão entre belo, bom e verdadeiro na arte que vigorava
no pensamento grego; elucidando assim como a não-diferenciação esté-
tica explicita a natureza transformativa, constitutiva da essência da arte
poética.

Palavras-chave: Mimesis; Literatura; Hermenêutica filosófica.

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Para além da divindade:


formulações plutarqueanas sobre o acaso

Luciene Lages Silva


Letras/UFS

O tratado De Fortuna (PERI TYXHS) de Plutarco é um escrito de filoso-


fia ética, de caráter polêmico. Uma defesa da liberdade humana, nota-
damente da autonomia intelectual e moral do homem, contra um deter-
minismo nas ações humanas, que identifica a tyche (sorte, acaso) como
ilimitada. Procuraremos analisar a possível definição da tyche e suas
aplicações na obra plutarqueana, observando como o autor, ao mesmo
tempo em que constrói sua própria teoria a respeito do tema, critica ou-
tros autores que lhe pareceram equivocados – tais como estóicos e epicu-
ristas – e que defendiam implicitamente que o homem é um ser incapaz
de orientar sua própria vida, estando sempre à mercê da fortuna.

Palavras-chave: Plutarco; Tyche; Acaso.

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A disposição do artista: invenção e imaginação


na Teoria geral das belas-artes de Sulzer

Oliver Tolle
Filosofia/USP

Para o filósofo da arte Johann Georg Sulzer (1720-1779), a obtenção da


beleza numa obra de arte é o resultado da atenção que o artista mantém
em relação à totalidade de sua criação. Trata-se de um esforço sublime e
de difícil êxito, mas o artista desfruta da vantagem de que o seu juízo de
gosto não permite que se equivoque quanto à articulação recíproca das
partes da obra. Sem dúvida, o artista facilmente pode sucumbir à apa-
rência de beleza, quando sacrifica as belezas do todo em favor da beleza
do particular. Esse comportamento decorre de um certo apressamento
na conclusão da obra, em grande parte motivado pelo desejo de êxito e
sucesso, mas em nenhum momento pode ser atribuído a uma falha do
gosto. Uma arte não comprometida com a totalidade degenera em ob-
jeto de persuasão e, portanto, tão logo se reconhece nela seu artifício,
ela se mostra desprovida daquele efeito duradouro que a tornaria plena-
mente bela. Nesse jogo de forças, exige-se do artista uma disposição que
só pode ser explicada em termos de aproximação do divino, porque ele
não deve agir com vistas a um resultado efêmero, de modo a produzir sa-
tisfações e estímulos pontuais, mas sim criar situações particulares que
só encontram sua justificação no arremate da totalidade.

Palavras-chave: Invenção; Disposição; Imaginação; Estética; Retórica.

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A lógica do código:
Spock, Sherlock e os robôs de Asimov

Beto Vianna
Letras/UFS

A noção de representação é recorrente nas teorias linguísticas, tributária


da epistemologia ocidental e das ciências cognitivas. Uma consequência
é o uso do código como marcador político e legitimador do seu estatuto
de ciência. Processos ontogênicos dos seres linguajantes ficam fora da
análise, delimitando o que é e quem está autorizado a fazer ciência lin-
guística. Proponho buscar, no universo ficcional, respostas culturais à
invisibilidade do organismo nas explicações linguísticas hegemônicas.

Palavras-chave: Código linguístico; Ficção científica; Romance policial.

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Comunicações
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O gênero “poema em prosa” repaginado na vanguarda


literária: ecos de Baudelaire na ficção de Nuno Ramos

Lara Angélica Vieira de Aguiar


Letras, Jornalismo e pós em Filosofia – Universidade Federal de Ouro Preto/MG

O ponto de partida é a análise da constituição do gênero “poema em


prosa” na ficção contemporânea, utilizando como objeto de estudo o
livro de Nuno Ramos, O mau vidraceiro, cuja obra foi inspirada no livro
Pequenos poemas em prosa, de Charles Baudelaire. O enfoque deste
trabalho é identificar as mudanças pelas quais passou esse gênero, res-
gatando formas e autores até chegar à narrativa atual onde a poesia ga-
nha força e resistência dentro dessa nova modalidade expansiva, sem
métrica ou versos.

Palavras-chave: Ficção contemporânea; Gênero literário; Prosa poética.

Antes de fazer uma análise sobre a influência da obra de Charles Baudelaire na obra de Nuno
Ramos, é importante relembrarmos os conceitos de poesia, prosa, prosa poética, como elas se
juntam e são encontradas tanto num autor como no outro, mas com forças diferentes, visto
que a poesia se expandiu, dando início a um gênero híbrido ainda no século XIX, enquanto a
prosa se apropriou do formato da linguagem da poesia para resultar no que hoje existe forma
as características peculiares da ficção contemporânea.

A poesia, por exemplo, é um gênero que exige certas normas formais, como versos, estrofes e
ritmo. Este tipo de característica faz parte da métrica da poesia, onde os poetas aplicam os seus
recursos literários e estilísticos. Sempre que existe um grupo de autores que partilha as mesmas
características nas suas poesias, costuma-se falar em conformação de um movimento literário.

Dentre as principais características da poesia está o uso de elementos de valor simbólico e de


imagens literárias como a metáfora, que requerem uma atitude ativa por parte de quem lê os
poemas para poder descodificar a respectiva mensagem. A sinestesia também é outro recurso
bem usual, principalmente na poesia simbolista de Baudelaire e, no Brasil, na obra de Cruz

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e Souza, causando uma mistura de sensações permitidas pelos órgãos dos sentidos, produ-
zindo fortes sugestões.

Em sua essência, a poesia é um gênero literário composto por versos estruturados de forma
harmoniosa, como uma manifestação de beleza e estética retratada pelo escritor em forma de
símbolos, no caso, as palavras. Observando no sentido figurado, poesia é tudo que comove,
sensibiliza e acorda sentimentos. É uma arte que inspira e encanta, justamente por ser subli-
me e bela. Alguns elementos formais caracterizam um texto poético, como por exemplo, o
ritmo, os versos e as estrofes, que definem a métrica de uma poesia.

Se o objetivo é distinguir o estilo de um poeta, é necessário observar a métrica de um poema,


para assim compreender quais recursos literários específicos são utilizados. Existem também
os versos livres, que não seguem nenhuma métrica. Neste caso, o escritor tem total liberdade
para definir o seu próprio ritmo e criar as suas próprias normas. Esse tipo de poesia é também
conhecida como poesia moderna, cujos elementos são absorvidos do modernismo.

Já sobre a prosa, o que se pode inferir é que se trata de um estilo natural de falar e escrever, com
ausência de rima, ritmo, musicalidade e outras particularidades da estrutura poética. Diante de
uma rápida inserção no mundo da prosa, já é possível identificar o formato que mais parece uma
conversa cotidiana usada pelas pessoas para se expressarem racionalmente. Objetivo e pouco
ambíguo, o texto em prosa apresenta, por norma, uma análise e narração sobre determinado as-
sunto, por exemplo. Ou seja, a prosa narrativa é a história ficcional, como os contos, as crônicas,
as novelas e os romances, por exemplo, conjunto este que forma a chamada "prosa literária".

Pois bem, então o que seria uma mistura desses dois gêneros? É o que pode se chamar de
‘poesia em prosa’ ou ‘prosa poética’, estilo híbrido que dá autonomia ao autor para compor
um texto poético não constituído por versos, desde que haja harmonia, ritmo e a componen-
te emotiva inspirada pela poesia. A prosa poética é a prosa que quebra algumas das regras
normais da prosa com o objetivo de alcançar uma imagem mais formal e sofisticada ou uma
maior transição emocionalmente tensa.

A prosa poética, como forma poética específica, tem origem no século XIX na França. A pro-
sa francesa era atingida por leis tão restritas que, quebrando-as, era possível criar novas leis
que poderiam ser vistas como poesia em prosa. Por isso, a poesia em prosa é considerada por
muitos críticos como uma primeira quebra de leis, vontade de expressão. A poesia moder-
na surgiu quando poetas se revoltaram contra a obrigatoriedade de um código de escrita, o
verso, para chegar-se à definição de poesia, propondo o que foi considerado por muitos uma
fusão entre gêneros, ou um novo gênero.

Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stephane Mallarmé são considerados alguns dos poe-
tas fundadores desta forma de poesia. Mas o que se tem notícia é que o século XVIII já havia
produzido outros poemas em prosa, que exploravam o ritmo musical e harmonioso das frases
e parágrafos. Quando Baudelaire chega, no século XIX, e escreve sem nenhum ritmo um tex-
to e o intitula de poema, coloca em questão a própria definição de poesia.

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É importante salientar a constituição do gênero ‘poema em prosa’ utilizando como objeto de


estudo o livro de Nuno Ramos, O mau vidraceiro, cuja obra foi inspirada no livro Pequenos
poemas em prosa, de Charles Baudelaire. Ao identificar as características encontradas na
narrativa contemporânea de Nuno Ramos, onde a poesia ganha força e resistência dentro
dessa nova modalidade expansiva, sem métrica ou versos, é possível enxergar traços da prosa
poética de Baudelaire1, baseados nos trechos abaixo:

Eu fui mais de uma vez vítima dessas crises e desses surtos que nos autorizam a crer que
demônios maliciosos deslizam em nós e nos fazem executar, sem nosso conhecimento, suas
mais absurdas vontades. (...) E, ébrio de minha loucura, gritei para ele, furiosamente: “A vida
é bela! A vida é bela!” Essas brincadeiras nervosas não são sem perigo e pode-se, às vezes,
pagá-las caro. Mas o que importa a eternidade da danação a quem achou em um segundo o
infinito da alegria (BAUDELAIRE, Charles).

Segue abaixo fragmento original do texto “O mau vidraceiro”, de Charles Baudelaire, aqui
reproduzido na obra O mau vidraceiro, de Nuno Ramos.

1.  BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Disponível em: <http://pequenospoemasemprosa.blogs-


pot.com.br/2011/01/o-mau-vidraceiro.html>. Acesso em: 02 de jul. 2017.

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Diante do fato de este assunto não ter sido esgotado, uma vez que o gênero está em constante
mutação, torna-se relevante levantar os dados sobre os primeiros textos, fazer um percurso
histórico e refletir sobre os conceitos de “prosa poética” e “poemas em prosa”, pois esses estilos
têm sido uma constante na literatura contemporânea, principalmente na obra de Nuno Ramos.

Nessa perspectiva, entende-se que o estudo da tradição renovada do poema em prosa na obra
de Ramos, à luz de teóricos, pode trazer à tona as discussões em torno dessa tensão existente
entre a prosa e a poesia, além de como essa fusão se realiza dentro da narrativa.

É importante salientar que o recorrente uso do estilo miniconto na literatura latino-america-


na já vem de uma longa tradição, sendo que no Brasil os grandes pioneiros foram Oswald de
Andrade, na década de 20, e Guimarães Rosa, nos anos 60. Essa popularidade do texto curto
demonstra uma fortaleza estética que só o imediatismo da realidade consegue sustentar.

Para alguns escritores, o miniconto aparece na tradição do poema em prosa, como, por
exemplo, se evidencia na poeticidade do livro Trouxa frouxa (2000), de Vilma Arêas. (...) Na
última década, esta forma ganhou adeptos como Nuno Ramos em O pão do corvo (2001),
Pólita Gonçalves em Pérolas no decote (2000) e em Caligrafias (2004), de Adriana Lisboa
(SCHOLLHAMMER, 2011, p. 96).

Nessa conjunção, acentua-se uma busca de captar a essência do poema em prosa, no qual a
substância principal é a poesia destrinchada em texto corrido, fora dos padrões convencio-
nais, mas que permanece autoritária, ganha vulto e predomina. Segundo Moisés (2005, p.
25), “chegados a este século, o panorama semelha uma encruzilhada: de um lado, o verso,
liberado da rigidez da cadência e do fascínio da melopéia, prosifica-se; em consequência, o
poema torna-se uma organização caótica e arbitrária”.

Devido à existência dessa linha tênue entre a poesia que se impõe na narrativa e a prosa que
acolhe a poesia, se torna mais difícil demarcar o território no qual se encerra o poema em
prosa e no qual tem início a prosa poética. De acordo com Moisés (2005, p. 25), “com base
nessas características, sugeridas pelo tempo em que aparecem, pode-se dizer que a primeira
é o gênero de que a outra é a espécie”. Ou seja, o poema em prosa seria uma espécie dentro do
gênero prosa poética.

Ora, de qualquer modo, estamos tratando de poesia inserida num texto, o que vale a pena
lembrar que poesia é literatura e, como tal, uma “linguagem carregada de significado”, como
disse Ezra Pound (1995, p. 32). Nesse sentido, Bakhtin (2002, p. 95.) formula que, “em maté-
ria de poesia, é possível a ideia de uma ‘linguagem poética’ especial, de uma ‘linguagem dos
deuses’, de uma ‘linguagem sacerdotal da poesia’”.

Um poema pode ser desprovido de poesia. Já a poesia pode penetrar de formas variadas no
poema ou no miniconto. Os dois gêneros, no caso, poesia e prosa, se reúnem para destruir o
isolamento e assim se beneficiarem da fusão que ocasiona novos gêneros, nos quais o poema
chega para se esparramar no texto, enquanto que a poesia é veiculada pela narrativa.

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A prosa é a expressão ordinária da linguagem e permite comunicação; o verso supõe um


“desvio” que complica a mensagem, que interessa em si mesma. Prosseguindo nesta via, dirí-
amos que a prosa é a frase normal, enquanto a poesia é o verso. Concepção evidentemente
contestável devido a duas razões simétricas: primeiramente porque “versos” (isto é, formas
medidas e ritmadas) podem ser desprovidos de “poesia” e podem exprimir realidades “pro-
saicas”. E depois porque muito depressa se percebeu que textos aparentemente “prosaicos”
poderiam, devido a certas qualidades específicas, ser assimilados à poesia e enriquecer o gê-
nero por meio de formas mais ou menos fortemente agressivas. Foi o caso do verso branco,
da prosa poética ou do poema em prosa (STALLONI, 2007, p. 159).

O poema em prosa tem dificuldades de se firmar como gênero porque parece ser resul-
tado de uma rebeldia contra as regras da métrica e da versificação. Mas, de acordo com
Stalloni (2007), algumas características já foram encontradas por Suzanne Bernard em
“O poema em prosa de Baudelaire até nossos dias” e por Tzvetan Todorov em “A noção de
literatura”, o que reforça a ideia de que, mesmo em construção, alguns traços já delimitam
uma identidade desse gênero.

Em 1842, o poema em prosa tem início oficialmente, com a obra Gaspard de La nuit. Fan-
taisies à La manière de Rembrandt et. de Callot, de Aloysius Bertrand. Mas foi com Charles
Baudelaire que o gênero ganhou força, com a coletânea Pequenos poemas em prosa, o que
confirmou a força da poesia em um lugar diferente da rima, fazendo do hibridismo uma nova
característica do modo narrativo.

Segundo André Cechinel (2008), Baudelaire torna-se referência com relação ao novo gênero,
uma vez que na “dedicatória a Arsène Houssaye, Baudelaire confessa que foi após a leitura de
Gaspard de la Nuit, de Aloysius Bertrand, que lhe ocorreu a ideia de escrever algo em torno
‘da vida moderna, ou antes, de uma vida moderna e mais abstrata’”.

Em seu projeto, Baudelaire observa fragmentos que, entretanto, podem se unir sem grande
esforço. Em suma, o autor deseja realizar uma composição fronteiriça, repleta de partes
isoladas, porém de fácil associação, que permitiria a união de contrários. [...] Derivam dessa
concepção de escritura, como sabemos, os célebres Petis Poèmes em Prose (Le Spleen de
Paris), conjunto de poemas em prosa composto, ao todo, de cinquenta textos que variam em
tamanho e tema, mas que sempre preservam o poder de concisão típico desse conflito de
gêneros. Enfim, Baudelaire ambiciona em sua prosa poética derrubar os tradicionais limites
impostos entre poesia e prosa, a saber, a clara separação entre verso, geralmente tomado
como forma superior, e a fluidez da prosa, associada a produções esteticamente inferiores.
De modo geral, o autor de Les fleurs du mal consegue desestabilizar demarcações cristaliza-
das, demonstrando que é plausível pensar em um convívio tensionado de elementos aparen-
temente inconjugáveis (CECHINEL, 2008).

Chegando às obras literárias brasileiras do século XXI, vemos uma continuidade desse estilo
poema em prosa, evidenciado especificamente no livro de Nuno Ramos (2010. p. 61), O mau
vidraceiro, título que foi inspirado em um dos textos de Baudelaire. Através de uma mistura de
metáforas e devaneios, a obra é composta de 61 pequenos contos contendo poesia, brincadeiras
com a linguagem, sempre utilizando uma narrativa experimental, como se pode ver abaixo.

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Em toda frase, perder o sujeito – quem a frase nomeia, o que ela predica, exatamente? Sim,
por que resolver a angústia de um aposto desconectado da oração dominante? Orações não
dominam, pronomes não nomeiam, verbos não conjugam – espalham-se, retalhos ardentes,
colados ao peso vermelho do pó que cobre o poente. Verbo, mas como cacos afônicos de
um grito, recolhendo a vasta maré em sua – música? Do que você está falando? – nunca,
nunca responda esta pergunta, a não ser para deixar uma outra sem resposta – de quem
você está falando? Ganhe tempo. Gagueje. E quando te encurralarem num canto – Como
você se chama? Posso ver sua identidade? – diga que teu nome é símbolo. E se decifrarem
teu símbolo, diga que é parte de uma vasta alegoria. E se decifrarem tua alegoria, diga que
ela apenas anuncia a verdade. Verdade do quê?, perguntarão. Da vinda. Da vinda do quê?,
perguntarão. Da música.

A micronarrativa de Nuno Ramos demonstra um rigor textual tratando de temáticas varia-


das como metafísica e política, além de expor dimensões diferenciadas em textos com pou-
cos parágrafos ou com pouco mais de duas páginas. Velocidade e fragmentariedade são os
elementos da narrativa de Nuno Ramos, características que já foram encontradas não só em
Baudelaire, mas também em Anton Tchecov, Franz Kafka, Julio Cortázar e Dalton Trevisan.

Em uma entrevista ao jornal O Globo, Nuno Ramos conta que “não existe mais uma fronteira
que defina o conceito de escultura, ou o conceito de poesia”. Ele complementa dizendo que o
artista “não tem mais acesso a um bloco linguístico bem definido” e que por isso deve buscar
o novo. Para ele, “talvez esse novo tenha mudado de lugar, migrado de uma forma linguística
para uma especificação poética” (CONDE, Jornal O Globo).

A crítica literária Flora Süssekind sugere que há uma autosatirização no título da obra de
Nuno Ramos, uma vez que o autor também trabalha artisticamente com vidros e decidiu
fazer um paralelo com o texto de Charles Baudelaire, que trata de um vidraceiro. “A referên-
cia ao mau vidraceiro baudelariano parece anunciar uma baliza prévia de leitura na qual se
adivinham o desespero prosaico, o realismo crítico, a crueldade distante que caracterizam o
poema em prosa oitocentista” (SÜSSEKIND, Jornal O Globo).

De acordo com Célia Pedrosa, desde o século XIX que o cenário da cultura ocidental vem
sendo modificado, principalmente por conta das alterações causadas pela modernidade, que
promove a junção de tendências estéticas, políticas, inovações tecnológicas e demandas de
mercado. Para ela, a nova produtividade literária vem carregada de pluralidade e hibridismo.

Pensar a poesia como procedimento e acontecimento transitivos, de leitura e endereçamen-


to, rumo ao plural e ao comum, que assim solicitam e colocam em crise, parece ser a forma
mais ativa de atualmente lidar com clichês hegemônicos ou contra-hegemônicos da vida
cultural e literária (PEDROSA, 2008, p. 49).

O objeto de análise deste ensaio é o livro O mau vidraceiro, de Nuno Ramos, do ponto de
vista de sua representação cultural, literária e contemporânea, com o objetivo de se chegar
às implicações desta obra na permanência e reforço do gênero poema em prosa na narrativa
realizada no século XXI. É possível enxergar uma tradição renovada na literatura, tomando
como base os traços da poesia baudelariana e o hibridismo presentes na obra “O mau vi-

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draceiro”. Basta entender como o pesquisador Marcos Siscar vê a transformação da poesia


daquela época até os dias de hoje.

A poesia, no sentido que lhe dá a melhor modernidade poética, não é uma ponte para ou-
tra coisa, por exemplo o futuro. A poesia aparece como inferno dentro do qual qualquer
reflexão sobre o futuro imediatamente se coloca. Mostra-se como lugar da crise, onde as
convicções se reconhecem em crise. É por instilar o veneno da suspeita (para usar figuras
de Sebastião Uchoa Leite), é por instigar o “mal-entendido” (Baudelaire), e não por definir
caminhos, que a poesia faz alguma diferença. Não é por antever ou por apontar aquilo que
falta, mas por transformar-se no terreno ou no interregno dessa falta. A poesia é aquilo que
falta (PEDROSA, 2008, p. 217).

Como não estamos no terreno das definições totalizantes, mas apenas no das imagens, po-
demos reter mais essa imagem da poesia, aliás, implícita em praticamente todas as citações
revistas aqui: a poesia como a não-prosa. A questão vai mais além, porque mostra a poesia
descendo ladeira abaixo, enquanto que a prosa vai engolindo a poesia, incorporando-a, se
agigantando e tomando espaços. Isso seria uma espécie de quase morte da poesia, enquanto
gênero? A dúvida transparece no trecho do artigo de Susana Scramim abaixo.

A desistência do sujeito frente à decadência de uma forma, o abandono de uma cultura e


de um mundo, a desistência da literatura em ser literatura levam não somente Baudelaire a
tratar da poesia como um cadáver e a Mallarmé compreender a poesia como desastre, mas
igualmente levam Rimbaud a desistir da poesia para proclamar a vida poética. No entanto,
há que se diferenciar os sentidos que podem adquirir os termos decadência e abandono
(PEDROSA, 2008, p. 312).

Após breve leitura dos artigos e livros aqui citados, chega-se a uma indefinição desse novo
gênero, que talvez justamente tenha nascido para ser um não-gênero, um estilo que engloba
várias características e ao mesmo tempo não tem rótulo. Pode ser que ainda não tenhamos
chegado a alguma conclusão porque a transição está em processo contínuo, afinal, o tema é
atual, contemporâneo, ainda em uso e totalmente mutável.

Referência bibliográfica
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Hucitec,
2002.

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Disponível em: <http://pequenospoemasemprosa.


blogspot.com.br/2011/01/o-mau-vidraceiro.html>. Acesso em 02 de jul. 2017.

CECHINEL, André. Mistura de Gêneros: Tirésias em The Waste Land. Todas as letras K, volume 10, nº 1,
2008.

CONDE, Miguel. Volta ao mundo. Jornal O Globo. Edição 1. Página 2.

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MOISÉS, Massaud. A criação literária – Prosa II. 19ª ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

PEDROSA, Celia; ALVES, Ida (orgs.). Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

RAMOS, Nuno. O mau vidraceiro. São Paulo: Globo, 2010.

STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Trad. e notas, Flávia Nascimento. 3ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2007.

SHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.

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Por trás de Um ninho de mafagafes


cheios de mafagafinhos

Jessica Andrade Almeida


Letras-Português/UFS/Itabaiana

O trabalho busca analisar os aspectos cômicos e a crítica social presentes


na obra literária Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos do escri-
tor José Cândido de Carvalho; mais especificamente nos contos “Sucuri
de letra de forma”, “Se a vida acabou compre outra” e “Herói atolado em
carne-seca e lombo de porco”. A fim de identificar os procedimentos cô-
micos presentes nos contos, nos baseamos em três dos principais estu-
dos teóricos sobre a comicidade, a saber: O riso de Henri Bergson, Os
chistes e sua relação com o inconsciente de Freud e Formas simples de
André Jolles. Além da análise dos aspectos cômicos, também fizemos
uma breve abordagem das personagens nos contos e identificamos a fi-
gura do malandro, aquele que atravéz de sua esperteza e astúcia sempre
procura dar-se bem sobre os outros, o que nos levou a uma beve compa-
ração dos contos com a atual situação política do Brasil.

Palavras-chave: Cômico; José Cândido de Carvalho; Malandro.

Introdução
O presente trabalho procura mostrar os aspectos cômicos presente em Um ninho de mafaga-
fes cheio de mafagafinhos, de José Cândido de Carvalho, para isso foi necessário o estudo teó-
rico sobre o riso, a fim de identificar como se constrói o cômico na referida obra. Dessa forma
aprofundamos nossos estudos com importantes textos teóricos que falam sobre o tema, entre
eles: O riso, de Henri Bergson, Os chistes e sua relação com o inconsciente, de Freud e Formas
simples, de André Jolles.

A literatura é um importante mecanismo na sociedade, ela representa vida, através de


sua arte mostra a realidade social. Dessa forma, a literatura tem uma função social, de
deixar o registro de um povo, da tradição de uma determinada época. No livro Um ninho
de mafagafes cheio de mafagafinhos, José Cândido de Carvalho (JCC) deixa registrada a

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tradição de um povo, do interior de Campos onde passou parte de sua vida. Era um ob-
servador atento da vida, dos hábitos e dos costumes de sua comunidade, e em forma de
arte deu expressão a essa cultura.

Apesar de Cândido ter pertencido a Academia Brasileira de Letras, ter excelentes obras e
um vasto currículo, seu trabalho é pouco estudado no meio acadêmico. Nascido em 1914 em
Campos (RJ), José Cândido de Carvalho foi jornalista, romancista, contista. Filho de uma
família pobre de lavradores, imigrantes de Portugal, nunca estudou em escola particular e
começou muito cedo a trabalhar. Em entrevista com Maria Aparecida de Deccega (1983), JCC
fala um pouco de sua trajetória:

Nunca fui um menino com bolsa de estudos. Trabalhei numa refinação de açúcar e numa
torrefação de café. Depois, meu pai montou um negócio do qual fui gerente: uma refinação
de açúcar à beira do Paraíba, em Campos. Queria ser funcionário da Leopoldina [empresa
ferroviária]. Mas não consegui e fui trabalhar como revisor num jornal que vivia morrendo
de fome, lá em Campos. Chamava-se O Liberal. Passei de revisor de O Liberal para fazer
umas notas num jornal chamado O Dia, também em Campos. Fui para redator. Para ganhar
a vida comecei a escrever (DECCEGA, 1983, p. 4-5).

JCC, deixou uma obra composta de dois romances, cinco livros de contos, e um livro de crô-
nica. Seu primeiro livro, foi o romance Olha para o céu, Frederico, 1939, que assim como a
maioria dos livros de Cândido pertence ao regionalismo que procura revelar a vida do povo
brasileiro da época, esse romance procura retratar a vida nos engenhos.

Após 25 anos da publicação de seu primeiro livro, lança o romance O coronel e o lobisomem,
(1964), uma das obras primas da ficção brasileira, com essa obra ganhou vários prêmios como
por exemplo: O Jabuti, Coelho Neto, e Luiza Claudio de Souza, e se consagrou como escritor.
Daí em diante assumiu vários cargos na área da educação como Serviço de Radiodifusão do
Ministério da Educação e Cultura. Em 1971 publica Porque Lulu Bergantim não atravessou o
Rubicon, um livro composto de mais de 150 narrativas.

No ano seguinte, 1972 lança um livro de contos Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos,
compostos por 144 contos curtíssimo, dividido em quatro capítulos intitulados: “Com um par
de auroras e meia porção de luar faço uma canção”, “Mataram meu sonho a pau”, “Coloque
um fecho ecler nas suas esperanças”, “Adeus meu capitão, que as sereias guiam teus mares”,
são contos que contam histórias cômicas e absurdas do “povinho brasileiro”: funcionários
públicos que querem se dar bem; malandros que querem se casar com viúvas ricas; maridos
que planejam sua própria viuvez; mulheres especializadas em “perder” marido em troca de
polpudas pensões; pais de santo que dizem cobrar mais caro por só trabalhar com urubu baia-
no amamentado com leite de cabra, em vez de galinha preta; cartomantes que querem dar o
golpe; políticos que querem esconder seus podres a qualquer custo; velhos apaixonados; fal-
sos cegos e aleijados e muitos outros casos surpreendentes que fazem o leitor se divertir. Essas
histórias em sua maioria acontecem em cidades pequenas, com nomes bizarros, que deixa o
livro ainda mais singular. Nina, fala que os contos de JCC são fruto de um “Brasil profundo,

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que nasce dos grotões da realidade, do cotidiano das pequenas cidades, suas gentes, seus mis-
térios, as manias, as loucuras, os crimes e as supressas mais” (NINA, 2000, p. 26).

Ainda no mesmo ano, 1972, JCC publicou a coletânea de entrevistas Ninguém mata o arco-íris.
Em 1974 passa a ocupar a 31a cadeira na Academia Brasileira de Letras, sucedendo o poeta
Cassimiro Ricardo. Ainda nesse ano, publica o livro Menequinho e anjo de procissão enco-
mendado pela Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral, nele José Cândido
reúne alguns contos que já havia publicado em jornais e em outros livros.

Em 1975 exerce o cargo de presidente do Conselho Estudantil da Cultura e do Estado do Rio


de Janeiro. De 1976 a 1981, foi presidente da Fundação Nacional de Arte. De 1982 a 1983 foi
presidente do Instituto Municipal do Rio de Janeiro. Em 1979, publicou Se eu morrer telefone
para o céu. A editora José Olympio em 1984, reúne esses dois livros, Porque Lulu Bergantim
não atravessou o Rubicon e Um ninho de mafagafos cheio de mafagafinhos, em um só, ao qual
dá o nome de Os mágicos Municipais. José Cândido de Carvalho, morreu no dia primeiro de
agosto de 1989, aos 75 anos, deixou inacabado o romance O rei Baltazar.

José Cândido de Carvalho foi um grande escritor, e jornalista. Sua carreira como jornalista
contribuiu muito para suas criações, uma vez que, além de observar, e vivenciar diversos ca-
sos, o autor também durante o tempo em que trabalhou como redator, compilou milhares de
cartas, que recebia de seus leitores no período que trabalhava na revista O Cruzeiro. A partir
desses recursos, as conversas, as cartas e todas tradições de um povo, e suas observações,
deixou registrado em seus contos e crônicas as histórias do “povinho brasileiro”, formando
um mosaico de um Brasil profundo, como afirma o escritor e crítico literário Miguel Sanches
Neto (2008) citado por Nina (2011):

O homem que escreve é alguém atento à conversa de mesa de bar, porta de livraria ou bal-
cão de farmácia, por isso algumas dessas narrativas são meteóricas, como um comentário
avulso que se ouve de um amigo, mas funciona no conjunto, pois o que o autor apresenta é
o retrato fragmentário de um Brasil profundo (NINA, 2011, p. 23).

Esse Brasil profundo é representado por figuras cômicas, personagens malandros, loucos,
bêbados – personagens típicas da cultura popular, que o autor presenciou ao logo de sua vida
e que ajudam a compor um perfil de escritor ligado a suas origens simples e interioranas.

Esse perfil de escritor, que descreve e analisa os problemas e características da própria cultu-
ra, presente na obra de José Cândido de Carvalho, pertence à linha de romances chamada de
regionalista, caracterizada por se manter num cenário de denúncia das circunstâncias socio-
econômicas, além de inovar na linguagem.

Em Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, José Cândido de Carvalho nos propor-


ciona uma leitura agradável, cheia de boas risadas. Para isso, o autor utiliza vários artifícios,
sempre contando casos de pessoas que querem se dar bem às custas dos outros, geralmente
em cidades pequenas onde todos ficam sabendo de tudo. São histórias curtas, mas que exi-

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gem uma certa habilidade com a leitura, já que o autor brinca muito com as palavras, princi-
palmente quando se refere a nomes de lugares e pessoas.

O título do livro, Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, já causa estranhamento ao


leitor. O que seria mafagafes?! Será que se trata de uma ave, já que está em um ninho? O títu-
lo criado pelo autor é diferente, trata-se de um trava-língua, no qual, “Um ninho” pode estar
associado ao Brasil e “cheio de mafagafinhos”, se refere ao povo brasileiro, aspecto reiterado
no subtítulo da obra: “Contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho brasileiro”,
dessa forma, Cândido assinala a tradição oral e popular. Assim, José Cândido deu uma signi-
ficativa contribuição para a cultura brasileira, ao resgatar em sua obra a tradição dos conta-
dores de casos para a literatura.

No que se refere a linguagem, podemos dizer que se trata de uma linguagem pitoresca,
muitas vezes fora do comum, o que torna a obra singular. O jornalista e escritor Marcelo
Moutinho (2011) fala que José Cândido nessa obra utiliza diversas variedades de linguagem
“ora pitorescas, ora populares desenha uma reveladora caricatura daquele que, com afeto
chamava “povinho brasileiro”.

Logo no início do livro, após o sumário, há um trecho chamado “personagens de nomes es-
trambóticos deste livro”, justamente dedicado a esses nomes fora do comum, entre eles en-
contramos “Abilitrício Teles, Alcebiláquio Castanho, Cacimblida Saquarema, Xénxem Brito,
Oniocretes Peixoto e muitos outros, esses nomes muitas vezes se assemelham com as carac-
terísticas de seus donos. Os nomes dos personagens, assim como os contos, já se constituem
como uma característica da comicidade do autor. O próprio título do livro, “Um ninho de
mafagafes cheio de mafagafinhos”, um trava-língua, os títulos dos contos são outra atração,
muitas vezes o autor utiliza-se dos saberes populares e provérbios para construi-los, como o
exemplo “Toda honestidade tem sua fita métrica”; “Em Rio de piranha macaco bebe água de
canudo”; “Gato com asa não mia”; “Uma figa só não faz verão”.

Também é notável, que as histórias narradas nos contos, normalmente acontecem em cida-
des pequenas, nas quais toda novidade que sucede circula rapidamente entre a população
como mostra o trecho a seguir:

Ficou na cadeira de balanço, enquanto sua arteriosclerose corria, como lacraia pelos corre-
dores, entrava nos quartos e pulava pelas janelas, de modo a cair nos ouvidos de uns e ou-
tros. De noite, a pensão Chique já sabia inteirinha que Ataíde Cunha, das Rendas Mercantis,
estava atacado de maluqueira (CARVALHO, 2011, p. 177).

Os contos que escolhemos para análise foram: “Sucuri de letra de forma”, “Se a vida acabou
compre outra” e “Herói atolado em carne-seca e lombo de porco” através deles procuraremos
expor críticas inseridas nesses contos, que são revelados pelo recurso humorístico, além de
identificar os aspectos cômicos presentes nessas narrativas, e por último relacionar a ques-
tões sociais inseridas nos contos com a atual realidade de nosso país.

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Ainda pretendemos mostrar a figura do malandro e pícaro presentes nos contos escolhidos,
mostrando suas características e pontuando como cada um se comporta dentro dos con-
tos, para isso utilizamos estudos sobre o malandro e o pícaro de Antônio Cândido (1970) e
Mario González (1988).

Por fim, procuramos organizar nosso trabalho em duas etapas, discutindo inicialmente ques-
tões sobre o cômico, em que apresentamos estudos que embasam nossa pesquisa; para de-
pois analisar os aspectos cômicos nos contos, identificando a figura do malandro presente
nos mesmos. E para concluir, uma breve abordagem sobre as críticas sociais inseridas nos
contos acerca da conduta do povo brasileiro, fazendo uma comparação dos malandros de José
Cândido de Carvalho presentes nos contos com o da atual sociedade.

1. Sobre o riso
Quando se fala em riso, é quase impossível encontrar uma definição precisa para esse fe-
nômeno, uma vez que ele se manifesta de várias formas em toda a sociedade, para exprimir
várias sensações. Bergson em O Riso (2007) fala que dificilmente encontraremos uma defini-
ção precisa para o riso, mas é importante saber que ele está inteiramente ligado a vida, ao ser
humano, uma vez que, o homem é o único animal capaz de rir.

Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Uma paisagem pode ser
bela, graciosa sublime, insignificante ou feia; nunca será risível. Rimos de um animal, mas
por termos surpreendido nele uma atitude humana ou uma expressão humana. Rimos de
um chapéu; mas então não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de palha, mas
com a forma que os homens lhe deram, o capricho humano que lhe serviu de modelo
(BERGSON, 2007, p. 2, 3).

Ou seja, só será cômica uma determinada situação se ela estiver relacionada a figura hu-
mana, quando por ventura rimos de um objeto, ou até mesmo de um animal, é que neles
vemos algo que é humano.

O riso é universal, pois esteve e está presente em todos os tempos e âmbitos da sociedade,
embora a depender da época e da cultura possa adquirir valores diferentes, mas sempre vai
estar em todos os domínios. Dessa forma, o que é risível em uma determinada localidade ou
época não necessariamente pode ser para outra, assim como afirma Jolles:

Em certas épocas, os chistes ganha formas e gêneros artísticos de nível mais elevados, ao
passo que, em outras épocas, tem que contentar-se em ser popular, na acepção mais lata do
termo. Mas sempre que o chiste é popular, a sua espécie e sua maneira caracteriza a raça o
povo, o grupo e o tempo de onde procede, a sua espécie diferente (JOLLES, 1976, p. 205).

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O riso é, assim, um fenômeno sócio-cultural, vejamos agora três diferentes reflexões sobre o
cômico que procuram explicar seu funcionamento.

1.1. O cômico como ajuste social


O riso é uma importante ferramenta de poder, já que, quando fazemos alguém rir, demos-
tramos poder e superioridade sobre aquele de quem se ri e do que se ri. Aquele de que rimos,
muitas vezes, sente-se oprimido, envergonhado. De tal modo que, o riso passa ter a função de
corrigir e moldar a sociedade: “O riso é essa correção. O riso é certo gesto social que ressalta
e reprime certa distração especial dos homens e dos acontecimentos”. (BERGSON, 2007, p.
2-3), portanto, quando somos gozados por alguém, sentimos a necessidade imediata de nos
enquadrar às normas que a sociedade impõe.

Bergson na sua obra, O Riso (2007) procura defender o riso como algo puramente social, que
tem a função de corrigir e moldar os membros da sociedade e romper com o véu de sua dis-
tração. Para o filósofo, o riso é algo propriamente humano, e sempre em grupo, não é possível
desfrutar do cômico quando estamos sozinhos, isolados, por isso podemos dizer que o riso
tem uma significação social.

Para o autor, o riso acontece quando nos deparamos com uma situação do “mecânico calca-
do no vivo”, ou seja, alguém agindo automaticamente, como um objeto sem vida. A situação
também não pode gerar compaixão, piedade, tristeza ou qualquer variedade de emoção que
aproxime o observador daquele que era seria teoricamente o alvo do risível, não será possível
rir, pois a emoção predominará e o riso não seria possível, dessa forma, para que a situação
seja cômica é necessário a insensibilidade do espectador.

O autor coloca o mecânico ou a repetição como aspecto central do cômico. Quando o indiví-
duo rompe com a trama social na qual está inserido, essa situação pode leva ao riso do outro,
ou seja, à medida que a pessoa foge do que é tido como padrão ela passa a ser vista como um
desvio, e é esse desvio que vai ser a causa do riso. Outros exemplos que podem causar a comi-
cidade é a imitação que é uma manifestação comum do nosso cotidiano, assim como também
a repetição de um mesmo gesto que o personagem cômico realiza.

Henri Bergson procura destacar três tipos de comicidade: de palavras, situação e caráter. A de
palavra acontece quando há manifestações do cômico sem gestos ou características físicas,
mas onde o contexto vai desencadear fatores que tornem a situação cômica, isso acontecerá
através dos jogos infantis que ele apresentará o prazer gerado pelas palavras. Como exemplo
ele cita a caixa de surpresas que é uma caixa que quando aberta um boneco de mola sai e fica
balançando a cabeça no vem e vai da mola que o sustenta, ele utiliza-se desse exemplo para
explicar que a repetição pode ser cômica quando representa um jogo de elementos morais,
símbolo por sua vez de um jogo material.

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Outro exemplo citado pelo autor são os fantoches e seus cordões que, assim como esses brin-
quedos, as pessoas também muitas vezes, são manipuladas por forças exteriores e são condi-
cionadas a fazerem o que não desejam e essa situação também pode ser cômica. E por último
ele traz a bola de neve que representa os acontecimentos que cada vez mais vai tomando uma
proporção maior com relação ao seu original.

Na comicidade situacional, há três possibilidades de classificações, a primeira é a repetição


que são situações que se repetem várias vezes, atrapalhando o curso natural da vida, a se-
gunda é a inversão que pode ser definida como marca do mundo às avessas e por última in-
terferência das séries que pode ao mesmo tempo pertencer a duas séries de acontecimentos
absolutamente independente e interpretadas ao mesmo tempo em dois sentidos diferentes.

O autor ainda faz referência à comicidade de caráter, que mostra que o cômico pode ocorrer
também em situações em que o indivíduo tenha ou não falhas de caráter, o caráter não é o
único fator gerador do riso, pois o mesmo acontece na conjunção de dois fatores, a insociabi-
lidade da personagem e a insensibilidade do observador.

1.2. O riso libertador


Outro importante texto teórico sobre o riso foi Os chistes e sua relação com o inconsciente,
(1977) de Freud, o qual define o chiste como um alívio de tensões, ou seja, o riso serve para dar
vazão a conteúdos reprimidos no inconsciente, que não podiam ser ditos abertamente na so-
ciedade, assim, os chistes acabam por revelar os desejos e expressões do inconsciente através
de palavras carregadas de sentido.

Freud procura diferenciar o cômico do chiste, o cômico pode ocorrer de forma individual, nos
chistes, haveria uma necessidade de contá-lo a alguém, pois ele não se realiza sozinho, e só
se conclui com a comunicação da ideia a alguém. Dessa forma, encontramos três pessoas na
estruturação do chiste: o autor (aquele de quem vem o chiste); a segunda pessoa (sobre quem
o chiste trata ou seu objeto); e a terceira pessoa (aquela que o escuta). É necessário, portanto,
destacar que desses três indivíduos, o único que não sente prazer, que provavelmente não
vai rir do chiste, é a segunda pessoa, uma vez que, ela é o “objeto”, o motivo para que o chiste
acontecesse.

O riso é mais viável a uma terceira pessoa, já que é ela quem vai escutar, é a quem vai ser co-
municado o chiste. Para que o riso advenha, também é preciso uma sintonia entre a primeira
pessoa que é o autor, e terceira pessoa, o receptor. É importante entender que um chiste só
pode ser compreendido dento de uma situação a qual todos os participantes saibam o que
está sendo exposto. A obtenção do prazer está diretamente ligada à capacidade de compreen-
são dos interlocutores e um ambiente propício para que ele se manifeste plenamente.

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Freud, no decorrer do seu livro, vai apresentar várias técnicas para a formação de novos chis-
tes, que acontecerá através das palavras que tem o poder de inverter sentidos a depender de
seu autor, aquele que representa a primeira pessoa na construção do chiste.

As palavras são um material plástico, que se presta a todo tipo de coisas. Há palavras que,
usadas em certas conexões, perdem todo seu sentido original, mas o recuperam em outras
conexões. (FREUD, 1977, p. 49).

Freud explica que existem dois tipos de chiste, os tendenciosos e os inocentes, o chiste
tendencioso serve como um objetivo, a busca do prazer nesse caso não é prioritária, já que,
outras razões estão por trás do chiste. O chiste tendencioso requer a presença de três pes-
soas, a que faz o chiste, a segunda que é tomada como objeto da agressividade hostil, sexual
e uma terceira na qual se cumpre o objetivo do chiste de produzir prazer. O chiste tenden-
cioso pode ser entendido como um recurso social de obtenção de determinados objetivos
através do prazer, ou seja, o chiste nesse caso é usado como um “disfarce”, para que se con-
siga algo que não poderia obter-se caso fosse utilizado o raciocínio lógico. Há o prazer, mas
também um objetivo a ser atingido.

No caso de um chiste tendencioso o prazer procede da satisfação de um propósito cuja


satisfação, de outra forma, não seria levada a efeito. O fato de que uma tal satisfação seja uma
fonte do prazer não requer ulterior comentário” (FREUD ,1977, p. 139).

Dentro da categoria do chiste tendencioso podemos encontrar subclasses como a smunt ou


chiste obsceno, que tem como característica a “(...) Intencional proeminência verbal dos fatos
e relações sexuais”. (FREUD, 1977, p. 117) a qual, na maioria das vezes é voltada para a mulher
e pode ser equiparado a tentativas de sedução.

O chiste tendencioso cínico está ligado à libido, ao desnudamento criado pelo smut, a expli-
citação da sexualidade antes encoberta pela sociedade gera estímulo visual na imaginação
daquele que ouve o smut. Isso faz com que o receptor tenha acesso ao chiste que está em seu
pensamento. Portanto, o sujeito se vê dentro da ação. Nessa perspectiva, os chistes tenden-
ciosos cínicos são aqueles que rejeitam o respeito às instituições e verdades em que o ouvinte
tem acreditado, de um lado, reforçando o argumento, mas, por outro lado, praticando uma
nova espécie de ataque.

Outra categoria é a dos chistes inocentes, que são aqueles que causam um efeito mode-
rado ao sujeito:

O agradável efeito dos chistes inocentes é em regra um efeito moderado; um nítido sentido
de satisfação, um leve sorriso, é tudo o que em geral podem obter de seus ouvintes. (...) um
chiste não tendencioso dificilmente merece a súbita explosão de riso que torna os chistes
tendenciosos assim irresistíveis. Já que ambos os tipos podem ter a mesma técnica, podemos
suspeitar de que os chistes tendenciosos, em virtude de seu propósito, devem ter fontes de
prazer disponíveis, às quais os chistes inocentes não teriam acesso (FREUD, 1977, p.116).

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Para Freud não existe um chiste que seja completamente inocente, apenas as crianças são
capazes de obterem o prazer pelo prazer, os adultos não têm a capacidade de produzir um
chiste absolutamente inocente. Então, Freud usa essa nomenclatura para analisar os chistes
que não tenham nenhuma intenção nele.

Todavia, o estudo da psicogênese dos chistes nos ensinou que o prazer em um chiste deriva
do jogo com as palavras ou da liberação do nonsense. Determina que o significado dos chis-
tes pretende simplesmente proteger o prazer contra sua supressão pela crítica. Então mesmo
o chiste tendo sua estrutura lógica mutilada, eles não vão gerar desconforto naqueles que
ouvem, pelo contrário, geram prazer. Isso se dá pelo fato da descoberta, algo familiar que é
resgatado de nossa memória, como mostra o trecho do livro a seguir:

(...) algo de familiar é redescoberto, onde poderíamos, pelo contrário, esperar algo de novo.
A redescoberta do que é familiar é gratificante e mais uma vez não nos é difícil reconhecer
esse prazer como um prazer obtido pela economia, relacionando-o à economia na despesa
psíquica” (FREUD, 1977, p. 143).

Essa “redescoberta” pode estar associada a algo vivido na infância como também a episódios
de nosso cotidiano, onde procuramos prazer ao recriar fatos e situações. “A necessidade sen-
tida pelos homens de derivar prazer de seus processos de pensamento está, portanto, criando
constantemente novos chistes baseados nos novos interesses do dia” (1977, p. 146).

O chiste é uma importante ferramenta no contexto social, uma vez que, o riso está entre as
expressões do estágio psíquico mais contagioso, pois quando se faz uma pessoa rir, contan-
do-lhe seu chiste, estará utilizando-a para provocar seu próprio riso. Diante disso, a forma
de como se prolifera ao contar um chiste, para outra pessoa, nos proporcionará a certeza
de que a sua elaboração foi bem-sucedida, além de completar seu prazer pela reação que
provoca em outra pessoa.

Um aspecto que, segundo Freud aproxima o chiste do inconsciente é o fato de que o chiste
não está disponível em nossa memória quando necessitamos dele; eles aparecem involunta-
riamente, em pontos de nosso curso de pensamento. Essa característica pode ser um indica-
tivo de que um chiste pode originar-se do inconsciente.

1.3. A ambivalência do cômico


Outro autor que se preocupou com os estudos sobre o riso foi André Jolles, que dedicou um
capítulo de seu livro, Formas simples (1976), para tratar do assunto. Jolles diz que o chiste é
algo que sempre vai estar em ascensão na vida e na literatura, embora a depender da época e
da cultura possa adquirir valores diferentes, mas sempre vai estar em todos os domínios.

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Para esse teórico o cômico é o desenlace espirituoso na linguagem, na lógica, nas situações,
no caráter e nas coisas, ou seja, “é a forma que desata as cosias, que desfaz nós”. (JOLLE, 1976,
p. 206). Na linguagem um exemplo é o jogo de palavras, a palavra pode ser empregada em um
determinado contexto sem possuir o seu sentido original, mas com o mesmo som, obtendo
assim o duplo sentido. Esse desenlace também pode acontecer na lógica:

“(...) basta interromper uma sucessão, substituir um membro por outro, saltar de uma lógica
para outra, e obter-se-á um resultado que adquire a forma espirituosa em virtude do seu
caráter de contra-senso, de contradição, de imprevisto” (JOLLE 1976, p. 207).

O chiste vai ser fruto da inconveniência, a lógica quebrada vai gerar o absurdo, e é essa incon-
veniência que vai causar o desenlace das regras prescritas pela sociedade e pelos bons costu-
mes. Quando o chiste desfaz o repreensível a partir de sua insuficiência, ele recebe o nome
de zombaria, sendo duas as formas que constituem esse procedimento, a sátira e a ironia. A
sátira é a zombaria ao objeto que se repreende, que nos é estranho, já a ironia é a troça do que
repreende, “A sátira destrói, a ironia ensina” (JOLLE, 1976, p. 211).

Assim como Freud, Jolles também acredita que o chiste pode nos proporcionar o alívio de
nossas tensões. Quando o cômico e o chiste passam a ter a função de desanuviar uma tensão
na vida e no pensamento, já não pode ser visto como uma zombaria, mas como gracejo, pois
proporciona a libertação do espírito e a liberação de tensões. Dessa forma, o chiste passa
a despenhar duas tarefas a de “desfazer um edifício insuficiente e desafogar uma tensão. ”
(JOLLE, 1976, p. 213).

2. Por trás dos contos


O humor é marca registrada na obra de JCC, o riso fácil sempre advém, seja de seus persona-
gens estrambólicos, na sua maioria anti-herói, ou de sua linguagem bem articulada, do ce-
nário, ou das próprias histórias, o humor sempre vai estar presente fazendo com que o leitor
fique preso à leitura.

Para tornar a obra cômica, JCC utiliza vários artifícios como uma linguagem pitoresca, cheia de
palavras incomuns ou no uso incomum de palavras comuns. Como mostra o trecho a seguir:

E houve um pau feio e firme em Santo Antônio das Trovoadas acompanhado de tiros e fa-
cadas. O aleijado Fifi de Peres, que vivia de angariar esmolas na porta da igreja de Nossa
Senhora do Rosário, à mão direita da praça da Pólvora, pegou uma reata de pé para deixar
para trás o relâmpago mais feroz (CARVALHO, 2011, p. 53).

Nesse trecho José Cândido de Carvalho, de forma criativa, brinca com a linguagem, por exem-
plo, o nome da cidade e da praça, “Santo Antônio das Trovoadas” e “praça da Pólvora”, carac-
teriza a situação do conto, no caso, uma briga feia. Ainda nesse trecho, notamos que para

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enfatizar a suposta “briga”, JCC utiliza palavras para provar ao leitor que realmente a situação
era “perigosa”, como “pau feio”, “tiros e facadas”, “Pólvora”, “relâmpago mais feroz”. Essa forma
que o autor utiliza a linguagem para descrever a situação é o que provoca o humor na história.

De acordo com os estudos de Freud, 1977, a palavra tem essa flexibilidade, de ser moldada, de
adaptar-se as necessidades de seu autor, como mostra o trecho a seguir:

As palavras são um material plástico, que se presta a todo tipo de coisas. Há palavras que,
usadas em certas conexões, perdem todo seu sentido original, mas o recuperam em outras
conexões (FREUD, 1977, p. 49).

Sem dúvida, a linguagem utilizada por Cândido é seu principal mecanismo de humor, a for-
ma de como ele as constrói, molda, faz parte de um estilo próprio do autor.

Outro aspecto cômico que encontramos no livro Um ninho de mafagafos cheio de mafaga-
finhos, é o fato de os contos serem curtíssimos, porém, apesar de serem pequenos, têm uma
grande significação, ou seja, dizem muito com poucas palavras. Vimos na teoria de Freud
que a presença da brevidade é usando para englobar muito sentido em poucas palavras,
como mostra o trecho a seguir:

Um chiste diz o que tem a dizer, nem sempre em poucas palavras, mas sempre em palavras
poucas demais, isto é, em palavras que são insuficientes do ponto de vista da estrita lógica
ou dos modos usuais de pensamento e de expressão. Pode-se mesmo dizer tudo o que se
tem a dizer nada dizendo’ (BERGSON, 2007, p. 21 ).

A brevidade é uma caracteristica encontrada em ambos os contos analisados, e também ca-


racteristica do autor, uma vez que ele escreve contos curtíssimos cheios de sentido e crítica.

Freud mostra que muitas vezes os chistes têm uma intenção, quando o chiste tem uma inten-
ção ele é chamado de tendencioso. Precebemos, que José Cândido de Carvalho ao escrever
seus contos, tinha uma segunda intenção, além de provocar o riso, uma leitura agradavel, ele
pretendia fazer críticas à sociedade em que vivia.

No caso de um chiste tendencioso o prazer procede da satisfação de um propósito, cuja


satisfação, de outra forma, não seria levada a efeito. O fato de que uma tal satisfação seja uma
fonte do prazer não requer ulterior comentário” (FREUD, 1977, p. 139).

O chiste tendencioso pode ser entendido como um recurso social de obtenção de determina-
dos objetivos através do prazer, ou seja, o chiste nesse caso é usado como um “disfarce”, para
que se consiga algo que não poderia obter-se caso fosse utilizado o raciocínio lógico. Há o pra-
zer, mas também um objetivo a ser atingido. Nos contos, o objetivo de JCC é fazer uma crítica
ao comportamento do homem brasileiro, que muitas vezes, através da astúcia e esperteza,
procura sempre se dar bem. Bergson também diz que o riso pode ter uma segunda intenção:
“por mais fraco que suponham, o riso esconde uma intenção de entendimento, eu diria quase
de cumplicidade, com outros ridentes, reis ou imaginários” (BERGSON, 2007, p. 5).

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Ainda nos contos escolhidos, observamos a marcante presença do malandro ou pícaro que,
segundo Mario Gonsáles:

São pseudo-autobiografia de um anti-herói que aparece definido como um marginal à socie-


dade; a narração das suas aventuras é a síntese crítica do processo de tentativa de ascensão
social pela trapaça; e nessa narração é trapaça uma sátira da sociedade contemporânea
aquele que sempre quer se dar bem, em qualquer circunstância (GONSÁLES, 1988, p. 42).

Os três contos que analisaremos mostram bem a figura do malandro, a personagem que
sempre procura ascensão social pela trapaça, que não quer trabalhar, que quer viver às
custas dos outros.

Agora analisaremos os aspectos cômicos e a figura do malandro, separadamente, presente em


cada um dos contos escolhidos:

SUCURI DE LETRA DE FORMA


Era feroz do bigode ao cadarço dos sapatos. Era Albernaz Feitosa de Oliveira Pontes. O
charuto, montado no meio-fio da boca ameaçava deitar fogo em Sacramento. Mas o que
fazia a cidadezinha pender a cabeça e ficar por trás das portas janelas era a pesada pasta
que Albernaz arrastava como um canhão de peçonhento calibre. Albernaz era o primeiro a
garantir, batendo a mão cabeluda no aterrador pertence:
-Por baixo destes couros tenho a vida do povinho de Sarandi de Ponte Nova. Da primeira
chupetada que mamou ao último desfalque que deu nos cofres públicos. Sei de tudo! Muito
sujeito que é tido como bom pai de filhos, de corrente de ouro trespassada pela pança, tem
contas a ajustar com ela. É só eu querer abrir os couros para não ficar ninguém livre nesta
praça de sem-vergonhas. Não vai ter cadeia para comportar tanto condenado. Prendo todo
mundo, que todo mundo em Sarandi de Ponte Nova tem rabo de ratão velho dentro dos
couros de minha pasta.
A verdade é que Sarandi tremia nos cascos ao ver o charuto de cara feia de Albernaz pas-
sar em cima de sua negra pasta. E por tremer assim de maleita terça é que fazia tudo que
Albernaz queria e muito bem inventava. Albernaz pegava a pasta dava entrada na Papelaria
Moderna e dizia ao velho Chiquinho Cruz:
- Seu Chiquinho, diga ao povo da Associação dos Varejistas estou carecido de lavar o
baço em Poças de Caldas, pelo que peço as devidas providências para minha pessoa pa-
gar hotel condigno e hospedagem fidalga naquela praça de águas medicosas. Dou dois
dias para a deliberação. Só dois!
Logo, sem perda de tempo, o dinheiro saía das gavetas e a pasta de Albernaz Feitosa de
Oliveira Pontes desaparecia por um par de meses. E assim, de ameaça em ameaça, varou Al-
bernaz o tempo por baixo da fumaça do charuto e montado nos couros da denegrida pasta.
Quando alguém duvidava da documentação nela contida a sete chaves, havia sempre uma
boca aconselhativa para advertir:
-Não catuca onça-pintada com vara curta, homem de Deus!
Até que uma tarde, ao atravessar a rua do Cravo, um boizinho desgarrado, sem respeito por
Albernaz e sua devastadora pasta, varejou com ele em distância de mais de quatro metros.

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Albernaz voou de bem-te-vi e foi cair bem no centro da Barbearia Almeida. O pessoal do
corte, diante daquele disparate, sustou o trabalho das navalhas e tesouras para ver, espanta-
do, o derrame de Tico-Tico e almanaques de farmácia que a boca da pasta expelia no chão
da Barbearia Almeida. Era o fim de Albernaz Feitosa de Oliveira Pontes, surucucu de Tico-
-Tico, cascavel de almanaque de farmácia! (CARVALHO, 2011, p.55).

Em “Sucuri de letra de forma”, o protagonista, Albernaz Feitosa de Oliveira Pontes, faz uso
de uma mala, a qual afirma ter documentos com todos os “podres”, da cidade, para conseguir
tudo que deseja do povo da cidade na qual vivia, principalmente dos políticos e da burguesia.
Albernaz assustava toda a população da cidadezinha de Sarandi de Ponta Nova, dizendo que
iria revelar os segredos de todo aquele povo, e com isso, todos os seus desejos eram cumpri-
dos, já que o povo daquela cidade também tinha, como dizia o próprio Albernaz, “rabo de
ratão velho preso dentro dos couros da minha pasta”. Albernaz representa a figura do malan-
dro, uma vez que, utiliza-se dos segredos do povo daquela cidade para conseguir o que deseja,
uma vida cheia de mordomia. Nesse conto notamos que o povo que era ameaçado pele ma-
landro Albernaz também tinha “culpa do cartório”, por isso temiam Albernaz. Ou seja, aquele
povo que aceitava as condições de Albernaz, também tinha um tanto de malandragem, já que
preferia ceder às ameaças do protagonista para continuar agindo de forma ilegal.

Referente aos aspectos cômicos presentes nesse conto, o que mais chama a atenção é a lin-
guagem bem articulada como mostra o trecho, “Mas o que fazia a cidadezinha pender a ca-
beça e ficar por trás das portas janelas era a pesada pasta que Albernaz arrastava como um
canhão de peçonhento calibre” (CARVALHO, 2011, p. 55). As palavras usadas pelo autor para
caracteriza a pasta, “um canhão de peçonhento calibre” mostrava seu “ poder” de destruição
sobre a população daquela cidade. Já que todos a temiam, pois acreditavam que nela existiam
importantes provas das mazelas daquela população. A forma de como JCC, descreve as situ-
ações, “que fazia a cidadezinha pender a cabeça e ficar por trás das portas e janelas”, “canhão
de peçonhento calibre” é o que torna a obra risível.

Ainda nesse conto, outro aspecto cômico que encontramos é a caracterização da personagem
Albernaz Feitosa, “Era feroz do bigode ao cadarço dos sapatos. Era Albernaz Feitosa de Oli-
veira Pontes. O charuto, montado no meio-fio da boca ameaçava deitar fogo em Sacramento”,
(CARVALHO, 2011, p. 55). Primeiro o que chama a atenção nesse trecho é o deslocamento que
JCC faz ao descrever Albernaz Feitosa, “Era feroz do bigode ao cadarço dos sapatos”, já que,
normalmente utilizamos a frase “Era feroz dos pés à cabeça”, mais uma vez notamos o recurso
linguístico para provocar o humor. Também é cômico a caricatura de Albernaz Feitosa como
homem sério de respeito, que todos temem, mas que na verdade não passa de um charlatão.
Além disso o filosofo Bergson afirma que “É cômico todo incidente que chama a tenção para
o físico de uma pessoa quando o que está em questão é a moral” (BERGSON. 2007, p. 38).
Nota-se que é justamente um deslocamento que se verifica na descrição de Albernaz Feitosa,
já que sua aparência física não condiz com sua conduta.

Também é evidente nesse conto a crítica feita ao comportamento da política e da burguesia


na cidadezinha de Sarandi de Ponte Nova, uma vez que, o protagonista, Albernaz Feitosa,

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critica a conduta dos mesmos quando se refere ao desfalque dos cofres públicos e à farsa da
burguesia como a “correta”. Os trechos a seguir mostram bem as críticas feitas pelo autor:

-Por baixo destes couros tenho a vida do povinho de Sarandi de Ponte Nova. Da primeira
chupetada que mamou ao último desfalque que deu nos cofres públicos. Sei de tudo! Muito
sujeito que é tido como bom pai de filhos, de corrente de ouro trespassada pela pança, tem
contas a ajustar com ela. É só eu querer abrir os couros para não ficar ninguém livre nesta
praça de sem-vergonhas (CARVALHO, 2011, p. 55).

Também é notável que a pasta era penas um símbolo, como o próprio final do conto expõe que
ela estava vazia, é claro que Albernaz Feitosa não tinha prova de nada nessa pasta, ele apenas
desconfiava dos malfeitos daquele povo, e utilizou da pasta para aproveitar-se do “rabo preso”
daquelas pessoas para dar o golpe, ou seja, ele acusa sem ter a certeza, e todos vestem a cara-
paça, a trapaça se fundamenta na corrupção daquelas pessoas.

Vejamos, agora, o segundo conto selecionado:

SE A VIDA ACABAR COMPRE OUTRA


Deixou o Jornal em cima da mesa e disse:
- Vim do Dr. Famalição Azerado. O Dr. Famalição garante que estou com arteriosclerose. E
das bem adiantadas, dessas que estão com a boquinha aberta para comer o padecente.
Ficou na cadeira de balanço, enquanto sua arteriosclerose corria, como lacraia pelos cor-
redores, entrava nos quartos e pulava pelas janelas, de modo a cair no ouvidos de uns e
outros. De noite, a pensão Chique já sabia inteirinha que Ataíde Cunha, das Rendas Mer-
cantis, estava atacado de maluqueira. Sepúveda Barbalho, hóspede de carreira da Pensão
Chique, aposentado por uma bala na Revolta Armada, que lia bula de remédio e vivia bo-
tando a língua de fora na frente dos espelhos, ao saber arteriosclerose de Ataíde, falou ao
meio-pau para os pensionistas:
-É negócio grave. É bom não contrariar o Ataíde. Pode ter um acesso e fazer bobagens. Fabi-
lôncio Canabrava, caixeiro da antiga casa dos panos, comeu na peixeira a família dos Neves.
Arteriosclerose é um perigo. Repito. É um perigo! De repente, na Pensão Chique, ninguém
queria mais contrariar Ataíde. O melhor bife era para ele, e a melhor cadeira para Ataíde
era. Começou a ter um vidão. Vez por outra, telefonava para a Pensão Chique relatando as
maluquice de Ataíde:
- Quebrou uma barbearia agora mesmo na rua da Conceição só porque o barbeiro errou
na marca da loção. Esse Ataíde é fogo nos móveis e utensílios!
De noite, em conversa de sala de visitas, Ataíde confirmava o fato, rememorava os murros
que deu nos chifres de um sujeito que errou a marca de sua loção. A Pensão Chique tremia
das telhas à despensa. O dono de estabelecimento, o velho Aragão Monteiro, reclamava:
- É bom não contrariar Ataíde. Pode ficar maluco.
No fim de um domingo, estando a arrumadeira Aninha de Melo em serviço de limpeza,
foi convidada por Ataíde para uma conversa no escondidinho do quarto. A moça, que
tinha um caráter muito bonito da cintura para baixo, quis gritar, Ataíde botou a mão no
peito e ameaçou:

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- Vou ter um negócio! Vou morrer agora mesmo!


Rapidinha, a moça permitiu ser tocada para o quarto, de onde só saiu no dia seguinte, para
voltar de noite e sair de madrugada. A doença de Ataíde durou para mais de dois meses de
arrumadeira. Até que uma noite, estando posto em sossego, bateu em sua porta o velho
amigo Ortegal Barbalho, que veio saber que negócio de arteriosclerose era esse que andava
comendo a saúde de Ataíde. E meio espantado:
- Isso pega, Ataíde?
Ataíde fechou a porta do quarto, chamou Ortegal para um canto e relatou que não andava
contaminado de coisa alguma, que tudo era invencionice para viver de papo para o ar. E rindo:
- não há como ter uma doença, seu compadre! Com parte de maluco, de sujeito com um
parafuso de menos, já peguei duas promoções nas rendas mercantis, disse desaforos a meio
mundo, botei na cara a maior costeleta de São João de Meriti, mudei o feitio do cabelo e
caí em cima de tudo que é rabo de saia que passa na alça de mira de minha arteriosclerose.
Quando meu panorama de maluco ficar meio avacalhado, telefono com voz de mascarado,
dizendo que Ataíde quebrou isso, que Ataíde quebrou aquilo. O pessoal da Pensão Chique
bota a mão na cabeça e o velho Sepúlveda, uma gagá que vive de comer folhinha da flora
medicinal, arregala os olhos e aumenta meus desmandos.
Lhe digo Ortegal, que não tem nada melhor para fazer o sujeito progredir neste país do que
fama de maluco. Uma arteriosclerose bem administrada vale mais do que o Banco do Brasil.
Muito mais (CARVALHO, 2011, p. 177).

O malandro desse conto, Ataíde Cunha, personagem que depois de uma consulta com
Dr. Famalição Azevedo anuncia na pensão onde mora que está com arteriosclerose, e a
notícia corre rapidamente.

Ficou na cadeira de balanço, enquanto sua arteriosclerose corria, como lacraia pelos cor-
redores, entrava nos quartos e pulava pelas janelas, de modo a cair no ouvidos de uns e
outros. De noite, a pensão Chique já sabia inteirinha que Ataíde Cunha, das Rendas Mer-
cantis, estava atacado de maluqueira. Sepúveda Barbalho, hóspede de carreira da Pensão
Chique, aposentado por uma bala na Revolta Armada, que lia bula de remédio e vivia bo-
tando a língua de fora na frente dos espelhos, ao saber arteriosclerose de Ataíde, falou ao
meio-pau para os pensionistas:
-É negócio grave. É bom não contrariar o Ataíde. Pode ter um acesso e fazer bobagens
(CARVALHO, 2011, p. 177).

Depois de toda pensão achar que Ataíde estava louco devido a sua arteriosclerose, todos co-
meçam a tratá-lo de forma diferenciada, ninguém queria contrariar o doente, com medo que
ele surtasse, então toda pensão começou a agrada-lo de todas as formas, o melhor pedaço de
bife, o melhor lugar na mesa, até a pobre da camareira teve que ceder as vontades do velho
Ataíde. Um certo dia o protagonista recebe a visita de seu amigo, Ortegal Barbalho, que veio
saber de sua doença, Ataíde confessou que não estava com doença alguma, que sua arterios-
clerose, não passava de uma invenção, para ele viver de “papo para o ar”, e ainda afirma para
o amigo que “uma arteriosclerose bem administrada vale mais do que o banco do Brasil”.
Nesse conto Ataíde usa da ignorância das pessoas para fingir uma doença que não existe, esse
personagem representa o malandro que exige uma certa habilidade, “talento”, astúcia, esse

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malandro aproveita as brechas para poder agir, como por exemplo, fingir-se de doente e de
louco e até dar telefonemas simulando ter quebrado a barbearia, o malandro nesse conto age
com muita esperteza.

No que se refere aos aspectos cômicos, também nesse conto encontramos a comicidade de
palavras, a linguagem é o elemento essencial para prover o riso, como mostra os seguintes
trechos: “estou com arteriosclerose. E das bem adiantadas, dessas que estão com a boquinha
aberta para comer o padecente”, “sua arteriosclerose corria, como lacraia pelos corredores”,
“Quando meu panorama de maluco fica meio avacalhado” (CARVALHO, 2011, p. 178). José
Cândido de Carvalho nesses exemplos faz uso de palavras incomuns, metáforas, compara-
ções, tudo isso dando um toque humorístico na história.

Outra característica do cômico que causa o riso nesse texto é o chiste tendencioso cínico, que
gera o riso através da explicitação da sexualidade, isso faz com que o receptor tenha acesso ao
chiste que está em seu pensamento. O trecho do conto que deixa evidente o chiste tendencio-
so cínico é o seguinte:

(...) Aninha de Melo em serviço de limpeza, foi convidada por Ataíde para uma conversa no
escondidinho do quarto. A moça, que tinha um caráter muito bonito da cintura para baixo,
quis gritar, Ataíde botou a mão no peito e ameaçou:
- Vou ter um negócio! Vou morrer agora mesmo!
Rapidinha, a moça permitiu ser tocada para o quarto, de onde só saiu no dia seguinte, para
voltar de noite e sair de madrugada. A doença de Ataíde durou para mais de dois meses de
arrumadeira (CARVALHO, 2011, p. 178).

Ataíde usa da sua “suposta doença”, para satisfazer seus desejos sexuais com a camareira Ani-
nha de Melo, que com medo da “loucura” de Ataíde sede a suas vontades.

O malandro nesse conto é caracterizado por aquele que usa da ingenuidade do outro para
conseguir o que deseja, ou seja, o povo da pensão em que Ataíde morava, não fazia a míni-
ma ideia do que seria uma arteriosclerose, que é uma doença, que causa o estreitamento ou
endurecimento das artérias, não uma doença mental como acreditava todo aquele povo. Por
isso fazia tudo que Ataíde desejava com medo que ele surtasse e morresse. Nesse caso Ataíde
fazia o povo da pensão de bobo. Ataíde os manipulava como um fantoche, fazendo com que
os moradores daquela pensão fizesse o que ele desejava, o filosofo Bergson chama a atenção
esse personagem que tende a manipular o outro para seu próprio beneficio: “Por um instin-
to natural, e porque se prefere, pelo menos em imaginação, enganar-se a ser enganado, é do
lado dos trapaceiros que se põe o espectador” (BERGSON, 2007, p. 57).

HERÓI ATOLADO EM CARNE-SECA E LOMBO DE PORCO


Cibinático Feijó, que morreu atropelado por uma feijoada de fim de semana, fez carreira e
fortuna em cima de uma única e jamais esquecida bebedeira. Aconteceu certa noite no bar
Alvorada, na hora em que Cibinático, depois de estilhaçar duas prateleiras de variadas garra-
fas, foi para a porta do estabelecimento e falou com voz empapada de lacraias e escorpiões:

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-Aviso que não sou mais o baixo funcionário Cibinático Feijó. Sou o Grão-vizir de Bagdá,
veio dizer as verdades a respeito deste povo sem-vergonha que desonra Lavrinhas de Santo
Antônio com a sua peçonha e seu gatunismo. Se o governo botar uma ratoeira boco da rua
do poço não fica ninguém souto, que só tem rato velho em Cibinático.
E Cibinático Feijó, encadernado em Grão-vizir de Bagdá soltou a língua que foi um destem-
pero. De ladrões e gatunos fez a festa.Vez por outra, avisava:
- E ainda não chegou o sultão da Arábia, que esse é de quebrar as prateleiras. Quando o
sultão chegar, vai escorrer honra de gente como chuva na calçada. O sultão da Arábia de
cor e salteado, de todos os desfalques que deram na pobre prefeitura de Lavrinhas de
Santo Antônio desde 1918. Vem tudo a furo! Ninguém vai poder por esperar! Antes que
o sultão de Arábia chegasse, o prefeito Bentinho Alonso rebocou Cibinático para uma
conversa particular. A conversa resultou tão rendosa que Cibinático saiu dela feito direto
de repartição e tesoureiro da sociedade dos Atacadista e Varejista de Lavrinhas de Santo
Antônio. Recolhido o Grão-vizir de Bagdá e adiada a vinda do Sultão da Arábia. Cibináti-
co voltou ao seu normal de bom sujeito, temente das leis e das autoridades constituídas.
Vez por outra, contrariado numa pertenção ameaçava fazer voltar Grão-vizir com todas
as suas verdades. O Grão-vizir nem chegava a sair da garrafa, pois logo os desejos de
Cibinático eram satisfeitos em moedas correntes do país. E assim viveu e prosperou de
Cibinático Feijó por muitos anos até que escorregou no toucinho de uma feijoada e caiu.
Quando acordou, estava mortinho como se nunca tivesse nascido.
Atolado em carne-seca e lombo de porco. Sem Grão-vizir de Bagdá e Sultão da Arábia
(CARVALHO, 2011, p. 43).

Esse conto descreve a história do malandro Cibernético Feijó um simples funcionário público
que depois de algumas doses de bebida alcoólica, diz encarnar grão-visir de Bagdá e sai con-
tanto os males feitos da cidadezinha de Lavrinhas de Santo Antônio.

Cibernético Feijó como um simples funcionário, provavelmente da prefeitura, presenciava


em seu trabalho todas as ilegalidades cometidas pelo prefeito, e ficava em silêncio, guardan-
do tudo aquilo que presenciava em seu subconsciente. Quando Cibernético bebe, o efeito
do álcool faz com que ele libere seus conteúdos reprimidos no seu subconsciente. Ou seja,
Cibernético Feijó ao estar sob efeito do álcool libera os conteúdos que ele não poderia dizer
abertamente, caso não estivesse embriagado. O filósofo Freud, explica o efeito do álcool na
mente de um indivíduo: “Sob a influência do álcool o adulto torna-se outra vez uma criança,
tendo de novo o prazer de dispor de seus pensamentos livremente sem observar a compulsão
da lógica” (FREUD, 1977, p. 102), ou seja, quando Cibernético Feijó estava embriagado falava
coisas que caso ele estivesse lúcido ele não poderia falar, pois a sociedade o repreenderia.

No que se refere aos aspectos do cômico nesse conto é a caracterização do personagem Ciber-
nético Feijó, que quando bebe diz encarnar o Grão-Vizar de Bagdá, que é uma figura do rei
da Pérsia, exprime poder, característica essa que não compactua com o protagonista, que só
consegue ter poder e coragem sob efeito do álcool.

José Cândido de Carvalho, nesse conto procura fazer uma crítica aos políticos, que muitas
vezes subornam seus funcionários ou até mesmo outras pessoas para encobrir os desvios e
mal feitos com o dinheiro público. O trecho a seguir mostra a conduta do prefeito no conto:

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O sultão da Arábia de cor e salteado, de todos os desfalques que deram na pobre prefeitura
de Lavrinhas de Santo Antônio desde 1918. Vem tudo a furo! Ninguém vai poder por espe-
rar! Antes que o sultão de Arábia chegasse, o prefeito Bentinho Alonso rebocou Cibinático
para uma conversa particular. A conversa resultou tão rendosa que Cibinático saiu dela feito
direto de repartição e tesoureiro da sociedade dos Atacadista e Varejista de Lavrinhas de
Santo Antônio (CARVALHO, 2011, p. 177).

Nesse trecho percebemos que o malandro não é apenas Ataíde Feijo, que usa do que sabe para
conseguir privilégio, mas também é notável a malandragem do prefeito, que compra o silên-
cio de Ataíde, para que ele não revele seus “podres”.

Feita as considerações sobre a comicidade e a figura do malandro nos contos, partimos, para
as colocações gerais no tocante ao que foi visto em nosso trabalho, além de fazer uma ressalva
sobre a crítica inserida nos contos.

VI- Conclusão
Como foi visto ao longo de nosso trabalho, José Cândido de Carvalho foi um grande escritor
e jornalista, apesar de pouco conhecido no meio acadêmico. O livro é composto de vários
contos que contam através de uma linguagem pitoresca, popular e ao mesmo tempo moder-
na, que contam casos do “povinho brasileiro”, especialmente daquelas pessoas que sempre
querem se dar bem às custas dos outros.

Além de oferecer ao seu leitor uma leitura agradável e divertida, Um ninho de mafagafes cheio
de mafagafinho também não deixa de lado a crítica social e política. Por trás de seus contos
sempre há uma crítica, dessa forma o riso tem a função de desmascarar os desmandos da so-
ciedade da época. Edina Poles em sua dissertação de mestrado pontua:

Os contos de José Cândido de Carvalho são verdadeiros flashes que camuflam, por trás do
riso fácil, os tropeços de uma nação que se moderniza, do político que exemplifica a inutili-
dade da letra morta, da invenção de valores que colocam a loucura e o racional em xeque
(POLESE, 2005, p. 52).

Em todos os 144 contos inseridos em Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, são ca-
racterizados por contos curtíssimos que descrevem o “povinho brasileiro”, pessoas de todas as
classes, de mendigos a políticos, sempre retratando personagens que querem se dar bem a todo
custo, independente das circunstâncias, pouco se importando com o próximo ou com a lei.

Dentre as várias verdades que circulam em um país de grande extensão territorial e plurali-
dade cultural como o Brasil, uma delas é comum em todas as regiões: o brasileiro é e sempre
será visto como um malandro, o sujeito que sempre quer se dar bem, independente das cir-
cunstancias. A malandragem brasileira é, de fato, um traço peculiar da forma de ser nacional,
“o jeitinho brasileiro” para conseguir a ascensão social com pouco esforço.

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Antônio Cândido em Dialética da malandragem (1970, p. 71) chega, ainda que brevemente, a
definir o que seja o malandro: “O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais am-
plo do aventureiro astucioso, comum a todos os folclores”. A esperteza, a agilidade, a capaci-
dade de improviso são algumas das características mais marcantes do malandro, que renega
o trabalho e procura viver do jogo, da trapaça, e até de pequenos furtos.

Os três contos que foram analisados apresentam três tipos de malandro diferentes: o pri-
meiro Albernaz Feitosa, o qual, na sua pasta de couro, dizia guardar todos os segredos do
povo da cidadezinha onde morava, mas que na verdade, ele especulava saber dos males fei-
tos daquele povo, sua pasta não passa de uma farsa, que no final acaba sendo descoberta. O
Segundo malandro, Ataíde, se aproveita da falta de saber do povo para fingir uma doença,
Ataíde representa o malandro esperto, talentoso que se aproveita da ignorância do outro.
E por último, Cibernético Feijó, que quando embriagado ameaça a contar os “podres” do
povo, esse malandro realmente sabe dos atos ilícitos feitos pelas autoridades da cidade, e
usa da bebida para conseguir o que deseja. Todos os três personagens sempre procuram agir
em benefício próprio.

Apesar do livro de contos, Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, ter sido dos anos
70, seu tema é bastante atual, a figura do brasileiro como astuto, esperto, sempre esteve pre-
sente, agora mais que nunca, já que o país passa por um processo de crise política, devido o
problema corrupção no poder. Nos últimos meses, fala-se muito da conduta do brasileiro,
muitos alegam que o “famoso jeitinho brasileiro” é uma referência à lábia, às manobras e às
trocas de favores usadas por brasileiros para se darem bem a todo custo.

Quantas vezes, vivenciamos experiências e relatos de pessoas que assim como os personagens
dos contos também procuraram se dar bem a partir da esperteza, troca de favores, da menti-
ra. É comum quase todos os dias ligarmos no noticiário e vermos notícia de diplomas falsos,
pessoas que subornam o guarda de trânsito para não ser multado e até mesmo no nosso dia a
dia vivenciamos situações mais comuns ainda, com falsos atestados médicos, para justificar
ausências mais prolongadas no trabalho. Também é possível, sem nem mesmo sair de casa,
“roubar” o sinal da TV à cabo do vizinho, sem que ele saiba, ou comprar um aparelho deco-
dificador de sinal pela própria internet e usá-lo para sempre sem ter que pagar mensalidade.

José Cândido de Carvalho com seu jeito bem-humorado de escrever não deixa de fazer uma
crítica a essa característica do brasileiro de sempre procurar vantagem em tudo. Dessa forma,
concluímos que nessa obra, o riso tem uma função social de corrigir e pontuar erros da so-
ciedade através das críticas inseridas nos contos. O riso procura corrigir quem se desvia dos
costumes, das regras. Quando rimos de alguém ou de alguma situação é porque a despreza-
mos. “O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma
significação social. O riso castiga os costumes”.

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Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BACCEGA, Maria Aparecida. José Cândido de Carvalho – literatura comentada. São Paulo: Abril
Educação, 1983.

CANDIDO, Antônio. Dialética da malandragem (Caracterização das “Memórias de um sargento de milí-


cias”). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. N. 8. Universidade de São Paulo.

CARVALHO. José Cândido de, 1914-1989. Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos: contos astucia-
dos, sucedidos e acontecidos do povinho do brasil / José Cândido de Carvalho. – 2.ed. – Rio de Janeiro, 2011.

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1977.

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Leitura do romance Teatro de Bernardo Carvalho,


a partir da territorialização de Deleuze-Guattari

Juliana Nascimento Berlim Amorim


Colégio Pedro II, Rio de Janeiro1

O presente artigo apresenta o protagonista Daniel do romance Teatro de


Bernardo Carvalho como um sujeito nômade e, a partir desta percepção,
procura aliar a crítica literária aplicada ao romance por estudiosos como
Anderson da Mata e Luiz Costa Lima e articulá-la com a filosofia de De-
leuze-Guattari, na parte em que ela lida diretamente com questões liga-
das ao reemprego por parte dos filósofos de termos da geografia, como
territorialização, desterritorialização e reterritorialização.

Palavras-chave: Literatura, Filosofia, Bernardo Carvalho, Gilles Deleuze,


Félix Guattari.

Este artigo pretende encontrar uma chave de leitura para o romance Teatro, do autor con-
temporâneo brasileiro Bernardo Carvalho, a partir dos conceitos de reterritorialização-des-
territorialização de Deleuze-Guattari. Por ser um romance no qual os deslocamentos do pro-
tagonista pelo espaço literário são decisivos para a progressão narrativa, concluímos que o
aparato terminológico deleuze-guattariano aplica-se aqui como estratégia leitora. Trata-se,
naturalmente, da aproximação de uma obra literária, com suas particularidades representa-
tivas, de uma das recriações terminológicas da parceria filosófica dos dois pensadores men-
cionados. Como se sabe, a contribuição entre Deleuze e Guattari ensejou obra bastante com-
plexa. Logo, como postula a filosofia de ambos, proponho uma leitura rizomática de Teatro.
De toda a forma, o próprio Deleuze aponta em seu Conversações: “Ensina-se sobre o que se
pesquisa e não sobre o que se sabe”.

Teatro é um romance policial pouco usual. Nele, há um sistema de representação instável,


não realista, em que informações se cruzam, afirmam-se e recusam-se constantemente, em
que a figura do narrador em primeira pessoa é figura em si mesma portadora da dissolução e
da corrosão da enunciação e de seus enunciados. O que é dito é verossímil? A obra se concen-
tra no “teatro” da existência de Daniel, em seu percurso de verdades e mentiras.

1.  Professora de Língua Portuguesa. Contato: juliananberlim@gmail.com.

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Carvalho narra a “lógica do ilógico”, duplicado nas duas partes do romance: Os sãos e O
meu nome. Daniel, o protagonista, é um deslocado, linguística, cultural, social, psicolo-
gicamente; policial, envolve-se em uma trama mirabolante da própria polícia: ele assume
para si a autoria de uma sequência de assassinatos praticados contra figurões de seu país,
ao redigir uma série de cartas nas quais finge ser o assassino real para satisfazer o clamor da
mídia e da população; mas, por uma reviravolta da trama, ele se dá conta de que só a polícia
poderia saber que o assassino terrorista era inexistente, bem como só a polícia poderia sa-
ber o paradeiro do redator das falsas cartas do assassino, ele mesmo, Daniel. Ao constatar-
-se uma peça inservível dentro do teatro da sociedade na qual vivia, Daniel decide fugir de
sua terra natal para a terra de seus pais, que no passado fizeram o caminho inverso, entran-
do como imigrantes ilegais no país onde Daniel nascera, pois se recusaram a permanecer
naquela antiga terra empobrecida e devastada.

Fugir torna-se, ao fim e ao cabo, a única alternativa para o protagonista de Teatro. Após as-
sumir o protagonismo na trama falaciosa do Estado, ele, um policial em vias de se aposentar,
o narrador oficial das mentiras da “sociedade perfeita” na qual nascera, tem de fugir de seu
país. Precisa, antes de empreender o caminho em direção à terra de seus ancestrais, negar sua
identidade: ele apaga os registros de sua vida anterior e simula a própria morte, inscrevendo
seu nome em uma lápide no cemitério; a morte forjada é o início de uma nova vida na terra
de seus pais, é o início de um novo Daniel.

Desse ponto em diante, Daniel torna-se um nômade em direção ao deserto, o espaço físico
que antecede a chegada à terra ancestral. O nomadismo, a propósito, é um traço da primeira
parte de Teatro, bem como da obra de Carvalho de um modo geral (obra na qual a viagem
sempre reaparece, de modo real e/ou simbólico). Os protagonistas são ativados pelo desejo
de deslocamento. Conforme assinala Da Mata:

Os movimentos se apresentam de maneiras diversas, compondo a estrutura de construção


das narrativas e personagens que, como nômades, estão livres, deslocando-se entre terri-
tórios, gêneros, nomes e textos. É o deslocamento que confere o sentido de sua presença
na ficção de Carvalho, uma vez que, findo o movimento, os personagens não conseguem
construir uma verdade para o seu percurso, criando um conjunto de narrativas inconciliá-
veis em Teatro ou continuam deslocando-se sobre textos, num processo interpretativo, para
criar para si e para o leitor uma aura de verdade, processo encontrado em Nove noites e
Mongólia [outros dois romances do autor] (2005, p.2).

Para Da Mata, Daniel não é uma personagem que, por força das circunstâncias, simples-
mente emigra; ele é, por natureza, um nômade (diferente do andarilho), graças a sua “pul-
são pela vida migratória”: “o nomadismo não se determina unicamente pela necessidade
econômica, ou a simples funcionalidade, o que o move é algo totalmente diferente: o desejo
de evasão” (Ibidem, p. 6).

Da Mata conclui, portanto, que a evasão em Teatro é o grande mote; evadir-se pelo desejo
daquilo que racionaliza, centraliza. O tecido social é mobilizado como plataforma crítica do
próprio modelo representacional realista (Cf. MAKOWIECKY, 2003), o realismo como pressu-

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posto filosófico de uma sociedade estabelecida sobre pilares burgueses. O realismo alinha-se
à lógica totalizante do capitalismo, que, em sua versão tardia, não dá mais conta da multipli-
cidade pós-moderna. O cenário da pós-modernidade é pós-apocalíptico, disposto a siderar
a população e intoxicá-la com crises do capital que, ao contrário do que podem sinalizar na
superfície, não sinalizariam falhas em uma engrenagem perfeita, mas sim produzidas de pro-
pósito, com o objetivo de manter o status quo e impedir qualquer mobilização revolucionária.

O capital, longe de temer as crises, hoje se esforça para produzi-las de maneira experi-
mental. Da mesma forma que provocam avalanches para controlar o momento em que
elas ocorrem e o domínio de sua amplitude. Da mesma forma que se incendeiam planícies
para garantir que um incêndio ameaçador ali se extinga por falta de combustível (COMITÊ
INVISÍVEL, p. 24).
Não vivemos uma crise do capitalismo, mas, pelo contrário, o triunfo do capitalismo de crise.
A “crise” significa: o governo cresce. Ela se tornou a ultima ratio daquilo que reina. A moder-
nidade costumava medir tudo à luz do atraso arcaico do qual nos pretendia arrancar; daqui
em diante, tudo se mede à luz de seu desmoronamento próximo (Ibidem, p. 27).

Desta feita, a evasão em Teatro é revolucionária. O deslocamento (dissidente da lógica de


“gestão de crise” e de “desmoronamento próximo” da metrópole onde Daniel nascera e de
onde se evadia), por sua vez, evidencia dois espaços geográficos bem marcados: no caso da
primeira parte do romance, Os sãos, o da metrópole, indefinida em seus limites e contornos
(os quais sugerem uma metrópole globalizada, presente em qualquer país ocidental “desen-
volvido”), e o deserto, local de errância pertinente a uma subjetividade em conflito. Na verda-
de, podemos também situar esses dois territórios para além da taxonomia geográfica e de sua
configuração socioeconômica (esta última, a grande distinção entre os dois espaços efetuada
pelo romance). Podemos considerar também uma cisão entre o lugar de dentro e o de fora da
narrativa oficial do capitalismo, que se sedimentaria no “lógico”; em fuga, Daniel parte para
o imaginário e o fictício, para a literatura, a qual lhe impede de conciliar dentro de si mesmo
a “lógica do sistema”, porque a mente de Daniel é a um só tempo literária e paranoica, como
bem esclarece a segunda metade do livro, O meu nome. Ela é uma máquina de dissenso, que,
em contato com a propulsão do literário, estimula a tendência nômade da personagem.

Costa Lima, em sua crítica de Teatro, acompanha as exigências da obra, que demandaria
uma crítica literária menos condicionada: “a sacudidela que dá o autor na forma do roman-
ce exige uma crítica que aceite o desafio de pensar e, com ele, inclusive o de errar” (COSTA
LIMA, 2002, p.276). Continua ele: “[em Teatro] dois “atos” se cruzam, se desmentem e se
completam. E isso de tal modo que raras vezes um texto de aparência linear se revela mais
complexo” (Ibidem, p.273).

O mesmo crítico compreende a importância da paranoia em Teatro como base da narrativa,


mas identifica um modelo de romance policial atrelado, sobretudo, à figura de Daniel, prota-
gonista das duas metades do romance (que apresentam dois protagonistas homônimos, mas
com enredos diferentes). A segunda metade elucidaria a primeira e tanto o primeiro quanto
o segundo Daniel seriam a mesma pessoa. Cito Costa Lima:

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O cruzamento dos dois “atos” permite as duas leituras, embora a segunda pareça a correta.
Essa duplicidade é obra do encaixe dos dois relatos e já enuncia seu modo de articulação: o
segundo relato tanto desmente ou complexifica o primeiro quanto o esclarece. O romance
inteiro se assemelha a um quebra-cabeça de que as instruções tivessem sido perdidas. Ou
melhor, a um jogo de espelhos em que cada um refletisse e distorcesse a imagem do outro.
Cria-se assim um fascinante quadro de incertezas que aposta em um leitor dotado de um
interesse decifrativo semelhante. Ao mesmo tempo, porém, o autor tem a esperteza de não
esperar necessariamente por esse leitor. A trama é tão bem concatenada que o leitor pode
simplesmente deixar-se conduzir pelas peripécias da intriga. (É verdade que, com isso, não
tirará do romance mais do que um entretenimento.) Para o leitor mais exigente consigo
mesmo algo distinto surgirá: uma inverossimilhança tornada verossímil, uma sóbria ambigui-
dade que sabiamente se oculta para quem não se disponha a indagá-la, eis o modo como
o autor procura responder à situação contemporânea da prosa ficcional. Confiando a este
leitor sensível e auto-exigente as ambiguidades que constrói, resiste Bernardo Carvalho à
literatura que procura conquistar o leitor pela acessibilidade; admitindo, pois, o caminho
pelo qual opta a maioria, o autor não se exclui do acesso ao grande número (Ibidem, p. 274).

“O caminho pelo qual opta a maioria” seria uma escolha em conformidade com diretrizes
de uma trama policial corriqueira. De fato, Teatro pode ser classificado como uma narra-
tiva policial de detetive ou romance de enigma, segundo Reimão (1983), ainda que a so-
lução do “crime” dispense o caminho da dedução e opte pela criação via Daniel, policial-
-escritor. Esses deslocamentos de gênero retiram o romance da esfera do entretenimento
policialesco de consumo imediato.

Até este ponto da exposição, alguns vocábulos familiares aos leitores da dupla Deleuze-Guat-
tari foram mobilizados: nômade, deserto, capitalismo, território. A partir de agora, enveredo
pelos conceitos de Deleuze e Guattari, sem esperar encontrar uma resposta conciliada ou
unânime para a proposta de aproximar Teatro e a geofilosofia de Deleuze e Guattari. Arbo-
rização conceitual é o que menos se deve esperar em se tratando destes dois pensadores em
particular, que escolheram de modo consciente a geografia como meio:

Notadamente, se desde Nietzsche et la philosophie2 situa-se uma crítica à visão histórica,


subvertendo o modelo de interpretação histórica da tradição filosófica, Deleuze e Guat-
tari comparam a geofilosofia à “geo-história” de Fernand Braudel. Analisando a criação de
conceitos para além da história e da necessidade, afirmam: “A filosofia é uma geo-filosofia
exatamente como a história é uma geo-história, do ponto de vista de Braudel” (QPh, p.
91[tr: 125]). Não se trata, todavia, de conceber a geografia como um fim, senão de tomar
seu dinamismo como um fio condutor, pois como pontua Braudel, a geografia “cessa de ser
um fim em si para tornar-se um meio. Ela ajuda a reencontrar as mais lentas das realidades
estruturais para organizar uma perspectiva segundo a linha de fuga da mais longa duração”
(BRAUDEL, 1949, p. 27).Tomando a geografia como crivo de organização dos eventos no es-
paço e no tempo, Braudel diz encontrar então uma “história acontecimal”, que invoca “uma
agitação na superfície, as vagas que as marés levantam sobre sua potência movente. Uma
história de oscilações breves, rápidas, nervosas” (Ibidem, p. 17). No quadro das formulações e
ressonâncias geofilosóficas, Deleuze e Guattari encontram na geografia a maneira de captar

2.  Obra de autoria de Gilles Deleuze.

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a potência afetiva e mutável de um “meio”, no sentido em que ela conecta o pensamento


com forças externas e com o acontecimento de forma imediata. Enquanto a história adere
aos estados de coisas, o acontecimento se efetua no espaço-tempo que não se confunde
com esse estado de coisas, pois, por não designar uma origem, um destino, um fundamento
ou princípio lógico, o acontecimento se instaura como um devir. Circunscrevendo uma am-
biência e circunstâncias não-históricas, a geografia “arranca a história do culto da necessida-
de, para fazer valer a irredutibilidade da contingência. Ela a arranca do culto das origens, para
afirmar a potência de um ‘meio’” (QPh, p. 91-92 [tr: 125-126]) (DOS SANTOS: 2013, 51-2).

No trecho a seguir, a mesma autora põe a nu a relação entre filosofia e capitalismo para
os dois autores, que nomearam suas obras O anti-Édipo e Mil platôs com o subtítulo de
Capitalismo e esquizofrenia.

Ainda ressaltando um terceiro aspecto, entendemos que Deleuze e Guattari partem desse
plano de exo-consistência, cujas conexões e implicações permitem contextualizar o liame
da filosofia com um meio social imanente, de condições e circunstâncias que prefiguram o
plano de imanência absoluto do pensamento, e seu movimento de desterritorialização e re-
territorialização, e, sob esse traçado, consideram a relação que se configura entre a filosofia
e o capitalismo. No rastro dessa aliança, o movimento absoluto do pensamento se conecta
com o movimento relativo do capital, opera um movimento contínuo de desterritorializa-
ção que se desenvolve segundo o modelo do capitalismo europeu, a fim de garantir a re-
territorialização da população mundial sobre a Europa. Nesse caso, trata-se de conceber as
desterritorializações do pensamento sobre o capital como produção, investimento, captura
e linhas de fuga, e cuja reterritorialização constitui um movimento relativo que decompõe a
terra e os territórios segundo o modelo de produção do europeu. O plano de imanência ab-
soluto é concebido, então, ao nível do movimento de desterritorialização, absoluta ou relativa,
e evoca as circunstâncias e mutações concretas da relação variável entre terra–território,
com seus devires geográficos e suas linhas de fuga, mas contorna também um movimento
contínuo de reterritorialização, de onde se supõe a tripla conjunção territorialização–des-
territorialização–reterritorialização. É, com efeito, nesse liame de conjunções e capturas que
se congregam os efeitos de agenciamentos maquínicos, configurando assim um conjunto
complexo de investimentos e produções cujas operações assinalam o domínio de máquinas
abstratas (DOS SANTOS, p. 53, grifos no original)3.

3.  Agenciamento: “Dir-se-á portanto, numa primeira aproximação, que se está em presença de uma agencia-
mento todas as vezes em que pudermos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações
materiais e de um regime de signos correspondente. Na realidade, a disparidade dos casos de agenciamento
precisa ser ordenada do ponto de vista da imanência, a partir do qual a existência se mostra indissociável de
agenciamentos variáveis e remanejáveis que não cessam de produzi-la. Mais do que a um uso equívoco, ela reme-
te então a polos do próprio conceito, o que interdita sobretudo qualquer dualismo do desejo e da instituição, do
instável e do estável. Cada indivíduo deve lidar com esses grandes agenciamentos sociais definidos por códigos
específicos, que se caracterizam por uma forma relativamente estável e por um funcionamento reprodutor: ten-
dem a reduzir o campo de experimentação de seu desejo a uma divisão preestabelecida. Esse é o polo estrato
dos agenciamentos (que são então considerados “molares”). Mas, por outro lado, a maneira como o indivíduo
investe e participa da reprodução desses agenciamentos sociais depende de agenciamentos locais, “molecula-
res”, nos quais ele próprio é apanhado, seja porque, limitando-se a efetuar as formas socialmente disponíveis,
a modelar sua existência segundo os códigos em vigor, ele aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque

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Vamos discorrer um pouco mais sobre os importantes conceitos de agenciamento e território


em Deleuze e Guattari. Seguem a exposição de Haesbert e Bruce a respeito:

procede à elaboração involuntária e tateante de agenciamentos próprios que “decodificam” ou “fazem fugir” o
agenciamento estratificado: esse é o polo máquina abstrata (entre os quais é preciso incluir os agenciamentos
artísticos). Todo agenciamento, uma vez que remete em última instância ao campo de desejo sobre o qual se
constitui, é afetado por um certo desequilíbrio. O resultado é que cada um de nós combina concretamente os
dois tipos de agenciamentos em graus variáveis, o limite sendo a esquizofrenia como processo (decodificação
ou desterritorialização absoluta), e a questão – a das relações de forças concretas entre os tipos (ver LINHA
DE FUGA). Se a instituição é um agenciamento molar que repousa em agenciamentos moleculares (daí a impor-
tância do ponto de vista molecular em política: a soma dos gestos, atitudes, procedimentos, regras, disposições
espaciais e temporais que fazem a consistência concreta ou a duração – no sentido bergsoniano – da instituição,
burocracia estatal ou partido), o indivíduo por sua vez não é uma forma originária evoluindo no mundo como
em um cenário exterior ou um conjunto de dados aos quais ele se contentaria em reagir: ele só se constitui ao
se agenciar, ele só existe tomado de imediato em agenciamentos. Pois seu campo de experiência oscila entre sua
projeção em formas de comportamento e de pensamento preconcebidas (por conseguinte, sociais) e sua exibi-
ção num plano de imanência onde seu devir não se separa mais das linhas de fuga ou transversais que ele traça
em meio às “coisas”, liberando seu poder de afecção e justamente com isso voltando à posse de sua potência
de sentir e pensar (daí um modo de individuação por hecceidades, que se distingue do referenciamento de um
indivíduo por meio de características identificantes – MP, 318s).
Os dois polos do conceito de agenciamento não são portanto o coletivo e o individual: são antes dois sentidos,
dois modos do coletivo. Pois se é verdade que o agenciamento é individuante, fica claro que ele não se enuncia
do ponto de vista de um sujeito preexistente que lhe poderia ser atribuído: logo, o próprio está na medida de seu
anonimato, e é por esse motivo que o devir singular de alguém concerne de direito a todos (assim como o quadro
clínico de uma doença pode receber o nome próprio do médico que soube reunir seus sintomas, embora ele seja
em si mesmo anônimo; idem na arte – cf. PSM, 15; D, 153). Não nos iludiremos, portanto, quanto ao caráter coletivo
do “agenciamento de enunciação” que corresponde a um “agenciamento maquínico”: ele não é produzido por, mas
por natureza é para uma coletividade (daí o apelo de Paul Klee, muito citado por Deleuze, por “um povo que falta”).
É nisso que o desejo é o verdadeiro potencial revolucionário.” (Zourabichvili, 2004, p. 9-10).
Plano de imanência: “O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem do
pensamento, a imagem que o pensamento se proporciona do que significa pensar, fazer uso do pensamento,
orientar-se no pensamento...” (QPh, 40).
“O plano de imanência é como um corte do caos, e age como um crivo. O que caracteriza o caos, com efeito,
é menos a ausência de determinações do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e desaparecem:
não é um movimento de uma à outra, mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas deter-
minações, uma vez que uma não aparece sem que a outra já tenha desaparecido, e que uma apareça como
evanescente quando a outra desaparece como esboço. O caos não é um estado inerte, não é uma mistura ao
acaso. O caos caotiza, e desfaz toda consistência no infinito. O problema da filosofia é adquirir uma consistên-
cia sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha (o caos, sob esse aspecto, tem uma existência tanto
mental quanto física)” (QPh, 44-5).
“A imanência não se relaciona a um Alguma coisa como unidade superior a qualquer coisa, nem a um Sujei-
to como ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais imanente a outra que não a
si mesma que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o campo transcendental não se define
pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objeto capazes de contê-lo.”
(A imanência: uma vida...) (Ibidem, p.39-40).

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Na verdade, apesar de alguns autores restringirem a visão deleuze-guattariana de território


a um nível meramente psicológico (como TOMLINSON, 1998, 10), podemos afirmar que ela
é de tamanha amplitude que engloba todas estas versões de território. Trata-se na verdade
de uma vasta mudança de escala: iniciando como território etológico ou animal, passamos
ao território psicológico ou subjetivo e daí ao território sociológico e ao território geográ-
fico (que inclui a relação sociedade-natureza). Deleuze e Guattari vão ainda mais longe: para
eles, território é um conceito fundamental da Filosofia. Como afirma Felix Guattari no livro
“Micropolítica: Cartografias do Desejo”:

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que
fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios
que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território
pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual
um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fe-
chada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desem-
bocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos
e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI e ROLNIK, 1986:323).

Busquemos então analisar de forma mais densa esse conceito. O território é um agencia-
mento. Os agenciamentos extrapolam o espaço geográfico, por esse motivo o conceito de
território dos autores é extremamente amplo, pois, como tudo pode ser agenciado, tudo
pode ser também desterritorializado e reterritorializado. Como se dá, então, a construção
do território? Se a criação do território se dá através de agenciamentos, devemos reconhe-
cer em primeiro lugar que estes são de dois tipos: agenciamentos coletivos de enunciação e
agenciamentos maquínicos de corpos (ou de desejo).

Os agenciamentos maquínicos de corpos são as máquinas sociais, as relações entre os cor-


pos humanos, corpos animais, corpos cósmicos. Os agenciamentos maquínicos de corpos
dizem respeito a um estado de mistura e relações entre os corpos em uma sociedade12.
Aqui é importante lembrar que, tal como na não dicotomização geográfica entre Natureza
e sociedade, também não é possível ver o corpo social fora do corpo da Natureza, pois se
trata de um só corpo de multiplicidades. O agenciamento maquínico de corpos é essa rela-
ção que se constrói entre os corpos (...).

Os agenciamentos maquínicos de corpos são as máquinas sociais, as relações entre os cor-


pos humanos, corpos animais, corpos cósmicos. Os agenciamentos maquínicos de corpos
dizem respeito a um estado de mistura e relações entre os corpos em uma sociedade. Aqui
é importante lembrar que, tal como na não dicotomização geográfica entre Natureza e so-
ciedade, também não é possível ver o corpo social fora do corpo da Natureza, pois se trata
de um só corpo de multiplicidades. O agenciamento maquínico de corpos é essa relação que
se constrói entre os corpos (...).

Os agenciamentos coletivos de enunciação, por outro lado, remetem aos enunciados, a


um “regime de signos, a uma máquina de expressão cujas variáveis determinam o uso dos
elementos da língua” (1995b:32). Os agenciamentos coletivos de enunciação não dizem res-
peito a um sujeito, pois a sua produção só pode se efetivar no próprio socius, já que dizem
respeito a um regime de signos compartilhados, à linguagem, a um estado de palavras e sím-
bolos (como os brasões, por exemplo) (HAESBERT; BRUCE, 2002, p. 6-7).

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Daniel (na parte I do romance, Os sãos), ao retornar para o país de seus pais e refundar
sua vida, se desterritorializa para se reterritorializar (não existe desterritorialização sem uma
nova reterritorialização consequente). A mutualidade entre os agenciamentos coletivos de
enunciação e os agenciamentos maquínicos dos corpos permitem que Daniel, em sua fuga,
construa um território. No país de seus pais, ele usa uma língua que não é a sua, ele se com-
porta de modo diverso ao de seu país para não ser reconhecido como cidadão dos “país das
maravilhas”, a terra dos “sãos”. Ele opera no nível do desejo: “O conceito de território de De-
leuze e Guattari ganha essa amplitude porque ele diz respeito ao pensamento e ao desejo –
desejo entendido aqui como uma força criadora, produtiva. Deleuze e Guattari vão, assim,
articular desejo e pensamento” (Ibidem, p. 7).

Referências
CARVALHO, Bernardo. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CÔMITE INVISÍVEL. Aos nossos amigos – Crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições, 2016.

COSTA LIMA, Luiz. Bernardo Carvalho e a questão do ficcional. In: Intervenções. São Paulo: Edusp,
2002. p. 273-6.

DA MATA, Anderson Luís Nunes. À deriva: espaço e movimento em Bernardo Carvalho. Fênix – Revista
de História e Estudos Culturais. Abril/ Maio/ Junho de 2005, v.2, ano II, nº 2. Disponível em: <http://www.
revistafenix.pro.br/PDF3/Artigo%20Anderson%20da%20Mata.pdf>. Acesso em 20 abr. 2017.

DE MIRANDA, Adelaide Calhman. Sob camadas de preconceitos: a travesti na literatura brasileira con-
temporânea. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST61/Adelaide_Calhman_de_Mi-
randa_61.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2017.

DOS SANTOS, Zamara Araujo. A geofilosofia de Deleuze e Guattari. Université Paris Ouest (Nanterre/
La Défense)/ Unicamp: Paris/ Campinas, 2013. Tese de doutoramento em Filosofia.

FABULAÇÃO (verbete) In: <http://www.psiqweb.med.br/site/DefaultLimpo.aspx?area=ES/VerDiciona-


rio&idZDicionario=197>. Acesso em: 06 mai. 2017.

HAESBERT, Rogério; BRUCE, Glauco. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. Geographia


– Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF, v. 4, n. 7, 2002.

LAPLANCHE; PONTALIS. Paranoia. In: Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 334-6.

MAKOWIECKY, Sandra. Representação: a palavra, a ideia, a coisa. In: <http://journal.ufsc.br/index.php/


cadernosdepesquisa/article/download/2253/2871>. Acesso em: 06 mai.17.

REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, 2004.

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Concepções materialistas nas


estéticas de Brecht e Lukács

Alexandre Sales Macedo Barbosa


Graduado, Filosofia/UFAL

Análise da estética de Brecht, em especial o efeito de distanciamento,


relacionada com a estética do último Lukács. O artigo pretende expor
os principais pontos da teoria subjacente ao teatro épico brechtiano, sua
gênese em seu contexto histórico-artístico, a função que o autor lhe atri-
bui e sua necessária relação com a prática teatral. Em seguida, fará uma
exposição da noção de realismo estético em Lukács em seu derradeiro
momento, o da grande Estética do final de sua vida.

Palavras-chave: Efeito de distanciamento. Teatro épico. Realismo


estético.

A concepção estética de Bertolt Brecht


O presente trabalho se ocupa em particular dos textos reunidos nos Estudos sobre teatro de
Brecht, em que o autor faz reflexões sobre as técnicas que utiliza em cena e a relação que ele
estabelece entre o teatro e os problemas sociais de seu tempo. A pergunta primordial que o
dramaturgo procura responder é a seguinte: “Poderá o mundo de hoje ser reproduzido pelo
teatro?” (BRECHT, 2005, p. 19). Para ele, reproduzir a vida contemporânea no teatro havia se
tornado mais difícil, pois a sociedade estava cada vez mais complexa, e, por isso, dramaturgos
e encenadores deveriam buscar novos modos de representação que estivessem em consonân-
cia com a vida do homem contemporâneo.

Neste sentido, um aspecto era central para Brecht: o mundo deveria ser sempre representado
como passível de mudança, sendo o sujeito causador dessa mudança o próprio homem. Com
o domínio completo dos homens sobre as forças da natureza, estes não veriam mais o mundo
como uma ordem necessária à qual deveriam se submeter. Antes, o homem contemporâneo
deveria reconhecer nos processos suas leis – naturais, sociais etc. – como sendo suscetíveis
de modificação através de sua própria ação. Portanto, a tarefa primordial do teatro seria a de
representar o mundo como suscetível de modificação.

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Os novos temas pedem uma forma adequada, e não o recurso às formas antigas, transfor-
madas em clichês. Porém, as novas formas só podem ser efetivamente criadas a partir da co-
locação de novos fins artísticos. A arte moderna precisa enxergar claramente as finalidades
que o mundo atual lhe impõe. E o objetivo da nova arte, para Brecht, deve ser a pedagogia
(KONDER, 2013, p. 121-122).

Resumindo, toda e qualquer mudança na forma da obra de arte deveria ter como norte
esta função didática que ele lhe atribuía. Segundo Konder, Brecht “vê a forma em seu ní-
vel de significação histórico-social. [Na sua teoria,] a forma, analisada em seus elementos
‘intelectuais’ ou ‘racionais’, aparece em sua ligação dialética essencial com a problemática
do conteúdo” (2013, p. 127). Por isso, a função social do teatro se converte em finalidade
pedagógica, a qual deve ser estimular a reflexão crítica e expor as contradições do mundo
contemporâneo a fim de que o espectador possa vislumbrar uma maneira de superá-las na
vida concreta. Entre as categorias que Brecht vai desenvolver para transmitir este conteúdo,
a principal é o efeito de distanciamento.

Sobre este conceito se fundamentam as técnicas, o estilo de representação, os efeitos cênicos,


enfim, tudo o que é característico do modelo de teatro defendido pelo escritor. No contexto em
que estamos analisando, significa o distanciamento do público em relação ao que está sendo
encenado no palco; ao “tomar distância” dos acontecimentos que são representados em uma
peça, seria possibilitada ao espectador uma crítica destes. Este efeito de distanciamento (ou
estranhamento) é causado por técnicas e efeitos cênicos que quebram a ilusão naturalista do
teatro, a sua pretensão de ser uma representação de uma ação completa segundo a verossimi-
lhança. Nota-se aí a ruptura que Brecht realiza na práxis teatral tradicional – que ele chama
de aristotélica – ao questionar o seu caráter mimético mesmo. Para ele, a principal função do
teatro não deveria ser a de, através de uma representação (mimesis) da realidade, despertar
no espectador o terror e a compaixão, como exposto na famosa formulação de Aristóteles no
capítulo VI da Poética: "É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e
completa, em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio adequado, com atores agin-
do, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções"
(2005, p. 24). Segundo Brecht, essa concepção se baseava numa visão de mundo própria da
antiguidade, que via o mundo como uma fatalidade e o homem como impotente diante da
inexorabilidade do destino. Influenciado pelo materialismo histórico de Marx, Brecht, ao
contrário, tinha como objetivo principal mostrar que o mundo é passível de mudança, posto
que é resultado das ações humanas, de suas relações recíprocas com a natureza e entre si, das
relações sociais etc. Para lograr esse objetivo, seria preciso romper com o caráter mimético do
drama e implementar modificações no teatro que visassem causar justamente aquele efeito
de estranhamento (Verfremdungseffekt) que faz com que os espectadores se distanciem do
apresentado a fim de quebrar o “transe” do teatro. Por isso a inserção de elementos que cau-
sam estranheza, como números cantados, por exemplo; nada é mais inverossímil, nada cau-
sa mais estranheza do que uma pessoa cantando em plena ação. Essa estranheza possibilita
ao espectador se distanciar da ilusão do teatro, questionando assim os seus rumos, o que se
constituiria como um aprendizado para pensar criticamente a realidade.

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Suas peças configuram-se como uma negação de elementos aristotélicos como a catarse, tal
como era entendida pelo filósofo grego. A principal preocupação de Brecht não é sugerir ao
espectador uma experiência dramática, mas sim “suscitar nele uma atitude fundamental-
mente diferente daquela a que está habituado” (BRECHT, 2005, p. 47). Isto é, uma atitude que
não seja a de mera empatia com a personagem, uma atitude passiva, mas sim uma atitude
questionadora, ativa. Nas palavras de Walter Benjamin, em seu ensaio sobre o teatro épico
brechtiano: “o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assem-
bleia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer” (1995, p. 79).

O que antes era feito através da mediação do diálogo dramático, a exposição do ambiente, de
suas forças sociais etc., agora poderia ser feito de modo direto, independente, através de pro-
jeções, narrativas e inúmeros outros meios e técnicas de fazer o contexto da ação falar por si,
e não através da fala das personagens; em suma, através da narração. Diz Brecht:

O palco principiou a “narrar”. A ausência de uma quarta parede deixou de corresponder


à ausência de um narrador. E não era somente o fundo que tomava posição perante os
acontecimentos ocorridos no palco, trazendo à memória, em enormes telas, outros acon-
tecimentos simultâneos, ocorridos em algum lugar; justificando ou refutando, através de
documentos projetados, as falas das personagens; […] Também os atores não consumavam
completamente a sua transformação, antes mantinham uma distância em relação à persona-
gem, e incitavam, até ostensivamente, a uma crítica (BRECHT, 2005, p. 66).

Neste trecho, o autor resume o papel do palco, do ator e do espectador no processo de repre-
sentação épica que leva ao distanciamento. Segundo a formulação de Benjamin, o palco havia
se transformado em tribuna, à qual a atividade teatral deveria se adaptar (1995, p. 78). Um
parágrafo de Angélica Soares, em seu livro “Gêneros literários”, resume o dito até aqui:

Bertolt Brecht, em seus Estudos sobre teatro, nos aponta para a existência de um teatro com
características divergentes daquelas do gênero dramático, baseadas na concepção aristo-
télica, como as que acabamos de expor. Seria um “teatro épico” que, ao invés de envolver
a assistência emocionadamente na ação cênica, a mantém distanciada, através de recursos
épicos, como um observador que deve tomar as decisões com lucidez e fazendo uso do ra-
ciocínio. O mesmo distanciamento haveria entre o ator e o seu papel. Ele não se identificaria
com o papel; tal qual um narrador, agiria como quem mostra uma personagem (2005, p. 60).

O Realismo estético em Lukács


A concepção estética de Georg Lukács se caracteriza pela grande valorização do Realismo,
entendido como uma tomada de posição perante a totalidade do real. E, para ele, o funda-
mento da realidade representada na literatura está na ação humana; é o homem quem faz o
seu próprio mundo, partindo sempre das condições objetivas da realidade. Desde o momen-
to em que se diferencia do animal através do ato teleológico do trabalho até o momento em
que institui a exploração do trabalho alheio e com isso funda a sociedade dividida em classes

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antagônicas, o homem é o fundamento e a raiz últimos de todo o processo histórico. O que se


quer demonstrar aqui é que os aspectos mais sentidos e denunciados da sociedade capitalis-
ta, como por exemplo a inumanidade, a mecanização e mercantilização do homem etc. não
podem ser tomados como fatos abstratos, de um modo fatalista, como em alguns autores da
literatura moderna. Estes viam esses aspectos como elementos ativos da realidade social e o
indivíduo como contraposto a essa ordem dada das coisas, impotente perante o “absurdo” do
mundo exterior, estranho a ele. É justamente esta contraposição dualista e irracionalista en-
tre indivíduo e mundo exterior que Lukács visa combater na literatura moderna ao valorizar
o real enquanto totalidade una, reafirmando uma posição monista da realidade, entendendo
que indivíduo e mundo exterior não podem ser contrapostos de modo excludente, pois o
mundo está constantemente sendo modificado pela ação humana e o homem, por sua vez,
também sempre é modificado pelo meio, num processo dialético de ações e reações múlti-
plas e recíprocas. Ou seja, como tanto para Brecht como para Lukács a realidade social é fun-
damentalmente resultado das ações humanas, adotar uma posição a favor do Realismo em
estética significa, para esses autores, colocar o homem no centro. Lukács procura entender
o fenômeno estético partindo do mundo dos homens e de sua História, tomado do ponto de
vista de sua Ontologia, ou seja, partindo das relações destes com a natureza, notadamente
do trabalho, que Lukács considera como momento fundante do homem enquanto sujeito;
sob esta ótica, ele percorre os caminhos que levaram ao surgimento das diversas formas de
consciência, os diferentes tipos de reflexo da realidade, surgidos do comportamento do ho-
mem em sua vida cotidiana. O autor dedica os dois primeiros capítulos de sua monumental
Estética (1963) a analisar o problema do reflexo (Widerspiegelung) no cotidiano dos homens
para só então no terceiro capítulo entrar na discussão propriamente estética, a questão da
separação da arte da vida cotidiana. Já no início do prólogo, Lukács expõe, na forma de uma
metáfora que ficou famosa, a importância central que ele atribui à vida cotidiana na compre-
ensão da gênese das diferentes formas do espírito:

Das Alltagsverhalten des Menschen ist zugleich Anfang und Endpunkt einer jeden menschli-
chen Tätigkeit. D. h. wenn man sich den Alltag als einen großen Strom vorstellt, so zweigen
in höheren Aufnahme- und Reproduktionsformen der Wirklichkeit Wissenschaft und Kunst
aus diesem ab, differenzieren sich und bilden sich ihren spezifischen Zielsetzungen entspre-
chend aus, erreichen ihre reine Form in dieser – aus den Bedürfnissen des gesellschaftlichen
Lebens entspringenden – Eigenart, um dann infolge ihre Wirkungen, ihrer Einwirkungen auf
das Leben der Menschen wieder im Strom des Alltagslebens zu münden.
[O comportamento cotidiano do homem é ao mesmo tempo começo e ponto final de toda
atividade humana. Isto é, se imaginamos o cotidiano como um grande rio, então ciência e
arte se bifurcam dele em formas mais elevadas de recepção e de reprodução da realidade,
diferenciam-se e se formam de acordo com seus objetivos específicos, alcançam sua forma
pura nesta peculiaridade – que surge das necessidades da vida social – para então, em con-
sequência de seus efeitos, de suas influências na vida dos homens, desembocar novamente
no rio do cotidiano] (LUKÁCS, 1963, p. 13, tradução nossa).

A investigação de Lukács tem como objetivo encontrar o momento da gênese e o desenvolvi-


mento das categorias comuns a todas as formas de reflexo, e não apenas do reflexo estético,
pois ele procura sempre destacar que a arte, apesar de sua relativa autonomização em relação

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ao cotidiano, não constitui um mundo à parte, cindido, com suas categorias próprias e especí-
ficas alheias ao mundo, mas, pelo contrário, procura valorizar essa imanência, essa cismunda-
nidade (Diesseitigkeit) do reflexo artístico em relação às demais formas de reflexo do mundo
(FREDERICO, 2013, p. 118). O objetivo de Lukács é estritamente filosófico, mesmo ontológico-
-epistemológico, em empreender uma pesquisa categorial, analisar as categorias relativas às
diferentes formas da subjetividade. Por outro lado, trata de afirmar a historicidade das catego-
rias estéticas, seu surgimento e desenvolvimento a partir dos diferentes momentos da história
humana, nos antípodas das estéticas de cunho idealista, nas quais essas categorias seriam for-
mas a priori da subjetividade humana, anteriores ao próprio conhecimento, ou seja, à relação
sujeito-objeto. O marxista Lukács desenvolve de um modo histórico-sistemático os aponta-
mentos de Marx em seus Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844. No meio das diferentes
manifestações do espírito humano (ciência, religião, arte etc.), a meta de Lukács é determinar
o papel da arte, sua função específica na evolução da espécie e sua diferenciação em relação à
ciência, à religião e à magia. Como diz Antonio Candido: “Cada sociedade cria as suas mani-
festações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os
seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles”
(1995, p. 243 – grifo nosso). O itinerário de Lukács começa com o reflexo científico. Sempre se
fundamentando no trabalho como momento fundante do ser social, o filósofo húngaro ana-
lisa este momento a fim de descobrir as necessidades que dele emanam e que vão constituir
a base da tentativa de refletir (widerspiegeln) cientificamente o mundo. Ora, o trabalho nada
mais é do que a atividade do homem visando a transformação da natureza para satisfazer as
suas necessidades mais concretas e imediatas. Neste processo surge a consciência do homem
enquanto sujeito, juntamente com a teleologia. Ao mesmo tempo em que funda a subjetivida-
de, o trabalho impõe a necessidade de um conhecimento do mundo o mais objetivo possível,
o mais preciso possível, uma compreensão de suas leis naturais, o que pressupõe um esforço
epistêmico-sistemático e semiológico do sujeito em organizar e sistematizar o comportamen-
to do objeto ante a tentativa humana de transformá-lo. Neste sentido surge a linguagem, com
a missão de se adequar à realidade objetiva. Diz Leyla Perrone-Moisés:

A linguagem tem uma função referencial e uma pretensão representativa. Entretanto,


o mundo criado pela linguagem nunca está totalmente adequado ao real. Narrar uma
história, mesmo que ela tenha realmente ocorrido, é reinventá-la. […] Sempre estará
faltando, na história, algo do real; e muitas vezes se estará criando, na história, algo que
faltava no real. (1990, p. 105).

E a partir da linguagem surgirá, depois, a literatura como reflexo estético (ästhetische Widers-
piegelung) dessa realidade. A influência aristotélica em Lukács se faz sentir também no texto
de Perrone-Moisés, quando esta evoca o estagirita no seu conceito de mimese enquanto re-
presentação do real, que não tem a pretensão de ser um retrato fotográfico da realidade, mas
uma reelaboração ou recriação subjetiva a partir de um modelo objetivo. O caráter imanente,
mundano, da literatura (ou poesia, segundo Aristóteles) fica explícito quando a autora subs-
titui o substantivo algo abstrato “criação” por “produção” no título de seu texto “A criação do
texto literário”. (1990, p. 101). A expressão “produção do texto literário” estaria intimamente

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ligada ao processo material de produzir, que seria uma recriação a partir do real, mas que
produz, em vez de uma cópia do seu modelo no mundo real, um novo real, no qual a nova
finalidade que lhe deu o sujeito constitua a sua especificidade.

No trecho citado, em particular, é possível reconhecer a concepção aristotélica, principalmen-


te do capítulo IX da Poética, onde o filósofo grego faz a distinção entre o ofício do poeta e o do
historiador. Enquanto este tem por função (ou, como diria Aristóteles, é "da sua natureza")
descrever fatos o mais objetivamente possível, firmando necessariamente um compromisso
com o real, com o Verdadeiro, o poeta deve ter compromisso com a verossimilhança antes do
que com o Verdadeiro. Este pode inclusive estar ausente da poesia, desde que se conserve, po-
rém, a sua verossimilhança. A verossimilhança por sua vez, sempre segundo Aristóteles, deve
estar a serviço da finalidade última que ele atribui à mimese poética, qual seja, a função de,
evocando o temor e a piedade, causar a catarse dessas emoções. E é aí que está o ponto funda-
mental de distinção entre a linguagem e a mimese, das diferentes posturas de cada uma dian-
te do real, segundo o que nos diz Perrone-Moisés: enquanto a linguagem ordinária tem, por
natureza, uma função predominantemente referencial, que procura “refletir” o mundo o mais
objetivamente possível (o historiador de Aristóteles), a mimese jamais se constituiu como re-
flexo efetivo do real. Sua função é, a partir da realidade objetiva, evocar sentimentos humanos.

A grande literatura, segundo Lukács, põe o homem no centro; seu objeto é o mundo dos ho-
mens e é este mundo por excelência que ela procura refletir (widerspiegeln) esteticamente,
tanto em suas determinações essenciais quanto nas suas manifestações aparentes. É própria
da literatura essa refiguração do sensível, da realidade fenomênica, que se apresenta de forma
caótica e heterogênea na vida cotidiana, em uma segunda imediaticidade, que nos apresenta
uma nova figuração sensível imediata da realidade, como que “purificada” pelas formas pró-
prias da arte. Deste modo, realiza-se, na obra de arte, a síntese entre essência e aparência.
E, mais que isso, posto que a arte e sua recepção formam um conjunto indissociável, aquela
reflete o mundo com o objetivo de evocar nos outros homens, de modo individual, aqueles
sentimentos que o ligam ao gênero humano, ao universal de sua espécie, realizando, assim,
a síntese entre individualidade (ou singularidade) e universalidade. “Ela [a literatura] é fa-
tor indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade”
(CANDIDO, 1995, p. 243). A obra literária é registro da subjetividade na objetividade, é obje-
tivação, autonomização, surgidas da necessidade de autoafirmação do homem no mundo, e
que não fica apenas no registro, mas pretende evocar nos homens o que eles têm em comum,
transmitir sentimentos, paixões, desejos etc. humanos. É aquilo que Candido define como
“construção de objetos autônomos”, na definição que dá de literatura (1995, p. 244). O crítico
brasileiro procura salientar a relativa independência da representação mimética frente ao
mundo real. Para ele, a literatura, apesar de ser construída a partir da realidade cotidiana e,
após construída, dever retornar à realidade na forma de um novo objeto, mantém sua auto-
nomia tanto em relação ao produtor como em relação ao receptor. A obra de arte não é nem
“do autor” nem somente “do receptor”, é antes um objeto autônomo, parte do real, mas que
não se confunde com ele. O simples fato de ser construção implica necessariamente alguém
que produziu, e produziu com determinada finalidade. Neste sentido, é distinto da natureza,

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posto que esta não possui nenhuma teleologia em seus objetos. É por excelência um objeto da
subjetividade. “Ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo
dos indivíduos e dos grupos” (CANDIDO, 1995, p. 244). Em Lukács, a função de evocar senti-
mentos humanos fica a cargo de uma das categorias mais importantes de sua teoria estética: a
catarse. Mas, enquanto na Poética de Aristóteles ela é atributo somente da tragédia, o filósofo
húngaro se propõe a uma ampliação dessa noção fundamental. Ele também torna explícito,
em sua filosofia estética, o que no estagirita estava apenas implícito: a relação da catarse com
uma perspectiva ética. Nos diz o professor português Vítor Manuel de Aguiar e Silva:

Data de Aristóteles o problema da catarse como finalidade da literatura. Na Poética, afirma


explicitamente o Estagirita que a função própria da poesia é o prazer (hedone), não um
prazer grosseiro e corruptor, mas puro e elevado. Este prazer oferecido pela poesia não
deve por conseguinte ser considerado como simples manifestação lúdica, devendo antes ser
entendido segundo uma perspectiva ética, como se conclui da famosa definição de tragédia
estabelecida por Aristóteles […] Aristóteles, com efeito, não advoga a extirpação dos impul-
sos irracionais, mas sim a sua clarificação racional, a sua purgação dos elementos excessivos
e viciosos (1979, p. 111).

Conclusão
A concepção estética de Bertolt Brecht nunca recebeu uma forma sistemática acabada. Tendo
se preocupado menos com o rigor teórico-filosófico do que com a prática teatral propriamen-
te dita, suas ideias sobre estética se encontram dispersas em textos e esclarecimentos sobre o
modo de fazer teatro. Essa correlação entre teoria e prática deixa ver o caráter dialético-ma-
terialista – e portanto marxista – do modo como o autor encarava a questão estética. Embora
não fosse filósofo de formação, não tendo por isso se ligado, a priori, a nenhuma concepção
estética definitiva, o fato de ser artista e criador estético engajado com o seu objeto o creden-
ciava a teorizar sem cair numa espécie de “teoricismo” do qual não escaparam nem mesmo
teóricos da mais sólida e ampla formação quando se puseram a tratar de problemas relativos à
arte. Ele era, segundo a feliz expressão de Leandro Konder, um “improvisado mas inteligente
teórico” (2013, p. 125). Temos, na teoria de Brecht, uma oportunidade ímpar de observar em
ação o pensamento de um criador-pensador, ou um teórico-artista. Em contraposição a ele,
o filósofo húngaro Georg Lukács, de formação filosófica tradicional, é um dos exemplos mais
acabado de teórico da literatura do século XX. Tanto Brecht quanto Lukács possuem uma vi-
são acerca da literatura que engloba e parte de fatores externos, do mundo dos homens, para
daí articular toda uma concepção estética profundamente humanista, que tem o ser humano
como ponto de partida e também de chegada. A realidade que a literatura configura por meio
da mimese é uma realidade essencialmente produzida pela ação humana, por mais que essa
essência apareça muitas vezes oculta por uma aparência fetichizada, cabendo a ela a função
de desvelá-la. Ambos mostram, portanto, uma preocupação humanística para além da esfera
do estritamente estético, atribuindo à arte em geral, e à literatura em particular, uma função
ética fundamental no todo social.

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O caminho percorrido pelo primeiro esteve sempre ligado às suas experiências enquanto dra-
maturgo, e é no campo do teatro que ele formula suas categorias, dando centralidade ao con-
ceito de distanciamento, como teremos a oportunidade de analisar em algumas de suas rea-
lizações mais importantes. Neste sentido, pode-se falar de uma autêntica Teoria materialista
do drama. O segundo empreende uma ampla e abrangente investigação histórico-ontológica
das principais etapas do desenvolvimento social e o seu papel na gênese das principais cate-
gorias estéticas, através das diversas formas de reflexo da realidade e das principais formas
de mimese, até chegar na catarse e confiar-lhe a missão fundamental de evocar sentimentos
humanos. Através desta catarse, o indivíduo seria levado a se identificar com o universal de
sua espécie, o gênero humano.

No final, as duas concepções se complementam, posto que, seja pelo caminho da transmis-
são didática de um conteúdo, seja por meio do apelo aos sentimentos, em ambas o indivíduo
atomizado é levado a se reconhecer na obra literária enquanto pertencente a um mundo que
é – desmascaradas e desmistificadas todas as formas de objetificação do humano que nele se
apresentam – completamente seu.

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A linguagem poética como meio aprazível de ensinar


a filosofia de Epicuro no texto de Lucrécio

Eduardo da Silva Barbosa


Mestrando, Filosofia/UFF

O objetivo desta comunicação é retratar como o poeta e filósofo Tito Lu-


crécio Caro utilizou seu talento literário para ensinar na Roma antiga a
doutrina de Epicuro. Tarefa difícil devido a não familiaridade dos roma-
nos aos conceitos filosóficos gregos. A poesia seria então o doce mel do
qual Lucrécio faria uso para facilitar a iniciação às diretrizes da doutrina
epicurista de forma agradável. Atingir o universo da filosofia pela lingua-
gem poética em Roma foi a sublime originalidade de Lucrécio.

Palavras-chave: Poética; Epicurismo; Lucrécio.

The purpose of this communication is to portray how the poet and phi-
losopher Tito Lucretius Caro used his literary talent to teach in ancient
Rome the doctrine of Epicurus. A difficult task because of the non-
-familiarity of the Romans with Greek philosophical concepts. Poetry
would then be the sweet honey which Lucretius would use to facilitate
the initiation of the epicurean doctrine in a pleasant way. To reach the
universe of philosophy by poetic language in Rome was the sublime
originality of Lucretius.

Keywords: Poetic; Epicureanism; Lucretius.

O poeta e filósofo Tito Lucrécio caro, que floresceu no século primeiro antes de Cristo, deci-
diu por amor a seus compatriotas lutar a mais difícil e honrosa das batalhas: o combate con-
tra a superstição e pela liberdade. Viveu aproximadamente entre 96 e 55 a.C. em um período
muito conturbado de Roma onde as guerras frequentes impediam qualquer possibilidade de
viver em tranquilidade e harmonia. Somado ao desenfreado derramamento de sangue havia
outro grande adversário do espírito, a religião corrente. Esta, excessivamente supersticiosa e
amedrontadora, devastava os homens com suas práticas e crendices aberrantes e asfixiantes,
mergulhando-os em terrível desespero.

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Admirador fervoroso do filósofo grego Epicuro de Samos (341 a.C. – 270/271 a.C.), Lucrécio
acreditava que este encontrou as chaves para a compreensão da natureza (Physis) e como
consequência disso viabilizou uma ética capaz de conquistar a liberdade e a serenidade inte-
rior. Como um discípulo apaixonado, segue com entusiasmo os passos do mestre, confiando
com firmeza nos anunciados benefícios de suas palavras. Sua devoção é manifestada com
reverência no elogio que se segue:

Ó tu que primeiro pudeste, de tão grandes trevas, fazer sair um tão claro esplendor, escla-
recendo-nos sobre os bens da vida, a ti eu sigo, ó glória do povo grego, e ponho agora meus
pés sobre os sinais deixados pelos teus, não por qualquer desejo de rivalizar contigo, mas
porque por amor me lanço a imitar-te. De fato, como poderia a andorinha bater-se com o
cisne, que poderiam fazer de semelhante em carreira os cabritos de trêmulos membros e
os fortes, vigorosos cavalos? Tu, ó pai, és o descobridor da verdade, tu me ofereces lições
paternais, e é nos teus livros que nós, semelhantes às abelhas que nos prados floridos tudo
libam, vamos de igual modo recolhendo as palavras de ouro, de ouro mesmo, as mais dignas
que houve desde que o tempo é tempo (De rerum natura, Livro III, 1-14).

A doutrina epicurista foi considerada pelo poeta a única via por onde o homem poderia liber-
tar-se das amarraras que o prendia à escravidão e a aflição existencial. A filosofia do Jardim
(Képos) denunciava com convicção as fontes de todo sofrimento humano, oferecendo a seus
seguidores os remédios (phármakon) necessários ao restabelecimento da saúde do corpo e
da alma. De fato, Epicuro (assim como outros anteriores a ele, notadamente Platão) enten-
dia a filosofia de forma análoga a medicina, como um cuidado especial com a vida e com o
espírito. O exercício filosófico deve levar o homem a cultivar práticas emancipadoras, aspi-
rando sempre à felicidade (eudaimonia). O famoso quádruplo remédio (tetraphármakon)
de Epicuro, exposto nas máximas principais, é indicado como tratamento: 1- Não devemos
temer os deuses 2- A morte não nos traz riscos 3- O bem é facilmente obtido 4- A dor não
dura ininterruptamente.

Assim como realmente a medicina em nada beneficia se não liberta dos males do cor-
po, assim também sucede com a filosofia se não liberta das paixões da alma (Epicuro,
Sentenças vaticanas).

A perspectiva terapêutica do epicurismo teve suas motivações nas novas necessidades apre-
sentadas pelo complexo panorama da Grécia dos séculos V e IV a.C; O desmantelamento das
cidades-estados helênicas desencadeado principalmente pela guerra do Peloponeso (431-404
a.C.) e sua consequente derrocada econômico-social foi um golpe duro e irreversível. Além
disso, a posterior perda da independência e subserviência a um império estrangeiro (mace-
dônico) após a batalha de Queroneia suprimiu as valorosas liberdades politicas do cidadão
grego. Os debates na ágora, a partir de então contidos, deixam de ser uma expressão de so-
berania e orgulho do povo. A tão glorificada pólis grega, que segundo Aristóteles, garantiria
ao cidadão as condições necessárias para a busca de sua felicidade já não existia; o homem,
entendido pelo filósofo de Estagira, como um animal político (zoon politikon) perde suas re-
ferências até então fundamentadas no esplendor da cidade.

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Nesse cenário de desolação, a especulação filosófica exageradamente intelectualista perde


força. Obras valorosas como a República de Platão e a Política de Aristóteles, que teorizavam
a respeito do Estado perfeito perdiam seu sentido de ser, posicionando-se em perspectiva
superada (Reale, 1990, p.228). Faz-se necessário pensar o papel da filosofia nesse contexto de
ruínas. É nessa conjuntura que outras correntes filosóficas se desenvolveram, abrindo con-
corrência com as já consagradas Academia e Liceu. O epicurismo, como uma alternativa para
os novos tempos, e acessível a todos, irá rediscutir o papel do homem e propor um caminho
filosófico cuja meta é possibilitar o alcance do prazer comedido e seguro. As diversas teorias,
toda ciência e todo conhecimento sobre os fenômenos da natureza só terão valor, nessa con-
cepção, se forem capazes de nos afastar das dores do corpo e das perturbações da alma, pro-
porcionando paz de espírito e uma vida digna de se viver.

Se nunca estivéssemos perturbados pelo temor dos fenômenos celestes e da morte, in-
quietos com o pensamento de que esta pudesse afetar-nos, e se não desconhecêssemos os
limites próprios às dores e aos desejos, não teríamos necessidade de estudar a natureza
(Epicuro, Máximas fundamentais – XI).

Ao estipular novas propostas e práticas de vida, Epicuro não tinha em mente a reconstrução
da arrasada pólis grega e sim um novo pacto fundamentado na amizade (philia). A suntuosa
e intrincada cidade não era para o filósofo de Samos a melhor alternativa para a boa vida, os
intermináveis conflitos inerentes a esse universo humano não permitiriam a tranquilidade
almejada. A contraproposta seria viver ocultamente, afastado da agitação cotidiana, entre
amigos amantes da filosofia cujo objetivo é compartilhado: viver da forma mais simples pos-
sível e de acordo com a natureza, com isso adquirindo prazer e satisfação. Epicuro, no papel
de reformador da sociedade, apresentou uma doutrina filosófica capaz de lidar com os pro-
blemas práticos de sua época (Farrington, 1967, p.85).

Conforme seu próprio tempo e cultura, Lucrécio buscou encaixar o norteamento epicurista
a sua realidade. Aprendeu com seu professor grego que o exercício filosófico deve objetivar a
ética. Seu célebre poema filosófico De rerum natura (Sobre a natureza das coisas, ou apenas
Da natureza como traduz Agostinho da Silva) escrito em seis livros, que felizmente atraves-
sou o tempo chegando até nós, é de extrema importância tanto pelo valor literário quanto
pelo conteúdo filosófico, nele encontramos a fonte mais relevante de exposição dos preceitos
e estilo de vida epicurista.

Não seria trabalho fácil uma transcrição direta da filosofia de Epicuro para o mundo dos
romanos devido a pouca intimidade destes com os conceitos da tradição filosófica grega. O
poeta, consciente do fardo, toma para si a dificílima tarefa. O trecho a seguir, direcionado a
Mêmio, amigo do qual Lucrécio dedica seu poema, expõe o embaraço:

E também não ignoro que é bem difícil explicar em versos latinos as obscuras descober-
tas dos gregos, sobretudo porque se faz mister empregar palavras novas, dada a pobreza
da língua e a novidade do assunto. Mas o teu valor e o prazer que espero tirar de tua
doce amizade levam-me a suportar qualquer trabalho e induzem-me a passar em claro

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as noites tranquilas, procurando em que termos e em que verso poderei levar ao teu
espírito claras luzes com que possas penetrar profundamente os fatos e fenômenos
ocultos (De rerum natura, Livro I, 137-146).

O pioneirismo do poeta na divulgação de enigmáticas ideias estrangeiras acerca da natureza


das coisas (De rerum natura), apesar da descomunal incumbência, é encarada com entusias-
mo e absoluto entendimento de sua importância e novidade no contexto de Roma.

Percorro as regiões desviadas das Piérides, que ninguém trilhou antes de mim. É bom ir às
fontes virgens e beber, é bom colher flores desconhecidas e com elas trançar para minha
fronte coroa insigne, qual nunca e ninguém a puseram as musas. Primeiro, porque te ensino
importantes assuntos e procuro libertar-te o espírito dos apertados nós religiosos; depois,
porque sobre um tema obscuro vou compondo tão luminosos versos, a tudo tocando com
a graça das Musas (De rerum natura, Livro IV, 1-6).

É pela beleza e sedução da poesia que Lucrécio estrategicamente divulga a mensagem liber-
tadora da doutrina de Epicuro; seu talento poético faz-se necessário ao propósito de abrandar
as dificuldades inicias do aprendiz conduzindo amavelmente o leitor aos caminhos da escola
do Jardim. A aridez do discurso filosófico torna-se um obstáculo difícil de ser superado, pon-
do em fuga o principiante inadvertido devido a aparente impenetrabilidade de seu território
conceitual; além disso, algumas apreciações da doutrina referentes a certos temas aflitivos
poderiam, sem o devido cuidado, eliminar qualquer expectativa de prosseguimento aos en-
sinamentos. O amargo sabor da severa filosofia é suavizado com o mel da poesia. Os versos a
seguir manifestam esse método perspicaz:

(...) assim como os médicos, quando tentam dar às crianças o repugnante absinto, primei-
ro põem, no bordo da taça, loiro, fluido e doce mel, de modo que, pela idade impreviden-
te e pelo engano dos lábios, tomem a amarga infusão do absinto e, não significando este
engano prejuízo, possam deste modo readquirir a saúde, assim também eu, como esta
doutrina parece muito desagradável a quem a não tratou, e foge diante dela, horrorizado,
o vulgo, quis, em verso eloquente e harmonioso, expor-te as minha ideias, e ungi-las, por
assim dizer, do doce mel das Musas; a ver se por acaso posso manter o teu espírito en-
cantado com meus versos, enquanto penetras toda a natureza e as leis da sua formação
(De rerum natura, Livro I, 935-950).

Mais uma vez, assim como em seu mestre, a analogia com a medicina é utilizada; nesse caso
acompanhada de uma imagem elucidativa sobre a tarefa do poeta. O raciocínio analógico está
entrelaçado ao poema como método instrutivo, de modo como trabalhava Epicuro: “guiado
pela analogia, se passará do sensível ao pensado e do pensado ao sensível” (Deleuze, 2011, p.
275). Consequentemente, o recurso à produção de imagens é um apelo indispensável para a
efetivação do propósito pedagógico de Lucrécio. Cada fundamento teórico é acompanhado
de diversas construções imagéticas ricamente ornamentadas poeticamente. Platão, em certo
sentido, faz uso de estratégia parecida, quando utiliza a seu favor o auxílio de narrativas mi-
tológicas como facilitadoras para o entendimento. Esse cuidado especial explica-se em parte
pela já mencionada distância do público romano em relação à tradição teórica da filosofia

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grega; o inalcançável universo abstrato é compensado pela exuberância poética das figuras
empregadas pelo poeta. Essas ilustrações, de modo geral, fazem alusão a acontecimentos do
cotidiano e do universo cultural romano, extremamente acessíveis a qualquer pessoa.

Logo no início do poema, após invocação à deusa Vênus e ao elogio apaixonado a Epicuro,
Lucrécio inicia sua exposição dos fundamentos filosóficos que pretende ensinar. O primeiro
ponto a ser demonstrado é basilar a toda estrutura lógica da doutrina, resumidamente: nada
vem do nada e nada se torna nada.

E, para início, tomaremos como base que não há coisa alguma que tenha jamais surgido do
nada por qualquer ação divina (De rerum natura, Livro I, 149-150).

Esse princípio dissipa a suposição de que há na natureza o aniquilamento completo da maté-


ria. Ademais, elimina a explicação habitualmente empregada de criação divina, algo que de
fora da natureza a concebe. Faz-se necessário nessa perspectiva que algo permaneça, inde-
pendentemente das modificações incessantes da dinâmica dos fenômenos. Tudo aquilo que
se decompõe transforma-se em outra coisa, a morte de um ser é a condição de nascimento de
outro. As gerações são substituídas, os idosos dão lugar aos novos assim como os corredores
passam uns aos outros o facho da vida (De rerum natura, L. II, 79). Fazendo uso de sua habi-
lidade poética Lucrécio ilustra esse tema:

Acabam as chuvas por se perder quando o ar que as engendrou as precipita no seio da


terra-mãe; mas surgem as brilhantes searas e verdejam os ramos das árvores, e crescem
elas próprias e se carregam de frutos. Deles se alimentam a nossa raça e a raça dos animais
bravios, por eles vemos as alegres cidades florescerem em crianças e cantarem os bosques
frondosos com suas aves novinhas; é por eles também que as ovelhas, que de gordas se can-
sam, deitam nos pastos os corpos nédios e o lácteo resplandecente néctar líquido lhes mana
dos úberes pejados; é por eles, ainda, que a nova geração brinca ligeira, por entre as ervas
tenras, com suas patas incertas e a juvenil cabeça perturbada pelo leite puro. Por conseguin-
te, não é destruído inteiramente nada do que parece destruir-se, porque a natureza refaz os
corpos a partir uns dos outros e não deixa que nenhum se crie senão pela ajuda da morte
de algum outro (De rerum natura, Livro I, 250-264).

O árduo debate metafísico a respeito do ser enquanto ser, sobre o que permanece, com ine-
vitáveis referências a Parmênides, Heráclito e Platão, e que no caso específico de Lucrécio irá
culminar na teoria atomista originária de Leucipo e Demócrito, é atenuado com descrições e
movimentos pastoris de fácil compreensão. O movimento como categoria filosófica se apre-
senta no crescimento da vegetação, no desenvolvimento dos frutos e na movimentação dos
animais. O bucolismo poético é permeado de referências filosóficas indispensáveis à assimi-
lação dos conhecimentos que Lucrécio almeja transmitir a seu público.

Além do quadro campesino, Lucrécio faz uso de outras imagens para desenvolver por ana-
logia a compreensão do movimento. A dinâmica do atomismo grego como explicação para
os eventos da natureza, alicerce para toda estrutura do pensamento em questão, precisa ser
esclarecida pelo poeta. A eterna movimentação dos átomos no vazio infinito, com seus ine-

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vitáveis choques, agregação e desagregação, é representada pela similitude com a agitação da


poeira no ar, visível na luminosidade dos raios de sol.

Do que acabo de dizer temos nós sempre presente, ante os olhos, o traslado e imagem. Ob-
serva os raios do Sol que entram dando sua luz na obscuridade de uma casa: verás que na
própria luz dos raios se misturam, de modos vários, numerosos corpos diminutos, e, como
se fosse em eterna luta, combatem, dão batalhas, por grupos certos se guerreiam e não há
pausa, agitados como estão pelos encontros e pelas separações freqüentes. Podes imaginar
por isto o que será a perpétua agitação no vago espaço dos elementos das coisas na medida
em que um pequeno fato pode dar idéia de grandes coisas, e elementos para seu conheci-
mento (De rerum natura, Livro II, 114-124).

É interessante observar, nesses últimos versos, outra menção a um dado familiar a cultura
romana; a guerra. As evoluções no campo de batalha adequam-se com perfeição as intenções
imagéticas buscadas pelo poeta; com o objetivo, sempre presente, de apresentar alguma po-
sição rigorosamente filosófica. Se tudo está em eterno movimento, como explicar a aparente
imobilidade das coisas? O conflito bélico visto de perto, com todo seu horror e agonia, torna-
-se um exemplo animado e inteligível de como a ilusão do imobilismo se dá.

O mesmo sucede quando as legiões numerosas enchem com suas evoluções o campo de
Marte e nos apresentam uma imagem da guerra, quando o brilho das armas se eleva até o
céu e toda a terra à volta resplandece com o bronze e se levanta sob os pés dos homens o
rumor que vem da sua força, e os montes feridos pelos gritos lançam o eco para os astros
celestes, e caracolam cavaleiros, e de repente, com valente impulso, atravessam, abalando-o,
o campo: há, apesar de tudo, um lugar nos altos montes onde parecem estar firmes e haver
apenas um brilho, imóvel sobre os campos (De rerum natura, Livro II, 321-332).

A invocação à popular e amada Vênus, deusa genitora dos enéadas (Aeneadum genetrix),
clama pela paz e salvação da pátria, pede também ajuda na laboriosa missão de escrever o
poema com um encantamento capaz de cativar e agradar Mêmio. Surge nesse ponto uma
aparente contradição em relação às instruções que o poeta prega, levando em consideração
que mais a frente o próprio irá afirmar que os deuses estão afastados e remotos de tudo o que
se passa conosco (De rerum natura, Livro II, 646).

Para Lucrécio, os deuses existem, mas de modo algum se preocupam com os homens. Não
há intervenção divina nessa perspectiva, nossa existência não é obra da criação dos deuses.
De nada adianta nossos pedidos aos céus, não há interferência favorável ou desfavorável nas
vidas dos frágeis e imperfeitos mortais. Os deuses vivem eternamente na mais perfeita paz
de espírito (ataraxia), o contato com a turbulência das paixões humanas não seria desejável
nessa condição de júbilo. Não há, portanto, necessidade de temê-los.

Se retiveres tudo isso, já bem conhecido, logo a natureza te aparece como livre, isenta de
senhores soberbos e realizando tudo espontaneamente, sem qualquer participação dos deu-
ses. De fato, e pelo sagrado coração dos deuses, que em paz tranquila passam um plácido
tempo e uma vida serena! (De rerum natura, Livro II, 1090-1095).

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Quais seriam os motivos do apelo à deusa? Um deles, provavelmente, é agradar Mêmio, ele-
vando com espírito poético a deusa protetora de sua família. Além desse, demonstrar apreço a
Vênus seria um modo de demonstrar respeito à pátria e sua cultura, uma vez que é ela a mãe de
todos os romanos (enéadas). Se um dos propósitos do poema é elevar a estima do povo, reve-
renciar seus símbolos torna-se algo elogiável, mesmo que esses mesmos símbolos sejam mais
a frente negados. Para Michel Serres (1997, p. 168) Vênus seria simplesmente um nome para
natureza: “Vênus, isto é, a natureza. Marte, isto é, a natureza”. É possível também, a esse respei-
to, uma explicação mais condizente com a doutrina de Epicuro; Os deuses são modelos de vida
perfeita, e por isso merecem respeito como paradigma de felicidade (QUARTIM DE MORAES,
1998, p. 63). É a partir da noção de perfeita harmonia que temos dos deuses que podemos am-
bicionar para nossa própria vida a possibilidade de existirmos de modo análogo a divindade.

Medita, portanto, sobre essas coisas e outras afins dia e noite, por ti mesmo e com compa-
nheiros semelhantes a ti, e nunca serás perturbado, desperto ou adormecido, mas viverás
como um deus entre os homens, pois em nada se assemelha a uma criatura mortal o homem
que vive entre bens imortais (Epicuro, Carta a Menequeu).

O próprio Epicuro é elevado pelo poeta à posição de um deus. Comparado com as realizações
e benefícios de outros deuses e heróis, o feito do filósofo é consagrado superior devido aos
bens que proporcionou a humanidade. Supera até mesmo Hércules, que devido a seus traba-
lhos extraordinários, fez da terra um lugar mais seguro de se viver. O fato de Lucrécio consi-
derar Epicuro um deus nos remete a maneira como os discípulos do mestre viviam na escola
do Jardim, como em uma verdadeira comunidade religiosa (Ullmann, 2006, p.20).

Porquanto, se, como o pede a própria e reconhecida majestade do assunto, se tem de falar
dele, não há dúvida, ó Mêmio glorioso, que foi um deus, um deus, aquele que primeiro des-
cobriu a regra da existência que se chama agora sabedoria, aquele que trazendo a nossa vida,
por meio da sua arte, de tão grandes ondas e de tão grandes trevas, colocou-a em lugar tão
tranqüilo e em tão clara luz (De rerum natura, Livro V, 6-12).

Dentro do propósito filosófico-pedagógico de aplicação de imagens poéticas, não haveria


contradição insuperável na alusão aos deuses. Mais uma vez o amargo é abrandecido. Uma
doutrina filosófica que propaga o distanciamento e a não interferência dos deuses na vida
dos homens pode ser julgada como pesada e dura demais. Levando-se em consideração uma
cultura em que a religião é enaltecida e estatizada, a gravidade é ainda maior. Assim, a gra-
ciosa aparência e a gloriosa vida perfeita das divindades, apesar de alheias a nossa condição,
se apresenta como uma bela motivação existencial. Por comparação, aquele que segue as
instruções do sistema pode viver uma vida de esplendor; equivalente, na medida de nossa
mortalidade, à vida imperturbável dos deuses. A religião, que Lucrécio considera abertamen-
te como sua inimiga; “produtora de feitos criminosos e ímpios” (DRN, L I, 82) é abalada em
suas bases. Se não há, em hipótese alguma, intervenção divina e se nossas súplicas não fazem
efeito algum, a religião, os vates e suas cerimônias não são elementos necessários. A compre-
ensão sólida de que nossas dores não persistirão por toda a eternidade (como estabelecido no
tetrapharmakon de Epicuro) impede que as ameaças da religião, no que se refere a punições
e torturas após a morte, tenham algum efeito nocivo em nosso espírito.

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E com razão: se os homens vissem termo certo às suas dores, de qualquer modo ganhariam
valor e resistiriam à religião e à ameaça dos vates (De rerum natura, Livro I, 106-107).

Se o temor aos deuses é fonte de grandes perturbações na alma merecendo por isso, todo
cuidado e “medicamentação” apropriada, o medo da morte requer uma preocupação ainda
maior. Esse profundo medo reflete diretamente nas ações dos indivíduos; ele é a fonte das
maiores desgraças da vida. O pavor irracional da morte nos leva ao consequente apego a tudo
aquilo que, pelo menos a princípio e de forma ilusória, nos afastaria dela. A ambição, a ava-
reza, a cobiça e a inveja são decorrências desse medo profundo, levando o homem a cometer
os mais monstruosos crimes.

Por fim, vêm a avareza e a cega cobiça das honras que obrigam os pobres homens a ultra-
passar os limites do direito e até, cúmplices e servidores do crime, a esforçar-se de dia e de
noite, com trabalho sem par, por atingir os cimos da riqueza: estas chagas da vida são criadas,
em parte não pequena, pelo medo da morte (De rerum natura, Livro III, 60-64).

Para Agostinho Silva (Os pensadores, 1980), a filosofia de Lucrécio seria uma meditação sobre
a morte, diferentemente do sentido platônico-socrático de preparação para morte. Esta, no
ponto de vista de Lucrécio e Epicuro, não passa de uma total insensibilidade, portanto ela
nada é para nós (Epicuro, Máximas fundamentais, II). Para Platão a alma é eterna, assim sen-
do, após a morte do corpo ela permanece. No entanto, não sabemos exatamente o que ocorre
após a separação corpo-alma.

Ninguém sabe o que é a morte, nem se, porventura, será para o homem, o maior dos bens;
todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males. A ignorância mais condená-
vel não é essa de supor saber o que não sabe? (PLATÃO, 1980, p. 18).

Provar que a morte faz parte de um processo necessário e natural, de dispersão dos elemen-
tos da matéria, e que tanto o corpo quanto a alma são perecíveis é chave para a eliminação
de muitos enganos e inquietações infantis. O fim definitivo nega a possibilidade de pertur-
bações após a morte, eliminando os infernos e suas torturas eternas, fonte de ansiedade e
temor. O inferno é experimentado aqui mesmo, na vida insensata em que vivemos: “Mas,
para nós, Títio existe aqui” (De rerum natura, III, 994). A analogia com meninos amedron-
tados pela escuridão espelha a condição do homem comum frente ao medo dos imagináveis
tormentos do pós-morte.

Já muitas vezes os homens traíram a pátria e os pais queridos pelo desejo de evitar as re-
giões do Aqueronte. Exatamente como os meninos se aterrorizam e tudo receiam nas cer-
radas trevas, assim nós, à luz do dia, tememos coisas que em nada são mais temíveis do que
aquelas de que os meninos se assustam nas trevas, julgando que vão realmente acontecer
(De rerum natura, Livro III, 85-88).

Até mesmo a terra não é imortal; ela também envelhece, perde suas forças e por fim se de-
compõe dando matéria para o surgimento de novos mundos. Sua decadência já se faz percep-
tível: “E já agora esta o tempo sem forças, já a terra cansada mal cria os animais pequenos, ela
que criou todas as espécies” (De rerum natura, LII, 1115-1151). Em um momento especialmente

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belo de seu poema, Lucrécio dá voz a própria natureza, personificando-a. É ela que em toda
sua sabedoria fala aos homens miseráveis, questionando-os sobre a morte e repreendendo-os
no que diz respeito ao despropósito de desejar viver para sempre. Nada é mais absurdo e ma-
léfico do que esse irrealizável desejo. A vida não nos é dada como propriedade, a todos vem
como usufruto (De rerum natura, L. III, 970-971).

Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal modo a dores tão excessivas e amargas? Por
que choras e te lamentas sobre a morte? Efetivamente, se a vida anterior te foi agradável e
se todos os prazeres não foram como acumulados num vaso furado e não correram e se
perderam inutilmente, por que razão não hás de, tolo, retirar-te da vida como um conviva
farto e aceitar com equanimidade um repouso seguro? Mas se tudo aquilo de que gozaste se
perdeu em vão e a vida te pesa, por que buscas aumentá-la mais, para que tudo de novo te-
nha um mau fim e desapareça sem proveito? Não seria melhor pôr fim à vida e ao tormento?
Não posso imaginar e inventar agora coisa alguma que te agrade: tudo é sempre o mesmo.
Se o teu corpo já não está decrépito com os anos, se os membros não estão lânguidos de
cansaço, tudo fica, no entanto, igual, mesmo que persistas em viver, vencendo todos os tem-
pos, e, ainda mais, mesmo que nunca viesses a morrer (De rerum natura, Livro III, 932-950).

As paixões arrebatadoras do amor não poderiam passar despercebidas pela sensibilidade do


poeta; mesmo porque, esse sentimento é origem de terríveis perturbações na alma. O espírito
é ferido pelo terrível desejo, arrastando-nos com sua força cega ao objeto desejado: “O corpo
vai procurar aquilo que de amor feriu o espírito” (DRN, L.V, 1046). Nesse ponto, Vênus é apre-
sentada como a própria expressão do amor, a deusa da procriação e do ato sexual. É ela quem
lança seus dardos ferindo os corações dos amantes.

Segundo as recomendações de Lucrécio, faz-se necessário afastar-se desse perigo constan-


te, pois uma vez enlaçado ao amor perde-se a liberdade. A dor e a aflição surgem quando
o apego ao objeto amado torna-se exagerado e obsessivo. Mesmo à distância, continuamos
afetados por seus efeitos:

Realmente, se está ausente aquilo que se ama, logo vêm perto de nós as suas imagens, logo o
seu doce nome ressoa de contínuo aos nossos ouvidos (De rerum natura, Livro IV,1060-1062).

O sexo não é condenado pelo poeta, trata-se de uma necessidade natural que deve ser sacia-
da com prudência. O que se aponta como negativo é o aprisionamento a um relacionamento
amoroso e a falsa ideia de que apenas ele aliviará o poderoso instinto, trazendo satisfação e
felicidade. Vênus ilude os homens com seu poder. O fogo da paixão nunca é completamente
aniquilado, o desejo por amor renova-se continuamente.

Há sempre uma esperança de que o corpo, que é origem do furor, possa ele próprio extin-
guir a chama. No entanto, a natureza é inteiramente contra isto; é o amor o único objeto
que, quanto mais possuímos, tanto mais incendeia o nosso peito com terríveis desejos. De
fato, a comida e a bebida são levados para o interior do corpo e, como podem ficar aloja-
das em lugares determinados, é fácil satisfazer-se o desejo de líquidos e frutos (De rerum
natura, Livro IV, 1088-1096).

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O amor direcionado unicamente a um objeto deve ser evitado, o f luxo sexual deve correr
com naturalidade. A exclusividade nesses casos, inf lexivelmente, levará o indivíduo a
sofrimentos imensuráveis.

Mas convém fugir a essas imagens, afastar de si os alimentos do amor, pensar em outras
coisas e lançar num corpo qualquer o líquido coligido: não devemos retê-lo, convertê-lo a
um único amor e preparar para si próprio um cuidado e uma dor certa. Porque a ferida se
fortalece e se torna inveterada se a alimentarmos (De rerum natura, Livro IV, 1064-1071).

As imagens do objeto amado despertam o desejo; logo a vontade arrebata completamente o


corpo e o espírito. No entanto, esses simulacros não são capazes de saciar o intenso querer.

Mas, realmente, duma face humana e duma linda cor nada vem ao corpo, para que ele goze,
senão frágeis simulacros; esperança miserável que muitas vezes é levada no vento (De rerum
natura, Livro IV, 1094-1096).

O exemplo das imagens referentes ao amor é interessante no sentido de que estas são mui-
to prejudiciais àqueles que buscam a tranquilidade espiritual digna dos sábios; com elas,
nos mantemos em um estado de excitação e descontentamento permanentes. As imagens
poéticas, benéficas e fundamentais ao entendimento das diretrizes filosóficas presentes no
poema-didático, são contrapostas às imagens produtoras de ilusões e inquietações. As ilus-
trações, indispensáveis ao método analógico de conhecimento utilizado por Lucrécio, tem
um papel esclarecedor enquanto os simulacros não compreendidos corretamente (pela fí-
sica atomística) têm o poder de tornar a vida um tormento. O jogo de imagens tem então
um duplo aspecto; positivo quando compreendido pela ciência correta (quando utilizado,
por exemplo, pedagogicamente no poema de Lucrécio) e negativo, quando por falta de en-
tendimento, cria ilusões e mitos.

Todos os tipos de analogias e construções imagéticas utilizadas pelo poeta se conectam a um


sentido pedagógico definido; movimentos militares, utilização de termos jurídicos habituais
entre os romanos, imagens rurais, comparação com o ofício médico, comportamento dos
animais, tudo adequa-se ao objetivo de exemplificar e elucidar uma doutrina filosófica en-
tranhada na poesia. As imagens poéticas estão a serviço de um trabalho de desmitificação da
realidade com objetivos éticos. Tudo se explica logicamente; pela observação, racionalização
e analogias pode-se atingir o conhecimento das leis da natureza.

As imagens, como fenômeno físico (não mais como recurso analógico-poético), são compos-
tos atômicos que emanam dos corpos em extrema velocidade. Todos nós emitimos e recebe-
mos a todo instante fluxo ininterrupto desses simulacros. Os sons que ouvimos, os odores, as
formas que percebemos com nossa visão, tudo isso é lançado dos corpos, tanto da superfície
deles quanto de sua profundidade. Os toldos coloridos do teatro aparecem como um belíssi-
mo exemplo desse fluxo:

Efetivamente, vemos muitos objetos emitir e lançar não só o mais profundo e íntimo de si
próprio, como já dissemos antes, mas até mesmo parte da sua superfície e a própria cor. E

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isto o que fazem vulgarmente os toldos amarelos, vermelhos e verdes, quando, estendidos
nos grandes teatros, ondulam drapejando pelos mastros e pelas traves: por baixo deles, todo
o público sentado nos degraus, todo o adorno da cena e as estátuas dos deuses e das deusas
se tingem e são levados a tomar a sua cor flutuante; e, quanto mais restrito é o âmbito do
teatro, tanto mais todos os objetos, na rarefeita luz do dia, sorriem nesta graça difusa (De
rerum natura, Livro IV, 74-82).

Essas imagens, quando afastadas demais de seus corpos de origem, se perdem no espaço e as-
sim se deformam. Todo tipo de figura pode ser formada a partir desses simulacros distancia-
dos de suas fontes; eles se misturam entre si a todo instante. Imagens monstruosas de seres
inexistentes são muitas vezes produzidas nesse processo.

Formados de maneira numerosa, levantam-se no alto e não deixam de mudar de aspecto, ma-
leáveis, e de se transformar noutras figuras de toda espécie (De rerum natura, Livro IV, 132-133).

Aquele que não possui o correto entendimento desses fenômenos naturais corre o risco de
viver atormentado por imagens perturbadoras e seus mitos correspondentes. Muitos enganos
partem desse ponto, e assim acreditamos na existência de monstros nos céus e em fantasmas
que surgem em nossos sonhos. Por consequência, o poder da superstição é nutrido, uma vez
que se abrem as portas para as crendices de que há deuses nos céus interferindo aqui na terra e
que os mortos voltam de outra dimensão para se comunicarem conosco enquanto dormimos.

É assim que nós vemos os centauros e os membros dos Cilas e as fauces cerbéreas dos
cães e as imagens daqueles cujos ossos, tocados pela morte, a terra cobre; efetivamente, si-
mulacros de todas as espécies são levados por todos os lados, em parte porque se formam
no próprio ar, espontaneamente, em parte porque escapam dos vários corpos ou porque
aparecem pela reunião das suas formas (De rerum natura, Livro IV, 734-738).

Uma vez compreendido o funcionamento físico desses fantasmas, não corremos o risco de
virarmos vítimas indefesas de superstições. Eles podem ser até mesmo objetos de prazer (De-
leuze, 2011) dado que não podem mais fazer mal algum àquele que conhece sua natureza.

Lucrécio, com grande habilidade poética, fez uso primoroso das imagens como ferramenta
instrutiva. Esse instrumento didático tornou-se indispensável para a execução de sua filo-
sofia baseada em analogias. Sua grande ambição foi produzir a imagem de um homem livre
(Deleuze, 2011), libertar seus concidadãos das amarras da religião pesada (gravis religio) e dos
temores da morte e das dores eternas. Pela brandura da poesia divulga-se a doutrina filosófica
considerada emancipadora e propagadora da autarquia. As imagens poéticas são libertadoras
na medida em que ajudam a compreender os princípios da doutrina; colaboram com a inva-
lidação das figuras produtoras de mitos, em verdadeira guerra imagética onde a vitória signi-
fica a soberania do indivíduo e a derrota corresponde à servidão; seja ela amorosa, religiosa,
cultural ou de qualquer outra espécie.

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Referências
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LUCRÉCIO. Da natureza. Tradução e notas de Agostinho da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

LUCRETIUS. On the nature of things. Trad. W.H.D. Rouse, Revisado por Martin F. Smith. Loeb Classical
Library 181 – Harvard University Press, 1924.

PLATÃO. Defesa de Sócrates. In: Sócrates. Seleção de textos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Col.
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________. Epicuro: Máximas Principais. São Paulo: Editora Loyola, 2010.

________. Epicuro: Sentenças Vaticanas. São Paulo: Editora Loyola, 2014.

REALE, Giovanni. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média / Giovanni. Reale, Dario Antiseri; São
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ROMÁN ALCALÁ, R. Lucrecio: razón filosófica contra superstición religiosa. UNED, Córdoba. 2002.

SEDLEY, David. Lucretius and the Transformation of Greek Wisdom. Cambridge University Press, 2004.

SERRES, Michel. O nascimento da física no texto de Lucrécio. São Carlos: Ed. Unesp, 2003.

ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Epicuro: o filósofo da alegria 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

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O eros de Platão no mundo de Lavínia:


entre o desejo e o pecado

Fernanda Carvalho
Graduanda, Letras Vernáculas UFS

A obra de Marçal Aquino traz a sensibilidade que há muito estava na


penumbra, por isso, o presente trabalho se utiliza de Eu receberia as pio-
res notícias dos seus lindos lábios como cerne principal para a discussão
acerca do conceito de eros para Platão, contido nas obras O Banquete e
Fedro. Aliado a isso, analisamos as influências da moral cristã no confli-
to entre desejo e pecado, usando como base o livro Pecar e perdoar de
Leandro Karnal. O romance visceral de Aquino trata sobre um triângulo
amoroso, sobre o próprio amor e suas consequências perante o mundo.
A fotografia, a dualidade humana e a complexa construção de persona-
lidade serão eixo de uma temática muito rica, a qual reconhecemos a
complexidade e fazendo o presente trabalho apenas como algo inicial.

Palavras-chave: Eros; Pecado; Perdão; Erotismo; Olhar.

The work of Marçal Aquino brings the sensibility that was too long in the
twilight, so the present work is used of Eu receberia as piores noticias de
seus lindos lábios as the main nucleus for the discussion on the concept
of Eros for Plato contained in the works The Banquete and Fedro. Allied
to this, we analyze the influences of Christian morality in the conflict
between desire and sin, based on the book of Leandro Karnal, Pecar e
Perdoar. Aquino's visceral romance is about a love triangle, about the
love and his consequences before the world. Photography, human duali-
ty and the complex construction of personality will be the axis of a very
rich theme, which recognizes complexity and makes the present work
just as something initial.

Keywords: Eros; Sin; Forgiveness; Eroticism; Look.

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Ninguém viu brotar a flor esplêndida.


Metade branca, metade sombria.
Lavínia por Cauby

O mundo de Lavínia
A narrativa sobre o amor e suas consequências se dá a partir do triângulo amoroso entre o
fotógrafo Cauby, a intensa Lavínia e o pastor Ernane, Eu receberia as piores notícias dos seus
lindo lábios, escrita em 2005 por Marçal Aquino traz à tona uma sensibilidade que há muito
parecia estar na penumbra na literatura brasileira. A criação complexa dos seus personagens
cria uma atmosfera extremamente passível a ser analisada, visto isso, toda a pesquisa aqui
presente é apenas inicial, sujeito a um projeto maior.

A fotografia se faz como eixo principal do início da história. Cauby fotografa o submundo
e vende suas produções para uma empresa francesa e como projeto vai ao interior do Pará
fotografar bordéis, assassinos e o cotidiano da cidadezinha garimpeira. A peculiaridade de
personagens ofensores da moral é pragmática no livro de Aquino, além dos assassinos e pros-
titutas, existe o dono da lojinha local, Chang, conhecido na cidade pelos múltiplos casos de
pedofilia homoerótica. No qual podemos ver uma possível crítica à justiça no Brasil sobre a
impunidade, até mesmo dos crimes mais sórdidos.

É nesta lojinha do chinês mal caráter que acontece o primeiro encontro entre Lavínia e Cauby,
de forma inesperada e marcante. Com um pequeno elogio e olhares, os dois se conectam de
forma tão intensa que Chang nota e o alerta sobre o casamento da mulher com um nome in-
fluente na cidade, o pastor.

Abusada quando criança pelo padrasto, sai de casa e encontra na prostituição o único meio de
vida. Imerge no mundo das drogas. Seu destino está traçado à degradação, até que encontra
Ernani, um pastor evangélico famoso da região que exorciza todos os seus pecados e lhe dá
uma vida tranquila e a calma de um casamento santo. Temos aí um caso típico de moral cris-
tã, onde todos os pecados são perdoados pela misericórdia do amor.

A curiosidade do triângulo amoroso está na aceitação do pastor Ernani quanto a personalida-


de animalesca de Lavínia, no entanto, entre quatro paredes, enquanto na sociedade, ela apre-
senta como uma esposa de caráter ameno e muito silenciosa, como se tivesse pouco a falar.
Essa face entra em conflito com a figura animalesca inerente da mesma ao se mostrar rendida
à paixão proibida com Cauby que chamará de Shirley. Lavínia quando recatada, do lar, aceita
pela sociedade e Shirley quando flui o desejo da carne, do animalesco, do reprimido.

Detalhe: existiam duas mulheres dentro de Lavínia. Uma era casada. Casadíssima. Com um
homem a quem chamavam de santo. Um homem de exatos trinta e oito anos mais velho do
que ela. A outra Lavínia vinha me visitar. A bela da tarde (AQUINO, 2005, p. 43).

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O enredo do livro engloba a realidade de uma sociedade do interior do Pará e o autor faz uso
da fotografia de Cauby, da vivência local e da construção complexa dos personagens para isso.
Escrever usando como pano de fundo o garimpo de uma pequena cidade do Pará é trazer a
tona um tema há muito marginalizado e adormecido. Falar do sofrimento daquele local atra-
vés do olhar da prostituição é fazer da dor a mais linda poesia.

Trabalhando para uma empresa francesa, Cauby vende seu olhar através das fotografias sobre
aquelas mulheres que vendem seus corpos como forma de sustento, mas que na sociedade
são vistas como incapazes de mudar de vida por pura acomodação e gosto ao pecado, sem ao
menos terem voz para pronunciarem seus sofrimentos individuais e motivos pelos quais se
sujeitam a uma profissão tão difícil.

Uma passagem visceral do livro é a descrição das prostitutas nos cadernos de fotografia
de Cauby, descritas como mulheres de corpos enormes e bastante deteriorados, sendo um
claro reflexo do fim ciclo do ouro do Pará no período da ditadura civil militar. Apesar do
declínio, o olhar de esperança ainda estava presente no desejo de encontrar pepitas que a
tirariam daquela condição.

Com isto tocamos algo absolutamente essencial tanto para a filosofia presente na obra quan-
to na história por de trás dela: Movimento e corpos, descritos em um enquadramento poéti-
co-filosófico. A descrição dos corpos das personagens é muito rasa tornando difícil a identi-
ficação dos variados personagens, salvaguardada a descrição de Lavínia que se torna o objeto
em torno do qual os eventos positivos e negativos gravitam.

Fotografei Lavínia em centenas de ocasiões. Todo tipo de ângulo. Como se quisesse docu-
mentar cada um de seus poros. Mas, para falar a verdade, em nenhuma outra foto ela apare-
cia tão bela quanto na sequência que fiz naquela tarde. Eu gostava muito de uma das imagens,
em particular. Um close. Bem no momento em que Lavínia soltou os cabelos e agitou-os, seu
rosto ficou semicoberto e, no espaço entre duas mechas, capturei o brilho dos seus olhos
(AQUINO, 2005, p. 36).

O triângulo amoroso é peculiar, visto que em meados da narrativa percebemos que o pastor
Ernani tem conhecimento do amante da sua mulher e se faz complacente a tudo. Uma inter-
pretação possível é seu amor devoto e absoluto por Lavínia e a projeção de ausência de culpa,
pois ela é o resultado do seu passado doloroso. A outra interpretação seria a tolerância cristã
de odiar o pecado, mas amar o pecador. Cauby se apaixona perdidamente por todas as pecu-
liaridades daquela a quem ele chama de Shirley. É vista a dualidade de Lavínia por essas duas
personas, a qual será destrinchada mais à frente, de um lado seu marido, sua salvação e luz,
do outro o amante que faz despertar seu íntimo pecaminoso.

Como objetivo, o trabalho pretende tratar de forma embrionária, as discussões acerca des-
sa temática e dessas relações complexas, trazendo à tona a riqueza da literatura brasileira e
dando visibilidade aos autores contemporâneos que são muito pouco explorados em meio
acadêmico. Aliando a isto, a discussão filosófica embasada pelo conceito de Eros para Platão

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em seus livros O Banquete e Fedro. O trabalho se utilizará de um clássico filosófico para tratar
sobre uma prosa contemporânea com uma temática marginal.

É válido e essencial ressaltar sobre os eixos temáticos do livro que tratam sobre as relações éti-
co sociais e a moral individual. Os preceitos catolicistas moldaram não só como a sociedade a
vê, mas também como ela mesma se impõe, ao plantar uma dúvida em cada um de nós como
ser social do que deve ou não ser feito, da luta íntima barroca entre o desejo e os dogmas re-
ligiosos. A culpa é despertada da discrepância entre a natureza humana e a construção cristã
do que é ser um Homem em sociedade. Somos julgados no século XXI da mesma forma que
Madalena foi julgada na passagem da Bíblia, a diferença é que não temos um Jesus que diga
aos hipócritas moralistas aos quatro ventos como o erro é natural.

Sobre o pecado e o perdão


Na prosa de Aquino vemos uma mulher que anda sobre a linha tênue entre as duas personali-
dades, despertadas pelos seus amantes. Abusada quando criança, Lavínia cresce florescendo
em si o medo. Medo de existir, medo de ter que enfrentar o mundo cruel que dilacera qual-
quer perspectiva de vida daqueles desprivilegiados. Nas ruas, Lavínia conhece a realidade de
viver por si só e por isso, como forma de fuga à realidade busca consolo nas drogas, na bebida.

A prostituição que, na realidade é uma esfera de sofrimento e superações. A história dessas


mulheres é completamente ignorada e o julgamento se torna o alvo principal. Serão punidas
no juízo final por terem cometido a luxúria. Essas mulheres, por terem essa profissão, não
poderão casar e com isso serão desrespeitadas por uma sociedade hipócrita a qual centraliza
as conquistas femininas ao casamento e a boa fama.

Mitologicamente, para o cristão o casamento é a união celestial entre dois duas almas que
se entregarão uma a outra por toda sua vida. O anel, colocado no único dedo com uma veia
ligada diretamente ao coração, é o símbolo de castidade e fidelidade.

A representação da postura social é feita pelo uso da aliança enquanto assume a persona Laví-
nia e a retirada enquanto assume Shirley, com total consciência do erro. Leandro Karnal, em
seu livro Pecar e perdoar (2017), prova através de uma análise bíblica que o pecado só acontece
a partir da consciência do agente perante o ato e sob a intencionalidade de tal. Lavínia, por-
tanto, é pecadora por viver seus amores e declarar seus desejos intrínsecos ao sentir.

A religião consome nossa individualidade, perturba nossos sentidos e impõe preceitos que
somos obrigados a seguir, sem saber ao certo o porquê. Tememos o dia do julgamento final
perante a Deus, vivemos longos anos inteiros sacrificados por conta dos julgamentos vários.
Sufocamos nossas vontades mais intensas por uma doutrina que há dois mil anos não se atu-
aliza, que impõe preceitos medievais, sem se dar conta de que a sociedade é uma crescente
evolução. O erotismo nato a nós é silenciado perturbadoramente.

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A mulher historicamente tratada como símbolo causador do pecado é retratada no mito


da criação como aquela quem trouxe o mal ao mundo. Eva disfruta do fruto proibido e
induz também Adão ao pecado inicial. A persona feminina centraliza o caráter traiçoeiro,
utiliza das suas artimanhas para saciar seus próprios desejos; acarretando o lógico, a mu-
lher usa da própria inteligência para fazer o mal e induzir a pureza masculina à corrosão.
Podemos afirmar, portanto, que a inteligência é sinônimo de pecado, assim como a cons-
ciência, pois só diante do reconhecimento do sacrilégio, Adão e Eva percebem sua nudez
e se cobrem com folhas.

Seu corpo é inimigo moral. Seu corpo arde de desejo, ronca de fome, pisca de sono, eructa,
flata; tem vida própria. Sua alma tem alguma esperança. Nietzsche dizia que o Cristianismo
era platonismo para as massas, algo como uma versão genérica e mais fácil do filósofo gre-
go. O que vale a pena está além de nossos órgãos de sentidos. Por muitos séculos, a maior
heresia moral continua sendo essa tentativa de unir corpo e alma e entender biologia fora
da leitura de valores (KARNAL, 2016, p. 103).

Cobrir o corpo e se mostrar o mínimo possível é o ideal, pois só assim não seria possível ins-
tigar o pecado através do olhar. No entanto, é criada uma hierarquia de legitimidade onde a
alma sempre deve prevalecer o corpo. A repressão é uma crescente e o reconhecimento da
mesma fica em segundo plano.

O Eros em Platão
Usamos como cerne principal o livro O banquete de Platão o qual dedica longas reflexões
acerca do deus do amor. Escrito em diálogos logo após a trégua de longas orgias para re-
flexões filosóficas, Erixímaco sugere tecer elogios ao deus Eros. Os oradores Fedro, Pausâ-
nias, Erixímaco, Aristófanes, Agaton, Sócrates e Alcibíades mostram diferentes contem-
plações sobre o tema.

O conceito central sobre o Eros pode ser interpretado a partir do seguinte momento em que
Sócrates explica que o amor é o desejo e ânsia pela busca da unidade primordial que é o amor
sempre na ausência. Logo, podemos ler o conceito de amor platônico através da falta. Só é
possível desejar o outro no exato momento em que não possui o outro, a partir do momento
que a relação é concretizada não existe mais amor, o desejo.

Exemplificando de forma muito simples: imaginemos um livro que desejamos muito ler, so-
nhamos em como deve ser o desenrolar da história, como a contracapa deve ser linda e até
mesmo o cheiro de folhas novas e frescas que têm, porém, por algum motivo, não podemos
tê-lo; para Platão, é exatamente neste momento do não-ter que sentimos verdadeiro amor e
desejo por este livro. Caso consigamos comprá-lo e tenhamos ele em mãos, é no exato mo-
mento em que o amor e o desejo acabam, se tornando qualquer outro sentimento.

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Em uma discussão contemporânea sobre amor e sua relação entre pessoas, podemos conside-
rar algo banal ou ultrapassada, no entanto, os questionamentos filosóficos acerca disso pode
render longos trabalhos. Os livros de Platão sobre a temática, O banquete e Fedro, nos dão
reflexões profundas acerca disto, como por exemplo, a defesa de Fedro sobre o Eros ser o deus
mais antigo e fonte do bem, o que nos leva a entender o amor de forma idealizada, enquan-
to Pausânias defende o Eros como não sendo único, se dividindo entre Celeste, aquele amor
puro e benevolente, e Vulgar, o que se prende à cobiça e aos caprichos da matéria.

O amor sendo um sentimento, aparentemente não tem ligação com a ética, que está no plano
das ideias. Se a ética é uma busca da razão pela boa convivência, o amor não deveria ter qual-
quer relação com ela, no entanto, o julgamento do amor e suas conclusões são tiradas a partir
da ética. E é nesta "contradição" que este trabalho se apoia.

O desejo, o perdão e o eros em Lavínia


É em Lavínia que encontramos o conflito central, é nela que podemos notar a dúvida dila-
cerante, posto que a personalidade é construída em torno disso. Esta personagem é a mais
complexa e aquela que desencadeia toda a poesia do livro.

A passagem a seguir servirá como eixo principal para explicar a relação das três temáticas com
a personagem. Lembrando que o presente trabalho é um projeto embrionário de algo maior.

Eu já tinha visto Lavínia urinando várias vezes. A outra Lavínia, a que eu chamava de Shirley. A
que mijava na minha frente, de porta aberta, sem nenhum pudor, e que fazia todo o tipo de
coisa que eu pedia. A que preferia o sexo fora da cama e gostava de curvar-se sobre a cô-
moda para ser penetrada na posição chamada por ela e pelo Kama Sutra de "cachorrinho".
Ouvi o som da descarga. Lavínia saiu do banheiro e começou a se vestir para ir embora.
Perguntei: CAUBY. "-e o seu marido, como ele é?"
Ela ergueu os ombros, baixou os olhos e continuou abotoando a blusa. LAVÍNIA. "Você quer
mesmo falar sobre ele?" CAUBY. "Desculpe..." LAVÍNIA. "Não, não tem problema. O que
você quer saber?". Lavínia puxou o zíper da saia e calçou os sapatos. CAUBY. "Ele é bom pra
você?" LAVÍNIA. "é". Ela pegou a aliança na bolsa e recolocou-a no dedo. Por último, usou
um elástico para prender os cabelos num rabo de cavalo. CAUBY. "E eu? Sou bom pra você?".
A outra talvez tivesse respondido que eu era a melhor coisa que poderia ter acontecido
naquela altura da sua vida. A mulher suave se debruçou sobre a cama e nada disse. Apenas
me beijou e foi embora (AQUINO, 2016, p. 49).

A dupla personalidade de Lavínia instiga a curiosidade do leitor, por se entregar de forma


selvagem e logo depois pôr a aliança e retorna tranquila para casa. A aparência e o interno em
Lavínia se misturam, duas mulheres em uma só. O questionamento aqui é: mas não somos
assim todas nós? Então porque o julgamento? A sociedade como um todo é hipócrita ao pon-

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to de não se reconhecer e julgar até mesmo o semelhante em todos os sentidos. O animal está
presente em todos nós, sem exceção. Pode ser justamente essa a intenção de Aquino, a crítica.

Na nossa sociedade é comum a vangloria em não pertencer ao pecado, em manter a vida sem-
pre fazendo "o correto". Fazendo uma reflexão crítica quanto a isso, como seria o mundo sem
os erros (ou o pecado, leia-se como quiser)? Quando pensamos em uma pessoa corretíssima
que sempre acorda e dorme nos mesmos horários, que tem um tipo de refeição para cada
dia da semana, que nunca deixa atrasar nada, que tem uma casa perfeitamente arrumada e
um ciclo de amigos reduzido ao menor número possível, que nunca vai as festas e que nunca
entrou em uma aventura em viajem por exemplo. Certamente estaríamos com dó desse ser,
mesmo sem termos terminado de ler toda a descrição.

Fazer o certo é uma forma de mascarar sua própria infelicidade em nome de um padrão im-
posto sem justificativa. Quando lemos a obra de Aquino somos convidados a sair dessa caixi-
nha que a vida tenta nos impor, lendo um romance marginal que retrata o submundo e nos
conecta a nossas emoções viscerais e que nos faz imaginar viver romances proibidos. Lavínia
desperta em cada um de nós o ser que poderíamos ser se não fossem as conjunções "se" que
comandam nossas lembranças e pensamentos.

Lavínia dá a cada uma das suas personalidades uma paixão diferente, a qual ela se entrega na
mesma medida de formas diferentes. Ernani e Cauby veem nela a chama das suas próprias
vidas, o que faz eles saírem da sua própria caixa.

O pecado capital da luxúria permeia toda a narrativa e é justamente isso que a torna instigan-
te, ler sobre o que é pintado fora da linha do correto excita e instiga. A importância que damos
ao sexo ao longo da História é muito oscilante, no entanto sempre muito atrativa ao instigar
nossa vaidade e nos conectar ao nosso eu desnudo. "A luxúria é concreta, pois tem um pé no
corpo e outro, no pensamento" (KARNAL, 2016, p. 88).

É exatamente no desejo em que as três temáticas se conectam. Relembrando trechos do livro,


sabemos que o triângulo amoroso é sabido por todos e aceito, até mesmo pelo pastor Ernani
que a vê como algo necessário em sua vida. A noção de eros de Platão na história entra no exa-
to momento em que Lavínia se desloca entre seus amantes. Em todo momento em que está
com Cauby tem em mente Ernani e deseja voltar para ele, e a todo momento que está com o
pastor, deseja o fogo de estar com o amante.

A noção de desejo pela ausência é muito clara em várias passagens do texto, como a já citada
acima evidencia isso. No momento em que ela se veste e põe a aliança, declara a vontade de
estar com o marido, logo depois de ter tido Cauby completamente em um sexo animalesco, o
amor é reduzido na mesma proporção que o tem. Além disso, reconhece a noção de pecado,
uma vez que só é possível cometê-lo sob a consciência do ato e, também, assume a postura de
caráter ameno quando passada "a fase" Shirley.

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A necessidade de pôr a aliança antes de sair de casa é a tentativa de se redimir aos votos de
fidelidade e honra ao casamento, sendo a tese cristã, e representar a necessidade de assumir
postura amena e aceita socialmente, quando passa "a fase" Shirley. A personagem além de as-
sumir dupla personalidade, divide seu amor em dois objetos referenciais e por isso não passa
muito tempo com nenhum dos dois, pois em momento nenhum há completude.

É indispensável falar sobre o olhar desses dois objetos referenciais sobre a persona femini-
na. Veem-na como detentora de um poder sedutor singular que ao mesmo tempo dá espaço
ao cativar e a indagação de como uma só mulher poderia despertar tantos sentimentos e ser
tantas coisas diferentes. Ernani tem a mulher recatada, que veste roupas comportadas e está
quase sempre em postura, enquanto Cauby tem a sua face vulgar e provocante; em alguns
momentos da narrativa é possível notar certa inveja que um sente do outro; Cauby ama a
Shirley, mas idealiza a outra em sonho e desejo, na possibilidade de viver um amor tranquilo,
enquanto Ernani faz o mesmo ao desejar ter a oposta, a ardente. Mais uma vez o traço platô-
nico de Eros e desejo daquilo que não o tem.

O jogo de contrastes existente em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é o
que leva o livro a ser uma das mais instigantes e fascinantes experiências literárias. O en-
redo complexo e as personagens brilhantemente montadas dão um caráter tão realista ao
texto que nós leitores trazemos para nossas vidas como se fossem parte da nossa história.
A crítica presente em diversas partes do livro nos faz refletir sobre nós mesmo e sobre a so-
ciedade sórdida em que vivemos.

Conclusão
O presente trabalho teve como objetivo trazer discussões acerca de algumas impressões per-
cebidas dentro do livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, escrita pelo jor-
nalista Marçal Aquino. Nome que trouxe às livrarias brasileiras, obras brilhantes e singulares,
O Amor e outro objetos pontiagudos, que o possibilitou ganhar o Prêmio Jabuti no mesmo
ano de publicação, 2000.

Aliar filosofia e literatura aparentemente é um desafio, no entanto, a naturalidade flui com


duas percepções diferentes sobre a sensibilidade do mundo. Platão nos embasou com seus
debates acerca do Eros, nome que vem do grego e dá origem ao que hoje conhecemos como
amor; aliado às noções cristãs de perdão e pecado com Leandro Karnal.

O motivo de escolher tal temática está na necessidade da crítica brasileira olhar para as pro-
duções atuais e contemporâneas que há muito vem se mostrando uma descoberta maravi-
lhosa com produções que tranquilamente poderiam ganhar prêmios internacionais, mas são
ignoradas pela crítica brasileira, infelizmente canônica. A temática de Eu receberia as piores
notícias dos seus lindos lábios trata da marginalidade que algumas personas estão, como as
prostitutas e garimpeiros, por exemplo.

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A escolha do local onde a história se passa, o interior do Pará, também nos é de grande sur-
presa, por ser um local de pouca voz no Brasil como um todo, assim como a fotografia que
captura corpos surrados, sorrisos sinceros e olhos tristes. A sensualidade e sexualidade simi-
larmente causa estranheza, pois numa sociedade como a que vivemos, tratar de coisas tão
carnais se torna banal.

As limitações do trabalho são reconhecidas, uma vez que o presente artigo foi produzido para
uma sessão de comunicação no evento realizado na Universidade Federal de Sergipe, intitu-
lado IV Colóquio de Filosofia e Literatura: Poética, sem nenhuma orientação docente, basea-
do apenas em conhecimentos próprios e interpretações do referencial bibliográfico, também
escolhido sem orientação alguma.

Referencias bibliográficas
AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.

PLATÃO. Fedro. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

________. O banquete. São Paulo: Martin Claret, 2015.

KARNAL, Leandro. Pecar e perdoar: Deus e o homem na história. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2017.

SOUZA, Fabiana Martinez. Silêncio, violência e em Marçal Aquino: uma leitura de Eu receberia as pio-
res notícias dos seus lindos lábios. Dissertação de mestrado em Letras Vernáculas, Universidade Fede-
ral de Mato Grosso do Sul, 2013. Disponível em: <http://repositorio.cbc.ufms.br:8080/jspui/bitstre-
am/123456789/1771/1/Fabrina.pdf>. Acesso em: 08 de junho de 2017.

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Maurice Merleau-Ponty e a expressão literária


na Fenomenologia da percepção

Ybine Dias1
PPGF/UFS

Tomando como ponto de partida um recorte metodológico em três fa-


ses do itinerário do pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty, o
presente artigo procura descrever suas considerações acerca da expres-
são literária, seja na prosa ou na poesia, em sua obra Fenomenologia da
percepção, especialmente no capítulo VI (“O corpo como expressão e a
fala”) da primeira parte desse livro, que corresponde a uma obra escrita
em sua primeira fase. A literatura toma outros desdobramentos em suas
obras e fases posteriores, mas o nosso objetivo se delimita a sua primei-
ra fase, em que a literatura se apresenta como expressão capaz de se-
dimentar significações conceituais e criar relações intersubjetividades,
que rompe com princípios epistemológicos das filosofias tradicionais de
cunho dualista: filosofias intelectualistas e empiristas.

Palavras-chaves: Corpo próprio; Expressão; Literatura.

Taking as a starting point a three-step methodological cut in the itine-


rary of the thought of the philosopher Maurice Merleau-Ponty, this arti-
cle seeks to describe his considerations about literary expression, in the
prose or poetry, in his work Phenomenology of perception, especially in
chapter VI (Body as expression and speech) of the first part of this book,
a work written in its first phase. Literature takes on other developments
in its later works and phases, but our objective is delimited in its first
phase, the literature presents itself as an expression able to seduce con-
ceptual meanings and create intersubjectivity relations, which breaks
with the epistemological principles of the traditional philosophies of
dualistic: intellectualist and empiricist philosophies.

Keywords: Own body; Expression; Literature.

1.  Mestre em filosofia moderna e contemporânea pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia – PPGF- da
Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: ybine_dc@hotmail.com

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Tomando como ponto de partida o recorte metodológico em três fases do itinerário do pen-
samento do filósofo Maurice Merleau-Ponty, no presente artigo almejamos descrever as con-
siderações do filósofo acerca da expressão literária, seja na prosa ou na poesia, dadas por ele
em sua obra Fenomenologia da percepção, especialmente no capítulo VI (“O corpo como
expressão e a fala”) da primeira parte desse livro, obra de sua primeira fase. A literatura toma
outros desdobramentos em suas obras e fases posteriores, mas o nosso objetivo se delimita a
sua primeira fase, em que a literatura se apresenta como expressão capaz de sedimentar sig-
nificações conceituais ou pensamentos e por permitir relações intersubjetivas, o que rompe
com princípios epistemológicos das filosofias tradicionais de cunho dualista, ou seja, filoso-
fias intelectualistas e empiristas. Dessa forma, para fins coerentes, este artigo se divide em
dois momentos: no primeiro momento pretendemos, de forma geral, apresentar a noção de
linguagem merleau-pontyana na Fenomenologia da percepção, que é fruto da sua crítica às
teorias tradicionais da linguagem de cunho intelectualista e empirista; e no segundo e último
momento descrevemos melhor como Merleau-Ponty pensa a literatura na Fenomenologia da
percepção, a partir de uma nova noção fenomenológica da linguagem.

I
A obra merleau-pontyana passa por diferentes fases. Uma divisão muito famosa é aceita
por boa parte de comentadores (CARDIM, 2012; RAMOS, 2013; MÜLLER, 2001; CHAUÍ,
2009; BARBARAS, 1991). Essas fases indicam um corte metodológico necessário para me-
lhor entendimento do itinerário de seu pensamento. A primeira fase corresponderia as suas
primeiras obras, A estrutura do comportamento (1942), Fenomenologia da percepção (1945)
e O primado da percepção e suas consequências filosóficas (1946), as quais descrevem a re-
lação primária do homem com o mundo, ou seja, a Fenomenologia da percepção pretende
completar desse modo o movimento crítico, iniciado pela A estrutura do comportamento,
de “refazer o solo ontológico da experiência viva, que liga o sujeito ao mundo” (RAMOS,
2013, p. 38); a segunda fase, ou fase intermediária, corresponderia às obras que se incli-
nam aos problemas da expressão, da cultura, das relações intersubjetivas, aos problemas
da filosofia da história, explorando a relação entre a filosofia e a não filosofia (arte, ciência
e política); e, por último, temos a terceira fase que se caracteriza pela construção de uma
ontologia selvagem, que procura dissolver a dicotomia entre natureza e cultura com base no
conceito de carne e de Ser bruto. O processo de expressão literária e como este tipo de ex-
pressão institui significações no mundo cultural só será trabalhado detalhadamente na se-
gunda fase do pensamento de Merleau-Ponty, por exemplo, em textos como O romance e a
metafísica (1945); As linguagens indiretas e as vozes do silêncio (1960) e, principalmente, A
prosa do mundo (1952), esse último é um ensaio inacabado no qual o filósofo trabalha mais
detidamente os temas da “expressão simbólica” na pintura e na literatura como linguagens
indiretas. Não é nosso objetivo adentrar nas questões levantadas neste conjunto de textos.
A intenção deste artigo é somente explorar na Fenomenologia da percepção, no capítulo

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VI (“O corpo como expressão e a fala”) da primeira parte desta obra, como Merleau-Ponty
apresenta, ainda que de forma esboçada ou embrionária, considerações acerca da expressão
literária no âmbito das linguagens ou categorias artísticas.

Para Merleau-Ponty as manifestações de linguagem surgem a partir do mundo percebido,


pois, como veremos, na perspectiva merleau-pontyana, o contato pré-objetivo com o mundo
funda as expressões simbólicas, como é o caso da linguagem, que nasce do “fundo ontológico”
do corpo próprio com o mundo. A fala, por exemplo, surge, para Merleau-Ponty, como ex-
pressão da experiência que um sujeito perceptivo possui enquanto presente no mundo. Não
só a fala nesse sentido, como também a expressão artística nasce da experiência perceptiva
primordial e dos atos de expressão que se sedimentam na cultura, como é o caso da literatura.
É por isso que as obras de arte são importantes para Merleau-Ponty, elas permitem melhor
demonstrar a operação primordial de sua nascente do mundo da percepção (MÜLLER, 2001,
p. 221). O problema que gostaríamos de explorar é saber como, na Fenomenologia da percep-
ção, ocorre essa dinâmica da expressividade do sujeito, em especial na literatura, a partir de
suas vivências com o mundo da percepção e em interação com os outros.

Ao analisar, na Fenomenologia da percepção, as psicologias empiristas e as psicologias inte-


lectualistas, Merleau-Ponty aponta mais um “parentesco” nas duas correntes sobre a concep-
ção que possuem sobre os fenômenos da linguagem. Em ambas as posições “a palavra não
tem significação” (MERLEAU-PONY, 2015a, p. 240). O que esse enunciado quer dizer? Nessas
correntes clássicas, a linguagem é apenas um instrumento de significação externa das repre-
sentações – Vor-stellung – de um sujeito pensante. O sentido da palavra não se encontra nela.
A palavra não contém uma significação quando o sujeito pensante a utiliza para transmitir ao
outro o que se encontra invisível no seu interior. O sujeito nessas psicologias compartilham
experiências comuns, como é o caso do empirismo. O que ocorre em um diálogo é a cifração
de representações ou ideias de um sujeito pensante para outro. Para Merleau-Ponty, isso não
passa de uma comunicação ilusória, pois o ouvinte no diálogo reconhece apenas o que por ele
já é conhecido enquanto signo convencional. Não há aqui transmissão de pensamentos novos
de um sujeito para outro.

Nesse sentido, o ato da fala é entendido, nessas correntes, como uma condução mecânica,
dotada de fenômenos psíquicos e fisiológicos que possibilitam a sonoridade das palavras, ou
seja, designação dos signos adequados às significações interiores da consciência. A lingua-
gem, na perspectiva dessas filosofias clássicas, funciona como instrumento, ou seja, a utiliza-
ríamos para expressar sua significação que é intelectual ou posse de “imagens verbais” dadas
de antemão.

No empirismo, as palavras são apenas símbolos sensíveis utilizados para exteriorizar e pos-
sibilitar a comunicação entre experiências de sujeito. Neste aspecto, o intelectualismo não
se diferencia da corrente empirista: “no que concerne à própria fala, o intelectualismo mal
difere do empirismo e não pode, tanto quanto este, dispensar-se de uma explicação pelo au-
tomatismo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241). O sujeito pensante cifra suas ideias, sejam
elas derivadas das experiências, inatas ou imaginadas. Em ambas as posições a linguagem

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é a “vestimenta do pensamento”. Temos aqui mais um dos parentescos entre as psicologias


clássicas apontadas por Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção. Percebe-se como
a linguagem na tradição estava distante da expressão própria do mundo da percepção, pois
ela é fruto das análises intelectuais. As palavras não possuem sentido para essa tradição, mas
apenas as ideias de um sujeito pensante que é alheio ao mundo. Esta passagem da Fenomeno-
logia da percepção nos ajuda a sintetizar o que estamos afirmando:

na realidade, veremos mais uma vez que há um parentesco entre as psicologias empiristas ou
mecanicistas e as psicologias intelectualistas, e não se resolve o problema da linguagem pas-
sando da tese à antítese. [...] E todavia as duas concepções coincidem em que tanto para uma
como para a outra a palavra não tem significação. [...] A palavra ainda está desprovida de uma
eficácia própria, desta vez porque é apenas o signo exterior de um reconhecimento interior
que poderia fazer-se sem ela e para o qual ela não contribui. [...] Ela é apenas um fenômeno ar-
ticular, sonoro, ou a consciência desse fenômeno, mas em qualquer caso a linguagem é apenas
um acompanhamento exterior do pensamento (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241).

Da mesma forma que Merleau-Ponty utiliza de patologias psicofísicas para evidenciar a Fun-
dação (Fundierung) do corpo próprio no mundo vivido, afetivo e existencial (um todo no sen-
tido rigoroso husserliano), ele também utiliza de problemas da linguagem, como as afasias,
por exemplo, para fortalecer algumas características da linguagem que se opõe ao caráter que
as psicologias e filosofias clássicas estabeleciam2. Para isso, Merleau-Ponty analisa o caso de
um paciente (Schneider) de Gelb e Goldstein, e nota que doentes afásicos possuem dificulda-
des de expressão, às vezes na escrita e também na fala, por terem sofrido algum tipo de lesão
no sistema nervoso central. O nosso filósofo escreve que alguns doentes, quando em situa-
ções afetivas e vitais, suas expressões ocorrem espontaneamente, ou seja, são nessas situa-
ções que necessariamente a linguagem surge como necessidade de comunicação e expressão
da relação do sujeito com o mundo e com os outros. Segundo Merleau-Ponty,

a mesma palavra que permanece à disposição do doente no plano da linguagem automática


furta-se a ele no plano da linguagem gratuita – o mesmo doente que encontra sem esforço a
palavra “não” para rejeitar as questões do médico, quer dizer, quando ela significa uma nega-
ção atual e vivida, não consegue pronunciá-la quando se trata de um exercício sem interesse

2.  Müller explica com clareza como o conceito de Fundação husserliano é tomado por Merleau-Ponty para
fundamentar a expressão em nossos comportamentos perceptivos ou simbólicos. Conceito esse que dará fun-
damentação a estrutura do mundo percebido como se nota na passagem: “Nas Investigações lógicas (Logische
Untersuchungen), especificamente quando trata de uma teoria geral sobre o ‘todo e as partes’, Husserl apresenta
concepções distintas do ‘todo’. A primeira é aquela em que temos o todo em sentido inautêntico. A segunda é
aquela em que temos um todo em sentido rigoroso. Em seu sentido inautêntico, o todo é uma unidade formada
por partes independentes entre si. Para que estas possam estar relacionadas, elas precisam do auxílio de um
elemento exterior que as agregue. A unidade que assim se estabelece não é espontânea, tampouco necessária.
Um todo em sentido rigoroso, ao contrário, não depende de nenhum aporte exterior. Nele, cada parte guarda
uma relação de não-independência em relação às demais, o que faz com que se exijam mutuamente. Consequen-
temente, estabelecem entre si uma unidade espontânea e necessária. ‘Fundação’ (Fundierung) é o nome dessa
conexão essencial que define a relação das partes num todo em sentido rigoroso” (MÜLLER, 2001, p. 152).

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afetivo e vital. Portanto, descobria-se atrás da palavra uma atitude, uma função da fala que
condicionam a palavra. Distinguia-se a palavra enquanto instrumento de ação e enquanto
meio de denominação desinteressada (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 239).

A partir desta passagem destacamos como o doente afásico, para Merleau-Ponty, não conse-
gue se desvencilhar ou se expressar para além de uma situação concreta e que não condiz com
seus interesses internos e existenciais. A linguagem, neste caso, passa a ter um caráter de ins-
trumento segundo os estudos de Goldstein, pelos quais Merleau-Ponty se pauta para as suas
considerações3. Dessa forma, a linguagem automática (concreta) seria a linguagem que está
diante dos interesses vitais. Como no exemplo dado acima, o “não” só é possível de ser dito
pelo doente ao médico, por conta do sujeito está inteiramente na situação. Já em situações
fictícias ou imaginárias o doente não consegue se expressar ou mesmo não tem necessidade
de expressão. É nessa situação que a linguagem gratuita ocorre, pois mesmo tendo as pala-
vras a sua disposição para execução automática, o doente não consegue utilizá-las além da
função instrumental. Neste caso, como destaca Cardim, “a linguagem tal como expressa pelo
doente apresenta apenas um caráter concreto e está subordinado à ação e ao real” (CARDIM,
2012, p. 40). Ou seja: caso fosse uma situação fictícia o doente não conseguiria pronunciar o
“não”. A linguagem gratuita seria o tipo de expressão em que o corpo próprio normal é capaz
de compor as dimensões da linguagem enquanto sedimentada e criadora4. O doente não
pode realizar e fazer a linguagem viva, por conta da ausência de princípios do sujeito saudável
na utilização da linguagem já que não possui a capacidade de expressão simbólica e atitude
categorial. Portanto, podemos concluir, a partir da explicitação das patologias da afasia, que
Merleau-Ponty utiliza como contraexemplo para as teorias da linguagem tradicionais, que o
fenômeno da linguagem, na perspectiva fenomenológica existencial, está condicionado pela
correlação afetiva de um corpo próprio (sujeito perceptivo) com o mundo.

Mais ainda: Merleau-Ponty nota na linguagem também uma atitude categorial, fruto de suas
leituras dos trabalhos de Gelb e Goldstein, que é uma atitude completamente atribuída, pelos
psicólogos alemães, como característica fundamental da expressão humana. O que mostra
que a linguagem é o próprio pensamento que tende à expressão; mas não só isso, pois compro-
va a Fundação que existe entre o sujeito e o mundo em que está situado. Dito de outro modo:
na atitude pré-científica, ou seja, no próprio ato perceptivo, “nomear um objeto é afastar-se
do que ele tem de individual e de único para ver nele o representante de uma essência ou de

3.  A característica instrumental, que estamos nos referindo aqui, está relacionada à utilização da linguagem cir-
cunscrita apenas a uma relação concreta do sujeito com o mundo, como ocorre no caso de Schneider. Já que nas
psicologias clássicas, como explicamos acima, ela é, também, considerada instrumento por servir somente como
exteriorização dos pensamentos de um sujeito.
4.  Da mesma forma para uma discussão desse aspecto, ou seja, da linguagem como sedimentada e criadora na
Fenomenologia da percepção e nas demais fases do pensamento merleau-pontyano conferir o artigo Ebulição na
massa d’água ou a linguagem segundo Merleau-Ponty (CARDIM, 2012). Essa distinção em dimensões fará a fala,
enquanto fenômeno da linguagem, distinta dos outros modos de expressão na Fenomenologia da percepção, dife-
rente das obras de arte, pois a fala, assim como a literatura, são os únicos meios de expressão capaz de sedimen-
tar-se e se reiterar, dimensões que comentaremos mais detidamente a seguir.

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uma categoria [...] por que o objeto mais familiar parece-nos indeterminado enquanto não
encontramos seu nome” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241). Essa ideia é melhor destacada
ainda na seguinte passagem: “quando fixo um objeto na penumbra e digo: ‘é uma escova’, não
há em meu espírito um conceito de escova ao qual eu subsumiria o objeto e que, por outro
lado, estaria ligado à palavra ‘escova’ por uma associação frequente, mas a palavra traz o sen-
tido e, impondo-o ao objeto, tenho consciência de atingi-lo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p.
243). Quando nomeamos um objeto temos o poder de alcançá-lo e como que “o fazemos exis-
tir no mundo das coisas”. Nesse sentido, “o nome é a essência do objeto [...] a palavra, longe de
ser o simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula as significações”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 242) e podemos encaixá-las em categorias na medida em que
nos relacionamos com o mundo.

Merleau-Ponty utiliza de um exemplo para descrever a atitude categorial a partir da descrição


da amnésia dos nomes de cores: um doente que esqueceu os nomes das cores, quando dado o
objetivo de reunir algumas amostras, faz de forma minuciosa, pois necessita realizar aproxima-
ções, para comparar e perceber qual a semelhança entre elas. No entanto, se nomeada a cor, a
atingimos a partir de sua essência e, consequentemente, conseguimos encaixá-la em uma ca-
tegoria (eidos) com mais praticidade, isso faz a palavra não estar “desprovida de sentido”. A ati-
tude categorial faz, necessariamente, a palavra possuir um sentido e a linguagem ser um ato de
pensamento. Assim, “se a linguagem ‘concreta’ continuava a ser um processo em terceira pes-
soa, a linguagem gratuita, a denominação autêntica tornava-se um fenômeno de pensamento, e
é em um distúrbio do pensamento que seria preciso procurar a origem de certas afasias” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 239). A tese merleau-pontyana vai na direção contrária da linguagem
entendida como posse de “imagens verbais” ou como invólucro de pensamentos. A linguagem,
para Merleau-Ponty, é a expressão do próprio pensamento no mundo sensível: a “linguagem
aparece agora como condicionada pelo pensamento” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 240).

A tese de Merleau-Ponty ultrapassa o intelectualismo e o empirismo, por perceber na lingua-


gem a presença de um sentido, ou seja, a presença do próprio pensamento nos signos (Fun-
dação entre signo e significação), pois um pensamento, para ele, só se torna nosso por meio
da expressão. O pensamento não se consuma enquanto constituinte apenas na interioridade,
ele é força significadora, ele inclina-se para a expressão,

por que o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos
enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, [...]. Um pensamento que se
contentasse em existir para si, fora dos incômodos da fala e da comunicação, logo que apare-
cesse cairia na inconsciência, o que significa dizer que ele nem mesmo existiria para si. [...] Ele
progride no instante e como que por fulgurações, mas em seguida é preciso que nos apro-
priemos dele, e é pela expressão que ele se torna nosso (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 242).

E é uma dessas expressões considerada, por Merleau-Ponty, privilegiada, que será nosso foco
no próximo momento: a literatura. Essa noção de entrelaçamento entre a significação e o
signo na linguagem, é atribuída à literatura e também a fala, essa última que é o modo de
expressão a qual Merleau-Ponty tem como eixo principal no capítulo VI da primeira parte da

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Fenomenologia da percepção. Vejamos agora como, a partir dessas características da lingua-


gem que descrevemos, a expressão literária passa a ter outros aspectos enquanto realização
do pensamento que tende a ser expresso e passa a existir no mundo sensível.

II

De acordo com o que descrevemos em relação à linguagem, para Merleau-Ponty, a fala, se


apresenta como expressão da interação de um sujeito com o mundo da percepção. Ela é a pre-
sença do próprio pensamento de um sujeito no mundo sensível. As observações apontadas
por Merleau-Ponty, em relação às patologias da linguagem, possibilita outra concepção de
fala, “essas observações permitem-nos restituir ao ato de falar a sua verdadeira fisionomia”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247). As psicologias intelectualistas e empiristas a entendiam
como um fenômeno psíquico e fisiológico, justificado por “leis da mecânica nervosa” no cor-
po humano, neste caso, a fala é símbolo sonoro utilizado para exteriorizar pensamentos in-
visíveis (ideias) no interior do sujeito. Existiria, nesse sentido, uma vida interior no sujeito,
antes de qualquer ato expressivo. Mas, ao contrário, as patologias comprovam a presença de
um pensamento no que é dito, “a fala não é o ‘signo’ do pensamento, se entendemos por isso
um fenômeno que anuncia um no outro, como a fumaça anuncia o fogo”, os pensamentos
estão enraizados na fala, “estão envolvidos um no outro [...], e a fala é a existência exterior do
sentido” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247). Portanto, a fala é um modo de expressão da re-
lação originária de uma consciência com um mundo, ou seja, expressão de um corpo próprio
em Fundação com os “domínios do ser”, ou seja, o mundo percebido5.

Notado isso, Merleau-Ponty utiliza na Fenomenologia da percepção a imagem da ebuli-


ção em um líquido como metáfora para melhor descrever a gênese da fala ou mesmo da
linguagem, uma vez que o pensamento intencional é atividade fundamental “pela qual o
homem se projeta para um ‘mundo’” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 259). Assim, enquanto
as bolhas de uma massa d’água insistem em aparecer de forma espontânea, na medida em
que determinada porção de água entra em interação com o fogo, podemos dizer que a água
refere-se ao corpo próprio, o fogo corresponde ao mundo e as bolhas d’água podem ser con-
sideradas a linguagem, ou seja, a fala que surge como consequência dessa interação e que
se diferencia de onde tem origem: a linguagem surge da interação com o mundo sensível,
mas se diferencia dele.

5.  “As palavras só podem ser as ‘fortalezas do pensamento’ e o pensamento só pode procurar a expressão se
as falas são por si mesmas um texto compreensível e se a fala possui uma potência de significação que lhe seja
própria. É preciso que, de uma maneira ou de outra, a palavra e a fala deixem de ser uma maneira de designar
o objeto ou o pensamento para se tornarem a presença desse pensamento no mundo sensível e, não sua vesti-
menta, mas seu emblema ou seu corpo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).

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Desse modo, Merleau-Ponty, por meio do estudo dos problemas de afasia, mostrou que a
linguagem não está distante do pensamento e que todo pensamento tende para a expressão
e só tomamos posse dele quando o expressamos. Há necessidade do sujeito falante que seus
pensamentos sejam expressos para que tomem vida no mundo sensível, pois para Merle-
au-Ponty: “o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos
enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, como mostra o exemplo de
tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o que nele colocarão” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 241). Com base nessa noção de linguagem, um texto literário é a
expressão escrita de pensamentos de um autor, ou seja, a expressão se torna um “conceito
linguístico”6, signos que comportam seu significado7. A expressão literária não seria muito
diferente da expressão falada, o autor se reporta das palavras como utensílio de seu mundo
linguístico e expressa seus próprios pensamentos. Elas são como equipamentos, não como
instrumento, mas “a palavra assim como minha mão se dirige para o lugar de meu corpo
picado por um inseto; só tenho um meio de representá-la para mim, é pronunciá-la, assim
como o artista só tem um meio de representar-se a obra na qual trabalha: é preciso que ele
a faça” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 246).

Segundo Merleau-Ponty, a expressão literária, “no caso da prosa ou da poesia, a potência da


fala é menos visível”, pois quando lemos um texto já conhecemos, certamente, o que está
sendo colocado, por estar lendo uma expressão com significações conceituais (pensamentos)
sedimentadas na comunidade linguística que estamos inseridos, assim, “temos a ilusão de já
possuirmos em nós, com o sentido comum das palavras, o que é preciso para compreender
qualquer texto” e, portanto, compreendo porque tenho a presença dessas significações em
mim e porque há uma intencionalidade intersubjetiva (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244). O
que com a pintura e com a música não acontece, já que não sedimentam, “as cores da paleta
ou os sons brutos dos instrumentos, tais como a percepção natural os oferece para nós, não
bastam para formar o sentido musical de uma música, o sentido pictórico de uma pintura”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244). Não preciso reconhecer sedimentações na música e na
pintura para compreender sua significação enquanto obra de arte, essas linguagens quan-
do dizem algo por si mesmas, elas mesmas exprimem sua significação, criam, portanto, seu

6.  Este conceito é derivado da obra de Goldstein, L’analyse de l’aphasie et l’essence du langage:“é preciso que exis-
ta, como dizem os psicólogos, um ‘conceito linguístico’ (Sprachbegriff) ou um conceito verbal (Wortbegriff), uma
‘experiência interna central’, especificamente verbal, graças à qual o som ouvido, pronunciado, lido ou escrito se
torne um fato de linguagem” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).
7.  Esta mesma noção da presença da significação no signo na fala, na Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty
expande para outras formas de expressão artística, recorre a obras e artistas escritores como Proust e Balzac,
como também a atriz Berma (Sarah Bernardt). No teatro “a atriz torna-se invisível, e é Fedra quem aparece. A
significação devora os signos e Fedra tomou posse da Berma tão bem, que seu êxtase em Fedra nos parece ser
o máximo do natural e da facilidade” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248). No capítulo VI da Fenomenologia da per-
cepção o filósofo francês recorre a pintores, Cézanne, por exemplo, para descrever e fazer um contraponto com
o funcionamento da fala, ou seja, a presença da significação no signo. Como reconhece Müller, “ainda que, nos pri-
meiros textos, Merleau-Ponty não reflita na importância que o recurso às obras de arte possa representar para a
delimitação da noção de expressão e de cultura, este procedimento foi por ele largamente utilizado. São inúmeras
as referências aos relatos e obras realizados por literatos, músicos e artistas plásticos” (MÜLLER, 2001, p. 222).

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próprio público, a obra musical ou a pintura comporta ela mesma o que quer significar, pois
elas são exemplos de expressão simbólica das relações primordiais do homem com o mundo
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244). Assim, um texto, se verdadeiramente diz algo, ele nos
transporta para novas dimensões, no sentido de que ele expressa o próprio pensamento do
autor, mas também no sentido de que ele é expressão de remanejamentos das significações
conceituais sedimentadas que este possui de suas percepções do ser e da cultura, ou seja, do
mundo linguístico e intersubjetivo na qual está instalado (Dimensão criadora)8. Podemos
destacar aqui as palavras enquanto “mímica existencial”: atrás das significações conceituais
há uma significação existencial “que não é apenas traduzida por elas, mas que as habita e é
inseparável delas” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248)9. O autor de um romance retém as pa-

8.  No capítulo VI da primeira parte da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty distingue a fala em fala falada
e fala falante, que, podemos chamar de “camadas da fala”, expressão que nos ajuda a entender a linguagem como
transformação (Dimensão sedimentada e criadora) e que se faz na interação entre os sujeitos (CARDIM, 2012).
Nas palavras de Merleau-Ponty, “poderíamos dizer, retomando uma distinção célebre, que as linguagens, quer
dizer, os sistemas constituídos de vocabulário e de sintaxe, os ‘meios de expressão’ que existem empiricamen-
te, são o depósito e a sedimentação de atos de fala nos quais o sentido não-formulado não apenas encontra o
meio de traduzir-se no exterior, mas ainda adquire a existência para si mesmo, e é verdadeiramente criado como
sentido. Ou, ainda, poderíamos distinguir entre uma fala falante e uma fala falada” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p.
266). Na medida em que os sujeitos expressam significações, ou seja, os pensamentos ou significações conceituais,
elas passam a existir no mundo sensível, essas significações podem ser retomadas por outros sujeitos em outros
atos de fala ou expressão, como no caso da literatura que estamos descrevendo. A descoberta do fenômeno da
linguagem, tal como Merleau-Ponty descreve, é uma consequência de sua reformulação do problema da percep-
ção enquanto visto a partir da Fundação do sujeito – cogito tácito – com o mundo e os outros.
A Fala falada seria a camada da linguagem circunscrita à dimensão sedimentada, ou seja, na medida em que os
sujeitos expressam as significações, os pensamentos enraízam-se no mundo cultural, sedimentando, e ficam
acessíveis a outros sujeitos. Esse utensílio da linguagem constitui uma língua, uma sintaxe ou um idioma que
pode ser compreendido por outro sujeito em meio a um diálogo, pois, “só podemos falar-nos uma linguagem
que já compreendemos [...] daí a fala falada que desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna obtida”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 267). A fala falante, por sua vez, é a camada de significação da linguagem dentro da
dimensão criadora, ou seja, “é aquela em que a intenção significativa se encontra em estado nascente” (MERLE-
AU-PONTY, 2015a, p. 266). É nessa camada que os sujeitos falantes, ou mesmo os autores, podem retomar o
que já fora expresso alguma vez, podendo reiterar e transformar, o que já estava disponível no mundo cultural
(linguagem gratuita): “é para além do ser que [a linguagem] procura alcançar-se e é por isso que ela cria a fala
como apoio empírico de seu próprio não-ser” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).
9.  Além de significações conceituais (os pensamentos, ou seja, as palavras), para Merleau-Ponty a fala ou as palavras
possuem significações existenciais e significações linguísticas, ou seja, essas últimas seriam os signos de um idioma,
os símbolos utilizados para escrever ou pronunciar um pensamento, já as significações existenciais seriam as inten-
ções ao falar ou ao escrever que indicam meu estado de espírito, sentimentos, relação com o mundo percebido.
Para Merleau-Ponty, “o pensamento surge enquanto estilo, enquanto valor afetivo”: “as significações existenciais
de nossa experiência perceptiva são tão somente a orientação comum ou sinergia expressa pelos diversos ele-
mentos que a compõem. Elas são a totalidade ou implicação espontânea desses elementos, o que os faz valer
‘cinestesia’ do corpo próprio, ‘coisa’ no tempo e espaço vividos, ‘intenção’ de nossa ação junto às coisas, enfim,
‘mundo vivido’ ou ‘da percepção’” (MÜLLER, 2001, p. 175). Um exemplo de uma significação existencial é o meu
sotaque que determina de qual região de uma comunidade linguística eu tenho origem. Não preciso retomar
as significações verbais, ou existenciais, ou seja, as intenções, a mímica que realizei no ato da fala primeira para

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lavras que possui à sua disposição e as remaneja para expressar o novo: “cada artista retoma
a tarefa no seu início, há um novo mundo a libertar, enquanto na ordem da fala cada escritor
tem consciência de visar o mesmo mundo do qual os outros escritores já se ocupavam” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 258).

Aqui podemos destacar a noção de “campo de presença” (Präsenzfeld) da estrutura temporal


da subjetividade na qual Merleau-Ponty descreve no capítulo II (A temporalidade) da ter-
ceira parte da Fenomenologia da percepção10. Da mesma forma que ao falar o sujeito possui
o passado imanente ao seu presente, o autor, ao escrever, possui, também, as significações
conceituais percebidas no passado e as utiliza para expressar seus pensamentos no presente.
O autor reabre o tempo, o passado “co-presente” para realizar sua expressão, assim explica
Merleau-Ponty:

só podem falar-nos uma linguagem que já compreendemos, cada palavra de um texto difícil
desperta em nós pensamentos que anteriormente nos pertenciam, mas por vezes essas sig-
nificações se unem em um pensamento novo que as remaneja a todas, somos transportados
para o centro do livro, encontramos a sua fonte (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).

que a palavra seja entendida, ou mesmo depois que queira pronunciá-la “o fato de reconhecermos para nossas
construções simbólicas a capacidade de exprimir significações não apenas linguísticas e conceituais, mas também
existenciais, não implica reconhecer que essas últimas sejam uma prerrogativa exclusiva da cultura” (MÜLLER,
2001, p. 175). E como descobrimos na leitura do capítulo VI da Fenomenologia da percepção na pintura e na música
as significações existenciais estão presentes a todo momento, jamais se pode distinguir as obras de arte de sua
significação existencial, já que os artistas, pintores e músicos, para Merleau-Ponty, sempre exprimem a partir de
sua relação com o mundo e jamais com o que está sedimentado.
10.  Existe uma retomada dos pensamentos expressos no ato da fala. A estrutura da subjetividade enquanto tem-
po, para Merleau-Ponty, nos ajuda a compreender esse fenômeno. Assim como as percepções, perfis passados
jamais estão distantes, ausentes, ou mesmo distintos do meu presente e do meu futuro (Fundação), as palavras
às quais nos reportamos para expressar nossos pensamentos estão disponíveis enquanto atos de expressão
sedimentados notados por meu corpo, na minha interação com meu mundo linguístico, pois “o mundo linguís-
tico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior de
um mundo já falado e falante que refletimos” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 250). Ou seja: há uma copresença
dos pensamentos passados em minha fala presente (MÜLLER, 2001, p. 240). A noção de “campo de presença”
(Präsenzfeld) esclarece-nos muito bem a disposição das palavras ou mesmo dos pensamentos sedimentados em
meu presente. De certo que as três dimensões do tempo, passado, presente e futuro, para Merleau-Ponty, se
encontram imanentes no sujeito, dessa forma, as significações conceituais podem ser retomadas, intencionadas ou
mesmo retidas (retenção) enquanto presentes no sujeito e não como ausência. Para entender o papel da me-
mória no corpo, segundo Merleau-Ponty, é preciso entender o passado não como consciência constituinte do
passado, mas por meu corpo tenho a presença desse passado que reabro a todo o momento. O passado não é
ausência, mas está presente em meu corpo de acordo com as suas vivências, nosso corpo “é o meio de nossa
comunicação com o tempo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 246). Posso reter com meu corpo às palavras que
estão a minha disposição e “basta que eu possua sua essência articular e sonora como uma das modulações,
um dos usos possíveis do meu corpo” para poder pronunciá-las: “o corpo converte uma certa essência motora
em vociferação, desdobra o estilo articular de uma palavra em fenômenos sonoros, desdobra em panorama do
passado a atitude antiga que ele retoma, projeta uma intenção de movimento em movimento efetivo, porque ele
é um poder de expressão natural” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).

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Nesta passagem, já podemos encontrar elementos que contribuem para as reflexões posterio-
res do filósofo, a respeito da expressão literária, ou mesmo suas descrições de nossos compor-
tamentos ou “expressões simbólicas”, que serão constatadas em textos da sua fase intermedi-
ária, atribuindo à literatura o caráter de linguagem indireta.

Uma obra literária, com base no que dissemos, portanto, seria a utilização de significações
disponíveis no mundo cultural, significações sedimentadas e, quando reiteradas, dão origem
a novidades, que podem ser compreendidas por outros sujeitos. Percebe-se aqui, de acordo
com o que mencionamos, também na literatura uma potência intersubjetiva. Podemos in-
dagar: a expressão literária recupera, na Fenomenologia da percepção, as relações entre os
sujeitos que a modernidade solapou?

É interessante destacar a intersubjetividade no ato de leitura de uma obra literária. Se a lin-


guagem, nos moldes das psicologias clássicas, fosse uma cifração do pensamento de um autor,
ao ler um livro, ela só suscitaria o que já estava em mim, enquanto leitor, ou seja, as repre-
sentações comuns, e nada se passariam de um sujeito pensante ao outro. Teríamos então a
ilusão da experiência da comunicação que já comentamos acima: “porque temos a ilusão de já
possuirmos em nós, com o sentido comum das palavras” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244).
Enquanto remanejamento de significações, de palavras, e, portanto, de pensamentos já ad-
quiridos, a leitura de uma obra realiza uma intenção de um sujeito percipiente ao outro: “na
verdade o sentido de uma obra literária é menos feito pelo sentido comum das palavras do que
contribui para modificá-lo [...] [existe] uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o
outro que enriquece nossos pensamentos próprios” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).

A operação de expressão, quando é bem-sucedida, não deixa apenas um sumário para o


leitor ou para o próprio escritor, ela faz a significação existir como uma coisa no próprio
coração do texto, ela a faz viver em um organismo de palavras, ela a instala no escritor ou
no leitor como um novo órgão dos sentidos, abre para nossa experiência um novo campo
ou uma nova dimensão (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248).

Essa capacidade única do ser humano de suscitar pensamentos no outro rompe com a im-
possibilidade de relações intersubjetivas nas expressões linguísticas sustentadas pela ideia
de linguagem como “vestimenta dos pensamentos”. Dessa forma, a expressão literária, para
Merleau-Ponty, na Fenomenologia da percepção, realiza uma dissolução da distância entre
as consciências e entre signo e significação. Há uma verdadeira intenção de uma consciência
para outra, assim como de um corpo para outro: “há confirmação do outro por mim e de mim
pelo outro” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 251). Na passagem a seguir, Merleau-Ponty clarifica
o caráter intersubjetivo da obra literária:

o ‘pensamento’ do orador é vazio enquanto ele fala, e quando se lê um texto diante de


nós, se a expressão é bem-sucedida, não temos um pensamento à margem do próprio tex-
to, as palavras ocupam todo nosso espírito, elas vêm preencher exatamente nossa expec-
tativa e nós sentimos a necessidade do discurso, mas não seríamos capazes de prevê-los e
somos possuídos por ele. O fim do discurso ou do texto será o fim de um encantamento
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 245).

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É por meio dessa intersubjetividade, na leitura de um texto, que podem surgir os pensa-
mentos derivados do que fora lido, pois “o fim do discurso ou do texto será o fim do encan-
tamento. É então que poderão sobrevir os pensamentos sobre o discurso ou sobre o texto”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 245). As significações conceituais e linguísticas ficam dispo-
níveis, ou seja, sedimentadas na cultura, para os leitores11. Portanto, toda essa descoberta e
comprovação de Merleau-Ponty da presença do pensamento nos atos de expressão, seja na
fala e agora na literatura, é o que dá o patamar de expressão ser inseparável do exprimido.
Signo e significação estão em interdependência; essa prerrogativa, na Fenomenologia da
percepção, é levada para o campo artístico, nesse caso, a literatura, e para as outras catego-
rias como no teatro, na música e na pintura.

Bibliografia
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Paulo: WMF Martin Fontes, 2015a.

11.  “O maior benefício da expressão não é consignar em um escrito pensamentos que poderiam perder-se,
um escritor quase não relê suas próprias obras, e as grandes obras depositam em nós, na primeira leitura, tudo
aquilo que a seguir extrairemos delas” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244).

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Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

À espera de Godot: uma leitura interpretativa de


Beckett à luz do pensamento heideggeriano

Poliana Marques Cordeiro Costa


Mestre em Comunicação Social/UFS

Este trabalho consiste numa abordagem de base filosófico-literária uti-


lizando-se, as ideias filosóficas de Martin Heidegger, como instrumen-
tal teórico, para analisar o texto literário Esperando Godot de Samuel
Beckett. Destacando, do trabalho filosófico de Heidegger, temas como
Deus, teologia, morte de deus.

Palavras-chaves: Deus, Samuel Beckett, Heidegger.

Introdução
Através de divisões temáticas se destacará os pontos de intersecção entre a peça teatral de Sa-
muel Beckett Esperando Godot e algumas ideias filosóficas de Martin Heidegger. Nenhum des-
tes pontos pretende traduzir especificamente o pensamento filosófico de Beckett nem tentar
extrair sua essência da peça, mas apenas interligar a sua forma literária com pensamentos fi-
losóficos de Heidegger, visto que Beckett não é e nem nunca foi interprete artístico de Hei-
degger, nem muito menos Heidegger um filosofo que buscou analisar a obra de Beckett. As
interpretações elencadas não pretendem esgotar todas as formas de pensamentos filosóficos
possivelmente existentes na peça, mas pontuar algumas dentre tantas outras formas que a peça
pode revelar dependendo da metodologia utilizada, sendo importante compreender que este
trabalho não pretende esclarecer pontos nem revelar novas verdades filosóficas sobre a obra de
Martin Heidegger, ou de Beckett, mas, apenas permitir um diálogo filosófico-literário.

A construção de uma dimensão. Onde encontrar o ser e o tempo em Beckett?


Inicialmente é preciso criar uma dimensão que englobe Heidegger e Beckett, partindo do
mundo de Esperando Godot. Para isso, é importante entender o ambiente que a peça sugere.
Assim com indicações de Berretinni sigamos montando o palco para compreender o que se

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passa nele: “Visual é o teatro becketeniando... A Cenografia em Beckett é um universo inós-


pito, hostil, lúgubre, vazio, angustiante é o habitat do homem becketiano, criatura miserável
e sofredora” (Berretinni, 1977, p. 57). No mundo de Esperando Godot a vida se fixa num para-
doxo, uma dimensão onde viver já não é mais simplesmente viver, como se conhece biologi-
camente, esta dimensão criada por Beckett proporciona um lugar para se pensar, e não para
se encontrar, seguindo os passos de Heidegger que pretendeu analisar “o ser no mundo como
um questionamento e uma discussão da noção de ambiente que a biologia apenas pressupu-
nha” (ABBAGNANO, 2007, p. 36). Benedito Nunes explica bem esta relação:

A relação com o mundo é um engajamento pré-reflexivo, que se cumpre independente-


mente do sujeito por um liame mais primitivo e fundamental do que o nexo entre sujeito
e objeto admitido pela teoria do conhecimento. É mais uma região ontológica do que uma
realidade dada (NUNES, 2002, p.14).

Assim como Heidegger, Samuel Beckett não esta preocupado em descrever referenciais cien-
tíficos ou biológicos para o ambiente que cria em Esperando Godot, antes parece querer re-
fletir nesse ambiente o estado mental do homem perdido diante de seus valores destituídos,
enfim, será, dentro desse mundo criado por Beckett que se tentará identificar o Ser e o Tempo
de Heidegger, elaborando uma dimensão onde os dois autores se encontram.

O Ser-ai de Heidegger e o homem de Beckett


Em Heidegger o homem, é o ente que se propõe a perguntar sobre o sentido do ser, por isso,
para a compreensão do problema do sentido do ser é necessário antes definir esse ente (ho-
mem), assim ele define esse ente como Dasein "esse ente, que nos mesmos já somos sempre,
e que tem, entre as outras possibilidades de ser, a de buscar, nos o indicamos com o termo
Ser-ai (Dasein)" este Ser-ai, é um ente que além de perguntar sobre o ser deve evitar se in-
fluenciar pelas noções formuladas do ser aceitas pela filosofia ocidental, ou seja, pensamen-
tos tradicionais, pois estas noções identificam o ser com a objetividade, trazendo uma visão
superficial, descrevendo uma simples-presença do ser.

O homem de Beckett se encontra na disponibilidade de buscar e questionar, suas perso-


nagens. Em Esperando Godot questiona-se tudo. Nessa relação de busca das personagens a
obra proporciona a visualização desse Ser-aí, talvez não em toda sua essência como formulou
Heidegger, mas, como vestígios identificáveis dentro do processo tão confuso da mente das
personagens.

ESTRAGON
Nós sempre inventamos alguma coisa para nos dar a impressão de existir, hein, Didi?
VLADIMIR
Claro, claro, nós somos mágicos. Mas vamos perseverar no que decidimos, antes que a
gente se esqueça (BECKETT, 1991, p. 28).

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Heidegger entende que a natureza do Ser-ai é a existência e a essência dessa existência é a


possibilidade; possibilidade sem ser no sentido lógico vazio, mas uma possibilidade atuante
e, que permite ao homem escolher entre conquistar-se ou perder-se, Heidegger conclui que
neste sentido, o Ser-ai é "o ente que depende de seu ser" e "a existência é decidida, no sentido
da posse ou da ruína, somente por cada Ser-ai individual".

Analisando a partir dessa perspectiva a peça Esperando Godot, fica difícil identificar qual
foco Beckett quer revelar na sua obra, inicialmente parece também querer tratar da exis-
tência humana, sua razão, mas aparenta ser algo além, assim não é apenas a exposição da
existência humana que se enxerga em Esperando Godot, mas a relação dessa existência com
o próprio ser do homem, assim como a questão levantada por Heidegger entre o problema
da existência e o problema do ser.

O ser-no-mundo de Heidegger, no mundo de Esperando Godot


A existência cuja essência é a possibilidade, no sentido de projeto, deve ser entendida como
o poder-ser, em Heidegger. O poder-ser significa projetar, entendendo existência como es-
sencialmente transcendência. Essa transcendência é parte integrante da constituição fun-
damental do homem. Esta forma de ser-no-mundo não acontece de modo passivo, mas, atu-
ante. O homem, enquanto ser-no-mundo, esta se projetando para construir. Sendo o Ser-ai,
constitutivamente projeto, o mundo existe como conjunto de coisas utilizáveis: o mundo vem
a ser graças a seu ser utilizável.

Analisando, precisamente os personagens de Esperando Godot, estes parecem deslocados no


tempo e no espaço para um momento único suspenso no ar. Será que se pode descrever este
tipo de momento intercalando com o que Heidegger compreende sobre o ser do homem no
mundo? Identificando um processo intermediário. A existência, vivenciada pelos persona-
gens, proposta por Beckett, não é uma existência cotidiana normal, mas fora dos padrões da
normalidade convencional.

Aparenta ser um sonho que não é sonho, é real; aparenta também ser um estado emocional,
mas não é um estado de espírito, e nem mesmo uma disposição psicológica temporária, é a
existência real e pura de seus personagens não há sugestão de acordar de um sonho, a reali-
dade de sua existência é o que é, tal como surge e sugere sua representação.

O ser-com-os-outros de Heidegger, na relação entre as personagens de Beckett


Em Heidegger, ser-com-os-outros possui um caráter existencial. No ser-no-mundo, não há,
sujeito sem mundo e, consequentemente, não há um eu isolado sem os outros. Esses outros
eus, junto com o eu participam do mesmo mundo, a relação entre o eu e os outros eus se es-

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tabelece assim como a relação de Ser-aí com o ser-no-mundo, se expressando pelo cuidar das
coisas, então o ser-com-os-outros se expressa pelo cuidar dos outros, ação fundamental da
relação entre os homens. Segundo Heidegger o cuidar dos outros pode tomar duas formas:
na primeira, procura-se retirar os outros de seus cuidados, revelando um simples estar junto
uma forma inautêntica de coexistência; na segunda, procura-se ajudá-los a conquistar a li-
berdade de assumir seus próprios cuidados sendo, assim, um autêntico coexistir.

No texto de Beckett podemos encontrar essa duas formas de relação citada por Heidegger
quando as personagens Vlademir e Estragon se relacionam e se encontram dentro de um
autêntico coexistir na sua versão mais simples, pois buscam ajudar um ao outro, senão a con-
quistar a liberdade, pelo menos de suportar a privação dela. A primeira forma pode ser vista
na relação de Pozzo e Lucky, que revela um simples estar junto, não há ajuda, para conquistar
a liberdade e sim ações de aprisionamento.

O ser-para-a-morte de Heidegger, nas personagens de Beckett


Em Heidegger, a morte enquanto possibilidade sinaliza para a impossibilidade, isto é, con-
duz a existência autêntica, portanto, para o ser-para-a-morte onde somente compreendendo
a impossibilidade da morte como possibilidade da existência e assumindo essa possibilidade
com decisão antecipada, o homem encontra seu ser autêntico.

Heidegger entende a existência inautêntica em três formas: primeiro a linguagem se trans-


forma em falatório preso a ideia de que "as coisas são assim porque assim se diz"; em segundo
lugar a vida inautêntica tenta encher o vazio buscando sempre coisas novas numa constante
atitude de curiosidade; a terceira característica é o equivoco, onde a individualidade das situ-
ações, em uma existência consumida pelo falatório e pela curiosidade, desvanece.

Nesse equivoco ou ambiguidade é “onde tudo parece ter sido compreendido, captado e dis-
cutido autenticamente, quando no fundo não foi. Ou então parece que não foi quando, no
fundo, já foi” (Heidegger, 1927, p.37), assim a existência inautêntica é a existência do se diz e
do se faz. Esta existência inautêntica e anônima é vista como um estado de dejeção segundo
Abbagnano, o estado de dejeção em Heidegger “é aquele em que a existência se distancia
de si, esconde a si mesma sua possibilidade própria (que é a da morte) e a abandona ao
modo de ser anônimo que se caracteriza pela tagarelice, pela curiosidade e pelo equivoco”
(ABBAGNANO, 2007, p. 95).

Esta descrição da existência inautêntica reflete bem o tipo de existência das personagens de
Beckett, onde se pode identificar a utilização da linguagem refletindo num falatório descrito
no dialogo das personagens, Beckett revela como o homem está preso a linguagem, e na sua
crise existencial a utiliza para tentar resolver, responder as suas questões. A questão da curio-
sidade, também é vista na obra quando as personagens a todo custam buscam ansiosamente

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coisas novas a fazer, mesmo antes de terminar outras, seguido da ambiguidade, que confunde
suas percepções diante de tanto falatório e curiosidade, envolvendo assim suas personagens
no estado de dejeção proposto por Heidegger.

Em Beckett as personagens parecem perceber este estado de dejeção e como esse modo de
existir já não responde mais as suas necessidades existenciais, até mesmo a identificação de
eu necessidades existencial é colocada em dúvida, do que realmente eles precisam? A dureza
deste processo as deixa diante da realidade da morte, onde em uma possível constatação, ou
não, de que estão perdidos em seus conceitos e, paradigmas existenciais as personagens pen-
sam em suicídio.

ESTRAGON
Vamos nos enforcar imediatamente.

VLADIMIR
Num galho? (Aproxima-se da árvore) Não tenho confiança.

ESTRAGON
Sempre se pode tentar.

VLADIMIR
Então vá.

ESTRAGON
Você primeiro.

VLADIMIR
Não, primeiro você.

(BECKETT, 1991, p. 05).

Encontrando os personagens diante desse impasse entre a morte e a vida, pode-se fazer uma
conexão com o ser-para-a-morte, pois, ao pensar em suicídio as personagens proporcionam
uma antecipação da morte, um tempo para pensar na questão da morte, fazendo-se analisar
o sentido de ser do homem, diante dessa experiência que constatou a possibilidade do nada.
Em Heidegger essa experiência, esse momento peculiar, não é alcançada pelo esforço do pen-
samento intelectual, mas por meio da angustia.

A angústia é responsável por direcionar o homem o colocando frente ao nada, do nada de sen-
tido, do não-sentido em relação ao projetar do homem questionando o sentido da sua própria
existência, como cita Nunes “Angustiar-nos é não mais nos sentirmos em casa, a estrutura da
subjetividade abalada, sem o encobrimento da mediania do cotidiano e a envolvência da que-
da” (NUNES, 2002, p. 20), esta é a posição das personagens de Beckett, elas estão diante de
um mundo sem sentido, e constantemente envoltas na conclusão de que não há nada a fazer.

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ESTRAGON
Ah, é. (Pausa. Desesperado) O que vamos fazer, o que vamos fazer?

VLADIMIR
Não há nada a fazer. (BECKETT, 1991, p. 28)

O nada a fazer de Beckett pode significar que as personagens fazem tanto e no fim todas suas
ações são nada diante da sua realidade, pois não houve mudança, chegando à conclusão do
nada, revela a falta de controle da sua própria existência, suas diversas ações não mudam sua
essência vazia, e a condenação a um existir sem significado, e sem memória, é uma afirmação,
uma conclusão, que logo deve ser esquecida e envolta em mais ações, é toda uma proposta a
ser evitada em sua profundidade podendo ser apenas constatada num desabafo, mas terrível
demais pra ser analisada pelas personagens.

Fazendo conexão com o pensamento de Heidegger ao pensar a morte as personagens se apro-


ximam da coragem de encarar a possibilidade do próprio não-ser, se permitindo sentir a an-
gustia do ser-para-a-morte, alcançando assim ainda que em forma de lampejos, a sensação
da existência autêntica proposta por Heidegger, sinalizando para uma possível aceitação da
própria finitude e negatividade, no entanto, retornam rapidamente a existência anônima,
ocupando-se novamente do medo da angustia, afastando a coragem, volta-se para a existên-
cia inautêntica, buscando distração para a questão da morte em falatórios, curiosidades en-
voltos na ambiguidade, enfim fogem “Mas diante dessa existência finita, da morte, o homem
como ser cadente não cessa de fugir. Quem morre é a gente, não eu. Esquivo-me da morte no
anonimato da gente. Fujo dela enquanto possibilidade própria” (NUNES, 2002, p. 21).

O tempo de Heidegger em Beckett


A forma como o tempo é formulado em Heidegger esta sujeito, a sua definição de existên-
cia. A existência autêntica esta relacionada ao tempo autêntico e a existência inautêntica ao
tempo inautêntico. Não entraremos aqui na análise exaustiva da noção de temporalidade
heideggeriana, mas nos interessa somente pensar o tempo inautêntico ligado à forma de pen-
sar o tempo usado na ciência e na vida cotidiana, como a divisão do tempo em datas, ele esta
necessariamente ligada às coisas do mundo, nesse sentido este tempo inautêntico parece esta
ausente na peça Esperando Godot, pois seus personagens estão desligados de datas, dias, e se
encontram sem referenciais, até sobre a hora exata do dia.

ESTRAGON
Tem certeza que era hoje?

VLADIMIR
O quê?

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ESTRAGON
Que era para esperar.

VLADIMIR
Ele disse sábado. (Pausa) Acho.

ESTRAGON
Você acha.

VLADIMIR
Eu devo ter tomado nota. (Remexe os bolsos, cheios de toda espécie de lixo).

ESTRAGON (muito insidioso)


Mas qual sábado? E hoje é sábado? Não seria domingo? (Pausa) Ou segunda? (pausa)
Ou sexta-feira? (BECKETT, 1991, p. 4).

No entanto, o presente inautêntico, onde o homem é absorvido constantemente pelas coisas


a fazer, pode está presente sim na peça, pois as personagens estão envoltas em coisas a fazer,
já o passado inautêntico que busca retornar a situação de fatos para aceita-los também apa-
renta existir na peça, bem como o futuro inautêntico que projeta para o futuro suas questões,
para quando Godot chegar.

Enfim o tempo de forma cientifica em Esperando Godot, não é o tempo normal, é antes um
tempo abalado, em processo, pois alguns fatos são questionados pelas personagens, talvez
seja um tempo intermediário, que poderia se tornar, mas, não se tornou um tempo autêntico,
onde o passado autêntico é não aceitar passivamente a tradição, o presente autêntico é o ins-
tante, em que o homem repudia o presente inautêntico e decide seu destino, e o futuro é um
viver para a morte que não o permite ao homem ser envolvido pelas possibilidades mundanas.

Godot é a paródia do homem projetado na existência e procurando resolver seu próprio


enigma, ou antes, o homem que renunciou a resolver seu próprio enigma, pois os pontos de
referencias as únicas chaves de que dispõe: a realidade do espaço, do tempo e da matéria, se
revela inutilizáveis (SERREAU, 1960, p. 89).

As personagens dispersas no tempo inautêntico possuem seus referenciais confundidos, seus


diálogos se entrelaçam e suas vidas vivem numa constante gangorra em busca de sentidos
que os norteiem; o objetivo central está em procurar formas para se entreter, já que não há
sentido pra explicar e direcionar suas vidas: Como o tempo voa quando a gente se diverte! (de-
sabafa a personagem Vlademir). Eles cantam, nutrem preocupações com sapatos, comem,
brincam, brigam, fazem as pazes, falam mal, elaboram diversas ações para passar o tempo, e
ainda assim repletos dessas ações novamente chegam à conclusão nada a fazer, talvez a única
conclusão clara da peça.

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O esquecimento do ser de Heidegger em Beckett e suas personagens perdidas


Heidegger explica que, como a metafísica identificou o ser com o ente, ou com a simples pre-
sença dos entes ela não deve ser entendida como metafísica, no sentido originário, mas como
esquecimento do ser e esta descrição da metafísica pode ser relacionada com o funcionamen-
to das personagens de Beckett, que se encontram em estado de falta de memória, pois sua
rotina faz com que eles se esqueçam do ser, de tal forma que se esquecem do esquecimento.

Assim as personagens são privadas de sua memória, aquilo que poderia dar um pouco de con-
forto, a consciência da sua existência baseada nos fatos vividos, suas recordações arrumariam
seu pensamento organizariam sua existência, mas já não existem nessa dimensão. Assim,
guiam-se por faíscas de lembranças, confusas num tentativa de reorganização diária, enfim
a privação da memória consequentemente implica na falta de localização tempo-espaço, na
qual as personagens estão.

VLADIMIR
A árvore, olha a árvore.

ESTRAGON (olhando a árvore)


Ela não estava aí ontem?

VLADIMIR
Claro que estava. Você não se lembra? Nós quase nos enforcamos nela. Mas você não
quis. Não se lembra?

ESTRAGON
Você sonhou isso.

VLADIMIR
Será possível que já se esqueceu?

ESTRAGON
Eu sou assim. Ou esqueço logo ou não esqueço nunca.

VLADIMIR
E Pozzo e Lucky, você os esqueceu também?

ESTRAGON
Pozzo e Lucky?

VLADIMIR
Ele se esqueceu de tudo! (BECKETT, 1991, p. 24).

Traçando uma ponte com o pensamento heideggeriano diríamos que, este esquecimento
do ser permitiu no mundo ocidental o desenvolvimento da técnica, sendo esta técnica e
sua conjuntura o resultado gerado do apoderamento das coisas. A técnica toma a realidade

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como puro objeto para se dominar e se desfrutar, assim é a relação das personagens de Be-
ckett com as coisas, e entre si, revelando que esse comportamento baseado na técnica pode
se desenvolver violento e desumano, Heidegger o denuncia como uma forma de fé, a fé na
técnica como domínio sobre tudo.

Finalizando Heidegger acredita que a linguagem cientifica dos entes, ou a linguagem inau-
têntica do falatório não pode desvelar o ser, mas, somente a linguagem da poesia serve como
linguagem do ser, pois a poesia foi quem inicialmente deu nomes as coisas. Essa fundação do
ser na poesia foi tratada por Heidegger em Holderlin e a essência da poesia (1937).

Nesse texto ele afirma que esta fundação não é obra do homem, e sim um dom do ser, pois
na linguagem do poeta, não é o homem que fala, mas sim a própria linguagem e de dentro
dessa o ser se revela. Em Esperando Godot será que se pode identificar através da análise de
sua linguagem alguma faísca do ser? Talvez um lampejo refletido na tentativa de Beckett de
denunciar o estado do homem, preso num processo intermediário entre a quebra de seus va-
lores tradicionais e o despontar de possíveis novas perspectivas.

Deus, teologia e Godot


A vida dos dois autores foi permeada de religiosidade, Heidegger com o catolicismo e Beckett
com o presbiterianismo. Em Samuel Beckett citações bíblicas e referências teológicas estão
presentes no diálogo de Esperando Godot, segundo Berretteni, Beckett viveu “afastado da po-
lítica, mas, não de suas consequências, assim trabalha as questões do pós-guerra refletindo
na sua obra sobre a religião e a ciência como questões fracas e efêmeras” (Berretinni, 1977,
p 39), contudo, formula estas questões sem obedecer a uma construção lógica; os assuntos
teológicos entram e saem da peça sem introduções e sem conclusões, surgindo diálogos que
começam no meio, aparentam uma discussão confusa, mas essencialmente mexem em ques-
tões bem profundas, apesar de aparentemente as personagens tratarem de forma superficial e
desinteressada esses temas. Suas opiniões e frases bem formuladas trazem questionamentos
teológicos sérios, com temas que sempre permeiam o mundo teológico Berrettini comenta:

Não é fácil negar a marca religiosa no conjunto da obra becketiana, por mais que o autor
tenha se defendido de ter sentimentos religiosos. As alusões aos dois Testamentos, às ima-
gens bíblicas, as citações e os símbolos, explícitos ou não, revelam o autor cuja infância se
alimentou com a leitura da Bíblia, levando comentaristas a verem nessa peça uma moderna
moralidade com temas cristãos (BERRETTINI, 1977, p. 42).

A forma como os assuntos teológicos são tratados, como partes soltas no meio do processo da
existência das personagens, faz com que vários deles sejam levantados e esquecidos de forma
desordenada e confusa, para dar lugar às ações da vida cotidiana dos personagens. Esta di-
nâmica faz com que pensar coisas teológicas faça parte da rotina entre comer, tentar dormir,

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esperar, e rir, ações que os personagens vivem. Dando um pouco de leveza a estes assuntos,
Beckett também segue utilizando os recursos do humor, colocando assuntos sagrados na
boca de dois clowns vagabundos revelando que esta existência ordinária também é envolvida
por questões sagradas.

VLADIMIR
Mas você não pode andar descalço!

ESTRAGON
Cristo andou.

VLADIMIR
Cristo! O que é que Cristo tem a ver com isso? Você não pretende se comparar com
Cristo.

ESTRAGON
Toda minha vida eu me comparei com ele (BECKETT, 1991, p. 21).

Segundo Inwood, o filósofo Heidegger via a teologia como “ciência positiva”, ele compreende
que a “teologia estuda uma série de entes já revelados e acessíveis em nossas lidas pré-cien-
tífica com os mesmos e iluminados por uma compreensão preexistente de ser” (INWOOD,
2002 p. 40), isso conclui que, o que, a teologia estuda não é Deus, mas a fé cristã e os entes
por ela descobertos. Inwood descreve que dessa forma quando a teologia trata de fé, não a ver
simplesmente como crença ou conhecimento, mas no sentido luterano de um renascimento
que afeta toda uma vida, de um “existir compreendido por meio da fé na historia revelada,
i.e., ocorrido com o crucificado”, Assim Heidegger chama de teologia a “consciência de si do
cristianismo em seu aparecimento mundano e histórico” (INWOOD, 2002, p. 40).

Em Samuel Beckett pode-se relacionar esta forma de pensar de Heidegger na maneira como
ele aborda os assuntos teológicos, ao analisar a consciência que seus personagens possuem e
os dados históricos religiosos, às vezes confusos, que trazem em sua memória precária. Não
se tratam de questões sobre a essência de um Deus Soberano, mas levantam considerações
especificas em torno do cristianismo.

O primeiro pensamento teológico exposto por Beckett diz respeito à salvação do homem,
descrita a partir da visualização dos dois ladrões na cruz, onde a personagem Vladimir diz:
“Um dos ladrões foi salvo. (Pausa.) É uma percentagem razoável” (BECKETT, 1991, p. 2), con-
siderado para a si a possibilidade de salvação numa porcentagem de cinquenta por cento de
chance, questiona a seu amigo Estragon a alternativa de se arrepender, Estragon responde “se
arrepender de que? De ter nascido?” (BECKETT, 1991 p. 2).

Vlademir segue questionando a validade da descrição fornecida pela Bíblia “Como é possível
que dos quatro evangelistas só um conta a história desse jeito? Os quatro estavam lá – ou por
perto – e só um deles diz que um dos ladrões foi salvo” (BECKETT, 1991, p. 2) ao questionar a

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validade da afirmação Beckett começa sinalizando uma visão critica sobre aquilo que tradi-
cionalmente é ensinado em relação a salvação e arrependimento dentro da cultura cristã.

VLADIMIR
Mas os quatro estavam lá. E só um fala que um dos ladrões foi salvo. Por que acreditar
nele e não nos outros?

ESTRAGON
Quem acredita?

VLADIMIR
Todo mundo. É a única versão que toda gente conhece.

ESTRAGON
Gente é um bicho muito ignorante (BECKETT, 1991, p. 3).

Questionando a veracidade da história, a partir da ausência de outras fontes dentro da Bíblia


que confirmem a mesma, colocando na boca das personagens uma opinião geral sobre todo
mundo que acredita, talvez porque “É a única versão que toda gente conhece” (BECKETT,
1991, p. 3), levando a conclusão que talvez todos creiam porque só conhecem este modo de
pensar sobre a história, e como segundo a personagem “Gente é um bicho muito ignorante”
(BECKETT, 1991, p. 3).

O fato dos três evangelhos não falarem a respeito da história não anula a veracidade do quarto
que fala, mas não é isso que Beckett parece querer revelar nesse diálogo, sua intenção parece
demonstrar que a atitude de perceber de outra forma um assunto pode fazer com que esta
percepção venha romper com o olhar tradicional e com a postura de questionar o normal.
Beckett parece revelar que os fatos já vêm explicados e interpretados teologicamente, mas,
é possível pensar diferente sobre os mesmos fatos e chegar a outras interpretações que não
necessariamente seriam conclusões definitivas.

Um segundo pensamento teológico interessante levantado por Beckett encontra-se no texto


proferido pela personagem Lucky que forçado a pensar pelo seu dono Pozzo exprime um tex-
to enorme (o maior da peça inteira) inicialmente pouco compreensível e finalmente inteligí-
vel, este texto também brinca com a linguagem e a sua sonoridade usando palavras repetidas,
buscando causar o riso, envolvendo uma mistura de assuntos sérios em tom de brincadeira:

LUCKY
Dada à existência conforme se comprova de recentes trabalhos públicos de Poinçon
e Wattman de um Deus pessoal quaquaquaqua com barbas brancas quaqua fora do
tempo da extensão que do alto de sua divina apatia sua divina atambia sua divina afasia
(Vladimir e Estragon atentos; Pozzo sente-se visivelmente mal.) nos ama profundamente
com algumas exceções por motivos desconhecidos mas o tempo dirá e sofre como a
divina Miranda com aqueles que por motivos desconhecidos mas o tempo dirá estão

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mergulhados no tormento mergulhados no fogo e cujo fogo e cuja chama por pouco
que dure um pouco dura e quem pode duvidar incendiará o firmamento o que significa
conduzir o inferno ao céu tão azul e tranquilo e... (BECKETT, 1991, p. 17).

Desse texto extrai-se uma possível síntese do pensamento de Beckett em relação a deus na
peça Esperando Godot, dando uma descrição deste em termos pejorativos da divindade esta
síntese revela três características importantes, a atambia (total indiferença) a afasia (trauma-
tismo mental que provoca a perda da fala ou a compreensão da linguagem) e a apatia (desin-
teresse e insensibilidade).

Esta descrição da divindade revela um conceito que exprime um deus praticamente inope-
rante que chega a concluir que talvez por estas características desse deus insuficiente, o caos
se estabelece na realidade das personagens, pois este deus existe enquanto ideia da mente hu-
mana mais não enquanto um ser ativo, que intervém. Retomando a questão da morte de deus,
pensamento filosófico que permeava sua época, que questionava toda a estrutura firmada na
compreensão teológica que fora abalada, Inwood comenta:

O "Deus está morto" de Nietzsche não é "palavra do ateísmo, e sim palavra da onto-te-
ologia desta metafísica na qual o niilismo autêntico torna-se completo" (NIl, 348/niv, 210).
A visão do mundo como "caos" proposta por Nietzsche é uma "teologia negativa sem o
deus cristão" (NJ. 3531nii, 95). (INWOOD, 2002, p. 42) Heidegger fala constantemente de
"deus(es)", mas seu estatuto ontológico é obscuro: "Deus [der Gott] não é nem 'existente'
[ 'seiend'] nem 'inexistente' ['unseiend']. nem deve ser igualado ao ser; ser se essencializa
[West] temporal-espacialmente como este 'entre' ['Zwischen'], que nunca pode fundar-se
em deus, nem no homem como ser e vivente simplesmente-dado, e sim no Da-sein" (LXV,
263) (INWOOD, 2002, p. 42).

Assim Inwood conclui que constatação de Heidegger não é em si uma declaração de ateísmo,
mas a abertura para outro Deus. Beckett não declara explicitamente a morte de Godot, mas
deixa a possibilidade da ocorrência desse fato em aberto na peça, ao não apresentar fisicamente
Godot, assim inúmeras formas de explicar a sua ausência preenche o imaginário, dentre estas
explicações surge o questionamento de sua real existência quanto ser físico e exterior ao mundo
das personagens, assim as personagens estão em constante experiência dessa falta de Godot. Se
ele realmente vem e se ele realmente existe, a forma de pensar das personagens cria este estado
que os aprisiona, os priva da liberdade, de tal forma que é imperceptível aos próprios.

ESTRAGON
Nós perdemos nossos direitos?

VLADIMIR (com nitidez)


Nós nos livramos deles.(Silêncio. Eles permanecem imóveis, os braços oscilando, cabeças
abaixadas, joelhos dobrados.)

ESTRAGON
Nós não estamos atados? (Um tempo.) Hein?
(BECKETT, 1991, p. 6).

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...

VLADIMIR
Como, atados?

ESTRAGON
Pés e mãos.

VLADIMIR
Mas a quem? Por quem?

ESTRAGON
Ao nosso homem.

VLADIMIR
A Godot? Atados a Godot? Que ideia! Nunca jamais! (Pausa.) Por enquanto (BECKETT,
1991, p. 7).

Assim a peça Beckett parece não declarar explicitamente um ateísmo, mais um deísmo, com a
descrição de um deus que não interage diretamente no mundo, contudo não seria um deísmo
completo, pois, Godot ainda envia recados por dois meninos, enfim ele se comunica, na visão
de Beckett, ainda que precariamente, ele fala que virá através de outros, mas ele não responde
diretamente o clamor das personagens.

ESTRAGON
Você acha que Deus está me vendo?

VLADIMIR
Você tem que fechar os olhos.
(Estragon fecha os olhos, quase perde o equilíbrio.)

ESTRAGON
(parando, brandindo os punhos, com a voz mais alta que tem)
Deus tenha piedade de mim!

VLADIMIR (vexado)
E de mim?

ESTRAGON
De mim! De mim! Piedade! De mim! (BECKETT, 1991, p. 32).

Seria a relação direta entre Deus e o homem que Beckett revela não existir em sua peça, e não
necessariamente a inexistência de Deus, assim como Heidegger descreve a ilusão do homem
que vive uma falsa relação entre Deus e Homem, que seria na realidade uma relação entre o
homem e um falso deus?

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A espera do deus, a espera de Godot

ESTRAGON
Lugar encantador. (Vira-se, avança até a beira do palco contemplando o público.) Perspec-
tivas risonhas. (Vira-se para Vladimir.) Vamos embora.

VLADIMIR
Não podemos.

ESTRAGON
Por quê?

VLADIMIR
Estamos esperando Godot (BECKETT, 1991, p. 3).

Esperando Godot, este é o título da peça e sua ação central: esperar. Seus personagens estão
envoltos nesta atmosfera da espera, condicionados e presos a ela, a forma como estão dis-
postos e livres pelo seu cenário não quer dizer que estejam livres da espera; elevada de forma
caricatural, esta espera constante dos personagens supera o humor negro e estende-se para
uma visão cruel da realidade, onde a fatalidade da condição possivelmente eterna de esperar
é a única ação que envolve toda a essência da peça.

A elaboração e engenhosidade dos diálogos da peça parecem refletir a desistência ou inca-


pacidade desse esforço das personagens em chegar a conclusões. Seus assuntos são cortados
ao meio sem conclusões, entram e saem de vários temas sem preocupações em amarrar ou
encerrar um assunto tornando o ambiente da peça ainda mais angustiante.

VLADIMIR
Estamos felizes.

ESTRAGON
Estamos felizes. (Pausa.) Que é que nós vamos fazer, agora que estamos felizes?

VLADIMIR
Esperamos Godot.

ESTRAGON
É verdade (BECKETT, 1991, p. 23 e 24).

Superado a ideia de que das personagens não virá uma solução para a conexão com Godot,
resta a quem acompanha a história, esperar, e, esperando, é o estado em que se encontra no
final da história quando Godot não vem. É no esperar que Heidegger, também, enxerga um
significado maior:

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DER SPIEGEL: Há alguma conexão entre o seu pensamento e o advento (Heraufkunft) desse
deus? Há aí, na sua maneira de ver, uma relação causal? Crê que nos podemos aproximar do
deus pelo pensamento?
M.H.: Não o podemos atrair mediante o pensar. Podemos, quando muito, despertar a dispo-
sição a esperá-lo (HEIDEGGER, 1966, 7).

Quando Heidegger cita: Podemos, quando muito, despertar a disposição a esperá-lo, denun-
cia que nossa sistematização e elaboração lógica não pode fornecer a compreensão essencial
de Deus, mas que podemos estar abertos a isto se estivermos esperando, que significa no mí-
nimo uma disposição. Assim, quando Beckett encerra o texto uma pergunta domina a mente
e Godot? Quem seria ele? Dessa pergunta vêm milhões de respostas, talvez seja algo do tipo
que Heidegger queira dizer, a disposição de querer compreender (estar-disposto) surge do
momento em que há o reconhecimento de que Godot não veio, chegando numa dimensão de
um deus ausente.

O deus ausente e a queda no ente em Esperando Godot


Dentre tantas questões que podem ainda ser levantadas neste trabalho é importante mencio-
nar a relação do deus ausente e a queda no ente em Esperando Godot, vejamos a citação:

DER SPIEGEL: Bem, nesse caso, naturalmente, põe-se-nos o problema de se o homem cor-
rente ainda pode influir sobre esta engrenagem do curso inevitável das coisas, ou se é a
filosofia que pode ter essa influência, ou se são ambos em conjunto, na medida em que a
filosofia leva o indivíduo ou vários indivíduos a uma determinada ação.
M.H.: [Com essa pergunta, voltamos ao início do nosso diálogo.] Se me permite expressar-me
com brevidade e até, de certo modo, brutalmente, embora com base numa longa reflexão,
a filosofia não pode provocar nenhuma alteração imediata do atual estado do mundo. Isto
não é válido apenas em relação à filosofia, mas também a todas as meditações e anseios me-
ramente humanos. Já só um deus nos pode ainda salvar. Como única possibilidade, resta-nos
preparar pelo pensamento e pela poesia uma disposição para o aparecer do deus ou para a
ausência do deus em declínio; preparar a possibilidade de que [em vez de que, dito brutal-
mente, “estiquemos o pernil”] pereçamos perante o deus ausente (HEIDEGGER, 1966, p. 7).

A questão de Godot, uma tipologia de Deus, e sua ausência dentro desse universo da existên-
cia dos personagens de Beckett pode remeter diretamente a resolução filosófica de Heidegger.

A condição de ausência em que os personagens se encontram reflete a condição da existência


humana proposta por Heidegger onde a disposição condicionada à existência de um deus al-
tera sua própria disposição em relação a sua existência.

A reflexão sobre este deus ausente propõe a necessidade de sua presença, o anseio por sua
presença, a busca e uma vida em função da sua presença, mesmo que marcada por sua ausên-
cia, é dominante e direciona.

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VLADIMIR
O que vamos fazer agora?

ESTRAGON
Esperar.

VLADIMIR
Sim, mas enquanto a gente espera.

ESTRAGON
E se a gente se enforcasse? (BECKETT, 1991, p. 5).

O que fazer enquanto se espera Godot? A morte surge como alternativa para a libertação
dessa espera do deus ausente? Em Heidegger para fugir da realidade da morte o homem
busca a criação de deuses, em Beckett seus personagens buscam na esperança de que Go-
dot virá uma razão para esquecer a questão da morte, uma explicação para a existência que
resolva a questão da morte.

VLADIMIR
Então vamos fazer o quê?

ESTRAGON
Não vamos fazer nada. É mais prudente.

VLADIMIR
Vamos esperar e ver o que ele diz.

ESTRAGON
Quem?

VLADIMIR
Godot.

ESTRAGON
Isso.

VLADIMIR
Vamos esperar até que a gente saiba exatamente qual é nossa situação.
(BECKETT, 1991, p. 5).

Envoltos em sistema de pensamentos o homem busca passar o tempo, para camuflar suas
questões essenciais, e não para descobri-las, e compreende-las.

ESTRAGON
Estou procurando.
(Silêncio.)

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VLADIMIR
Quem procura, ouve.

ESTRAGON
É verdade.

VLADIMIR
Isso impede de achar.

ESTRAGON
É.

VLADIMIR
Isso impede de pensar.

ESTRAGON
A gente pensa assim mesmo.

VLADIMIR
Não, é impossível.

ESTRAGON
É isso, vamos nos contradizer.

VLADIMIR
Impossível.

ESTRAGON
Você acha?

VLADIMIR
Nós não corremos o risco de pensar.

ESTRAGON
Então do que é que a gente se queixa?

VLADIMIR
Pensar não é o pior.

ESTRAGON
Talvez não. Mas pelo menos há isso.

VLADIMIR
Isso o quê?

ESTRAGON
Isso: vamos fazer perguntas um para o outro.

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VLADIMIR
O que é que você quer dizer com pelo menos há isso?

ESTRAGON
Isso muito menos miséria.

VLADIMIR
É verdade.

ESTRAGON
Então? Que tal se a gente pensasse que é feliz?

VLADIMIR
O que é terrível é ter pensado (BECKETT, 1991, p. 25 e 26).

Para Heidegger só um deus nos pode ainda salvar, o deus ausente, dará lugar a outro deus, que
tentará corresponder ao seu tempo, contudo Heidegger denuncia que a filosofia tal como esta
não consegue alcança-lo, pois sua conjunta metafísica funciona para mata-lo. Concluindo
que o homem baseado nessa metafísica que mata deuses deve morrer, esse ente deve também
morrer com o deus falso, para que outro deus possa surgir.

DER SPIEGEL: Desculpe. Nós não queremos pôr-nos a filosofar, que a tanto não chega-
mos. Mas temos aqui a charneira entre a política e a filosofia. Perdoe-nos, por isso, se o
metemos em tal conversa... Acaba de dizer-nos que a filosofia e o indivíduo não podiam
fazer nada senão...
M.H.: ... Preparar-se para este estar-disposto a manter-se aberto para a chegada ou a
falta do deus. A experiência desta falta não é um nada, mas sim um libertar-se do homem
daquilo que em Ser e Tempo denominei “a queda (Verfallenheit) no ente”. A reflexão
sobre o que hoje acontece é inerente a uma preparação do mencionado estar-disposto
(HEIDEGGER, 1966, p. 8).

A experiência ou vivencia dessa falta de deus segundo Heidegger não é um nada, mas um
libertar-se do homem, no entanto as personagens de Beckett parecem suspensas nesse pon-
to de interrogação entre a existência ou não de Godot, não há uma conclusão definitiva que
geraria a libertação do homem segundo Heidegger também não há uma presença definitiva
que geraria a confirmação da sua realidade segundo a mais simples crença da divindade.
A libertação de Heidegger pode-se apoiar-se na superação da crença em Godot e em toda
a forma tradicional do sistema metafísico de ver e compreender a realidade, que a filosofia
traz em si, mas a peça não mostra esta superação no máximo revela uma estar-disposto que
nunca chega ao fim.

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Conclusão
A peça, ao descrever a incapacidade das personagens de ir adiante com toda a instabilidade
e insegurança que isto provoca, faz pensar no conceito de privação. Privação, tal como a
negação, é algo que não é, todavia, diferentemente da negação, a privação é aquilo que não
é, mas deveria ter sido. Por exemplo, pedras e cegos não tem visão, quando dizemos que as
pedras não têm visão, estamos realizando uma simples negação, mas quando dizemos que
os cegos não têm visão, estamos realizando mais do que uma negação, pois estamos dizen-
do que certo ente não tem uma propriedade que deveria ter. Assim tratando a privação, o
“não poder”, constantemente citado pelas personagens (24 vezes) refletindo a privação de-
las em não poderem fazer algo ou suportar a vida, onde a prisão domina, paradoxalmente,
porém ainda esperam.

Este não poder interrompe, corta, anula um fim, sempre voltando ao início, ao começo para
depois repetir e não poder novamente, Estragon e Vlademir estão atados a Godot? Sim! Daí
segue o absurdo da questão “Absurdo é algo que não tem objetivo. Quando um homem está
desligado de suas raízes religiosas, metafísicas, e transcendentais, ele se perde, tudo o que
faz fica sem sentido absurdo inútil, ceifado em seu gérmen” (Ionesco em 1957, citação de
BERTHOLD, 2004, p. 522).

Foi desta frase de Ionesco que a palavra: absurdo, entra em evidência voltando para explicar o
teatro, criando a termo teatro do absurdo, este termo entra em contradição quando compara-
do ao estado das personagens de Godot, estas estão sim ligadas as suas raízes religiosas, mas
numa análise do pensamento de Beckett na forma de revelar esta prisão, desenvolvida na sua
linguagem procura esta desligada da forma teológica tradicional de se tratar religião.

Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Flávio Rangel, Revisão da tradução feita por Tania
Brandão e Moacir Chaves (1991) Disponível em: <http://www.leiabrasil.org.br/blog/wpcontent/uplo-
ads/2008/06/esperando_godot_2.doc>. Acesso em: Agosto de 2013.

BERRETTINI, Célia. A Linguagem de Beckett. São Paulo: Perspectiva, 1977.

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004, 2 ed.

HEIDEGGER, Martin. “Já só um Deus nos pode ainda salvar”. Tradução Doutora Irene Borges Duarte.
Covilhã: LusoSofia Press, 2009. Entrevista concedida por Martin Heidegger à revista alemã Der Spiegel em
23 de Setembro de 1966 e publicada no n. 23/19761. Texto originalmente publicado on-line no âmbito do
Projeto Heidegger em Português, e publicado na lusosofia.net. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/
textos/heideggger_ja_so_um_deus_nos_pode_ainda_salvar_der_spiegel.pdf>. Acesso em: Agosto de 2013.

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________. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005.

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2002.

NUNES, Benedito. Heidegger & Ser e tempo. Coleção PASSO-A-PASSO. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
2002.

SERREAU, Geneviève. História do Teatro Novo. França: Editora Gallimard, 1960.

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A poesia como potência de orientação e expressão


da vida helênica no período arcaico

Emerson Fernandes
Mestrando, Filosofia/PUC-Rio

O objetivo desta presente comunicação é apresentar como a poesia tor-


nou-se um dos principais pilares da fundamentação da cultura grega no
período arcaico. A partir das obras de Homero é possível encontrarmos
diversas características que corroboram para o uso da poesia como um
instrumento essencial para orientação e manutenção da vida política e
social do povo helênico na antiguidade.

Palavras-chave: Poética; Cultura; Homero.

Um dos pontos que gostaria de chamar atenção em nossa comunicação é a importância do


papel desempenhado pela poesia na Grécia durante o período arcaico. A primeira questão
que podemos destacar é o fato dessa cultura poética ser construída através da força da ora-
lidade. Deste modo, a memória era mantida através de rígidas fórmulas rítmicas no qual o
metro era constituído de sílabas longas e breves que tinha a função de conservar e sensibi-
lizar os ouvintes para a importância da organização da sociedade de modo compartilhado e
ativo. Durante esse período a escrita era apenas utilizada para a contabilidade da produção
do império micênico1. O poeta dentro desse contexto histórico tinha responsabilidade de
transmissão e conservação de todo o conteúdo que auxiliava na administração da realeza
(política), dos ritos (religião) e na instrução dos jovens (educação) através de valores mo-
rais que eram fundamentais quando reunidos em um único eixo para manter o equilíbrio
da estrutura sócio-política de seu povo.

No caso da Grécia, a melodia que regia essa música coletiva era oriunda da guerra. Desde
cedo os helenos foram tomados pelo reconhecimento através do espanto dessa experiên-
cia marcante que demarca a fronteira entre o mundo humano e divino. O efeito poético
começa ocorrer no exato instante que a primeira alma inspirada transforma toda a dor e

1.  Sobre a descoberta do linear b e a utilização da escrita no período arcaico vide o primeiro capítulo do se-
guinte livro: “As origens do pensamento grego” de Jean Pierre Vernant.

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revolta em beleza e superação. Essa experiência foi decisiva não apenas para a orienta-
ção do mundo humano, mas também para a possibilidade do surgimento da filosofia e
da ciência posteriormente.

A religião que surge da primeira resposta desse homem mediante ao reconhecimento de


uma força que ultrapassa o espaço humano não pode ser avaliada com os nossos olhos
modernos. Aliás, esse termo nem existia entre os gregos. Essa palavra é latina e vem do
termo religare e carrega o significado de restabelecer a ligação perdida entre essas duas
esferas. Nesse sentido, esse contato com uma instância não humana entre os gregos ocorre
de modo oposto. Ou seja, o primeiro espanto2, que segundo Platão e Aristóteles, é o fator
desencadeante para o nascimento da filosofia surge exatamente quando o homem se de-
para com a sua mortalidade através do reconhecimento das forças imortais3. Antes mesmo
do aparecimento de questões metafísicas, esse homem tentou dialogar com essas forças
para justificar a sua própria sobrevivência. Aliás, no livro da Metafísica4, Aristóteles afirma
que os primeiros homens começaram a filosofar por causa das dificuldades que surgiam
diante dos seus olhos. Tendo em vista essa constatação, esses primeiros gregos começaram
a expressar seus pensamentos através dos mitos5. Vale ressaltar que na língua grega há três
palavras relacionadas ao ato de falar: mitos, epos e logos. Esses são três termos de extrema
importância para o pensamento antigo que aponta para diferentes perspectivas que estão
reunidas entre si através da vontade humana de expressar tudo o que lhe impressiona, e
são essas ocorrências que começam a formar as bases para a cultura como um todo organi-
zado e homogêneo. Uma prova disso é que o próprio Aristóteles admite que os primeiros
homens que criaram de modo poético uma forma para transmitir as suas primeiras im-
pressões do mundo também podem ser considerados filósofos, pois ambos os homens, do
período primitivo até o clássico, compartilham o sentimento de dúvida que ocorre quando
algo espantoso surge diante dos seus olhos. Nesse sentido, podemos extrair de sua posição

2.  Aristóteles, Metafísica (Livro I – 982b 10 -25): “De fato, os homens começaram a filosofar agora, como na
origem, por causa da admiração (espanto), na medida em que,inicialmente, ficavam perplexos diante das dificul-
dades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores,
por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos
à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que
não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é cons-
tituído por coisas admiráveis. De modo que, se os homens filosofaram para liberta-se da ignorância, é evidente
que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e não por alguma utilidade prática. E o modo como
as coisas se desenvolveram o demonstra: quando já se possuía praticamente tudo o de que se necessitava para a
vida e também para o conforto e para o bem-estar, então começou a buscar essa forma de conheciment, é evi-
dente, portanto, que não a buscamos por nehuma vantagem que lhe seja estranha; e, mais ainda, é evidente que,
como chamamos livre o homem que é fim para si mesmo e não está submetidos a outro, assim só esta ciência,
dentre todas as outras, é chamada livre, pois só ela é fim para si mesma. Tradução Giovanne Reale.
3.  Em grego chama-se Athanatoi. Ou seja, os imortais. Esse é o primeiro sentido de Deus para os gregos.
4. Vide a nota 1.
5.  Na antiguidade um dos diversos sentidos que carrega esse termo é de ser uma história contada sobre alguma
experiência extraordinária em uma tradição oralista.

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uma aproximação entre o pensamento mito-poético e filosófico.

O homem antigo percebe que a sua vida é uma batalha diária que está inserida em uma guerra
primordial que ordena todas as coisas, como anuncia o grande filósofo da cidade de Éfeso,
Heráclito, por volta do século V a.C.: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é
senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres”6.

A guerra foi o espaço no qual o homem grego pôde obter a imortalidade através da glória7
(kléos) que desempenha um duplo papel perante os seus aliados e inimigos, em primeiro
lugar: ela estabelece o caminho para manter a sua própria reputação (kléos)8 e bem-estar
(eudaimonia). Em segundo: serve como instrumento e modelo para a educação (paidéia)
dos jovens que vão administrar esse legado fornecido pelos seus antepassados. Para que isso
ocorra de modo eficiente os versos cantados dos poetas e rapsodos precisam operar dentro de
uma base que reúna diversos registros coletivos que possam ser unificados em uma espécie
de banco mnemônico comum que lhe possa oferecer os dispositivos necessários para a cria-
ção e propagação dessas narrativas que serão reelaboradas e compartilhadas posteriormente
em obras como Ilíada e a Odisséia de Homero. Mas eis que surge a seguinte questão: de onde
surge a matéria prima que os poetas vão utilizar para esculpir as suas memoráveis narrativas
que visam esse propósito pedagógico? Nas obras desses antigos poetas que chegou até nós
podemos encontrar algumas evidências para uma das possíveis respostas.

Através dos primeiros cultos e ritos aos imortais, o homem que está em contato direto com
a terra através do plantio e da criação de animais começa a desenvolver uma relação ritua-
lística com a natureza que segundo Gernet (GERNET, 1968) é o início da atividade religiosa
entre os gregos. Esse tipo de prática tem um papel fundamental na evolução humana. É
importante ressaltar que essa atividade de contato com a Natureza (Phýsis) não é uma ca-
racterística singular da cultura grega, mas de todos os povos antigos. Aliás, o sincretismo
que ocorre na maioria das religiões de diferentes povos que criam seus mitos e ritos para
se relacionarem com as suas respectivas divindades aponta para uma característica comum
que há entre todas as culturas. Os cultos agrários são os vestígios mais antigos de práticas
religiosas que estavam relacionadas com a vida social primitiva dos gregos. Como dissemos
anteriormente, esse primeiro espanto do homem em relação à Natureza (Phýsis) parece ter
ocorrido de modo gradual e não sistemático dentro da historiografia grega. Até o período
dos famosos deuses olímpicos e dos heróis houve uma longa e sinuosa trajetória que se
inicia nas primeiras experiências agrárias, pois é da terra que o homem tira o seu sustento.
Após um longo período os deuses começam a desempenhar no inconsciente coletivo grego
o papel de garantia de uma ordem universal que atua como causa eficiente dos aconteci-

6.  Heráclito fragmento 53.


7.  Esse é outro termo que carrega o traço da oralidade. A glória dos antigos homens era cantada e repassada
entre os poetas e bardos na antiguidade através da fala. Para mais informações sobre esse termo vide o Dicionário
greek-english de Lidell & Scott.
8. Vide a nota anterior.

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mentos em nosso mundo. Esse tipo de manifestação coletiva, através de festas anuais, tem
o poder de estabelecer um ponto de convergência entre todos os habitantes que partilham
o mesmo espaço social e afetivo. O culto praticado de modo coletivo fornece um laço du-
radouro que garante a segurança da unidade da vida de qualquer povo no espaço, e a sua
continuidade no âmbito do tempo.

As misturas de diversos dialetos também é outro traço que permite rastrear a origem de qual-
quer povo. Esse intercâmbio cultural que sempre existiu entre as culturas antigas também é
outro fator que precisa ser levado em consideração por qualquer pesquisador que quiser es-
tudar essa questão. A formação cultural, no caso grego, se dá exatamente no diálogo intenso
com outras culturas antigas através das inúmeras guerras e também do comércio. Um exem-
plo claro dessa influência estrangeira pode ser obtida através do relato do historiador Heró-
doto. Em seu livro9 que narra as façanhas do provo grego afirma que todos os deuses gregos
foram trazidos do Egito. De certa forma é compreensível o relato do ilustre historiador, pois a
estrutura da realeza micênica é muito parecida com o modo de como os egípcios se organiza-
vam politicamente no período imperial. O material literário mais antigo desse povo também
carrega a mesma pretensão dos poemas homéricos. Ou seja, tinha a finalidade de manter os
ritos necessários para a manutenção do poder da realeza e da sua transmissão para a poste-
ridade10. Como apresentamos anteriormente, a poesia grega desempenhava essencialmente
essa mesma função. Essa interação entre o mundo divino e humano serviu como base para a
fundamentação política desde o do tempo que a Grécia possuía uma estrutura monárquica
no qual havia um rei divino que utilizava os poetas não apenas como pedagogos, mas também
como uma poderosa máquina publicitária para manter a soberania desse tipo de estrutura po-
lítica no período arcaico11. Nesse sentido, o relato de Heródoto está totalmente coerente com
as provas que podemos encontrar em obras como a Constituição dos atenienses de Aristóteles
que apresenta os diversos tipos de organização política dos helenos. Enfim, a poesia além de
auxiliar o rei na manutenção de sua soberania e educação, ela também desempenhava a fun-
ção de fundamentar a base para o surgimento do Direito na antiguidade12. Todas as práticas
religiosas dentro desse contexto seguiam um código extremamente rígido, levando à pena de
morte qualquer pessoa que respondesse ao crime de impiedade13. Logo, o poeta também era

9.  Heródoto, História (II – LI).


10. Vide o seguinte livro: O livro das origens: a inscrição teológica da pedra de Chabaka / nota prévia, introdução,
texto e tradução de Rogério Sousa. – 1ª ed. – Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
11.  Para essa importante questão vide o seguinte livro: Os mestres da verdade na Grécia Arcaica, de Marcell
Detienne.
12.  Para essa questão recomendamos o importante estudo de Louis Gernet que pode ser encontrado nas se-
guintes obras: Recherches sur le développement de la pensée juridique en Grèce ancienne (1917), e Droit et société
dans la Grèce ancienne (1955).
13.  É importante ressaltar que esse tipo de conduta era praticada até o período clássico na Grécia. Basta lem-
brarmos que um dos mais famosos incidentes que levou a condenação à morte do filósofo Sócrates tinha no
processo o crime de impiedade. Esse tipo de procedimento que encontramos no âmbito contexto do período
arcaico tinha o objetivo de manter firme a soberania da realeza. O pretexto da manutenção religiosa se mantém

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responsável por transmitir esses conjuntos de lei (nomos) não escritas para todos os súditos.

Para muitos especialista na área do direito antigo, como o francês Louis Gernet, a função
jurídica, como uma espécie de dispositivo autônomo, pode ser reconhecida em uma grande
número de sociedades antigas, mas não como uma função social consciente, e sim como um
instrumento psicológico dentro de um sistema de representações de hábitos, pensamentos
e crenças que são organizados dentro do conceito específico do direito como passou a ser
concebido apenas posteriormente. Há duas palavras chaves que começam a ganhar sentido
dentro desse contexto que são dever e obrigação. Esses termos desempenham uma relação
curiosa de interdependência, pois o primeiro surge no estabelecimento e responsabilidade
das normas de respeito aos ritos compartilhados em um determinado grupo, enquanto que
a segunda visa a se impor como uma espécie de dispositivo de manutenção do contrato, e ele
tem por objetivo garantir o total cumprimento de ambas as partes em qualquer tipo de acordo
efetuado. Ou seja, nesse caso específico, e de modo transversal, está no topo o rei e do outro
lado o povo. O poeta se destaca como um organismo que está entre o mundo divino e huma-
no que organiza a vida religiosa, social e política dos gregos. Através do poder da memória ele
permite que essa estrutura seja fortalecida no cumprimento das regras que são ditadas como
os mais altos valores morais que visam a manutenção da segurança de toda a sociedade.

A eficiência dessa atividade ocorre no poder de coesão que esses grandes artistas do pensa-
mento podem promover em seus respectivos públicos. Ao mesmo tempo que eles carregam
a capacidade de produção e controle de subjetividade, eles são a mais importante máquina de
comunicação da antiguidade. No caso específico de Homero podemos apontar algumas ca-
racterísticas para a realização de tal objetivo em sua obra. O banco que guarda todas os mitos
disponíveis é um campo fértil para o desenvolvimento dessa função de caráter mnemônico.
São essas histórias que permitem estabelecer uma linha única para promover o reconhecimen-
to efetivo que une todos os membros de uma determinada comunidade. A partir da realiza-
ção dessa primeira etapa, o conteúdo elaborado por esses bardos desempenham a função de
educar através da comoção promovida nas almas a partir do fenômeno da guerra. Esse efeito
de unificação e de comoção coletiva foram características sine qua non para o surgimento do
teatro entre os gregos14. O aspecto religioso, como explicitamos anteriormente, é outro ins-
trumento utilizado para desempenhar esse efeito agregador e coercitivo tão importante para
a manutenção política. Na Ilíada, por exemplo, a relação íntima das duas realezas – micênica
e troiana – na trama com as divindades é uma prova clara desse fato que expomos. Outro
ponto curioso é o fato de encontramos nos textos homéricos os traços demasiados humanos
nos deuses olímpicos, e esses são os trejeitos que o poeta utiliza para pintar os seus heróis que
atuam como arquétipos para apresentar as mais diversas atitudes no âmbito humano.

Essa aproximação entre essas duas instâncias não é de modo algum fortuita para a imaginação

até mesmo no período democrático.


14.  Para essa questão recomendamos a leitura do diálogo Íon de Platão, e também da Poética de Aristóteles.

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criadora do poeta. Ela atua, entre outras coisas15, para justificar certas atitudes praticadas que
estão sob o controle dessas forças imortais – como a paixão, amor, ódio e etc – que se impõe
sobre o nosso mundo. Esses pontos são tão marcantes que posteriormente pensadores como
Platão16 irão tecer duras críticas ao modo que esses deuses são retratados na obra homérica.
Durante o período helenístico muitos intelectuais tiveram interesse sobre essa questão. Um
dos mais famosos é o crítico e logógrafo conhecido na antiguidade como Pseudo-Longino17
que escreveu uma importante obra chamada Sobre o sublime18, onde declara que Homero
engrandecia as coisas divinas através da comparação19 e troca20 entre os homens da guerra de
Tróia e os deuses. As emoções humanas que encontramos nas divindades, segundo o crítico
grego, precisam ser interpretadas de modo alegórico21. Logo, essas forças imortais também
podem ser compreendidas como disposições oriundas da própria natureza (Phýsis) que tem
o poder de guiar as nossas ações entre a vida e a morte. Por esse lado, o poeta também fornece
a matéria prima para a criação do teatro trágico, pois ele mostra a fragilidade do nosso mundo
humano mediante essas forças imortais.

A nossa vontade parece estar subordinada para o poeta através de duas variáveis: o querer e
o poder22 a segunda ainda pode ser desmembrada em duas partes que está relacionada com a
nossa capacidade (phýsis) genética e a disposição que podemos desenvolver como um mortal
que pode alcançar a honra ou o esquecimento. Há uma importante passagem na Ilíada23 em
que Diomedes diz que Aquiles só voltará a lutar “quando o coração no peito mandar e uma
divindade o incitar”. Ou seja, o poeta de modo sutil apresenta os dois motivos que levam o
herói à ação dentro da guerra. A primeira está condicionada ao coração que para os antigos
era o centro de orientação das nossas vontades, pois é ele que dita o ritmo da vida de cada um
de nós. O segundo ponto parece estar aludindo a uma interferência externa que tem o poder
de medir a nossa capacidade de atuação no mundo. Essas curiosas passagens, que podemos
encontrar em diversos capítulos de suas obras, nos levam a pensar que o poeta atua de modo
reflexivo mesmo quando narra todas as peripécias na terceira pessoa. Curiosamente, na an-
tiguidade havia um famoso grupo de intérpretes de suas obras conhecidos como homeridas24

15.  Outro exemplo que podemos trazer é o efeito reflexivo sobre as ações no mundo humano que foi desen-
volvida pelo teatro e antes mesmo do surgimento da reflexão filósofica.
16.  Platão, República (386 b).
17.  Para muitos historiadores esse pensador pertencia ao círculo do filósofo neoplatônico Plotino.
18.  Pseudo-Longinus, Sobre o sublime (9.7).
19.  Símile.
20.  Metáfora.
21.  Posteriormente voltaremos a comentar sobre esse ponto.
22.  Boulésis e dýnamis.
23.  Homero, Ilíada (livro IX – 702-3).
24. Vide o diálogo Íon (530 d) de Platão. Nesse livro o filósofo utiliza essa expressão para denominar uma espécie
de sociedade que teria se iniciado na cidade Chios que chamava homeridas (filhos de Homero).

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que tinha o objetivo de defendê-lo das diversas críticas que começaram a surgir sobre a sua
teologia no final do século VI a.C.

Para muitos defensores, como o erudito grego Teágenes de Regio, Homero era poeta e tam-
bém filósofo, pois na sua obra existe um trabalho alegórico extremamente sofisticado que
apresenta uma exegese física dos deuses como forças da natureza, e moral através de con-
ceitos abstratos de vícios e virtudes25 que podem ser encontradas nas descrições de suas di-
versas personagens. Segundo um escólio de um seguidor de Plotino chamado Porfírio sobre
a Ilíada26 havia uma resenha de Teágenes que defendia o poeta dos ataques de muitos filó-
sofos, e tentava interpretar a obra homérica a partir dessa perspectiva alegórica. Há ainda
uma terceira forma exegética que esses defensores apresentavam que era considerada do tipo
histórica que consistia em buscar uma interpretação racional de todos os mitos que na sua
origem subjazia um fato real27. É importante ressaltar que esse tipo de interpretação era algo
muito cultuado na antiguidade pós clássica. Havia um discípulo de Aristóteles conhecido
pelo nome de Paléfato que tinha uma obra consagrada28 que se perdeu durante o período he-
lenístico que abordava esse tema junto com outros intelectuais como Diododro de Sicília, que
foi o grande continuador da interpretação realista e histórica, que foi iniciada pelo siciliano
Evémero. Esse tipo de literatura foi bastante difundida sobretudo no período helenístico por
historiadores como Políbio, que tinha apontado algumas imprecisões na realidade histórica
e geográfica nas obras homéricas. O que podemos tirar desses relatos, independentemente
daqueles que se colocam à favor ou contra, é a relevância da sua obra poética para toda cultura
grega. Essa influência é tão intensa que se estende até mesmo dentro da literatura latina. Essa
importância é amplamente reconhecida entre todos os intelectuais antigos e contemporâ-
neos. A poesia exerceu durante uma boa parte da historiografia grega a posição de destaque
máximo. Com as diversas mudanças culturais que ocorreram durante as transformações po-
líticas na Grécia o poeta vai perdendo seu espaço privilegiado como pedagogo do povo para
os filósofos e sofistas. Esse deslocamento ocorre com mais força durante o período da expe-
riência democrática que coincide com o choque promovido entre a oralidade e a escrita. No
período clássico ainda é possível encontrarmos pensadores como Sócrates que ainda manti-
nha essa força da tradição arcaica que trazia a beleza e a eloquência da palavra falada. Mesmo
com o advento da filosofia e da sofistica, ambas filhas bastardas da poesia, a poesia continuou
atuando com uma certa relevância nos espetáculos teatrais que desempenhavam a mesma
função educativa e reguladora da sociedade no período arcaico.

A partir dessas considerações podemos perceber que o poeta tem a capacidade de criar29

25.  Para essa questão recomendamos a leitura do seguinte livro: “Alegorias de Homero” de Pseudo-Heráclito,
editora Gredos. Pp 19.
26.  Porfírio, sobre a Ilíada XX 67.
27.  Em “Alegorias de Homero” de Pseudo-Heráclito, editora Gredos pp 21.
28.  Perí apíston.
29.  Esse é o sentido original da palavra poiesis no grego. Para mais informações sobre esse termo vide o dicio-

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através da palavras (mito, epos logos) todos os deuses que são responsáveis pela organização
(cosmos e caos) do nosso mundo. A sua função divina herdada pelas mão das musas30 per-
mite-lhe essa posição privilegiada entre os dois mundos como um elo vital para a organiza-
ção religiosa, social, jurídica, política e pedagógica da cultura helênica como um todo. É ele
também o responsável por unificar todos os dialetos em uma única língua. Graças aos antigos
poetas como Homero podemos conhecer a mentalidade de uma das mais importantes civi-
lizações da nossa história conhecida por imortalizar o nome do grande herói Aquiles como
símbolo da coragem e da perseverança que pode ser conquistada através das nossas ações em
nosso mundo que foi esculpida pela alma do poeta que era amigo do rei:

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção

nário greek-english de Lidell & Scott.


30.  Entidades divinas responsáveis pela criação e a memória.

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Tem telefone automático


Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada31.

Referências
BARKER, E. Greek political theory: Plato and his predecessor. London, 1918.

CORNFORD. Principium Sapientiae, As origens do pensamento filosófico grego, Fundação Calouste Gul-
bekian.

DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica, Zahar.

FRAZIER, Apollodorus J.G. The Library, 2 v., London, Harvard University Press, 1921.

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A Cidade Antiga. São Paulo, Martins Fontes.

HAMMOND, N. G. L. Studies in greek history. Oxford,1973.

HAVELOCK, Eric A. A revolução da escrita na Grécia, trad. O. J. Serra, São Paulo: EdUNESP, e Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1996.

HOMER, Iliad (Greek). Gregory R. Craine. Editor-in-Chief. Tufts University. Perseus Digital Library, 1995.

LAÊRTIOS, D. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, Brasília: editora Unb.

KIRK, G.S. RAVEN, J.S. The Presocratic philosophers. Cambridge University Press, 1977.

PRÉ-SOCRÁTICOS. Edição da Abril, Os Pensadores.

THE GREEK ANTHOLOGY. With an English Translation, by W. R. Paton. In five volumes; London:
William Heinemann; New York: G. P. Putnam's Sons, MCMXVI. The Loeb Classical Library, 1916.

31.  Poema extraído do livro “Bandeira a Vida Inteira”, Editora Alumbramento – Rio de Janeiro, 1986, pág. 90.

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THOMAS, Rosalind. Letramento e oralidade na Grécia antiga. S.Paulo: Odysseus, 2005.

TORRANO, J. (estudo e tradução). Hesíodo. Teogonia – A origem dos deuses. 5ª ed. São Paulo: Iluminu-
ras, 2003.

VERNANT, J-P. As origens do pensamento grego. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A., 1989.

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A arte poética de Horácio:


uma crítica romana sobre a produção grega

Iasmim Santos Ferreira


Graduanda/UFS Itabaiana

A arte poética de Horácio é uma epístola que se dirige à família dos Pi-
sões, respondendo algumas questões pertinentes a arte de escrever. Em
vistas disso, tece uma crítica sobre a produção grega, como modelo a ser
seguido pelos romanos. Além disso, observamos as semelhanças entre a
sua Poética e a de Aristóteles. Horácio se mostra muito preocupado com
a produção literária em Roma e desperta os escritores para olharem fir-
memente o teatro grego.

Palavras-chave: A arte poética; Horácio; Crítica romana.

Considerações iniciais
O presente artigo é um estudo que parte do Projeto de Iniciação Científica: “A crítica so-
bre a comédia grega entre os romanos por Horácio, Cícero e Dioniso de Halicarnasso”, sob
orientação da Profa. Dra. Luciene Lages. Neste trabalho fazemos um recorte sobre o crítico
Horácio e sua A arte poética, com o objetivo de mostrar a crítica romana acerca da produção
grega, com isso, também fazemos alguns apontamentos sobre a Poética de Aristóteles e os
entremeios de ambas.

Cabe apresentar alguns aspectos biográficos de Horácio, a fim de situar características do


autor e posicionamentos na obra em questão. Conforme apresenta Dante Tringali (1993), nos
comentários acerca de Horácio e de sua Poética; é sabido que o crítico era filho de um escravo
liberto, que comprou sua própria liberdade, graças às suas economias enquanto cobrador de
impostos. Sabe-se que Horácio nunca se envergonhou de suas origens, pelo contrário, sem-
pre exaltou a figura de seu pai, não obstante, nunca fez menção à sua mãe.

Passou sua infância em um pequeno sítio, às margens do rio Áufido, posteriormente foi estu-
dar em Roma, onde se torna um pedagogo. Posto isso, foi a Atenas completar sua formação.
Horácio se torna um homem provinciano, ao passo que também é um homem do interior,
viveu entre essas duas instâncias.

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Após o assassinato de César em 44 a.C. Horácio recebeu o cargo de tribuno militar, coman-
dando uma região. Em 42 a.C. abandonou o escudo e fugiu, por causa de uma batalha na cida-
de de Filipos. Regressou a Roma e teve seus bens confiscados pelos vitoriosos da batalha, com
isso, o crítico passou a viver de um modesto emprego. Nesse ensejo de dificuldade financeira,
Horácio começou a divulgar seus versos: epodos e sátiras, logo, tornou-se conhecido. Virgílio
e Vário, seus amigos, o apresentaram a Mecenas, da equipe de Augusto, que tinha a finalidade
de reunir os intelectuais. O primeiro encontro entre Horácio e o Mecenas foi tímido, porém
nove meses depois, eles começaram a estabelecer uma amizade profunda.

Horácio tornou-se o poeta oficial, em contrapartida o Mecenas lhe ofereceu a vila da Sabina.
Morreu oito anos antes de Cristo, um mês depois da morte de Mecenas. Sabe-se que Horácio
não se casou segundo o Direito Romano, porém, se uniu a várias mulheres marginais, liberti-
nas, às quais exaltou e imortalizou. É consagrado como o poeta do amor e da paz, opondo-se
firmemente ao espírito guerreiro do romano. Em filosofia, mostra-se pragmático e eclético,
nem epicurista e nem estóico, mas faz da morte o seu objeto de reflexão; apresentando-se
como moralista. Em religião, mostra-se místico e espiritualista, compreende a presença divi-
na na e pela natureza.

Quanto à sua produção tem-se um lirismo individual e subjetivo, cantava os episódios co-
muns da vida: o amor e o festim. Não envereda pela epopeia e pelo teatro, nega-se a celebrar
Augusto e Mecenas por meio desses gêneros, mas os imortaliza com poemas, cartas e sátiras.
Escreveu: quatro livros de Odes, um livro de Epodos, um hino oficial, dois livros de Sátiras,
dois livros de epístolas. A arte poética está incluída no segundo livro de epístolas.

Quanto à obra, A arte poética, faz o estabelecimento de diretrizes acerca de como deve ser
a arte, quais os modelos a serem seguidos e o que deve ser evitado. Trata-se de uma epístola
que se dirige à família dos Pisões, com o objetivo de responder às indagações acerca dos
problemas da arte de escrever. Vale mencionar que o termo poesia corresponde à literatu-
ra. Nosso interesse por estudar essa epístola, é o fato de apresentar “um conjunto sistemá-
tico de conhecimentos teóricos e práticos sobre a poesia” (TRINGALI, 1993, p. 49), ou seja,
um tratado de crítica literária.

Diretrizes horacianas em sua Poética


A carta se inicia apresentando a problemática do equilíbrio na arte, não permitindo mesclar
de coisas distintas sem harmoniza-las, Horácio apresenta uma situação destoante e a conse-
quência jocosa, que essa trará, alertando aos Pisões. Conforme se vê abaixo:

Se um pintor quisesse ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo e aplicar penas
variegadas sobre os elementos tomados de diversas partes, de tal modo que uma mulher
formosa na parte superior terminasse em peixe horrendamente negro, admitidos a contem-

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plar isso, conteríeis o riso, ó amigos? Crede-me, Pisões, que muito semelhante a esse quadro
seria o livro cujas ideias vãs fossem concebidas como sonhos de um doente de tal modo que
nem pé nem cabeça componham uma única figura (HORÁCIO, Poética, I, 1).

Segundo excerto acima, podemos perceber desde o início do tratado a posição crítica de Ho-
rácio, mostrando a necessidade da arte ser harmônica, equilibrada. Embora, Horácio não
utilize o termo verossimilhança, ele está tratando a arte como verossímil, possível dentro das
possiblidades de criação. Sua crítica tem endereçamento especial, aos romanos, e nesse ense-
jo os gregos são tomados como o molde artístico a ser seguido. “Vós, volvei os modelos gregos
com mão noturna, volvei com mão diurna” (HORÁCIO, Poética; I, 269).

Horácio restringe os modelos romanos, pois para o crítico os poetas de Roma não tinham
ciência do próprio ofício. Ainda, tece críticas aos escritores gregos alexandrinos. Coloca
a epopeia como a fonte mais importante para a imitação e o supremo modelo da arte se
encontra na Grécia antiga: Homero. Ademais, Horácio conclama que se observe os novos
bons escritores romanos e que lhes concedam os mesmos direitos que aos bons antigos.
Segundo mostra excerto abaixo.

Por que razão, porém, o romano concederá a Cecílio e Plauto; o que nega a Virgílio e Vário?
Por que sou visto com maus olhos, se posso fazer algumas aquisições, quando a língua de
Catão e Ênio enriqueceu o idioma pátrio e divulgou novos nomes das coisas? Foi lícito e
sempre será lícito pôr em circulação um vocábulo marcado com o selo do presente. Como
as florestas mudam de folhas no declinar dos anos, caem as folhas mais velhas, assim perece
a velha geração das palavras e as que nasceram, há pouco, à maneira dos jovens, florescem e
têm vigor (HORÁCIO, Poética, I, 54).

O crítico se queixa pelo fato de só aos antigos, Cecílio e Plauto, comediógrafos latinos, con-
cederem o direito de criar palavras. Já a Virgílio e a Vário, amigos de Horácio e escritores no-
vos, não concedem o mesmo direito que aos antigos. Para reforçar o seu argumento, Horácio
recorre às figuras de Catão e de Ênio, também pertencentes às velhas gerações privilegiadas,
os quais enriqueceram o idioma pátrio com a criação de palavras. O crítico romano faz uma
comparação com as florestas que mudam de folhas com o passar do tempo, semelhantemente
na querela de escritores surgem novos, que substituem os antigos, sem exclui-los do corpo de
literatos de uma nação, mas substituem-os como as folhas novas às velhas.

No que tange ao uso das palavras, Horácio aponta para o uso e a necessidade de incorporar
algumas e excluir outras do léxico, sendo a utilização a premissa para a permanência e para
a exclusão. Como diz: “muitas palavras, que já morreram, renascerão e morrerão muitas que
agora estão em voga, se o uso quiser, o uso a quem pertence o arbítrio e o direito e a regra do
falar.” (HORÁCIO, Poética, I, 70).

A obra discute a arte sob alguns paradoxos, descritos exatamente assim: engenho e arte; útil
e agradável; expressão e conteúdo. Isso para mostrar que não basta a habilidade para o fazer
poético, é preciso esmero no fazê-lo para deixá-lo ao nível da arte, não basta ser útil. Horácio
não conclama a junção de utilidade e busca pela perfeição da arte em vão, visto que os roma-

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nos eram dados à praticidade, ao passo que os gregos à arte pela arte, pela glória da própria
arte. Como Horácio está falando aos romanos sobre como produzir arte, ele toma o modelo
grego e une as principais características de ambos.

Ele alerta para que se perceba que não basta a arte estar no nível estético, pois na sua concep-
ção de arte, é de suma importância que tenha conteúdo, com isso o primeiro revela o segundo;
não sendo possível desvincular estética de conteúdo e vice-versa. Horácio não fala apenas da
arte literária, mas estabelece comparações entre as artes: poesia, pintura, escultura e música.

A poesia é como a pintura, haverá a que mais ti cativa, se estiveres mais perto e outra, se
ficares mais longe; esta ama a obscuridade, esta, que não teme o olhar arguto do crítico,
deseja ser contemplada à luz; esta agradou uma só vez, esta, revisitada dez vezes, agradará
(HORÁCIO, Poética; I, 361).

O conceito de belo na Poética de Horácio está arraigado ao equilíbrio entre as partes, a retira-
da dos excessos, da inverossimilhança, o mantimento da ordem. No nível lexical, a linguagem
funciona como um objeto de escolha, de combinação, de seleção dos léxicos, de adequação
das personagens ao que lhes concerne. Sendo o belo o que convém, o adequado; para Horácio
a arte tende a padrões mais estruturais. Conforme aponta o fragmento:

Não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces e transportem o espírito do
ouvinte para onde quiserem. Assim como o rosto humano ri com os que riem, assim compar-
tilha com os que choram. Se queres que eu chore, tu mesmo deves sofrer por primeiro, então,
ó Télefo ou Peleu, os teus infortúnios me tocarão. Se recitares mal o teu papel ou dormirei ou
rir-me-ei. Palavras tristes convém a rosto pesaroso; ao rosto irado convém palavras carrega-
das de ameaça; ao rosto brincalhão convém palavras joviais; palavras sérias de dizer convêm
ao rosto severo. A natureza, com efeito, nos modela primeiro interiormente segundo todas
as situações da fortuna, alegra-nos ou impele-nos à cólera ou nos prosterna por terra sob o
peso da aflição e nos angustia, depois exprime esses movimentos de alma por meio da língua.
Se as palavras estiverem em discordância com a condição de quem as diz, os cavaleiros ro-
manos e os pedestres soltarão gargalhadas. Fará muita diferença se fala um deus ou um herói;
um velho acabado ou alguém ardente ainda pela juventude em flor; uma matrona poderosa ou
uma nutriz solícita; um mercador viajante ou um lavrador de um pequeno sítio virente; alguém
natural da Cólquida ou da Assíria; alguém criado em Tebas ou Argos. Como escritor, ou segue
a tradição ou inventa o que é coerente consigo (HORÁCIO, Poética, I, 99).

Sendo assim, a arte imita a vida nos aspectos já conhecidos, mas também a imita quando a
partir dela desenvolve um assunto ainda desconhecido ou não tentado. A arte é sempre a imi-
tação do verossímil, do possível, do coerente, do conveniente. Podemos indagar: como fica
o impossível para Horácio? Para ele, o impossível é apenas aparente, sendo sempre possível
dentro do plano alegórico.

Os pintores e poetas sempre tiveram igual poder de tudo ousar. Sabemos disso e essa indul-
gência reclamamos e damos uns aos outros, mas não a ponto que os ferozes se reúnam com
os mansos, nem que formem pares: as serpentes com as aves, os tigres com os cordeiros
(HORÁCIO, Poética, I, 9).

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O conceito de originalidade não é tido em supremacia, é visto sob outra perspectiva. Desen-
volver um assunto repetido, mas com perfeição é melhor do que trazer à tona algo inédito. O
conceito de gênio também difere do visto corriqueiramente, não se constitui em um ser supe-
rior por algo inventado, e sim desenvolvido à luz de regras naturais que preexistem ao gênio.

Destaca-se o labor artístico de Homero ao descobrir o metro que é conveniente à epopeia, e tal-
vez tenha descoberto a própria epopeia. “Homero mostrou em que metro se podem escrever os
feitos dos reis e dos chefes e as tristes guerras. Em versos desiguais, unidos, primeiro se incluiu
a lamentação, depois também a expressão do voto atendido” (HORÁCIO, Poética; I, 73).

Um fato curioso é que boa parte da construção literária provém da oralidade, da transmis-
são dos Édipos, das Rãs, e de tantas outras tragédias e comédias. O próprio Homero fez
recortes da cultura local e apresentou nas grandiosas: Odisseia e Ilíada. O conceito de ori-
ginalidade e a concepção de memória grupal são observadas pelo historiador Moses Finley
(1989), como apontado abaixo.

A memória de grupo, afinal nada mais do que a transmissão para muitas pessoas das lem-
branças de um homem, ou de alguns homens, repetida muitas e muitas vezes; e o ato da
transmissão da comunicação e, portanto, da preservação da lembrança, não é espontâneo e
inconsciente, e sim deliberado, com a intenção de servir a um fim conhecido pelo homem
que o executa (FINLEY, 1989, p. 21).

Atrelado ao que Finley considera como memória de grupo, podemos entender que na visão
de Horácio o que importa não é necessariamente a memória retratada na obra literária, mas
sim, o modo como está sendo posta na produção. Não se discute o fato de ser o conteúdo
inovador ou retomar algo da tradição e da memória grupal, mas aprecia-se a obra pelo modo
como é narrada, pelas características concernentes ao gênero literário, pelo equilíbrio entre
as partes, entre outros.

A abordagem classicista de Horácio se funda na razão, e não nos mestres, estes são apenas res-
peitados por causa da arte produzida: a arte racional. Desse modo, percebemos que o conceito
de belo está baseado no real, mas não é naturalista. Imita-se a realidade à proporção de que esta
seja bela, evitando-se o feio da natureza. Na querela dos antigos e modernos Horácio não defi-
ne o clássico pela antiguidade, mas pela perfeição. Em geral, o crítico não aprecia os escritores
romanos mais velhos, pois os concebe como ignorantes com relação aos seus ofícios.

Quanto à poética da arte e à poética do engenho; a primeira baseia-se na constatação de que


o poeta nasce como tal por um chamado divino ou vocação. Esta concepção também dava
vazão para a ideia de que todo poeta é louco e que todo louco é poeta, sendo uma confusão
do ensino de Demócrito. A segunda é fundamentada no pressuposto de que a arte requer es-
tudo, esmero no fazer artístico e incansável prática para que se chegue à perfeição. Portanto,
a primeira não pode existir sem a segunda.

Por que Horácio estabelece essas duas concepções? Como já mencionado anteriormente,
Horácio estabelece essas duas concepções para mostrar aos romanos, que não eram dados a

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poética do engenho como os gregos, que através da poética da arte era possível desenvolver
excelentes obras como fizeram os gregos. Desse modo, a poética da arte a faz um sacerdócio,
um profundo ofício, estabelecido na sucessiva teoria e prática.

Vós que escreveis, tornai a matéria igual às vossas forças e pesai longamente o que vossos
ombros se recusam a carregar e o que podem fazê-lo. A quem escolher a matéria segundo
suas forças, nem a facúndia, nem a lúcida ordem o abandonarão. A virtude e a beleza da or-
dem consistirão nisso, ou me engano, que diga agora o que agora deva ser dito e que deixe
muitas coisas para mais tarde e de momento as omita, que o autor do poema prometido se
compraza disto e despreze aquilo. Sutil e cauteloso no arranjo das palavras, também dirás
egregiamente se uma engenhosa associação transforma em nova uma palavra batida. Se por-
ventura for necessário designar com signos recentes coisas desconhecidas e nos acontecer
de forjar palavras não ouvidas pelos Cetegos em tanga, pouco formadas, terão crédito se,
derivadas de fonte grega, jorrarem com parcimônia (HORÁCIO, Poética; I, 37).

Para Horácio “saber é o princípio e a fonte de bem escrever” (HORÁCIO, Poética; I, 309),
ou seja, deve-se conhecer as obras gregas, para escrever bem. Ele traça palavras de ordem e
princípios inegociáveis n’A arte poética, que são: perfeição, normativismo, racionalismo, cla-
reza, conteúdo e expressão. A perfeição é medida não só pelo belo estético, mas também pela
constante busca por essa perfeição; a mediocridade e o estacionamento em um nível médio
é altamente condenado pelo crítico. O normativismo, o conjunto de regras a serem segui-
das pelo poeta dão a arte classicista a premissa de sempre manter as regras. Ao tempo que o
modernismo não estabelece regras, ocasiona mesmo sem querer a regra de não se ter regra,
sendo tão criterioso quanto o classicismo em não conceber arte sem regra.

As faculdades produtoras de arte são: a razão, o sentimento e a fantasia. “A razão domina a


fantasia e o sentimento. A conveniência é uma qualidade racional. A razão governa a arte”
(TRINGALI, 1993, p. 63). Desse modo, as coisas inverossímeis só ocorrem quando justifica-
das. O crítico orienta que se tome cuidado ao se buscar a brevidade, pois pode tornar o texto
obscuro. O conteúdo deve preceder a expressão, pois ele sustenta a obra.

Horácio afirma que para se atingir a perfeição é preciso buscar a crítica. Ele também distin-
gue a crítica em dois tipos: antes da publicação e depois da publicação. Depois de concluída
a obra, é preciso que esta fique de molho por nove anos e que seja submetida a apreciação de
um crítico imparcial. Depois de publicada a sanção ocorre por meio dos receptores, sendo-a
objeto de riso ou de louvor. Horácio está aconselhando aos Pisões para que tomem cuidado
antes de publicar, com isso, evitando a zombaria.

As concepções de Horácio acabam retomando a disputa entre esteticismo e eticismo, deri-


vados de Platão. O primeiro consiste na função da arte em agradar. E o segundo tem como
a principal função da arte a de educar. Como o povo romano apresenta um aspecto utilita-
rista, diferente do grego, faz-se necessário alertar para o esforço em se produzir a arte sem
a preocupação utilitária dela. Horácio concebe-as como importantes funções da arte, tanto
agradar quanto ensinar.

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Vale mencionar que o crítico defende que a arte é partidária, comprometida, não sendo ja-
mais absolutamente autônoma. Embora a arte acabe sendo um divertimento, Horácio con-
dena a degradação da arte como tal, certamente seria uma crítica as comédias de costume,
por exemplo, em que a plebe indouta ganha espaço. A arte tem o papel civilizador, educati-
vo. Portanto, Mercúrio, Orfeu, Anfião educaram a humanidade, pelo ponto de vista do crí-
tico, não obstante outros como Cícero não atribuem esta função à arte, e sim à Retórica ou
à Filosofia (CICERO, Perfeita Oratória).

Horácio distingue o poeta do vate. O primeiro fica no nível profano da poesia, possui o talento,
estudou e aprendeu a praticar arte da poesia, logo educa e agrada. O segundo é um tipo espe-
cial de poeta que está em um nível sagrado da arte, sendo o ideal de poeta. Em Roma, os parti-
dários da poética de engenho atribuem esse tipo de poeta como o louco. É interessante que ao
passo que a Grécia Antiga valora a poesia, muitos romanos sentem certa vergonha desta.

Horácio conclama-os a olharem para o modelo grego e entenderem o ofício sagrado da poesia
que está sob a proteção de Minerva e cultivada pelas Musas e por Apolo, lembrando que nesse
contexto toda a literatura é tomada pela expressão poesia. “A Musa concedeu aos gregos, ávi-
dos de nenhuma outra coisa senão da glória, o engenho, aos gregos concedeu uma elocução
acabada. Os meninos romanos aprendem a dividir, em longos cálculos, asse em cem pares”
(HORÁCIO, Poética; I, 322).

Dentre tantas colocações feitas por Horácio, há uma proposta de reforma do teatro romano
se voltando para o modelo grego e uma proposta de harmonia entre o sério e o jocoso, sem
excessos de tragédia e comédia. O primeiro ponto de sua reforma é que a tragédia modere o
patético e o solene e a comédia modere a sua vulgaridade. Ele tem o drama satírico como a
verdadeira saída para um certo abrandamento do trágico e uma elevação do cômico. Não se
trata de uma paródia, mas sim que o sério e o cômico convivam sem se confundir.

Que Medeia não trucide os filhos diante do público, nem o nefando Atreu cozinhe, à vista
de todos, entranhas humanas, nem Procne se transforme em ave, nem Cadmo, em serpen-
te. Incrédulo, odeio tudo quanto assim se mostra. Que não seja menor nem mais longa do
que cinco atos a peça que quer ser solicitada e, depois de assistida, reprisada. E que um
deus não intervenha a menos que aconteça um nó digno de tal inventor. E que um quarto
autor não se esforce por falar. Que o coro desempenhe o papel de um ator e tenha função
individual e que nada cante entre os atos que não convenha ao argumento e lhe esteja
convenientemente ligado. Que ele favoreça e aconselhe os bons amigavelmente e modere
os irados e ame os que temem cometer faltas, que ele louve os alimentos de uma mesa
frugal, a justiça salutar, as leis e a paz que abre as portas da cidade, que ele guarde os se-
gredos e invoque e rogue aos deuses porque a fortuna retorne aos miseráveis e abandone
os soberbos (HORÁCIO, Poética; I, 185).

Acerca do cômico propriamente dito, Horácio afirma que “um assunto cômico não quer ser
desenvolvido em versos trágicos” (HORÁCIO, Poética; I, 89), ou seja, a comédia tem suas
características específicas, assim como a tragédia, portanto deve-se manter as peculiaridades

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do gênero, bem como os assuntos devem ser desenvolvidos conforme se queira suscitar lágri-
mas ou risos, como se vê no fragmento abaixo.

Na verdade, de tal modo convirá apresentar os sátiros chocarreiros, de tal modo zombetei-
ros, de tal modo mudar o que é sério em gracejo que, – qualquer que seja o deus, qualquer
que seja o herói mostrado, vistos, há pouco, em ouro e púrpura real, – não se mude para
as sombrias tabernas pela conversação chã ou, enquanto evita a terra, procure apanhar as
nuvens e o vazio. Não convém à tragédia tagarelar em versos levianos, como uma matrona
constrangida a dançar em dias de festa, um tanto pudibunda a tragédia frequentará os sátiros
lascivos (HORÁCIO, Poética; I, 225).

Horácio apresenta o modelo para o herói trágico, para o deus da estória, delimitando-os
a não mudarem o padrão do que tange às suas posições, a não se apresentarem de modo
cômico, pois não é conveniente a tais figuras. Todavia, Horácio alerta para o fato de haver
simultaneidades na permuta de particularidades entre o cômico e o trágico, sendo utiliza-
ções intencionalmente arquitetadas com o objetivo de angariar o público, não se trata de
uma mera junção desmedida.

Algumas vezes, contudo, de um lado, a comédia eleva a voz e Cremes irado ralha com
linguagem enfática e, de outro, o trágico Télefo e Peleu, muitas vezes, se lamentam em
linguagem prosaica, quando, um e outro, pobres e exilados rejeitam o estilo empolado e
as palavras de um pé e meio, se buscam tocar o coração do espectador pelo queixume
(HORÁCIO, Poética, I, 94).

E mais, ele alerta aos escritores para aprenderem as funções e as características de cada gêne-
ro, e a não serem falsos modestos, assim diz Horácio: “Por que razão sou saudado como poe-
ta, se não posso e não sei respeitar as funções prescritas e as características de cada obra? Por
que razão, com falsa modéstia, prefiro ignorar a aprender?” (Poética, I, 86). Ainda critica os
poetas romanos que se atreveram a inovar, desviando-se da tradição grega: “Os nossos poetas
nada deixaram sem experimentar e não muito pequeno louvor mereceram os que ousaram
abandonar as pegadas dos gregos” (HORÁCIO, Poética; I, 285). Assim também, tece ferre-
nhas críticas a criação demasiada, sem utilidade à vida.

Os poetas ou pretendem ser uteis ou deleitar ou, ao mesmo tempo, dizer coisas belas e
aproveitáveis à vida. O que quer que hás de ensinar, sê breve, para que os espíritos dóceis e
fieis depressa apreendam e retenham os teus preceitos. Tudo que é supérfluo se escapa da
memória muito cheia. As coisas inventadas em vista do prazer estejam próximas da verdade,
que a fábula não exija que se creia em tudo que ela queira (HORÁCIO, Poética; I, 334).

Horácio valoriza o empenho do escritor na sua produção, aliada a arte e a utilidade dessa pro-
dução. Para ele utilidade da obra e arte pela arte estão imbricadas: não basta ser belo, tem de
ser útil, não basta ser útil, tem de ser belo.

Têm-se perguntado se um poema se torna digno de louvor pela natureza ou pela arte. Eu
não vejo de que serve o trabalho sem uma veia fértil nem de que serve o engenho rude, as-

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sim uma coisa reclama o auxílio da outra e conspiram amigavelmente. Quem se esforça por
atingir, nas corridas, a meta cobiçada, desde menino, muito suportou, praticou, suou, passou
frio, absteve-se de Vênus e do vinho (HORÁCIO, Poética; I, 408).

Dentre as diretrizes horacianas, há uma alerta para que o escritor submeta a sua produção ao
crítico Mécio, um célebre contemporâneo a Horácio, e também submeta-a ao pai e ao próprio
Horácio, para evitar que se encerre uma produção imperfeita. Assim, “Se, contudo, algum dia,
escreveres algo, submete-o aos ouvidos do crítico Mécio e aos de teu pai e aos meus e que, encer-
rado em pergaminhos, seja guardado até ao nono ano; o que não tenhas editado, te será permiti-
do destruir. As palavras soltas não podem tornar” (HORÁCIO, Poética, I, 386). Além de afirmar
que o “homem honesto”, nas palavras de Horácio, saberá perceber as falhas da sua produção,
sem que outro as veja, ou antes mesmo que o outro note-as, como aponta a citação abaixo.

Um homem honesto e competente repreenderá os versos fracos, incriminará os versos


duros, com a caneta oblíqua marcará com um traço negro os versos inelegantes, cortará os
adornos pretensiosos, exigirá que se esclareça os versos pouco claros, denunciará os enun-
ciados equívocos, notará tudo que deve ser mudado (HORÁCIO, Poética; I, 445).

Entremeios das poéticas

Alguns dos conceitos apresentados n’A arte poética de Horácio estão na Poética de Aristó-
teles, e por isso, é relevante fazer alguns apontamentos desses entremeios. A concepção de
verossimilhança parte da distinção que Aristóteles faz da arte e da história. A primeira narra
o que poderia acontecer e escolhe como vai narrar, a segunda narra o que aconteceu e em
ordem cronológica. Ainda dentro do aspecto de verossimilhança, Aristóteles assevera que
a literatura ou a poesia expõe sobre o universal, o todo, aquilo que é inerente a qualquer ser
humano, sejam dores, sentimentos, necessidades.

Sendo a literatura uma fonte do verossímil, e não necessariamente do concreto, do ocorrido


de fato, e isto lhe confere a especificidade de ser mais filosófica e séria do que a história, con-
forme diz: “Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois re-
fere aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (ARISTÓTELES, Poética, IX, 50).
Horácio, assim como Aristóteles, concede ao artista apenas alternativas no nível da expressão
(metaplasmos, neologismos, arcaísmos, etc) e no nível do conteúdo a liberdade de inventar
está restrita ao cerco da verossimilhança, do possível, do crível, como apresentado anterior-
mente na seção das diretrizes horacianas.

A concepção de belo para Horácio parte da prerrogativa da unidade, da harmonia, da adequa-


ção, do equilíbrio, das características cabíveis ao gênero, do estabelecimento das partes. Essa
concepção de belo é semelhante a de Platão e a de Aristóteles como aponta Tringali (1993) em
seus comentários acerca da poética de Horácio, como se vê abaixo.

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A obra de arte agrada pela realização do belo matemático ou pitagórico. É o mesmo


conceito que vigora em Platão e Aristóteles. O belo se caracteriza pela unidade na multi-
plicidade, pela harmonia do todo, pela adequação entre as partes, pela justa medida, pela
“lúdica ordem” (TRINGALI, 1993, p. 54).

Assim a conveniência impõe limites à criação, permitindo algumas licenças de acordo com os
estilos. Tanto em Platão e Aristóteles quanto em Horácio, a arte é concebida como imitação
da natureza humana no seu agir. Para Platão essa imitação é sombra do mundo das ideias,
e por isso, a arte é imperfeita e deturpadora. Para Aristóteles se constitui em uma imitação
positiva, pois está relacionada a função pedagógica da arte. Conforme excerto.

Mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessaria-
mente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole (porque a variedade dos caracteres
só se encontra nestas diferenças [e, quanto a caráter, todos os homens se distinguem
pelo vício ou pela virtude]), necessariamente também sucederá que os poetas imitam ho-
mens melhores, piores ou iguais a nós, como o fazem os pintores: Polignoto representava
os homens superiores; Plauson, inferiores; Dionísio representava-os semelhantes a nós
(ARISTÓTELES, Poética, II, 7).

Aristóteles divide essa imitação de acordo com o gênero, os homens mais nobres são repre-
sentados na tragédia e na epopeia, nesta última, especialmente os heróis; ao passo que a co-
média imita os homens comuns da sociedade. Horácio não só toma a arte como verossímil e
imitativa da vida, mas define que modelo deve ser imitado, o grego. Conforme diz: “Vós, volvei
os modelos gregos com mão noturna, volvei com mão diurna” (HORÁCIO, Poética; I, 269).

A arte como imitação da vida é um conceito imbricado ao prazer que vem da imitação e a fun-
ção educativa que se exerce ao imitar. Segundo fragmento.

Ao que parece, duas causas, e ambas, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e
nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, apren-
de as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. Sinal disto é o que aconte-
ce na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas
coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de] cadáveres. Causa
é o que aprender não só muito apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais
homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é motivo por que se deleitam
perante as imagens: olhando-as aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e
dirão], por exemplo, “este é tal”. Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original,
nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor
ou qualquer outra causa da mesma espécie (ARISTÓTELES, Poética, IV, 13-14).

Quanto ao prazer descrito por Aristóteles como proveniente da imitação, Horácio chama de
deleite, de agrado. Para ele, agradar deve estar relacionado a ser útil também, como se vê: “Os
poetas ou pretendem ser uteis ou deleitar ou, ao mesmo tempo, dizer coisas belas e aprovei-
táveis à vida” (HORÁCIO, Poética; I, 334).

Vale lembrar que tanto Aristóteles quanto Horácio reconhecem o valor da obra de Homero
e toma-o como o grande nome dentre os escritores gregos. Quanto à finalidade da arte, con-

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siste em inspirar sentimentos que são próprios de cada gênero. A tragédia suscita a piedade e
o terror como aponta Aristóteles (ARISTÓTELES, Poética, IX, 56); assim Horácio conclama
que “um assunto cômico não quer ser desenvolvido em versos trágicos” (HORÁCIO, Poética;
I, 89), ou seja, cada gênero deve ser elaborado dentro de suas especificidades e deve suscitar
sentimentos que lhes são próprios.

Quanto ao sentimento inspirado pela arte no seu receptor, é a chamada catarse, presente em
Aristóteles. Que consiste em um termo médico utilizado para descrever o sentimento que a
arte produz no seu receptor: o de expurgar as paixões nocivas e o de aprender por meio da
arte, a pedagogia da arte. Essa concepção da arte atrelada à função educativa está presente em
Aristóteles que combate a ideia de Platão, que via-a como nociva, prejudicial.

Tringali (1993) observa a linearidade que se estabelece dentre essas sucessivas acerca da arte, e atri-
bui a Horácio a função de equilibrar o entendimento sobre a arte e as suas funções. Segundo observa.

Platão condenara a arte por causa de seu esteticismo, Aristóteles se inclinara pelo esteti-
cismo, mais em consonância com a alma grega que só busca a glória. Cabe a Horácio con-
ciliar harmonicamente as duas posições: a arte deve, simultaneamente, agradar e educar,
ressalvando-se que agradar é função essencial, educar, função acidental, embora importante
(TRINGALI, 1993, p. 66).

Em suma, podemos concluir que tanto em Horácio quanto em Aristóteles o conceito de belo,
a função pedagógica da arte, a valoração da obra de Homero, a verossimilhança, a narração
da história e a da arte, a catarse, os gregos como modelo a ser seguido; são concepções simul-
tâneas e que estabelecem diálogo. Horácio apresenta-se como mais poético, construindo um
tratado crítico que contém figuras e construções metafóricas; já dos manuscritos que se têm
acesso a Poética, podemos considerar que Aristóteles é mais sistemático na apresentação de
suas concepções do que o crítico Horácio.

Considerações finais
A epístola dirigida à família dos Pisões, que responde às questões pertinentes a arte de bem
escrever, se tornou um tratado de crítica literária endereçado ao povo romano, que é con-
clamado a olhar a produção grega e se guiar por ela, e a todo estudioso e/ou interessado em
conhecer a arte e as suas funções dentro da concepção classicista. Mais tarde, tal tratado é
denominado de A arte poética de Horácio.

A sua poética define o belo como útil, sendo a junção entre a concepção de arte perfeita a
utilidade; ensina, ao passo que proporciona deleite. Pode-se considerar uma concepção
greco-romana, pois os gregos são dados a arte pela arte e os romanos a arte pela perspectiva
prática e utilitária. Como Horácio escreve a romanos e sobre a produção de gregos, ele pro-
porciona esse equilíbrio.

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O crítico se debruça sobre alguns paradoxos: engenho e arte; útil e agradável; expressão
e conteúdo, para despertar os seus leitores a se estabelecerem nessa posição equilibrada.
Então, não basta o engenho sem arte; nem arte, sem o engenho. Não é suficiente ser útil,
sem deleitar, agradar; nem agradar, sem ser útil. Não serve ser expressiva e esteticamente
bem articulada, senão se tem conteúdo; nem o conteúdo sem a expressão, pois se perde o
caráter artístico/literário.

O conceito de originalidade na concepção horaciana não se dá pelo fato de tratar algum tema
inédito, mas pelo contrário, se é original produzindo uma arte verossímil; o impossível é per-
mitido desde que consiga ser colocado dentro das alegorias, e portanto, se torna verossímil. A
imitação da vida e a representação dela nas artes é outro conceito de sua Poética e que dialoga
com a de Aristóteles, assim como a questão da imitação e de outros pormenores.

Por fim, podemos concluir que A arte poética de Horácio é uma crítica romana sobre a produ-
ção grega, pois ele fundamenta os padrões literários e as suas concepções sobre a arte, a partir
dos gregos e toma-os como exemplos para os romanos. Também valora alguns nomes roma-
nos e reivindica o espaço de outros. Ademais, discorre acerca da linguagem e da função da
literatura em ampliar e reinventar o léxico de uma língua. Solicita que cada gênero obedeça
as suas especificidades, que a comédia não provoque lágrimas e a tragédia não angarie risos.
E que cada escritor submeta a sua produção ao olhar do crítico antes da publicação, que seja
um “homem honesto”, nas palavras de Horácio. Sobretudo, que os “meninos romanos”, como
o crítico os denomina, se debrucem sob a produção dos homens gregos.

Referências:
ARISTÓTELES. Poética. Introdução, tradução e comentários de Eudoro de Sousa. Porto Alegre, Globo.

CICERO, Marco Túlio. Brutus e a perfeita oratória. (Do melhor gênero de oradores). Introdução, tradu-
ção e notas de José Rodrigues Seabra Filho. Belo Horizonte: Nova Acrópole, 2013.

COUTO, Aires, Horácio crítico literário. Revista: Mathésis. N. 11, p. 125-163, 2002.

FINLEY, M. I. Uso e abuso da história. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 1989
(Coleção o homem/a história).

HORÁCIO. A arte poética. Tradução, notas e comentários de Dante Tringali. São Paulo: Musa Editora,
1993. (Ler os clássicos; v. 1).

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Comicidade em José Cândido de Carvalho

Maria Renata Santos Ferreira


Graduação/UFS

Nosso estudo objetiva analisar os aspectos da comicidade na obra de José


Cândido de Carvalho, seus procedimentos cômicos e funções, investi-
gando o comportamento e as relações socioculturais da época através de
personagens que revelam o “malandro jeitinho brasileiro” em todos os
níveis sociais. Para proceder à análise, estaremos nos baseando em três
teorias sobre a comicidade: O riso – ensaios sobre a significação do cômi-
co (1983) de Henri Bergson, Os chistes e sua relação com o inconsciente
(1977) de Sigmund Freud e o capítulo “O chiste” de André Jolles (1976)
em seu livro Formas simples.

Palavras-chave: Cômico; José Cândido de Carvalho; Conhecimento.

Introdução
Este projeto de iniciação científica intitulado de Comicidade em José Cândido de Carvalho
tem por objetivo analisar sistematicamente os aspectos de comicidade na obra do autor,
em que percebermos a contribuição de sua obra para moderna literatura brasileira, atra-
vés de sua linguagem bem humorada carregada de uma minuciosa denuncia social, defla-
grando a ironia, a parodia, a comicidade de palavras e o rebaixamento como algumas das
características que se manifestam no decorrer dos contos analisados. Percebe-se na obra
de José Cândido de Carvalho através das relações socioculturais destacadas um retrato do
estereótipo do Brasil e do brasileiro.

Para análise dos aspectos cômicos presentes nos contos estudados utilizamos três das prin-
cipais teorias de estudo sobre a comicidade: O riso: ensaios sobre a significação do cômico
(1983) de Henri Bergson, Os chistes e sua relação com o inconsciente (1977) de Sigmund
Freud e o capítulo “O chiste” de André Jolles (1976) em seu livro Formas simples.

Podemos perceber que, para Bergson, o cômico seria o “mecânico calcado no vivo”, ou seja
a comicidade aparece quando o ser humano passar a agir maquinalmente perdendo sua
própria essência humana. Freud define o cômico como efeito de “válvula de escape”, isto é

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funciona como alívio de tensão, dando vazão a conteúdos reprimidos através das manifes-
tações do inconsciente. Já para Jolles, o chiste é uma disposição mental que desmonta as
coisas, é o modo de desatar as coisas e desfazer nós, ou seja os chistes desatariam a ética,
a moral e a linguagem.

Partindo das teorias da comicidade, adentramos em um estudo de fato sobre as obras e a


trajetória de José Cândido de Carvalho. Autor regionalista da segunda geração modernista,
romancista, contista e jornalista nascido em cinco de agosto de 1914, em Campos dos Goita-
cases, Rio de Janeiro, filho de lavradores portugueses. Aos 16 anos iniciou-se como jornalista
trabalhando como editor da revista O Liberal, trabalhou em diversos jornais do Rio de Janei-
ro, passando pelo jornal Folha do Comercio, O Dia, Gazeta do Povo, O Monitor Campista,
foi chefe editor internacional da revista O Cruzeiro, a revista brasileira de maior circulação
na época, foi o primeiro presidente da Funarte. Em 1937, obteve o bacharelado em direito,
admirador de Raquel de Queiroz e José Lins do Rêgo, José Cândido de Carvalho estreou na
literatura brasileira em 1939, com o romance Olha para o céu Frederico, vinte e cinco anos
depois pública seu segundo romance O coronel e o lobisomem, sua mais importante obra,
considerada um clássico da moderna literatura brasileira.

A partir de 1973, entrou para a Academia Brasileira de Letras, quinto ocupante da cadeira 31
sucedendo, Cassiano Ricardo Leite, só o romance O coronel e o lobisomem bastaria para lhe
reservar um lugar de destaque, mas Cândido também publicou dois livros de contos Porque
Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon e Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos.

Em suas obras além de tratar das questões políticas e sociais, José Cândido revela uma crítica
a questões morais como o famoso “jeitinho brasileiro” e o patriotismo exagerado, através de
estilo único que se tornou sua grande marca com uma linguagem aparentemente simples,
carregada de uso do exagero, gírias e expressões populares tipicamente do interior do Brasil,
misturando-se sempre a um tom de ironias e uso de metáforas com personagens que retratam
os “tipos” humanos da sociedade brasileira. O cômico em José Cândido de Carvalho aponta
as falhas das pessoas, da sociedade e da cultura.

Sobre o corpus estudado, os dois livros de contos do autor Um ninho de mafagafes cheio de
mafagafinhos e Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, ambos são muito pareci-
dos, inclusive possuem o mesmo subtítulo: “Contados, astuciados, sucedidos e acontecidos
do povinho do Brasil,” trazem como diz o próprio José Cândido na descrição do livro, uma
caricatura do Brasil, com uma linguagem bem humorada e inteligente em narrativas curtas,
mas que dizem muito como é o Brasil e o brasileiro.

Os contos nas duas obras, são organizados por partes, em histórias que dialogam entre si. Os
títulos dos contos um dos primeiros aspectos observado nesse estudo, já chama a atenção do
leitor no primeiro contato com o livro, provocando o riso e a curiosidade, pois utiliza-se de
ditados e expressões populares, além dos nomes dos personagens que são verdadeiramente
inusitados como traz o próprio autor em Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, uma
lista no início do livro com os nomes dos personagens considerados estrambóticos.

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Nas obras analisadas, selecionei como corpus os contos “A morte não tira férias”, “Se a vida
acabou, compre outra” e “Na próxima vez venho de dilúvio à bordo” integrantes do livro Um
ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, mas para chegar a definição desse corpus especí-
fico, trafegamos entre um estudo mais superficial de outros contos como “Toda honestidade
tem sua fita métrica” integrante de Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos e do livro
Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, “Ferreiro não tem mulher de pau” e “Do
purgativo saiu uma borboleta”, entre outros, cujos títulos aproximam-se de ditados populares
de forma direta ou parodiando, anunciando assim, a temática abordada. A seleção do corpus
se deu por cada um representar um ambiente social diferente, revelando a amplitude de te-
mas ligados às relações socioculturais, que denunciam o “malandro” em todos os níveis.

1. Revisão teórica
1.1. Henri Bergson
Para Bergson, em seu estudo sobre a comicidade “o cômico é o mecânico calcado no vivo”, ou
seja isso acontece quando o homem passa agir maquinalmente, assim segue definindo que o
cômico é eminentemente sócio-cultural, só ocorre no âmbito de uma sociedade.

Ao falar que a função do riso é castigar os costumes, Bergson começa a responder para que serve
o cômico, o qual para ele é um gesto que reprime a excentricidade das pessoas, para que essa,
passe agir da forma ditada pela sociedade, concluindo que o riso é o cômico calcado no vivo.

Em resumo, se deixarmos de lado, na pessoa humana, o que interessa à nossa sensibilidade e


consegue nos comover, o resto poderá converte-se em cômico, e o cômico estará na razão
direta da parte da rigidez que ai se manifeste (BERGSON, 1983, p. 71).

Bergson associa o cômico ao feio para explicar como o riso discorre, acentuando suas defor-
midades passando do disforme ao risível, pois para ele as formas e os gestos acentuam o ri-
sível. Isso porque a forma é vista como a caricatura do palhaço, e os gestos, os “tiques”, essas
expressões acentuadas e repetitivas, são consideras cômicas.

1.2. Sigmund Freud


Já Freud, para explicar o que é o cômico, o “chiste”, parte para uma revisão teórica dos au-
tores que se propuseram a falar dos chistes como Jean Paul Richter e os filósofos Theodor
Vischer, Kuno Fisher e Theodor Lipps, mesmo não desconsiderando o trabalho feito ante-
riormente por esses estudiosos, ele discorda da temática dos chistes proposta por esses au-

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tores, os quais restringe-se a relacionar o chiste ao cômico, pois de início Freud acreditava
que havia um cômico que não tinha ligação com o inconsciente, e outro que tinha relação
com o inconsciente, chamado de chiste.

Na citação de Fischer trazida por Freud por exemplo, “um chiste é um juízo que produz
contraste cômico; participa já, tacitamente, da caricatura, mas apenas no juízo assume sua
forma peculiar e a livre esfera do seu desdobramento” (apud FREUD, 1977, p. 22). Com essa
constatação Fischer como também os outros estudiosos citados, contrasta o chiste com o
cômico, enquanto Freud tenta separá-los, apenas no final da investigação ele percebe que
essa separação é impossível.

Ao falar dos propósitos dos chistes, Freud explica para que serve o cômico, cuja função seria
servir para que o inconsciente manifeste certas coisas e sirva como “válvula de escape”, assim
para ele o chiste serve para alívio de tensão ao manifestar aquilo que é vedado e proibido,
além de constatar em sua investigação que os chistes atuam como fonte de prazer.

Um chiste nos permite explorar no inimigo algo do ridículo que não poderíamos tratar
aberta ou inconscientemente, devido a obstáculos no caminho; [...] o chiste evitará as restri-
ções e abrirá fontes de prazer que se tinham tornado inacessíveis. Ele ademais subordinará
o ouvinte com sua produção de prazer, fazendo com que ele se alinhe conosco sem uma
investigação mais detida (FREUD, 1977, p. 123).

Para explicar como os chistes são construídos, Freud menciona os autores Heymans e Lipps ,
os quais explicam que o caráter do chiste reside no pensamento ou na sentença com isso ele
começa a explicar o processo de deslocamento e condensação usando o exemplo do chiste
de condensação “familionariamente” em que o deslocamento aparece como duplo sentido
ou seja transfiguração de uma palavra em outra coisa para tornar engraçado, ocorre também
como metonímia , a condensação é a junção das coisas familiares, ou seja a junção das pa-
lavras em uma única para formar a expressão “familionariamente”. Com isso Freud constata
que o esclarecimento causa prazer no ouvinte.

O jogo de palavras nada mais é que uma condensação sem formação de substitutivo; por-
tanto, a condensação permanece sendo a categoria mais ampla. Todas estas técnicas são
denominadas por uma tendência à compressão, ou antes a economia. (FREUD, 1977, p. 58).

1.3. André Jolles


André Jolles, define o chiste como a forma que “desata as coisas e desfaz nós” (JOLLES, 1976,
p. 206). Ou seja, chiste desataria tanto a ética, a lógica e a linguagem, como as próprias formas.

Ao falar das formas simples, Jolles mostra que os chistes revelam as formas de diferentes épo-
cas, pois não existe época ou lugar em que ele não se encontre caracterizando a raça, o povo,

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o grupo e o tempo onde se encontram. Além disso para o autor o chiste se alimenta de todos
os recursos da linguagem sempre na sua função de desmonte.

Para Jolles, o chiste recorre a inconveniência, na medida em que no absurdo a lógica é desfei-
ta, na inconveniência acontece o desenlace. Para ele, o chiste trabalha com o duplo sentido,
mas desfaz as coisas quebrando os estereótipos e desmontando as respostas prontas. Essa
seria uma das funções do cômico. Na medida que tenta desfazer o repreensível a partir de sua
insuficiência, ou a insuficiência a partir dela mesma, o chiste é chamado de zombaria.

O autor também faz uma distinção entre a sátira e a ironia destacando que a primeira tem
sempre um caráter agressivo e moralizante de zombaria a fim de corrigir o desvio se asseme-
lhando com a abordagem bergsoniana, já a segunda tem um sentido revelador, sem arrogân-
cia, quem zomba faz parte do que é zombado, revelando ao indivíduo o que ele tenta escon-
der de si próprio se assemelhando com a abordagem trazida por Freud. “O azedume da sátira
visa o seu objeto; o azedume da ironia resume-se em encontrar em nós o que censuramos em
outrem” (JOLLES, 1976, p. 212).

Jolles aponta que a zombaria rebaixa e fala do caso particular, já no gracejo ele diz que
se diferencia da zombaria na medida em que fala do geral. O gracejo não tem os aspectos da
agressão que encontramos na zombaria, proporcionando alívio de tensão. Já os chistes para ele
atuam como dupla função se sustentando na teoria conservadora de Bergson e a libertadora de
Freud ao desmontar e desfazer a tensão. A zombaria condena enquanto o gracejo é libertador,
assim a função do cômico em Jolles é desmontar a linguagem, a lógica as próprias formas.

Assim, podemos concluir que para Jolles o chiste exerce uma tarefa de dupla função “desfaz
um edifício insuficiente e desafoga uma tensão” (JOLLES, 1976, p. 213).

2. Análise da obra

Na próxima vez venho de dilúvio a bordo


E desembarcaram o sapateiro Finfilóquio Tupinambá em Santo Antônio do Banhado na oca-
sião em que o Circo de Bagdá montava para a distinta assistência o número mais arriscado
de seu repertório: a bala humana. Sem saber de nada, bêbado de trocar pernas, perfeito peru
de aniversário, Finfilóquio entrou no camarim do mágico, atarraxou a cartola dele na cabeça,
bem assim como vestiu o fraque e arrumou o cachecol no pescoço. E soltando aguardente
pelas juntas dos cotovelos foi parar no picadeiro do circo de Bagdá e no picadeiro, como
fazia o mágico, tirou do bolso o lenço puxador de pombinhos na justa hora em que o ca-
nhão fazia funcionar a bala humana: um sujeito todo prateado, voando de passarinho. Com
o estrondo do tiro, o leão do circo, pegando jaula descuidada, saltou de cabrito diante do
povo arrumadinho em bancos e cadeiras. Foi um corre corre sem tamanho e feitio, gente
por cima de gente num atropelado de gritos e chiliques. Basta relatar que um perneta subiu
de macaco pelo mastro dos trapézios, e uma senhora bojuda, redonda de não caber nos ves-
tidos, ficou entalada entre as cadeiras e desatou a gritar pelo nome de seu falecido marido:

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– Capanema, Capanema! Chegou o fim do mundo. Me espera no céu que eu já estou subin-
do.Vou atrasar um pouco porque perdi os óculos. Me espera, Capanema.
No meio do picadeiro, de queixo caído e cartola na mão, o bêbado Finfilóquio falou baixinho:
Finfim, Finfim, tu é o maior mágicão do mundo. Só no puxar do lenço tu inventou um canhão
e mais um danoso de um leão que já saiu comendo a perna de um par de bolivianos e mais
as partes traseiras de uma dona de óculos metida a fazer discursos, foramente um serviço
de parto que o leão fez só de berrar junto dos nove meses da barriguda. Lhe digo uma coisa,
Finfilóquio. Se tu calibra a magicação, como manda o regulamento, tu era Finfilóquio de botar
no picadeiro duas dilatadas cobras, um par de tigres, uma dúzia de elefantes, quatro leões
marinhos, manadas de bicicletas, cinco dobrados da gloriosa Banda Marcial de Santo Antônio
do Banhado e mais uma batelada de gringos para o povinho esborraçar a pau. Mais que isso,
Finfim velho, tu era homem de trazer a arca de Noé de volta. Com o tal do Dilúvio e demais
benefícios (CARVALHO, 2005, p. 21-22).

O conto “Na próxima vez venho de dilúvio a bordo” se passa em torno de um personagem cha-
mado Finfilóquio Tupinambá, um sapateiro que desembarcou na pequena cidade de Santo
Antônio do Banhado, altamente alcoolizado ao avistar a apresentação do circo de Bagdá, in-
vade o camarim do mágico e se passa por ele. No momento do número mais arriscado, a bala
humana, vestiu-se com todo o traje de mágico e foi para o picadeiro, onde o leão pelo barulho,
se assusta e vai na direção do público, causando um enorme alvoroço na plateia, com o que o
bêbado Finfilóquio se vangloria ao achar que todo o tumulto se dá em função de sua mágica.

Percebe-se nesse conto o desconcerto da plateia na medida que o leão aparece, gerando um
enorme alvoroço que revela o comportamento do ser humano diante do medo de morrer, as
quais passam a agir irracionalmente, sem pensar no que falar, como agir e se comportar. O
instinto de sobrevivência prevalece, como visto, de forma ironizada no trecho:

Foi um corre-corre sem tamanho e feitio, gente por cima de gente num atropelado de gri-
tos e chiliques. Basta relatar que um perneta subiu de macaco pelo mastro dos trapézios, e
uma senhora bojuda, redonda de não caber nos vestidos, ficou entalada entre as cadeiras e
desandou a gritar pelo nome de seu falecido marido (CARVALHO, 2005, p. 21).

Bergson, lembra que “não é, pois, a mudança brusca de atitude que causa o riso, mas o que
há de involuntário na mudança, é o desajeitamento” (BERGSON,1983, p. 9). E esse desajeita-
mento, o tumulto que é explorado na cena acima.

Ao usar a expressão “povo arrumadinho em bancos e cadeiras” José Cândido, faz uma crítica
à sociedade que vive de aparências, ditando a maneira como as pessoas devem se comportar,
agir e se vestir, além disso nessa mesma expressão o autor expõe uma crítica à divisão social
existente nessa sociedade, pois ao mencionar que a plateia estava organizada em bancos e
cadeiras revela que ocupam lugares distintos dentro de um mesmo ambiente, provavelmente
as classes privilegiadas ficam na frente e ocupam o conforto e a visibilidade nas cadeiras e os
demais, vistos como o “povinho” ficam atrás nos bancos da arquibancada.

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Um dos procedimentos cômicos identificados nesse conto foi o rebaixamento, que aparece
nitidamente na medida em que a plateia avista o leão em sua direção e mudam drasticamente
de atitude, deixando de lado as aparências sociais e passando a agir de forma instintiva, oca-
sionando uma sucessão de cenas inusitadas explicadas por Bergson, ao falar sobre o efeito de
bola de neve “de cena em cena, a mudança de posição do objeto leva mecanicamente a mu-
dança de situação cada vez mais graves entre as pessoas” (BERGSON, 1983, p. 41).

Nesse conto, Cândido também propôs ilustrar uma figura típica sempre presente nas come-
dias, o “bêbado” que acaba sempre se metendo em alguma confusão, que por uma infeliz
coincidência no momento exato que o leão apareceu na plateia assustado pelo barulho do
tiro da bala humana, o atrapalhado e embriagado Finfilóquio, trajado no figurino do mági-
co entrou no picadeiro. É cômico também o fato de Finfilóquio enganar-se ao acreditar que
realizou uma grandiosa mágica e que foi o causador de todo o tumulto. Isso torna a situação
ainda mais engraçada, como visto na passagem final, ao se vangloriar da “mágica” que acre-
dita ter realizado:

No meio do picadeiro, de queixo caído e cartola na mão, o bêbado Finfilóquio falou baixinho:
-Finfim, Finfim tu é maior magicão do mundo. Só no puxar de lenço tu inventou um ca-
nhão e mais um danoso de um leão que saiu comendo a perna de um par de bolivianos
e mais as partes traseiras de uma dona de óculos metida a fazer discursos, foramente
um serviço de parto que o leão fez só de berrar junto dos nove meses da barriguda
(CARVALHO, 2005, p. 21,22).
Como lembra Freud, “Sob a influência do álcool o adulto torna-se outra vez e uma criança,
tendo de novo o prazer de dispor de seus pensamentos livremente sem observar a compul-
são da lógica” (1977, p. 150).

Outro ponto observado nesse conto, é a forma como Cândido utiliza-se da linguagem, abu-
sando propositalmente de um estilo que é sua grande marca, com uso de gírias e expressões
populares tipicamente do interior do Brasil, a fim de causar humor e, com isso, também des-
crever a realidade social e a maneira como a maioria da população, chamada carinhosamente
por ele em suas obras de “povinho brasileiro”, se comunica. Os trechos a seguir ilustram o uso
desses recursos. “Soltando água ardente pela juntas dos cotovelos” (CARVALHO, 2005, p. 21)
“tu é o maior magicão do mundo” (CARVALHO, 2005, p.22).

3. Considerações Finais
Chegamos ao final da pesquisa, após um ano de estudos e investigações, concluindo que
José Cândido de Carvalho, através de uma linguagem carregada de bom humor e ironia, vai
apontar uma crítica ao patriotismo exagerado e ao valores morais, através de personagens que
retratam o estereótipo do Brasil e do brasileiro, denunciando os problemas sociais, mas tam-
bém dando voz a partir de sua literatura aos que ele vem chamar carinhosamente de “povinho

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brasileiro”, como visto no conto “Na próxima venho de dilúvio a bordo”, colocando qualquer
cidadão em um mesmo patamar, desde um simples sertanejo, juiz, bêbado, ladrão ou polí-
tico como protagonista de suas histórias. Podemos, por fim, dizer que a comicidade em José
Cândido de Carvalho vai apontar as falhas das pessoas, da cultura e da sociedade e mesmo
anos depois da publicação de suas obras os problemas sociais e políticos enfrentados pela po-
pulação brasileiro perpetuam-se enraizados até os dias atuais, fazendo assim, suas obras pa-
recerem que foram escritas sob a perspectiva da realidade atual em que o Brasil se encontra.

Um autor diferenciado, este foi José Cândido de Carvalho, através de sua linguagem
aparentemente simples, “o jeitinho Cândido de ser”, revela, adverte e ensina de forma bem
humorada, explorando da caricatura do Brasil e do brasileiro até a última gota para expor a
realidade escondida através das aparências sociais.

Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. (1940). O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Natanael C. Caxeiro-2o ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

CARVALHO, José Cândido de. O coronel e o lobisomem. 57a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

CARVALHO, José Cândido de. Porque Lulu Bergatim não atravessou o Rubicon: contatos, astuciados,
sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

CARVALHO, José Cândido de. Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos: contados, astuciosos, su-
cedidos e acontecidos do povinho do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Tradução: Jayme Salomão.1o edição, Vol. III. Rio
de Janeiro: Imago, outubro de 1977.

JOLLES, A. O Chiste. In: Formas simples. Trad. Álvoro Cabral. São Paulo: Cultrix,1976.

NINA, Claudia. ABC de José Cândido de Carvalho/ Claudia Nina. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

LEDUC, L’ ESPERANCE. Vincent, Pierre. Ecce Homo: o riso. [Vídeo]. Produção de Vincent Leduc, Di-
reção de Pierre L’ Espérance. O productions Coscient, 1998. 50 min. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=S1KFRkiMGCI. Acesso em: 11jan. 2016.

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Salvação e mediação em O sol se põe em São Paulo

Sérgio Murilo Fontes de Oliveira Filho1


Letras – UFS

Bernardo Carvalho é um dos mais importantes autores de ficção bra-


sileira contemporânea, com doze obras publicadas. Nota-se, em toda
a sua produção, a temática da salvação, que raramente possui sentido
religioso. Analisamos, então, a salvação em O sol se põe em São Paulo,
romance que conta uma história que começa no Japão da Segunda Guer-
ra mundial e encontra sua conclusão no Brasil. Para isso, utilizamos a
teoria de mediação e de desejo mimético, desenvolvida por René Girard.

Palavras-chave: Salvação. Mediação. Bernardo Carvalho.

Introdução
Bernardo Carvalho se estabeleceu como um dos importantes autores de ficção brasileira con-
temporânea em 2003, quando ganhou o prêmio Portugal Telecom, atual prêmio Oceanos,
pelo romance Nove noites (2002). Ele é autor de mais um livro de contos, Aberração (1993), e
de outros dez romances: Onze (1995), Os bêbados e os sonâmbulos (1996), Teatro (1998), As
iniciais (1999), Medo de Sade (2000), Mongólia (2003), vencedor do prêmio Jabuti de melhor
romance e do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), O sol se põe em São
Paulo (2007), terceiro colocado no prêmio Portugal Telecom de 2008 e segundo colocado no
prêmio Jabuti, O filho da mãe (2009), Reprodução (2013), também ganhador do prêmio Jabuti
de melhor romance, e Simpatia pelo demônio (2016).

É notável, ao longo de toda a produção literária do autor, a temática da salvação, com a própria
palavra repetindo-se muitas vezes ou sendo substituída por sinônimos, como resgate e reden-
ção. O fato torna-se ainda mais interessante quando percebemos que, na maior parte das vezes,
tal salvação não tem sentido religioso, ou seja, de salvação da alma de uma condenação eterna.

1.  Graduando em Letras na Universidade Federal de Sergipe; membro do projeto de pesquisa “Salvar ou se sal-
var? Eis a questão em alguns romances de Bernardo Carvalho”, orientado pela professora Josalba Fabiana dos
Santos. E-mail: sergiomurilo.ea@hotmail.com

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Analisaremos a salvação em O sol se põe em São Paulo, romance que conta uma história que
começa no Japão da Segunda Guerra mundial e encontra sua conclusão no Brasil, sobrepon-
do diferentes culturas, tempos e espaços. Para isso, utilizaremos a teoria de mediação e de
desejo mimético, desenvolvida por René Girard em seu livro Mentira romântica e verdade
romanesca, publicado pela primeira vez em 1961. Comentaremos também a concepção de
arte e artista que o personagem principal parece assumir, usando como tal as investigações
de Tzvetan Todorov em seu A beleza salvará o mundo, de 2006.

O narrador-personagem
Como bem apontou Josalba Santos (2014, p. 182), “é possível dizer que O sol se põe em São
Paulo é a história de uma história”. O narrador, também personagem, não-nomeado, é um
sujeito com antigas aspirações literárias e um pavor de longa data de sua descendência japo-
nesa. Apesar desta aversão, é por ser frequentador antigo de um restaurante japonês que ele
acaba tendo contato com Setsuko, dona do estabelecimento. Ela o aborda com o intuito de
contar uma história para que ele a escreva, já que o entende escritor. Após aceitar o trabalho, o
narrador-personagem vive apenas para aquilo: nenhuma casa, amigo ou qualquer outro fato
de sua vida pessoal que não esteja ligado àquela história é sequer mencionado.

Este modelo de autor, o qual coloca vida pessoal e arte como coisas antagônicas, preterindo
um em nome do outro, é descrito por Tzvetan Todorov ao comentar a visão de Rainer Maria
Rilke, poeta alemão, sobre como um artista deveria viver:

Ao privilegiar assim o trabalho da criação, o artista negligencia forçosamente outras facetas


de sua existência: sua vida material, suas relações com outros seres humanos. [...] O artista
é obrigado a escolher: o rio de sua vida não poderia se manter caudaloso sendo obrigado a
se separar em dois leitos, o da existência e o da criação (TODOROV, 2014, p. 104).

Recém-divorciado e desempregado, o narrador-personagem de O sol se põe em São Paulo


não parece ter encontrado a realização em um dos leitos, barrando seu fluxo e procurando a
salvação no outro:

No fundo, ainda achava que pudesse escrever – e um dia me salvar não sabia bem do quê. A
loucura era que nunca tivesse escrito nada além de um punhado de roteiros de comerciais.
E só isso permitia que eu seguisse pensando que podia ser (ou que era) escritor, e que podia
me salvar (CARVALHO, 2007, p. 12-13).

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Arte como religião


Salvar-se por meio da arte é “se ocupar de sua salvação pessoal praticando um novo culto, o da
beleza” (TODOROV, 2014, p. 288). A arte poderia, então, substituir o papel da religião:

Nesse sentido, a atividade criadora se aparenta cada vez mais estreitamente com a voca-
ção religiosa: não apenas as duas são caminhos para o absoluto, como também exigem a
mesma abnegação. Para atingir o divino, o artista deve renunciar ao humano e aceitar sua
cruz (TODOROV, 2014, p. 167).

Esta ideia de abnegação em nome da arte, renegando o lado humano do artista em busca de algo
maior, é encontrada em O sol se põe em São Paulo, quando o narrador-personagem trata do teatro nô:

Tinha lido em alguma parte que a arte do teatro nô se convertera em ritual, em cerimônia
religiosa. O sagrado era a própria cena. O espetáculo não deveria ser interrompido nem se
um ator morresse durante a representação. Não era mais a arte a serviço da religião, mas a
própria arte como religião (CARVALHO, 2007, p. 123).

Vale ressaltar que se Todorov fala no tipo de artista que aceita sua cruz em nome da arte, o
personagem do romance de Bernardo Carvalho parece primeiro desejá-la, já que acredita
que era, ou que podia ser, um escritor, mesmo sem nunca ter escrito nada; ou seja, inde-
pendente das consequências, se é que existirão, o desejo último do personagem é tornar-se
o que acreditava ser.

Ao buscar a salvação na arte, o narrador-personagem tem que, portanto, fazer uma escolha,
e pretere a vida pessoal. Fatores externos ao suposto livro que deveria escrever perdem a im-
portância e, mesmo com a cidade sofrendo ataques frequentes do crime organizado, este fato
é comentado apenas para justificar o atraso para a primeira reunião marcada com a dona do
restaurante. São nessas reuniões que ela narra a história que o nosso narrador-personagem
deverá escrever. Tal qual ele, ela também é uma personagem do que conta, e discorre sem se
preocupar com a capacidade que seu ouvinte tem de entendê-la e/ou escrevê-la; preocupa-se
apenas em que ele ignore certas coisas: “Preciso de alguém que nunca foi ao Japão. Preciso
que você imagine. E o que você imagina nunca vai ser o que foi” (CARVALHO, 2007, p. 31).

Setsuko conta a história que ouviu e viveu graças a uma amiga que conhecera no trabalho,
Michiyo. No decorrer do relato, entretanto, o narrador-personagem percebe as mentiras do
que ouve, acabando por descobrir que sua narradora era a própria Michiyo. Contudo, ela não
conclui sua história, não conta o seu desfecho, e ele é obrigado a investigar por si só, ignoran-
do que, talvez, menos que uma história verídica, o que Michiyo lhe contava fosse já literatura,
e que “não há nem religião nem poesia que não mintam” (BATAILLE, 2015, p. 80). Tal possi-
bilidade fortalece-se quando um colega lhe conta as semelhanças entre o que ouvira e certas
obras do autor japonês Junichiro Tanizaki. Uma carta escrita por Michiyo supostamente para
explicar o que houve com outro personagem da história, Masukichi, menos explica algo do
que adiciona novos fatores. As histórias contadas vão se colocando uma dentro da outra, mas
a verdade não é nunca definitivamente encontrada.

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Conservar-se a salvo no Japão da Segunda Guerra


O que Setsuko conta é a história de Jokichi, marido de Michiyo, filho de um industrial. Para
evitar que ele fosse mandado à Segunda Guerra, seu pai o envia para o interior, e em seu lugar
manda um empregado, Seiji:

Jokichi acatou o pedido, como bom filho, sem imaginar (porque era realmente inimaginá-
vel) o que o pai lhe preparava, ainda que pelas razões mais compreensíveis e justificáveis,
para salvá-lo da frente de batalha e por repúdio à truculência militarista do governo,
para não ver o filho compactuar com uma guerra insana, mas também pela insanidade
do seu próprio amor.
Por outro lado, Jokichi era um homem inteligente. Nada daquilo teria acontecido sem a sua
cumplicidade, nem que fosse parcial. Era essa, ao menos, a convicção de Setsuko quando me
contou a história. É claro que ele tinha percebido que o pai o mandava para o interior para
afastá-lo da guerra. E, se acatou a decisão, não foi só por respeito filial. No fundo, também
não compartilhava do espírito militarista. O alistamento teria sido apenas um pretexto para
se afastar (CARVALHO, 2007, p. 44).

A salvação de Jokichi depende então da perdição de Seiji, descendente de burakumins, párias


responsáveis por fazer os serviços sujos necessários, como matar os animais que os cidadãos
comeriam nas refeições e executar os criminosos condenados. Os burakumins são, portanto,
uma espécie de bode expiatório nos quais a sociedade pode salvar sua consciência. Ao ser en-
viado para a guerra no lugar de Jokichi, Seiji cumpre sua sina. Já Jokichi, ao descobrir a troca,
descortina a morte de Seiji na guerra e passa a vida tentando corrigir o que o pai fez:

[Jokichi] conseguiu provar oficialmente sua identidade, não sem antes ter de passar por um
processo absurdo de humilhação, como desertor, para não sujar a memória do pai, que tudo
havia arquitetado sem o seu conhecimento, por amor, para salvá-lo (CARVALHO, 2007, p. 46).

Salva-se o filho da guerra, salva-se o próprio nome, salva-se a honra do pai, mas Seiji per-
manece morto, e seus pais não aceitam nenhuma reparação vinda de Jokichi. O motivo é
um mal-entendido: na guerra, outra pessoa, o primo do imperador, usou do mesmo arti-
fício do pai de Jokichi para livrar-se dos crimes de guerra e fugir para o Brasil. O título do
livro se explica, pois “[...] presume o seu contrário pela elisão da máxima de que o Japão ou
o Oriente é a terra do sol nascente, o que lá inicia, aqui [no Brasil, em São Paulo] termina”
(SANTOS, 2014, p. 181).

É por não encontrar no Estado um agente de justiça para Seiji que Jokichi resolve se vingar.
Usando o nome de Teruo e deixando sua esposa, Michiyo, para trás, ele parte para o Brasil.
Pouco se salva de Jokichi em Teruo, homem aparentemente tomado pela vingança, que acaba
por assassinar o primo do imperador e que não

se incomodava com o que pudesse lhe suceder. Bastava cumprir o que prometera a si mesmo.
Bastava matar o criminoso de guerra. Estava preparado para pagar pelas consequências do seu
ato. As precauções não diziam respeito ao seu futuro – não esperava salvar-se –, mas visava
apenas assegurar as condições necessárias para a execução do ato (CARVALHO, 2007, p. 157).

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A salvação não esperada veio de sua nova família. Quando chegou no Brasil, Teruo/Joki-
chi se casou e engravidou a esposa. É o sogro brasileiro, influente na comunidade, quem
o salva das consequências de seu ato, mas foi pela filha, recém-nascida, que ele desiste de
contar o que e porque fez.

A filha acabava de nascer, ele já não podia revelar ao mundo a sua história e abandonar a
menina. [...]. Foi ela quem salvou Jokichi. Foi preciso que ela nascesse para ele entender
que já não estava só. “Ninguém nunca vai poder contar nada. Quem conta são os ou-
tros”, ele me disse [a Michiyo] quando me procurou para anunciar que estava morrendo
(CARVALHO, 2007, p. 160).

Cabe a Michiyo salvar a história, mas só depois que as pessoas que pudessem ser prejudicadas
morram. É no dia que recebe a notícia do falecimento de Jokichi/Teruo que ela resolve abor-
dar o narrador-personagem.

Mediação e desejo metafísico


Acredita-se, geralmente, que se algo ou alguém é salvo, é devido ao seu valor. Mas e se inver-
termos este pensamento? Em Reprodução, também de Bernardo Carvalho, uma professora
de chinês, missionária, resolve salvar a vida de uma menina cujos pais foram assassinados.
A salvação consiste em tirá-la do país e levá-la para China, um policial, ao saber da histó-
ria, resolve ajudá-las; em seguida, o delegado resolve ajudar todos eles e, por fim, um outro
personagem, aluno de chinês, é quem conclui a missão de levar a criança à China. O desejo
de salvar a menina parece, de certa forma, dar valor a ela, e esse valor contamina outros que
vão entrando na história.

Uma possível forma de entender de que modo acontece esta contaminação é mencionada no
mais recente romance de Carvalho, Simpatia pelo Demônio. Nesta obra, quando Rato, o pro-
tagonista, pensa de que forma a atração, a sedução e a inveja de seu amante funcionavam, diz:

[...] a leitura de Girard, que ele havia descoberto na viagem a Paris e que o eximia da culpa
da violência sem nome e sem objeto que desde criança o atormentava. Se, como defendia o
antropólogo francês, não havia desejo original e pessoal (o desejo era sempre imitação do
desejo do outro), a inveja era inevitável (CARVALHO, 2016, p. 82).

Como já foi demonstrado, o narrador-personagem de O sol se põe em São Paulo já tinha o


desejo de ser escritor. Mas como explicar a sua obstinação em escrever esta história especí-
fica, com toda a associação com a cultura japonesa que ele tanto temia e todas as regras im-
postas por Setsuko/Michiyo, que lhe contava o que devia escrever? Uma possível resposta
pode estar em uma análise na relação entre estes dois responsáveis pela salvação da história
como uma de mediação.

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René Girard diz que a mediação “gera um segundo desejo inteiramente idêntico ao do media-
dor. Vale dizer que nos deparamos sempre com dois desejos concorrentes. O mediador não
pode mais desempenhar seu papel de modelo sem interpretar também, ou parecer interpre-
tar, o papel de obstáculo” (GIRARD, 2009, p. 31). Vale notar que, como já mencionado, o nar-
rador-personagem diz ter fobia do Japão e de tudo que a ele remete, inclusive seus símbolos
culturais. Michiyo e a história que ela tem a contar parecem ir de encontro a essa fobia, já que
todos estão relacionados ao Japão. Poder-se-ia pensar, portanto, que tal configuração seria
como que um obstáculo intransponível, mas o desejo metafísico tem características diferen-
tes em suas relações de contágio:

O desejo metafísico é eminentemente contagioso. Essa propriedade é por vezes dificilmente


perceptível, pois o desejo empresta, para se propagar de uns aos outros, os caminhos mais
inesperados; ele se apoia nos obstáculos que procuram colocar em seu caminho, na indigna-
ção que ele provoca, no ridículo que querem cobri-lo (GIRARD, 2009, p. 123).

Estabelecida a relação de mediação, sendo Michiyo a mediadora, contaminando o narrador-


-personagem com o seu desejo em salvar a história, três são as principais consequências a
serem observadas. A primeira é a obsessão subsequente à contaminação. A aproximação da
mediadora, Michiyo, reduz o seu ouvinte “a seus próprios recursos” (GIRARD, 2009, p. 99).
Esta ideia parece complementar a noção de artista que comparamos anteriormente à vida de
Rilke: reduzido a si mesmo, o artista acaba isolado, sozinho, barrando o fluxo do leito pessoal
do rio de sua vida e dedicando tudo o que pode à sua arte.

A segunda consequência da mediação, mais precisamente da crescente aproximação da me-


diadora, são os obstáculos e conflitos que aparecem. Se o reinado de Michiyo é curto, é tam-
bém tirânico. Ela conta a história à sua maneira, nos locais e horários à sua escolha, no ritmo
que lhe concerne até o ponto em que decide parar, de forma brusca e sem avisos. O narrador-
-personagem, enquanto ouvinte, irrita-se com a forma que Michiyo narra, a conta-gotas, e
com as regras dela, para escrever sobre algo que parece não entender, e desconfia de embus-
tes, mas nada pode fazer, já que a atração da mediação o prende.

Apesar de tudo isso, ele percebe que a missão de Michiyo não era mais fácil que a sua:

Seus desejos [de Michiyo] eram tão ambíguos quanto os meus. Procurara um escritor, mas
parecia se sentir aliviada de não tê-lo encontrado. Como se, uma vez narrada a história, ela
não pudesse voltar atrás. E preferisse acreditar que nada era irreversível. Ao mesmo tempo
que tinha pressa de contar, guardava as informações, e os nomes, como se um imprevisto
ainda pudesse mudar o curso das coisas e libertá-la daquele ônus. Só muito depois fui en-
tender a razão do seu pudor. Contar significava reconhecer um pesadelo, mas também lhe
dar um fim. Era ao mesmo tempo a dor e o remédio. O que ela escondia era também o que
revelava (CARVALHO, 2007, p. 32-33).

Quanto mais se aproximam, mais semelhantes ficam os dois. Tal qual Setsuko, que, “na falta
de outra paixão, era como se estivesse apaixonada pelo que ela [Michiyo] contava e pelo que
omitia” (CARVALHO, 2007, p. 40). Mas, para além de uma mediadora, Michiyo configura-se

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também como uma facilitadora, pois acaba também tornando o seu ouvinte o que ele desejava
ser: um escritor. Ademais, ela tem um duplo papel: o de reconhecer e encerrar o pesadelo que
é a sua história, e o de salvá-la. Resolve, então, desaparecer sem concluí-la. Já não vale mais a
pena, ou não tem condições, de interpretar (ou de parecer interpretar) o papel de obstáculo,
como mencionado acima, pois, com a proximidade do mediador, “mais as possibilidades dos
dois rivais tendem a se confundir e mais o obstáculo que eles opõem um ao outro se torna
intransponível” (GIRARD, 2009, p. 49).

A terceira consequência da mediação interessa menos à salvação da história do que ao seu


desfecho: são os círculos concêntricos que se apertam ao redor da relação. “Todo desejo se-
gundo o Outro, por nobre e inofensivo que nos pareça em seus primórdios, arrasta pouco a
pouco sua vítima às regiões infernais” (GIRARD, 2009, p. 131). Os círculos concêntricos, en-
tretanto, continuam, e continuarão a levar o narrador-personagem ao seu inferno pessoal, o
Japão, em busca da conclusão da história.

O fim da mediação e a história salva

No Japão, o narrador-personagem tenta de tudo para encontrar Masukichi, destinatário de


uma carta que Michiyo deixou antes de sumir e que poderia lhe dar novas explicações, mas
o único avanço significativo que faz no intuito de concluir sua história é uma tradução desta
missiva. Avanço, aliás que poderia ser conseguido sem a viagem para o Japão.

O fracasso de sua viagem e de sua busca, no entanto, não são insignificantes. “O herói triunfa
no fracasso; ele triunfa porque esgotou seus recursos” (GIRARD, 2009, p. 328). É só ao reco-
nhecer seu fracasso que o herói pode também renegar o seu desejo segundo o outro e torná-
-lo seu. É, pelo pensamento de Georges Bataille (2015, p. 35), apenas quando se é objeto de
uma condenação que se pode reconhecer, amar-se até o fim. No caso de O sol se põe em São
Paulo, é quando desiste de provar a veracidade do que Michiyo lhe contou que o narrador-
-personagem entende que história tem que escrever, que história tem que salvar. O marco do
fim da mediação acontece na viagem de volta para o Brasil, quando o narrador-personagem
tem “vontade de chorar por todos no mesmo avião” (CARVALHO, 2007, p. 162). Só então esse
narrador-personagem pode tornar-se escritor.

É com o romance já escrito, dois anos depois de sua viagem para o Japão, que ele encontra a
filha de Jokichi/Teruo, no Brasil e lhe transmite a história, salvando-a.

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REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

________. Simpatia pelo demônio. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. Trad. Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Reali-
zações, 2009.

SANTOS, Josalba Fabiana dos. O duplo e a identidade nacional. In: PEREIRA, Kênia Maria de Almeida;
SILVA, Maria Ivonete Santos (orgs.). Releituras do texto literário. Uberlândia: EDUFU, 2014. p. 177-191.

TODOROV, Tzvetan. A beleza salvará o mundo: Wilde, Rilke e Tsvataeva: os aventureiros do absoluto.
Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2014.

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A galinha e o conhecimento do ovo: uma análise de


Clarice Lispector a partir da epistemologia kantiana

Alexandre Bartilotti Machado1


Graduando, História/UNEB

Neste trabalho, pretendemos relacionar a literatura de Clarice Lispector


com a filosofia de Kant. Como nossa fonte de análise escolhemos o conto
“O ovo e a galinha”. Objetivamos, assim, a partir dessa interconexão ex-
por uma interpretação do conto baseada num viés epistemológico. Com
Crítica da razão pura por base bibliográfica, abordaremos a obra de Lis-
pector como uma teorização acerca da dualidade de conhecimentos pos-
síveis, o cognoscível e o conhecimento das coisas em si.

Palavras-chave: Kant. Epistemologia. Clarice Lispector.

Introdução

No começo da Metafísica, Aristóteles (1984, p. 11) diz que “Todos os homens têm, por na-
tureza, o desejo de conhecer”. Se a questão psicológica, ou seja, do desejo, é verdadeira ou
falsa, queremos dizer, se temos ou não, de fato, um impulso natural que nos impele ao tra-
balho árduo do conhecimento, esse trabalho que consiste em dar forma sempre inacabada à
infinidade perfeita, não é de nossa alçada dizer. Contudo, nos valendo ainda de Aristóteles,
numa concepção mais contemporânea e que se aplica muito melhor a esse trabalho de aná-
lise filosófico-literária, podemos dizer, em verdade, que todos os homens se relacionam com
o conhecimento. Seja em uma perspectiva dialética com outro sujeito humano ou numa re-
lação com a abstração mental, os indivíduos, todos, lidam com os dados gerados por nossas
memórias, processados, por sua vez, através de nossas faculdades mentais. Assim, um tema
como conhecimento sempre se revela importante e atual na pesquisa acadêmica.

1.  Orientando da Profa. Dra. Márcia Maria da Silva Barreiros. E-mail: alexandrebmachado@yahoo.com

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De diferentes formas ao longo da história, a Epistemologia2 abordou a problemática do co-


nhecimento. Sendo ela mesma também, em parte, construção das sociedades em temporali-
dades e localidades específicas – de forma resumida, sob um específico contexto histórico –,
seu discurso alterou-se, reformulou-se, viveu, enfim, a história como os próprios sujeitos que
se dedicaram sobre ela.

Nesse ínterim, nosso objetivo é analisar o conto de Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”, pre-
sente no livro de contos A legião estrangeira (1964), tomando por base bibliográfica principal
a Crítica da razão pura, de Kant. Não se trata de analisar como Kant, de fato, teria determi-
nado o conteúdo filosófico do texto, mas, sim, sobre como podemos compreender esse conto
considerado comumente tão hermético a partir de uma abordagem epistemológica kantiana.
Pelo exposto, pretendemos interpretar essa específica obra de Lispector como uma teoriza-
ção acerca das possibilidades humanas de conhecer a realidade.

Clarice Lispector: vida, obra e vida como obra


Para além de si mesma é que se encontra o domínio da palavra, e por mais universal que seja
considerada a obra de determinado autor, tanto ele quanto seus escritos são sempre frutos
de seu contexto histórico. Não se trata de determinismo, mas de compreender que para uma
compreensão mais aprofundada do conteúdo estético e filosófico de uma produção literária é
necessário – devido à dialética autor-contexto –, também, atentar ao tempo e espaço onde as
obras se presentificam. É claro que, desde sempre, mas, sobretudo na contemporaneidade,
além do olhar ao externo, faz-se presente também a necessidade de que se lancem olhares
às interioridades. Ainda mais quando falamos de alguém que se dedica tantos aos assuntos
internos como Clarice Lispector, que chega a compor sua obra como um exercício constante
de “autobiografia espiritual” (MOSER, 2017, p. 17).

Clarice Lispector3, interpretada viva e morta das mais diversas formas, “nativa e estrangei-
ra, judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e adulta, animal e pessoa, mulher
e dona de casa”, nasceu em 10 de dezembro de 1920, na província de Tchetchelnik, atual ter-
ritório da Ucrânia, filha de um casal de judeus emigrados russos, Pinkhas e Mania Lispector
(MOSER, 2017, p. 18). Seus pais, após saírem do território russo, passando pelo território
ucraniano e, posteriormente, por terras romenas, mudam-se para o Brasil, aportando nas
cidades de Maceió, Pernambuco e, depois, se mudam uma última vez com o pai de Clarice
ainda vivo para o Rio de Janeiro, em 1935, quando a futura escritora contava quinze anos

2.  Embora desde o início da história da Filosofia tenha-se abordado as possibilidades e limites do conhecimento
humano, o termo “Epistemologia”, o ramo da Filosofia que propõe-se a investigar justamente essa questão, só foi
criado posteriormente pelo filósofo escocês James Frederick Ferrier (1808-1864).
3.  Pouco se sabia disso antes de sua morte, mas “Clarice” é a versão abrasileirada de seu nome russo, Chaya
Pinkhasovna Lispector.

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(MOSER, 2017, p. 111). Em 1943, já formada em Direito, Clarice Lispector se casa com Maury
Gurgel Valente, que conhecera na faculdade, passando a morar em diversos países, até que
se separa do marido em 1959 e regressa ao Brasil com os dois filhos. Sua morte ocorreria em
1977, devido a um câncer de ovário.

Formada em Direito, Clarice Lispector percebe que não é aquilo que gostaria de seguir fa-
zendo. Então, migra com a ajuda de suas relações ao jornalismo. Publica em 25 de Maio de
1940, Triunfo, seu primeiro conto (MOSER, 2017, p. 123). Segue com a atividade jornalística
e literária até que, três anos mais tarde, vem à tona seu primeiro romance, Perto do coração
selvagem (1943), indo ao exterior pouco depois da publicação. Além de seu primeiro livros
os romances mais citados de Lispector na pesquisa acadêmica são: A paixão segundo G.H.
(1964) e A hora da estrela (1977), ademais os menos famosos, Uma aprendizagem ou O livro
dos prazeres (1969) e Um sopro de vida: Pulsações (1978), publicado post mortem. Dentre sua
obra como contista, destacamos aqui Laços de família (1960), Felicidade clandestina (1971) e
A legião estrangeira, foco de nossa análise.

Embora insistisse em descrever a si própria como uma simples dona de casa, Clarice e sua
obra nos abrem possibilidades para compreendermos muito mais acerca de seu tempo e
dela mesma. Clarice posta-se em seus escritos como uma estrangeira. Não por seu nasci-
mento na Ucrânia. Mas por causa da posição em que se colocava de acordo com sua visão de
mundo. Não era apenas seu rosto com formato lupino ou seus “r” afrancesados que a deno-
tavam como exterior ao comum, ao contemporâneo. É exatamente o contrário. É de dentro
de sua própria convivência com o cotidiano, com o banal e o diário, que ela coloca-se como
elemento externo a essa realidade. É exatamente a partir do banal que advém o sentimento
estrangeiro em sua prosa, seja pela diferenciada formulação vocabular, seja pelas experiên-
cias epifanias de suas personagens.

Um recurso constante em sua literatura é a epifania. Um dos estudos principais acerca da obra
de Lispector e sua relação com a epifania é o livro de Olga Sá, A escritura de Clarice Lispector,
vencedor do Prêmio Nacional de Literatura – ensaio e Crítica, em 1980. Nesse livro, a autora,
utilizando-se de Álvaro Lins, diz que, embora mantenha relações com James Joyce, é de Virgí-
nia Woolf que mais se aproxima a prosa de Lispector (Sá, 2000, p. 163). Segundo Sá (2000, p.
201), mesmo não havendo a escrita, em nenhuma parte dos romances, contos ou crônicas de
Lispector da palavra epifania, pode-se perceber em seus textos um corrente uso dessa “poéti-
ca do instante”, que, ademais seus questionamentos ao ato de nomeação das coisas, provém
de sua relação com a linguagem. Em seu estudo, Olga de Sá (2000, p. 192) nos apresenta a
epifania em três tipos diferenciados: 1) epifania-visão, aquela advinda da interferência visu-
al; 2) epifania crítica ou antiepifania, que ocorre na visão crítica do sujeito acerca de si ou de
algo; 3) epifania-linguagem, que se dá quando a própria linguagem se torna agente epifânico.
Quanto a Clarice Lispector, mais especificamente ao analisar Perto do coração selvagem, a
autora nos diz que “Assim como existe em Clarice Lispector toda uma gama de epifanias de
beleza e visão, existe também uma outra das epifanias críticas e corrosivas, epifanias do mole
e das percepções decepcionantes” (Sá, 2000, p. 200). Sendo assim, a obra de Lispector é plural

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quanto ao uso da epifania, o que torna seu texto mais complexo para análise.

Acerca de seu estilo, Sant’anna (1973, p. 191) nos sinaliza que “o foco narrativo não traz inova-
ções ou rupturas violentas em relação aos métodos tradicionais de narrar”. Para além disso,
há, contudo, o uso do discurso indireto livre e de curtos diálogos. Candido nos proporciona
boa continuidade a essa discussão: “O seu ritmo é um ritmo de procura, de penetração que
permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa literatura contemporânea.
Os vocábulos são obrigados a perder o seu sentido corrente, para se amoldarem às necessida-
des de uma expressão sutil e tensa” (CANDIDO, 1977, p. 129). Todos os recursos que compõem
esse estilo inovador são a base para que Clarice Lispector construa, através de um “impulso
essencialmente espiritual” (MOSER, 2016, p. 21) seu árduo e constante trabalho de análise de
si, que dá a ela o poder de tornar sua própria vida objeto de reflexão e arte.

Kant e o conhecimento
Eis o que diz Schopenhauer em O mundo como vontade e representação no apêndice de-
dicado a uma análise crítica da filosofia de Kant: “É bem mais fácil demonstrar as falhas e
os erros na obra de um grande espírito que oferecer um desenvolvimento claro e completo
de seu valor” (SCHOPENHAUER, 2015, p.481). Segundo ele, a obra-prima de um “verda-
deiro grande gênio” teria uma abrangência impossível de calcular em relação aos séculos
e países séculos que poderia influenciar. É dessa forma que Schopenhauer posiciona Kant
na totalidade dos filósofos de sua época, criticando seu tempo, que parecia ter renegado
Kant, que considerava suas obras como “ultrapassadas” em favor do “antigo dogmatismo
realista e sua escolástica” (SCHOPENHAUER, 2015, p.482). Ao revisar a filosofia de Kant,
Schopenhauer aponta que seu maior mérito seria “A DISTINÇÃO ENTRE APARENCIA E
COISA EM SI – com base na demonstração de que entre as coisas e nós sempre ainda está
o INTELECTO, pelo que elas não podem ser conhecidas conforme seriam em si mesmas.”
(SCHOPENHAUER, 2015, p. 484, maiúsculas do autor).

No devir histórico da Filosofia, embora seus contemporâneos e os imediatamente posteriores


a ele não assim o reconhecessem, Kant posta-se como um passo além da dualidade idealismo/
racionalismo versus empirismo, apoiada, respectivamente, em Platão e Aristóteles, represen-
tados modernamente por Descartes e Hume. Seu “duplo combate: contra o empirismo e con-
tra o racionalismo dogmático”, que percebem a razão, respectivamente, como meio e fim re-
flete-se numa análise da razão através da própria razão (DELEUZE, 1975, p. 11-2). Sua proposta
na Crítica da Razão Pura (1781) é, ao invés de, a partir da razão, proceder com o processo de
conhecer o mundo em redor, criticar, primeiramente a razão através da determinação tanto da
fonte quanto da extensão e dos limites dela mesma, instaurando-se, assim, um “auto-exame”
para a “autolegitimação da razão independente da experiência.” (HÖFFE, 2005, p. 38).

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Kant começa sua Crítica da Razão Pura esboçando a primazia da experiência enquanto
fator propulsor do processo de conhecimento: “Se, porém, todo o conhecimento se inicia
com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência” (KANT, 2001, B1).
Muitas coisas poderiam ser ditas acerca de seu complexo sistema filosófico. Contudo, para
esse estudo, de forma específica, privilegiaremos suas reflexões acerca da impossibilidade
do conhecimento da coisa em si devido a barreira do intelecto e do que, por conseguinte,
podemos chegar a conhecer.

Para esse trabalho, nos valemos dentro da obra de Kant da Crítica da Razão, que, por sua vez,
nos será mais útil na forma da Estética Transcendental, sobretudo na sessão Observações
Gerais sobre a Estética Transcendental. Nela, Kant expõe que os objetos tal como os conhece-
mos não são os objetos, em si, porém, tratam-se de representações advindas da sensibilidade
em intermédio com o intelecto, “Quisemos, pois, dizer, que toda a nossa intuição nada mais
é do que a representação do fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal
como as intuímos, nem as suas relações são em si mesmas constituídas como nos aparecem
[...], pois “É-nos completamente desconhecida a natureza dos objetos em si mesmos [...]. Co-
nhecemos somente o nosso modo de os perceber, modo que nos é peculiar, mas pode muito
bem não ser necessariamente o de todos os seres, embora seja o de todos os homens.” (KANT,
2001, A42). Tendo em vista essas reflexões, analisaremos a obra de Clarice Lispector.

O ovo, a galinha e o ovo da galinha


O conto, assim como a maioria das outras formas artísticas literárias, passou, primeira-
mente, por um processo espontâneo de nascimento e desenvolvimento, para, então, poste-
riormente, ser apreendido a partir de teorias classificatórias e explicativas. Segundo Gotlib
(1990, p. 7) “O contador procura elaboração artística sem perder, contudo, o tom da narra-
tiva oral. E conserva o recurso das estórias de moldura: são todas unidas pelo fato de serem
contadas de alguém para alguém.”. Mais antigo que o romance, o conto está intimamente li-
gado a cultura oral, como o atestam os trabalhos de coletânea elaborados sobre os mesmos,
sobretudo a partir de esforços franceses e alemães. A partir do século XVI é que os contos
começaram a ser colocados em forma escrita. O conto, enquanto gênero literário escrito,
nasce atrelado ao apego em relação à cultura do medievo e é divulgado através da disse-
minação da imprensa. Sua teorização, porém, só se efetivará, de forma mais concreta com
Edgar Allan Poe, no século XIX, que diz, dentre outras coisas, que “Se a primeira frase não
se direcionou para esse efeito, ele fracassa já no primeiro passo. Em toda a composição não
deve haver sequer uma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não leve àquele
único plano pré-estabelecido” (POE, 2004, p. 3).

Quanto a Clarice Lispector, mais especificamente em relação a seus contos, podemos perce-
ber duas características básicas: a alteridade e a epifania. Há na maior parte de suas obras cur-
tas um choque epifânico gerado a partir do estranhamento advindo do encontro do “eu” com

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o “outro”. De uma forma mais pormenorizada, a dialética do estranhamento ocorre a partir


do encontro de seres diametralmente opostos, sendo o próprio protagonista-autor – quase
sempre mulher –, na maioria das vezes, um desses seres: trata-se do encontro do humano
com o animal – a barata em A Paixão segundo G.H., o rato esmagado em Procurando Deus
ou do homem com a mulher – Ulisses e Lóri em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
Olímpico e Macabéa em A hora da estrela, além de outras várias combinações possíveis. Para
S’antanna (1973, p. 203-4), contudo, focando seu olhar em Laços de família e A legião estran-
geira, os pares dialéticos que se repetem são quatro, classificados em dois tipos: 1) indivíduos
solitários, a saber 1.1) adulto versus jovem; 1.2) homem versus animal e 2) indivíduos em co-
munhão, especificamente, 2.1) casais e 2.2) duplas de amigos.

Foquemos, agora, mais especificamente em O ovo e a galinha. Esse conto foi escolhido não
apenas pela admiração pessoal que nos inspira. Para além disso, ele também é importante
por representar um avanço de Clarice dentro de sua própria obra e por também representar,
dentro de sua forma comum de desenvolvimento do enredo, essa já nomeada “dialética do
estranhamento”, um aprofundamento da introspecção e da abstração (MOSER, 2017, p. 339).

O ovo e a galinha, como outras obras não o fizeram, foi além de, tão só, ser inspirado no pas-
sado de sua escritora e nas reflexões subsequentes acerca dele, esse conto modificou, conse-
quentemente, sua vida futura: por causa dele, Clarice Lispector foi convidada a palestrar no
Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, onde leram uma tradução da obra.

Contudo, mesmo sendo uma obra extraordinária dentro de uma produção singular de uma
escritora inovadora, O ovo e a galinha não parece ter sido exaustivamente analisado como
ocorreu com outras de suas obras. Apontamos dois motivos básicos para isso: 1) o fato de tra-
tar-se de um conto, não de um romance, sendo, assim, já estigmatizado popularmente; 2) a
própria dificuldade advinda de sua escrita complexa, rica em imagens e simbologias.

Certamente A hora da estrela, A paixão segundo G.H. e Perto do coração selvagem figuram
como as produções mais analisadas e criticadas de Clarice Lispector se fizermos um recorte de
suas produções longas; no caso dos contos, especificamente, destacam-se: Amor e A Imitação
da Rosa, presentes na coletânea Laços de Família, além de Felicidade Clandestina, presente
na coletânea de mesmo nome. Porém, Legião Estrangeira não figura frequentemente entre
as pesquisas acadêmicas. Uma dos motivos para isso pode ser o fato, também apontado por
Clarice, de A Legião Estrangeira ter sido publicado no mesmo ano de A Paixão Segundo G.H.

Segundo Moser (2017, p. 339), contudo, mesmo o livro tendo sido ofuscado por A paixão
segundo G.H., ele, ainda assim, consegue unir narrativas breves inovadoras, servindo “em
termos artísticos, intelectuais, espirituais”, como uma possibilidade imaginativa nova acer-
ca de onde Clarice poderia ir depois da barata. Se A legião estrangeira como um todo parece
ter escapado dos olhares da maioria do público e da crítica, O ovo e a galinha foi ofuscado
ainda mais. Para esse trabalho, localizamos apenas dois trabalhos baseados, especifica-
mente, em analisar O ovo e a galinha. São eles: “Existencialismo e visão existencial no conto

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‘O ovo e a galinha’ de Clarice Lispector”, de Cleusa T. Suiter de Aquino e “Notas sobre ‘O ovo
e a galinha’”, de Mateus Toledo Gonçalves. Todavia, as abordagens apresentadas divergem
da que será utilizada aqui.

Contido na edição aqui usada em dez páginas, O ovo e a galinha é um dos contos mais exten-
sos da maturidade de Clarice Lispector. Para efeitos didáticos de compreensão, dividimos o
conto, todo permeado pelas meditações da narradora em primeira pessoa, em quatro partes
temáticas: 1) do ovo – entre o primeiro e o décimo parágrafo; 2) da galinha – entre o décimo
primeiro e o vigésimo quarto parágrafo; 3) dos agentes do ovo – entre o vigésimo quinto e o
vigésimo sétimo parágrafo; 4) da narradora, agente do ovo – entre o vigésimo oitavo e o trigé-
simo quarto parágrafo. Embora se influenciem mutuamente, cada uma dessas partes possui,
segundo nossa divisão, uma temática acentuada.

Além dessa divisão, para a confecção de nossas análises elegemos, também, hipóteses inter-
pretativas. Sendo O ovo e a galinha um conto repleto de metáforas, queremos aqui apontar
os possíveis significados de determinadas palavras que viabilizariam a apreensão do conto.
Destacamos aqui quatro palavras: 1) ovo, que significaria coisa em si; 2) galinha, que signifi-
caria ser cognoscente4; 3) ver, que significaria conhecer.

Quanto aos acontecimentos, o conto é muito sucinto. Na esfera física, percebemos que o con-
to inteiro se desenrola entre três fatos: a inicial visão do ovo, o fritar dos ovos na frigideira e
o chamado dos filhos para comer. Trata-se de uma obra de caráter singularmente universal:
não há referências geográficas ou cronológicas; tudo gira em torno da meditação sobre o ovo.
Além disso, porém, na esfera mental, nos valendo da divisão exposta acima, podemos apre-
ender o conto a partir de quatro fatos: 1) a meditação sobre as características do ovo, ou seja,
da coisa em si; 2) a reflexão acerca do ser cognoscente que tenta se aproximar da coisa em si;
3) a relação que esse ser cognoscente estabelece com a coisa em si e o conhecimento gerado
a partir disso; 4) reflexões existenciais acerca do indivíduo e sobre maneiras de lidar com a
possibilidade de conhecimento gerada a partir de uma relação com a coisa em si.

Seguindo o viés kantiano explicitado na sessão anterior, percebe-se que, se “de manhã na co-
zinha sobre a mesa” ela vê o ovo e olha-o “com um só olhar” – ou seja, se ela o apreende a partir
dos sentidos e das faculdades mentais –, justamente por ela carregar esse olhar limitado ela
diz, “Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo”, pois o ovo, ou seja, a coisa
em si não pode, por nós, ser apreendida completamente. Como nos atesta a narradora, “Ver
o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver
o ovo.”: está além de nossa capacidade de apreensão sensorial e intelectual. Da coisa em si o
que sempre temos é uma representação baseada em nossos sentidos e processada por nossas
faculdades mentais. Outras citações durante essa primeira parte do conto corroboram com
nossa alegação: “O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propria-

4.  O aspecto cognoscente, além da galinha, será representado também na expressão “agente do ovo”, expressão
com a qual a própria narradora se intitulará posteriormente. Ou seja, trata-se da construção de um único signi-
ficado sob três expressões, uma metáfora através de três palavras carregadas de um significado.

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mente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo.
A você dedico a primeira vez” (LISPECTOR, 2016, p. 303). A partir da primária meditação
que, do primeiro ao segundo parágrafo, converte-se no propulsor epifânico que transforma,
também, o significado da palavra, através de uma epifania na própria linguagem, fazendo
“conhecer” também ser classificado como “ver”, em sentido figurado. A citação a seguir cor-
robora mais ainda com os pontos já expostos: “O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou.
[...]. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entende-lo, sei que se eu o
entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro” (LISPECTOR, 2016, p. 304).

Dito isso, podemos focar nossas atenções na segunda parte temática, “da galinha”. Sabemos
que, mesmo não possuindo aparato sensível ou intelectual suficiente para atingir a coisa em
si, nós, seres cognoscentes, nascemos em meio ao “ovo”, ou seja, do mundo “em si”: é nele que
produzimos representações e habitamos. Sendo assim, como Clarice Lispector nos aponta,
ainda na primeira parte do conto, “Ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo
certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado.”, pois, como ela diz ante-
riormente, “O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.” (LISPECTOR, 2016, p. 304).
Pois, sendo impossível conhecer seu conteúdo interno de forma objetiva, resta-nos compre-
ender sua “casca”, ou seja, sua superfície alcançável por nossos sentidos e capaz de apreensão
por nosso intelecto. É como ela diz posteriormente, “Não toco nele [no ovo]. A aura de meus
dedos é que vê o ovo. Não toco nele. – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida
mundana, e eu preciso da gema e da clara” (LISPECTOR, 2016, p. 304). Sendo assim, podemos
perceber, enfim, que meditar sobre a coisa em si através do processo do conhecimento sem-
pre resulta numa produção parcial, como ela nos diz a seguir, “E eis que não entendo o ovo.
Só entendo o ovo quebrado” (LISPECTOR, 2016, p. 308), pois, “Quanto a quem veio antes, foi
o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma
escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso da realidade”, e, posteriormente,
“A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade, a galinha só tem mesmo é vida inte-
rior. A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de ‘galinha’. A vida interior da
galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em espanto feito
uma doida” (LISPECTOR, 2016, p. 306-7). Portanto, sendo a coisa em si anterior ao mundo
das representações, resta-nos, existencialmente, aceitar a convivência – nós, galinhas e agen-
tes do ovo – com esse “mal desconhecido”, que é o ovo.

Considerações Finais
Percebemos, inicialmente como O Ovo e a Galinha posiciona-se na obra de Clarice Lispector
enquanto uma produção já singular dentro dos outros escritos da autora. Trata-se de um apro-
fundamento nas características principais na escrita da autora. A epifania-visão que ocorre
no início do conto a partir da visão do ovo marcada na primeira frase é o estopim para uma
série de reflexões que transcorrem durante as dez páginas do conto.

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Utilizando-nos de Kant na Crítica da razão pura como marco teórico, nos valemos de suas re-
flexões, sobretudo na “Estética Transcendental” para analisarmos a obra de Lispector. Dentro
de suas ideias, extraímos para esse trabalho as reflexões que versam sobre a impossibilidade
de se conhecer os objetos em si mesmo, sendo o nosso conhecimento sempre representação
baseadas nos sentidos e nas faculdades mentais, e nunca exatidão.

Dessa forma, prosseguimos com a análise do conto, dividindo-o em partes segundo suas te-
máticos. Elegemos quatro partes e atribuímos a elas os conceitos chaves a serem discutidos
no conto. Com tudo visto, percebemos como Clarice Lispector, através da metáfora do ovo e
da galinha, constrói uma reflexão profunda acerca da dificuldade de compreensão da realida-
de devido ao jeito como podemos nos dar ao ato de conhecer.

Referências
AQUINO, Cleusa T. Suiter de. Existencialismo e visão existencial no conto" o ovo e a galinha" de Clari-
ce Lispector. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/18125>. Acesso
em: 10 jun. 2017.

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CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

GONÇALVES, Matheus Toledo. Notas sobre “O ovo e a galinha”. Disponível em: <http://www.revistas.
usp.br/humanidades/article/view/113333>. Acesso em: 10 jun. 2017.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Editora Ática, 1990.

HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

LISPECTOR, Clarice. O ovo e a galinha in: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016. p. 303-313.

MOSER, Benjamin. Clarice: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

MOSER, Benjamin. Glamour e Gramática. In: LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Rio de Janeiro: Roc-
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NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

POE, Edgar Allan. Resenhas sobre Twice-Told Tales, de Nathaniel Hawthorne. Tradução de Charles Kiefer.
Bestiario, Porto Alegre, v.1, n.6, 2004. Disponível em: <http://www.bestiario.com.br/6.html>. Acesso em:
10 jun. 2017.

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SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 2000.

SANT’ANNA, Afonso Romano de. A análise estrutural de romances brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1973.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, 1° tomo. São Paulo: Unesp,
2015.

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Sujeitos históricos e ficcionais: Machado de Assis


e a interioridade no discurso filosófico

Ana Carla L. Marinato


Doutoranda, Letras/UFPE

Pela leitura de Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, percebemos que


se encontra em jogo a tradição do descentramento do sujeito moderno,
que se vê a si mesmo de maneira objetiva, pela perspectiva de uma ter-
ceira pessoa. Construindo personagens que se constituem por meio de
um entrelaçamento de suas experiências públicas e privadas, o texto ma-
chadiano questiona a visão do sujeito como possuindo um self dentro de
si. Assim, é possível entrever uma constituição do sujeito que ultrapasse
a ideia do self como algo interior, oposto ao real externo.

Palavras-chave: Literatura brasileira; Machado de Assis; Subjetividade


moderna.

Publicado em 1904, nos primeiros anos da novíssima república brasileira, o romance Esaú
e Jacó de Machado de Assis se mostra intrigante pela forma como articula a construção dos
personagens e o jogo autoral inscrito nas relações entre as várias instâncias narrativas. O
Conselheiro Aires aparece já no início desse jogo por meio de uma advertência assinada pelo
editor do texto: “M. de A.”. A rede ficcional, desde o início, envolve esse escritor/autor/editor,
Machado de Assis, figura que, naquele momento, já ocupava um lugar de destaque na inte-
lectualidade tropical, a despeito do desconforto que sua literatura suscitava em críticos como
Sílvio Romero.

A narrativa em questão possui um “autor suposto”, o Conselheiro Aires, dono dos cadernos
que deram origem ao romance, o qual também aparece no texto pintado como um persona-
gem bastante singular aos olhos do narrador, que diz ser um gosto “ouvi-lo e vê-lo” (ASSIS,
2001, p. 38). É bem evidente, desde o início, que esse narrador em “terceira pessoa” em nada
se assemelha à pretensão da onisciência realista. O texto caminha, do início ao fim, por uma
estrada interminável, cheia de meandros, de modo que a composição dos sujeitos ficcionais
– autor, personagens, narrador – chama a atenção pela forma como desvela indivíduos pecu-
liares, com papéis em constante mutação, acompanhando o ritmo narrativo sempre envol-
vido na ironia fina que é a marca do texto machadiano. Por outro lado, vemos em evidência
questões relevantes naquele momento: a passagem, no Brasil, do século XIX para o século XX

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viu reascender uma série de valores racionalistas no discurso científico que foram moldados
em uma onda de medicalização e modernização urbanas, a qual engendrou sérios conflitos
entre as várias camadas sociais que se formavam então. Vemos que Esaú e Jacó traz essas
questões histórico-sociais à tona, abrindo caminho, ao mesmo tempo, a uma reflexão que
ocupou largo espaço na filosofia ocidental moderna: como se forma aquilo que entendo por
“eu”? Como as minhas relações com outros indivíduos, a minha vivência social, interferem
na minha forma de conceber o meu self? Pela leitura do texto machadiano, como podemos
pensar a tendência, ainda comum neste século de “pós-verdades”, de se buscar no interior de
si uma verdade essencial?

O capítulo que abre o romance é exemplar: fala-se sobre a subida de duas damas distintas,
Natividade e Perpétua, ao Morro do Castelo, algo penoso para as “pobres donas”, cujos pés
eram mortificados pelo “íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira” que as levava à casa
da famosa Cabocla, a adivinha que iria prever o futuro dos gêmeos, filhos de Natividade (AS-
SIS, 2001, p. 15). O cenário é composto por local e data: Rio de Janeiro, 1871. Percebe-se um
contraste entre o estilo burguês em ascensão naquele contexto e a população local, definido
nos seguintes termos:

Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu
para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou
subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam
espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade; [...] A mesma lentidão do
andar, comparada à rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que
ali iam. Uma crioula perguntou a um sargento: “Você quer ver que elas vão à cabocla?” E
ambos pararam à distância, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que
é muita vez toda a necessidade humana (ASSIS, 2001, p. 15-16).

Vemos como as donas tentam se afastar e se descolar desse cenário que, a princípio, não as
pertence: “cara no chão, véu para baixo”. A profusão de gentes que habitam o morro confere às
pessoas o caráter de massa popular, em que predomina a ausência da singularidade dessas per-
sonagens: são apenas tipos humanos, como uma crioula e um sargento. E é o “invencível desejo
de conhecer a vida alheia” que leva os olhares populares a se lançarem em direção à ponta da
pirâmide social: olhares apenas, à distância, que rodeiam corpos elevados e intocáveis.

Dá-se a entrada na casa da cabocla, por meio de uma “escadinha estreita, sombria, adequada
à aventura”, ambiente que eleva nas personagens a ansiedade sobre a predição que virá. Na
sala de espera, que quebra suas expectativas sombrias por não ter “nenhum apetrecho simbó-
lico, nenhum bicho empalhado, esqueleto ou desenho de aleijões” – nada que se compare aos
assustadores cenários românticos... –, Natividade dá ao pai da Cabocla, o qual as recebera na
casa da adivinha, seu nome de batismo: “Maria, como um véu mais espesso que o que trazia
no rosto” (ASSIS, 2001, p. 16). É perceptível, portanto, a fronteira que as personagens tentam
estabelecer para se afastar daquele cenário bastante popular que, no entanto, começa a dar
mostras de sua presença e influência também na personalidade da mulher do banqueiro pelo
nome simples e comum que possui.

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Os movimentos seguintes levam a um contato bastante intrincado entre as pessoas da trama,


e isso se dá de maneira especial quando o temor da mãe dos gêmeos vai aumentando: “[a]
aventura parecia audaz, e algum perigo possível”; em seguida a entrada da Cabocla se mostra
reveladora: “Entra, Bárbara.”; diferente do nome da dama distinta, temos aí um nome forte,
que aponta para algo como o avesso da civilização, algo marginal; por outro lado, com a no-
meação da adivinha, vemos o início de uma série de individualizações para defini-la: trata-se
de “uma criaturinha leve e breve, saia bordada, chinelinha no pé”, algo que não condiz com
a figura de uma grande adivinha, embora revele na simplicidade “um pouco de sacerdotisa”.
Mas encontra-se, enfim, um mistério, que estava nos olhos, “tão compridos e tão agudos que
entravam pela gente abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entra-
da e outro revolvimento” (ASSIS, 2001, p. 17). Vemos acentuar-se um caráter misterioso que
só poderia ser sustentado pela influência popular que a Cabocla exercia na comunidade ca-
rioca do contexto em questão. E nisso encontramos o início de um envolvimento que tornará
significativamente tênue o véu que Natividade usa para afastar-se dessa condição popular: o
diálogo que se faz, em seguida, mostrará que tal “crendice”, condenada pelos ilustres e racio-
nais homens da ciência, possui um apelo significativo para a dama burguesa. Ao fundo, uma
música popular que o velho pai da adivinha executa ao violão; aflita, “Natividade não tirava os
olhos dela, como se quisesse lê-la por dentro” (ASSIS, 2001, p. 18). Durante a predição, as ações
da Cabocla tencionam ainda mais o ambiente: “[t]oda ela, cara e braços, ombros e pernas, toda
era pouca para arrancar a palavra ao Destino” (ASSIS, 2001, p. 18). Ao fim, a quebra das expec-
tativas românticas, misturada a um ambiente de crenças populares, se dá de maneira acentu-
ada: Bárbara se volta radiante para Natividade, “cheia de alma e riso”, e lança sua predição:

– Coisas futuras! – murmurou finalmente a cabocla.


– Mas, coisas feias?
– Oh! Não! Não! Coisas bonitas, coisas futuras!
[...]
– Serão grandes?
– Serão grandes, oh! Grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefícios. Eles hão de subir, subir,
subir...
[...]
E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que explicar, dava aos quadris o gesto da
toada, que o velho repetia lá dentro […] (ASSIS, 2001, p. 19).

Quebram-se, assim, as expectativas que foram criadas pelas personagens anteriormente, às


quais o narrador já dava seu tratamento relativamente descrente – “[n]ão ponho aqui os seus
gestos; imaginai que eram inquietos e desconcertados” (ASSIS, 2001, p. 17) – em meio ao
envolvimento que opera em direção à consciência de Natividade, o que fica evidente após a
pergunta intrigante da cabocla, a saber, se os gêmeos teriam brigado no ventre da mãe: “Mas
então que era? Brigariam por quê?” (ASSIS, 2001, p. 18), diz esse narrador, que quase toma a
própria voz de Natividade. A fala da cabocla, por outro lado, cheia de generalidades, revela a

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fragilidade da certeza de que o destino dos gêmeos seria de fato promissor, embora se ajuste
aos ouvidos da mãe. Podemos destacar ainda a ironia da repetição do verbo “subir”: ora, é jus-
tamente no alto que elas se encontram; mas a chegada ao topo do morro revela, antes de mais
nada, a facilidade da descida, que se dará no capítulo seguinte. O que fica então é a ação mú-
tua da subida e da descida, ações que se cruzam e se confundem, simulando o fluxo evidente
de contato entre os diversos personagens em cena.

Esse cenário nos leva a pensar em uma relação entre burguesia ascendente e classes popu-
lares muito mais intrincada do que os propósitos reformadores, durante o surgimento das
metrópoles brasileiras, previam: não era possível eliminar do âmbito burguês as influências
de uma cultura popular pautada em crenças que estavam enraizadas no cotidiano brasileiro.
A própria audácia do evento, uma vez que se mostrava vergonhoso pelos gestos de Nativida-
de, eleva seu envolvimento com essa predição que irá circunscrever grande parte das ações
que se seguirão no romance. Vemos surgir, assim, a despeito das tensões em direção a um
ideal de racionalidade sempre presente, sujeitos que se criam mutuamente, desbancando os
propósitos racionalizadores do discurso científico de então, que tendia a tratar o indivíduo
como um simples objeto opaco, uma peça que se ajusta em favor de uma engrenagem coletiva
homogênea. O que se percebe, no fim das contas, é a construção de uma rede complexa de
pessoas que se afetam: cada personagem tem propósitos distintos no desenvolvimento das
ações; entre eles, forma-se um laço que repercute em comportamentos individuais próprios,
ao mesmo tempo íntimos e públicos.

O movimento operado pelo narrador é significativo nesse contexto. O olhar que lança sobre
os personagens ao longo da cena será característico do que virá ao longo de todo o romance:
ao mesmo tempo em que se envolve com os personagens, penetrando-lhes, em certa medi-
da, as consciências, afasta-se de suas expectativas, algo que contribui na configuração de sua
individualidade: diferente de Natividade, com seus anseios e expectativas características do
gosto romântico e da fé religiosa, ele se distancia, inserindo na cena, como um autor que dá
os direcionamentos que bem deseja à sua obra, um cenário simples, uma cabocla igualmente
simples, e uma toada que desfaz qualquer seriedade espiritual.

A entrada de Aires no romance confere novos efeitos a essa rede de subjetividades. Após os
capítulos bastante polêmicos – XII. Esse Aires e XIII. A epígrafe – que têm o propósito de
apresentar o diplomata ao leitor, vemos desenrolar-se um diálogo entre ele, Santos e o velho
Plácido. Em um primeiro momento, o diplomata vê o absurdo da suposição de duas crianças
brigarem no ventre da mãe; em seguida, vendo que a conversa poderia levar horas, o conse-
lheiro lança mão de uma série de argumentos que, se por um lado, revelam-se igualmente ab-
surdos para um leitor incrédulo, por outro lado se mostram instigantes para o pai dos gême-
os, obcecado com o enigma (ASSIS, 2001, p. 42). Essa atuação parece preparar o terreno para o
capítulo que vem a seguir: surge, na conversa entre Santos e Plácido, uma série de suposições
acerca da briga, suposições arbitrárias e nada diferentes da crença na cabocla – a propósito,
foi a própria pergunta da cabocla a respeito da briga dos bebês que fez surgir o encontro com
o sábio Plácido –, a despeito do “desdém” dos personagens em relação à adivinha. Vemos um
posicionamento tão incrédulo quanto o de Aires por parte do narrador:

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Santos expôs então a consulta, gravemente, com um gesto particular que tinha de arregalar
os olhos para arregalar a novidade. Não esqueceu nem escondeu nada; contou a própria ida
da mulher ao Castelo, com desdém, é verdade, mas ponto por ponto (ASSIS, 2001, p. 43).

As “revelações” que surgem durante a conversa se mostram bastante características de um es-


piritismo que, se por um lado nada tem em comum com as ideias de uma burguesia moderna,
por outro está revestido de uma espécie de encadeamento lógico, necessário para legitimar
a verdade que se deseja encontrar. A conclusão de Plácido se mostra, enfim, reveladora, mas
sob um aspecto diferente do que supõem os próprios personagens, pois não se vê nada além
de um tributo pago a um conjunto de preceitos nada racionais:

– Deixe às senhoras as suas crenças da meninice, conclui; se elas têm fé na tal mulher do
Castelo, e acham que é um veículo de verdade, não as desminta por ora. Diga-lhes que eu
estou de acordo como seu oráculo. Teste David cum Sibylla.
– Digo, digo! – escreva a frase (ASSIS, 2001, p. 44-45).

É por meio de uma crença que os personagens supõem ter chegado à “verdade”, subestiman-
do outra crença, de igual teor. Vemos uma briga pela primazia da verdade, configurando um
movimento que mais parece uma briga de crianças, arbitrária, similar ao confronto que se de-
senvolverá entre os gêmeos ao longo do romance. Um sentimento de certeza paira nesse con-
texto, a sensação de que o mistério será pouco a pouco revelado; entretanto, paradoxalmente,
aos olhos do leitor esse sentimento se torna algo cada vez mais distante, frágil e, ao fim e ao
cabo, desgastado. Concluímos, diante disso, que as únicas verdades a que temos acesso são
os atos e discursos, fluidos e inconstantes, dos personagens. O narrador deixa os personagens
falarem por si para, em seguida, rearranjar a linguagem deixando a ver os contrastes que de-
lineiam a atuação de suas criaturas. E, com seu olhar e seu envolvimento no mundo desses
personagens, cria neles uma consciência que é consequência de seu próprio estar no mundo
narrativo. O que se mostra, portanto, revelador, é o modo como esse narrador, unindo-se a
“esse” Aires, focaliza os atos e discursos, deixando à vista seu aspecto provisório, a despeito
da pretensão das “verdades eternas” – que, como afirma Aires, “pedem horas eternas” (ASSIS,
2001, p. 41), das quais ele certamente não dispõe.

Se voltarmos, por outro lado, à figuração dessa personagem central que é o Conselheiro Ai-
res, veremos que há uma conexão singular entre ele e o narrador. As descrições que ele faz
do Conselheiro, com toda a sua experiência de diplomata, revelam a personalidade forte e
marcante do narrador, estabelecendo um vínculo próprio com Aires. Esse movimento já pode
ser vislumbrado na abertura do romance, ao falar da Cabocla, momento em que o narrador
lança, de saída, um olhar próprio sobre as pessoas e o contexto em questão:

Era a primeira vez que as duas iam ao Morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado
da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido,
muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem
uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos
anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da
metrópole e do mundo (ASSIS, 2001, p. 15).

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Junto à narrativa, surge uma experiência individual desse narrador que, à semelhança de
Aires, conhece não só o Rio de Janeiro como também a Europa (ou ao menos parte dela). Os
acontecimentos surgem lado a lado às suas experiências, oferecendo uma base para as refle-
xões que se encadeiam ao longo de todo o romance. Sua vida e sua personalidade se mostram
sob esse aspecto, deixando claro que ele mesmo não se vê como um narrador onisciente, de
terceira pessoa, que observa os acontecimentos à distância. Algumas páginas à frente, no
mesmo capítulo, opera-se um novo jogo de posicionamento desse narrador na história: ao
descrever os gestos da cabocla do Castelo enquanto previa o futuro dos gêmeos, deparamo-
-nos com a seguinte afirmação: “Custa-me dizer que acendeu um cigarro, mas digo, porque
é verdade [...]” (ASSIS, 2001, p. 18). A expressão “é verdade”, usada com certa frequência em
todo o texto, longe de opor-se ao motivo ficcional, serve a provar que esse narrador conhe-
ce de perto os acontecimentos que narra, e lança sobre eles o seu próprio olhar. Ao fim do
romance, no penúltimo capítulo, ele chega ainda a afirmar que leu a certidão de batismo de
Natividade (ASSIS, 2001, p. 205), como se perscrutasse a vida daquela senhora, à maneira de
um paparazzi ou um biografista obstinado, sentindo a necessidade de revelar a verdade dos
fatos ao mesmo tempo em que constata a impossibilidade desse gesto.

Além de lançar mão de suas próprias experiências, caracterizando-se na escrita enquanto ser
que possui estatuto semelhante ao dos personagens que ele mesmo descreve, esse narrador
também se mostra consciente do recorte que realiza para compor a narrativa. Ainda no ca-
pítulo inicial, tal consciência pode ser entrevista em meio à narração da previsão da cabocla:

Bárbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabelos em cada mão, e fitava-as,
e cheirava-as, e escutava-as, sem a afetação que porventura aches nesta linha.Tais gestos não
se poderiam contar naturalmente (ASSIS, 2001, p. 18).

Em um gesto de trapaça ao leitor, que, na reiteração das conjunções juntamente com os verbos
que indicam atitudes sensitivas, poderia encontrar espaço para uma afetação – uma eloquên-
cia romântica, talvez –, o narrador desbanca não só a suposta transcendentalidade dos gestos
da Cabocla, como também a ideia de transparência da linguagem. Isso revela, por um lado,
o teor da narrativa que se desenvolverá a partir de então – um teor nada romântico e muito
menos realista – e, por outro lado, a personalidade desse “eu” que aparece na escrita, nada
afeito a romantismos ou realismos, o qual sabe do papel que exerce na trama que dá forma.

“Cogito, ergo sum”: o sujeito cartesiano e a narrativa machadiana


O propósito racionalizador que, em certa medida, orienta as atitudes de Santos, Natividade
e também do velho Plácido, pode ser pensado em paralelo a uma problemática filosófica pre-
sente em grande parte do pensamento ocidental moderno sobre a construção da subjetividade
humana. O valor de verdade que subjaz a esse propósito possui uma base cartesiana, reorien-
tada de acordo com as novas demandas intelectuais que surgiram ao longo do século XIX.

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Se nos debruçarmos sobre a “Meditação Segunda” do filósofo francês, veremos que a pri-
meira certeza fundamental é a certeza de que existo por meio de minha ação de pensar. Sou,
portanto, uma “coisa que pensa”. A existência de um “eu” está então garantida e estabelecida:
“Pois é por si tão evidente que sou eu quem duvida, quem entende e quem deseja que não
é necessário nada acrescentar aqui para explicá-lo” (DESCARTES, 1991, p. 177). Em seguida,
a certeza da existência desse “eu”, como “coisa que pensa”, surge também a partir do enten-
dimento que se tem de um corpo externo, como uma cera, que só pode ser conhecida pelo
pensamento, visto que o plano sensível pode iludir (DESCARTES, 1991, p. 179-180). Assim, a
apreensão do espírito se mostra mais fácil, uma vez que o corpo extenso possui uma natureza
duvidosa, diferente do espírito, cuja certeza da existência pode ser obtida por meio mesmo
do conhecimento de um corpo externo, já que esse conhecimento pressupõe a ação de pensar
(DESCARTES, 1991, p. 180). Vemos aí brevemente esboçado algo como uma teoria do conhe-
cimento do mundo e do conhecimento de si pautada na objetificação racional operada por
uma coisa que pensa – que entendemos como um sujeito. Sob esse ponto de vista, o sujeito
possui um caráter fundacionista, pois que é a origem da ação responsável pela formação de
todo o conhecimento. A oposição estabelecida posteriormente entre corpo e alma pode ser
previamente vislumbrada nessa relação de causa e efeito que encontramos entre ser e pensa-
mento. O ser pensante é a origem de todo o pensamento, é o autor dessa ação.

O conhecimento será buscado, então, dentro do próprio ser, por isso Charles Taylor entende
esse procedimento como uma “internalização das fontes morais”, passo importante na cons-
tituição do self moderno (TAYLOR, 1997, p. 189). Para Taylor, Descartes contribuiu significa-
tivamente para promover uma mudança fundamental em relação, de um lado, à tradição da
filosofia platônica e, de outro, à tradição da filosofia cristã agostiniana. Platão supunha que
o conhecimento racional deveria ser formado pelo descobrimento da ordem correta do cos-
mos, por meio de um envolvimento entre alma e corpo; o método mecanicista de Descartes,
contrariamente, requer o desprendimento da alma em relação ao corpo, para que o sujeito
seja capaz de elaborar por si próprio o conhecimento do mundo:

Poderíamos dizer que a racionalidade não se define mais em termos substantivos, segundo a
ordem do ser, e sim procedimentalmente, segundo modelos de acordo com os quais cons-
truímos ordens na ciência e na vida. Para Platão, para ser racionais temos de estar certos a
respeito da ordem das coisas. Para Descartes, racionalidade significa pensar de acordo com
certos cânones. O julgamento agora volta-se mais para propriedades da atividade do pensa-
mento que para as crenças substantivas que emergem dela (TAYLOR, 1997, p. 206).

Por outro lado, se a interioridade agostiniana tinha como propósito encontrar um plano su-
perior dentro de si, tornando-se o sujeito dependente dessa transcendência,

[p]ara Descartes, ao contrário, toda [sic] o objetivo da virada reflexiva é obter uma certeza
auto-suficiente. O que obtenho no cogito e em cada passo sucessivo na cadeia de percepções
claras e distintas é exatamente esse tipo de certeza, que consigo gerar para mim ao seguir
o método certo (TAYLOR, 1997, p. 207).

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A ideia de interioridade será fundamental, a partir de então, para a discussão filosófica oci-
dental sobre a subjetividade. Taylor entende que, com a razão desprendida de Descartes e o
self “pontual” de Locke, o pensamento, não só científico como também filosófico, mergulhou
no método reflexivo de maneira incontornável, sendo que o posicionamento do sujeito do
conhecimento na primeira pessoa, diferenciando-se do objeto do conhecimento enquanto
terceira pessoa, instalou um “mal-estar filosófico”, na medida em que se torna agora estranha
a perspectiva extramundana da subjetividade humana.

Se voltarmos ao texto de Machado veremos, entretanto, que o texto caminha em uma direção
bastante divergente da orientação cartesiana. Se por um lado a ironia machadiana desmonta
qualquer propósito romântico, por outro lado não é exatamente pelo viés da estética realista,
com seu propósito racional, que o texto é construído. O modo como a focalização narrativa
se desenvolve ao longo do romance, bem como sua relação com a figura de Aires, são bastante
sintomáticos: vemos inscrito no jogo autoral – Aires como autor suposto e, ao mesmo tempo,
personagem; Machado de Assis como editor dos cadernos de Aires, seu personagem –, em
consonância com a relação estabelecida entre as instâncias narrativas, uma maneira singular
de pensar a construção da subjetividade humana. A suposta onisciência que percorreria o
olhar desse narrador em “terceira pessoa”, é desmontada quando ele assume o papel daquele
imprime, na narrativa, um caráter muito próprio, revelador de uma individualidade que não
para de se afirmar, de deixar suas reflexões e orientar a ordem dos eventos de acordo com o
seu desejo. Do mesmo modo, os personagens que esse narrador descreve afetam constante-
mente o seu olhar, demonstrando ora certa simpatia a uns – como Aires, homem maduro e
moderado –, ora alguma compaixão a outros – como Natividade, mãe apreensiva em relação
ao destino dos filhos. Por outro lado, a rede que se forma nas relações entre o narrador, os
personagens e o autor suposto – papel este que é frequentemente reivindicado pelo narrador
–, ao se estender à figura do escritor pela assinatura “M. de A.”, faz com que repensemos a re-
lação de causalidade estável que existiria entre o texto e sua origem: desmonta-se a raciona-
lidade do discurso lógico, investe-se no jogo linguístico-literário, confundem-se os papéis, e
os sujeitos em questão vão se formando mutuamente ao longo da narrativa, comandada por
um “eu” múltiplo, que oscila entre as esferas públicas e privadas.

Se, por um lado, há uma individualidade que se afirma, por outro lado essa individualidade
problematiza a necessidade de se ver a si mesmo como algo interior e afastado de suas rela-
ções com os outros indivíduos. O modo como a vida pública invade e molda o mundo priva-
do do casal, o movimento sempre oscilante de um narrador que percorre a vida dos outros,
afetando-se a si e a sua narrativa, a tendência em ver na figura de Aires uma figura capaz de
contribuir para a composição do seu texto, seja pela citação de trechos do seu Memorial, seja
pelas observações lúcidas na conversa cotidiana com os outros personagens – tudo isso leva
a pensar em uma intersubjetividade que desmonta o dualismo presente entre corpo e alma,
interioridade e exterioridade – dualismo esse que percorre a vida moderna e a contemporâ-
nea, do qual, na vida prática, não conseguimos nos desfazer. As interferências do narrador,
deixando sempre claro que existe uma distância entre o que supostamente ocorreu e o relato,
revela que essa dualidade está sempre presente, o que acaba por suscitar novos conflitos e
novas respostas a esses conflitos.

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Experimentamos, na leitura de Esaú e Jacó, uma vivência literária que provoca a constante
revisão dos valores cartesianos que orientam a nossa vida até a atualidade. Apagar esses
valores, entretanto, não parecia ser um horizonte possível para esse escritor tão cético e
descrente; revisá-los, sim, parece ser a proposta desse romance – mas nada de cenho fran-
zido, que um bom apreciador do texto machadiano sabe levar, no canto da boca, um riso
de prazer e consolação.

Referências
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Martin Claret, 2001.

DESCARTES, René. Discurso do método; As paixões da alma; meditações; objeções e respostas. 5. ed. In-
trodução: Gilles-Gaston Granger; Prefácio e notas: Gérard Lebrun; Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado
Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral,
Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

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Esforço imaginante e imagem seminal


na criação literária

Igor Gonçalves Miranda


Graduado, Letras/UFS

Este trabalho visa aproximar a criação literária da filosofia de Henri Ber-


gson. Através de imagens que se transformam a cada fase do processo
criativo, destaca-se o conceito de imagem primordial ou seminal em três
autores de ficção que comentam seu fazer criador: Confissões de um jo-
vem romancista (2013), de Umberto Eco; Seis propostas para o próximo
milênio (2003), de Italo Calvino; e Valise de cronópio (1993), de Julio Cor-
tázar. Inferimos que a narrativa é o laboratório de imagens resultantes de
um esquema dinâmico do esforço imaginante.

Palavras-chave: Esforço imaginante. Imagem seminal. Criação literária.

Este texto aborda a imagem a partir da criação literária e a enlaça ao estatuto que adquire
na filosofia de Henri Bergson. As referências a Henri Bergson que versam sobre este esta-
tuto inclui comentários sobre a sua obra de amadurecimento O pensamento e o movente:
ensaios e conferências (2006), além da tese Subjetividade e imagem: a literatura como
horizonte da filosofia em Henri Bergson (2002), de Rita Paiva, que deu uma ampla contri-
buição para este artigo.

A filosofia de Bergson traça um percurso que enfatiza a preponderância da imagem sobre a


racionalidade (PAIVA, 2002). O estatuto diferenciado que a imagem adquire encontra sua
maior expressão nos escritos mais tardios do filósofo, como é o caso de O pensamento e o mo-
vente (2006), e para entendermos este estatuto são necessários os conceitos de esforço ima-
ginante, duração e intuição – cuja reflexão está condensada nas duas primeiras introduções
do volume. Nos capítulos “O real e o possível” e “A percepção da mudança”, Bergson insere o
artista como arauto da atenção a vida, da intuição. Este percurso conduz à conclusão de que
a imagem é a forma de expressão criadora por excelência. Como portadora de imagens, a lite-
ratura é o instrumento cristalizador da duração, tal como a concebe Bergson (PAIVA, 2002).

Para compreender a duração é preciso compreender a intuição, que apreende a realidade sem
os mecanismos lógicos e pragmáticos da linguagem cognitiva. A intuição acontece em deter-
minado momento em que há plena atenção à vida e através dela nós apreendemos a duração

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interior, portanto, é método de conhecimento imediato. Essa consciência de si revela nosso


íntimo, pois apreendemos mais diretamente a realidade com a qual coincidimos.

A atenção pode tornar mais preciso, iluminar, intensificar: ela não faz surgir, no campo da
percepção, aquilo que ali não se encontrava de início [...]. Com efeito, há séculos que surgem
homens cuja função é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não percebemos natu-
ralmente. São os artistas. O que visa a arte, a não ser nos mostrar, na natureza e no espírito,
fora de nós e em nós, coisas que não impressionavam explicitamente nossos sentidos e
nossa consciência? O poeta e o romancista que exprimem um estado de alma decerto não
a criam peça por peça [...]. À medida que nos falam, aparecem-nos matizes de emoção que
podiam estar representados em nós há muito tempo, mas que permaneciam invisíveis: assim
como a imagem fotográfica que ainda não foi mergulhada no banho no qual irá ser revelada.
O poeta é esse revelador (BERGSON, 2006, p. 155).

Toda imagem literária se desenvolve mediante o intercurso entre intuição e linguagem e pa-
ralelamente entre duração contínua da atenção à vida e segmentação lógica ou racionalização
discursiva. O pensamento sempre emprega a linguagem tanto para as noções do intelecto
quanto para a intuição, ou seja, “a intuição, como todo pensamento, acaba por alojar-se em
conceitos: duração, multiplicidade quantitativa e heterogênea [...]” (BERGSON, 2006, p. 33).
A intuição instaura-se numa continuidade de imprevisível novidade, no entanto, a lingua-
gem atualiza a novidade como arranjo de elementos preexistentes; por isso as noções do
intelecto são claras para o pensamento, são fáceis de serem elaboradas, mas as da intuição,
não: “entende-se com isso que ele [o artista] está menos preocupado do que nós com o lado
positivo e material da vida. É no sentido próprio da palavra, um ‘distraído’” (2006, p. 157). A
criação de imagens literárias forma-se nesse jogo entre atenção à vida e a transformação desta
atenção em imagens verbais.

Para Bergson (2006), a obra de arte é um exemplo de intuição e da duração no momento da


criação porque proporcionam um contato direto com a realidade interior. A obra de arte li-
terária é fruto de intuições vertidas em imagens verbais, portanto, essas imagens são a repre-
sentação complexa do esforço imaginante. Este esforço é orientado pela relação minimizada
com a linguagem pragmática e pela maximização da imagética que caracterizam a criação
artística e, desta forma, assimila-se à dimensão processual da duração, de onde a intuição
brota e coexiste com a imaginação literária:

[...] é por um esforço da imaginação que nos inserirmos na intuição e, coextensivamente,


na duração, torna-se plausível a assertiva segundo a qual uma inteligência transmudada pela
franja de vida que a circunda é também um pensamento permeado pelo movimento criador
da imaginação. Em sua impertinência, as imagens engendradas pela imaginação sugerem a in-
tuição, ainda que não a traduzam obliquamente ou por uma via indireta (PAIVA, 2002, p. 360).

A imagem literária – que aparece com diferentes nomes para cada autor de ficção abordado:
tema do conto, caçadora de realidade, ideia ou imagem seminal, imagem visiva, fantasia –
ganha um status preponderante para os autores abordados, no que concerne à concepção da
obra literária, erigida pelos movimentos criadores da atenção à vida. A imaginação é o esforço

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que nos leva diretamente ao intuído, à interioridade do ser, permitindo-nos coincidir com ela
assim como coincidimos com a nossa própria interioridade.

A narrativa ficcional orienta o esforço imaginante a produzir uma imagem seminal durante
criação literária, uma imagem que se nutre tanto dos recursos imaginários fornecidos pela
intuição quanto de imagens culturais, acumuladas em sua formação como ser social: “A in-
serção do esforço imaginante em que se atualizam virtuais em um incessante devir, constitui,
enfim, a de apropriações simbólicas que contraditam substancialmente o caráter instrumen-
tal, como a prosa, a poesia, a obra literária em geral” (PAIVA, 2002, p. 392).

Os textos escolhidos para abordagem do tema foram de autores de ficção que comentam sobre
o processo de criação literária de outros autores e sobre seu próprio fazer literário. Através de
imagens que se transformam a cada fase do processo criativo, destaca-se a imagem primor-
dial ou seminal em três autores de ficção: Confissões de um jovem romancista (2013), de Um-
berto Eco; Seis propostas para o próximo milênio (2003), de Italo Calvino; e Valise de cronópio
(1993), de Julio Cortázar. Cita-se como aporte o prefácio do texto Os nossos antepassados: O
visconde partido ao meio; O barão nas árvores; O cavaleiro inexistente (2014), cujo prefácio
escrito por Calvino expõe uma reflexão sobre os processos criativos dos romances fantásticos.

Além de descrever a concepção da imagem literária seminal através do esforço imaginan-


te, demonstra-se que, ao comentarem sobre a criação literária, os autores recorrem aos
próprios mecanismos da ficção, ou seja, somente através de imagens e metáforas podem
ser compreendidos. O discurso sobre a criação literária exige, no caso desses autores, um
fundo ficcional comum para delinear perfis próprios. Esse bojo é erigido pela relação e
constituição das imagens literárias.

As Seis propostas para o próximo milênio (1990) são conferências a serem proferidas em Har-
vard. Estas propostas foram baseadas em duas certezas frente ao caos que o mundo con-
temporâneo implanta a fim de dirimir a importância da arte literária; a primeira delas é que
“o futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura pode nos dar”, e a
segunda é de situar “alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura” neste mi-
lênio (1990, p. 11). Em cada proposta, Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicida-
de (a sexta, Consistência, não chegou a ser escrita), Italo Calvino expõe a questão do esforço
imaginante e da imagem seminal na literatura. Considera-se aqui as três primeiras propostas
como imagens literárias que reverberam na criação literária e na história da literatura: ima-
gens da leveza, imagens da rapidez e imagens da exatidão; a quarta proposta, Visibilidade,
Calvino traz uma reflexão teórica sobre seu fazer literário e define a imaginação literária, a
imagem visiva como imagem primordial, e as distensões entre fantasia e intelecto ou sobre o
controle do discurso verbal. Este artigo restringir-se-á à “Leveza” e à “Visibilidade”.

Em Leveza, Calvino escreve que, ao iniciar sua atividade literária, o escritor tinha o dever de
representar a época. Ele se refere ao final de 1940, à Itália do pós-guerra. Antes de escrever ro-
mances fantásticos, escrevia ficção neorrealista, entre contos, destaca-se um romance curto,

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de 1946, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2004 com o título A trilha dos ni-
nhos de aranha. Mas o assunto que nutria sua ficção neorrealista se esgotou depois de muitas
tentativas encerradas na gaveta.

Calvino não se encaixava na aura de seriedade e preocupação que habitava o clima daqueles
tempos e que o neorrealismo soube muito bem expressar: “Logo me dei conta de que entre
os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, im-
petuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar”
(CALVINO, 1990, p. 16). Para a superação desta tensão entre a atmosfera austera daqueles
dias e o impulso criador, Calvino lança-se na seara do fantástico, dividido entre o dever de
representar as tensões da época através da estética neorrealista e o sentimento de inaptidão.

A primeira imagem seminal que lhe passar a existir na mente é de um homem cindido ao
meio no sentido longitudinal, sendo que cada uma das partes andava por conta própria. A
segunda, a de “um jovem que sobe numa árvore [...]; pronto: sobe, e de árvore em árvore viaja
dias e mais dias ou melhor, não desce mais, recusa-se a descer para o chão, passa o resto da
vida nas árvores” (CALVINO, 2014, p. 13); a terceira a de “uma armadura vazia que anda e fala
como se alguém estivesse dentro dela” (CALVINO, 1990, p. 104). Estas histórias fantásticas re-
presentam três “completudes” (CALVINO, 2014, p. 18): para além das mutilações sociais; para
a autodeterminação individual, mas não individualista; e para figurar emblematicamente a
conquista do ser:

No começo de toda história que escrevi existe uma imagem que gira em minha cabeça, vinda
não se sabe de onde e que talvez eu carregue durante anos. Pouco a pouco me dá vontade
de desenvolver essa imagem numa história com princípio e fim, e ao mesmo tempo – mas
os dois processos são com frequência paralelos e independentes – convenço-me de que ela
encerra algum significado. Quando começo a escrever, porém, tudo isso ainda se acha em
estado lacunoso em minha cabeça, nada mais que um esboço. É só à medida que vou escre-
vendo que cada coisa acaba encontrando o seu lugar (CALVINO, 2014, p. 9).

O intuito é refletir brevemente a literatura fantástica, pois é notável que o fantástico com o qual
Calvino caracteriza sua escrita aparece justamente nessa época de tensões políticas e austeri-
dades econômicas, sugerindo a ideia do fantástico como imagem do equacionamento dessas
tensões através das imagens literárias que esta estética produz: “E aconteceu que, ao escrever
uma história de todo fantástica, sem me dar conta acabei exprimindo não só o sofrimento da-
quele período particular como também o impulso para sair dele” (CALVINO, 2014, p. 9).

Sua criação literária muda de acordo com a realidade a sua volta. Essa mudança se dá pela
transformação da realidade no que diz respeito ao arrefecimento da tensão de um eminente
conflito mundial. Retomando a atmosfera desta época e refletindo sobre o alívio das tensões
que a atenção à literatura lhe impõe, as imagens da leveza surgem na primeira das Seis pro-
postas (1990). A primeira delas é mítica, citação que ilustra a escolha que Calvino faz e talvez
a necessidade de escrever através de imagens ou sugerindo imagens, que se tornam primor-
diais para chegar ao seu objetivo:

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Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a ca-
beça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nu-
vens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por
uma imagem capturada num espelho. Sou tentando de repente a encontrar nesse mito uma
alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo
(CALVINO, 1990, p. 16).

Italo Calvino cita um trecho da poesia clássica de Ovídio em que Perseu coloca a cabeça da
Medusa no chão para poder lavar as mãos depois da batalha para a libertação de Andrômeda,
mas não o faz senão antes “amenizar a dureza do solo com um ninho de folhas” (1990, p. 18).
Esta é a imagem da leveza que a literatura clássica grega legou: “A leveza de que Perseu é o
herói não poderia ser melhor representada, segundo penso, do que por esse gesto de refres-
cante cortesia para com um ser monstruoso e tremendo, mas mesmo assim de certa forma
perecível, frágil (CALVINO, 1990, p. 18).

Imagens literárias da leveza. Imagens que não se referem, por si mesmas, a uma filosofia ou
doutrina. As imagens puras perfiladas na mente do poeta transmitem somente o sentimento
e a emoção, alheias à interpretação ou explicação são as imagens da criação literária: “a le-
veza é algo que se cria no processo de escrever, com os meios linguísticos próprios do poeta,
independentemente da doutrina filosófica que este pretenda seguir” (CALVINO, 1990, p. 22).

A imagem da leveza, além de primordial, é uma imagem determinada e precisa. É uma clara
imagem da leveza, para não confundir com pouca nitidez ou imprecisão da imagem, trata-se
assim de (1) uma leveza cuja a expressão na sua forma também encerra o significado “leve”,
“rarefeito”; (2) a narração de um pensamento abstrato, como o exercido pela filosofia e (3) uma
imagem figurativa da leveza que assumo um valor emblemático (CALVINO, 1990). Talvez cai-
ba aqui outra característica (4) da imagem da leveza na literatura que remete à brevidade das
palavras. As imagens da leveza podem ser tão breves quanto leves são, e há uma equalização
entre essas duas características: a quantidade de matéria estilística em proporção ao sentido
de leveza que é encerrado por ela:

Há invenções literárias que se impõe à memória mais pela sugestão verbal que pelas pala-
vras. A cena em que Dom Quixote trespassa com a lança a pá de um moinho de vento e é
projetado no ar, ocupa apenas umas poucas linhas no romance de Cervantes; pode-se dizer
que o autor nela não investiu senão uma quantidade mínima de seus recursos estilísticos;
nada obstante, a cena permanece como uma das passagens mais célebres da literatura de
todos os tempos (CALVINO, 1990, p. 21).

A última imagem da leveza que Calvino utiliza para ilustrar a profusão de imagens literárias
em seu discurso nos remete ao começo no qual comenta a relação do escritor com a realidade
a sua volta. O cavaleiro no balde (1917), de Franz Kafka, também se trata de um conto fantásti-
co escrito durante o período de mutilações e austeridade da Primeira Guerra Mundial e retra-
ta o inverno austríaco onde a posse de carvão era necessidade vital. Desta forma, um homem
monta em um balde como se fosse um cavaleiro e parte para a carvoaria, de onde é enxotado

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como uma mosca: “A cuba é tão leve que voa para longe com o seu cavaleiro até perde-se além
das Montanhas de Gelo” (1990, p. 41). Esta imagem literária da leveza resume a reflexão sobre
o papel da linguagem na criação literária: “a literatura como função existencial, a busca da
leveza como reação ao peso do viver” (CALVINO, 1990, p. 39).

No texto “Visibilidade”, Calvino explica a produção de imagens na literatura ao distinguir


duas formas de caminhos imaginativos: da palavra à imagem visiva e da imagem visiva à ex-
pressão verbal (1990, p. 99). Para ilustrar este processo, Calvino explica sua experiência de
criação: “a primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é, pois, a imagem”
(CALVINO, 1990, p. 104).

Há dois processos imaginativos na criação literária: o primeiro caminho, “da palavra à ima-
gem visiva” corresponde à leitura: “lemos por exemplo uma cena de romance ou a reportagem
de um acontecimento num jornal, e conforme maior ou menor eficácia do texto somos leva-
dos a ver a cena [...], se não toda a cena, pelo menos fragmentos e detalhes que emergem do
indistinto” (1990, p. 99). O segundo caminho, corresponde ao esforço imaginante: “o poeta
deve imaginar visualmente tanto o que seu personagem vê [sonha, recorda, representa e lhe
é contado] assim como deve imaginar o conteúdo visual das metáforas de que se serve preci-
samente para facilitar essa evocação visiva” (CALVINO, 1990, p. 99).

Esta imagem primordial é desenvolvida pela narrativa que produz uma profusão de imagens
através de mecanismos próprios da escrita ficcional, cuja figuração acontece através de alego-
rias, analogias e contraposições; estas imagens organizam-se numa intenção que as direcio-
na: o esforço imaginante. A criação literária exige um controle da linguagem discursiva:

Em suma meu processo procura unificar a geração espontânea das imagens e a intenciona-
lidade do pensamento discursivo. Mesmo quando o impulso inicial vem da imaginação visiva
que põe em funcionamento sua lógica própria, mais cedo ou mais tarde ela vai cair nas
malhas de uma outra lógica imposta pelo raciocínio e a expressão verbal. Seja como for, as
soluções visuais continuam a ser determinantes, e vez por outra chegam inesperadamente
a decidir situações que nem as conjecturas do pensamento nem os recursos da linguagem
conseguiriam resolver (CALVINO, 1990, p. 106).

O prefácio de Os nossos antepassados (2014) foi escrito por Calvino em 1960 e representa o
fim e a reflexão sobre o fazer literário dos anos de 1950. Olhando para trás, Calvino ilustra
a criação de imagens subjetivas, relacionadas ao “eu” do impulso criador. Italo Calvino de-
monstra a criação de imagens da subjetividade como forma de controle da fantasia nas três
obras fantásticas cujo processo de criação necessitou de um “eu”, e este “eu” operou um des-
locamento de sentido para fora do texto, para a reflexão do ato de escrever. Este “eu” é sempre
um personagem marginal ou sem função no enredo:

A presença de um “eu” narrador-comentador levou parte da minha atenção a se deslocar


da história para o próprio ato de escrever, para a relação entre a complexidade da vida e a
folha sobra a qual essa complexidade se dispõe sob a forma de signos alfabéticos. Num certo

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ponto só essa relação me interessava, a minha história tornava-se apenas a história da pena
de ganso da freira que corria sobre a folha branca (CALVINO, 2014, p. 17).

Sobre esta complexidade da vida, as imagens fantásticas adquirem sua melhor forma
porque tangenciam também os limites do real. No caso de O visconde partido ao meio
(1952), um “eu” jovem “pois não existe método mais seguro nesses casos do que ver tudo
através dos olhos infantis” (p. 17); em O barão nas árvores (1957), um “eu” como forma de
controlar um impulso forte para identificar-se com o protagonista, Calvino criou um “eu”
com caráter antiético ao personagem Cosme; e em O cavaleiro inexistente (1959) criou
uma freira como espécie de “eu”.

O esforço imaginante direciona os artifícios da composição literária, quando as tensões entre


narrativa e subjetividade se tornam limites e surgem no horizonte as imagens que solucio-
nam as tensões. Além das imagens seminais que caracterizam a narrativa fantástica de Calvi-
no e se reportam ao exterior, à sua relação com o mundo, há as imagens criadas como recurso
para aliviar as tensões do processo criativo, para equacionar as tendências de identificação. O
esforço imaginante movido pela profusão de imagens mentais orienta a linguagem reflexiva,
uma linguagem que se volta para si, para a produção de imagens literárias que, por sua vez,
coincidem com a subjetividade.

Nas Confissões de um jovem romancista (2013), Umberto Eco reúne em quatro capítulos o
modus operandi de sua escrita criativa. No primeiro capítulo intitulado “Escrever da esquerda
para a direita”, Eco define sua escrita criativa em paralelo com a sua atividade mais comum, a
produção científica; explica como se dá a construção de mundos imaginários, que acontece
durante os anos de gestação literária; define o que chama de ideias seminais – “pouco maior
que uma imagem” (2013, p. 19) – e finaliza com a restrição e o duplo código como característi-
cas constituintes do processo de transformação das imagens literárias.

Em “Autor, texto e intérpretes”, Eco adentra no universo da estética da recepção e explana


suas concepções sobre leitor-modelo, leitor empírico e autor empírico. Neste capítulo, Eco
também questiona os limites da interpretação e a consciência criativa em relação às múlti-
plas interpretações ensejadas pelo texto para finalmente reconhecer a importância do autor
empírico, “não para propiciar aos leitores uma melhor compreensão de seus textos ficcionais,
mas, sobretudo, para auxiliar a compreensão o curso imprevisível de todo processo criativo”
(2013, p. 57). O terceiro capítulo “Alguns comentários sobre o personagem de ficção”, Eco defi-
ne o personagem de ficção de duas maneiras, a saber: indivíduos ou entidades flutuantes que
sobrevivem longe de seus textos originais (2013, p. 87) e como “objetos absolutamente inten-
cionais” (2013, p. 94, grifo); ambas as definições estão pautadas por dois pactos: suspensão da
descrença que tanto o escritor quanto o leitor devem fazer e (2) com a continuidade dos fatos
literários mesmo quando cessa a suspensão (ECO, 2013, p. 103).

Humberto Eco revela como se deu o surgimento das imagens literárias em quatro romances:
O nome da rosa (1980), O pêndulo de Foucault (1988), Ilha do dia anterior (1994) e Baudolino

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(2000). Nos quatro casos, Eco fala da relação entre imagem seminal, fruição das palavras e
controle do discurso como partes intrínsecas do mecanismo dinâmico da criação literária.

Para Humberto Eco (2013), todo romance nasce de uma imagem primordial que figura na
mente do escritor e é transformada numa espécie ideia, mas ele confessa que somente depois
do terceiro romance é que percebeu com clareza que todos os seus livros “nasceram de uma
ideia seminal pouco maior que uma imagem” (ECO, 2013, p. 19). No caso do primeiro romance,
O nome da rosa (1980), ela ressurgiu a partir de um convite rejeitado. Uma pequena editora es-
tava solicitando a não romancistas que escrevessem um conto policial e Eco rejeitou afirman-
do que não tinha talento para escrever um bom diálogo e que, se insistissem na ideia, acabaria
por escrever um livro de “quinhentas páginas e se passaria num mosteiro medieval” (2013, p.
12). A editora obviamente rejeitou a provocação de Eco, mas ele foi em busca de um manuscri-
to no qual havia escrito há anos alguns nomes de monges: “isso significava que, embora não
tivesse me dado conta, na região mais recôndita da minha alma a ideia de um romance já vinha
crescendo. Nesse momento, percebi que seria interessante envenenar um monge que lia um
livro misterioso, e isso foi tudo. Comecei a escrever O nome da rosa” (ECO, 2013, p. 13) – calhou
de ser um romance policial de enredo medieval com mais ou menos 500 páginas.

A imagem seminal passa por um processo de transformação que consiste em gerar outras
imagens, mas nunca desaparecer. Este processo de transformação é regido pelo esforço ima-
ginante e o adágio “a genialidade é composta de dez por cento de inspiração e noventa por
cento transpiração” (2013, p. 13) pode ser verificado na criação literária. Umberto Eco faz uma
crítica ao modo de pensar a arte como “inspiração”, pois a imagem seminal não se trata disso.
Tanto o processo de concepção de uma obra artística quanto seu processo de desenvolvimen-
to sugerem muitos esforços, dentre eles o imaginante e o intelectual. O imaginante para fazer
escoar a profusão de imagens que a atenção à vida nos dá, e o intelectual para verter este es-
forço em imagens verbais; sobre o período de gestação literária, ele escreve:

Para O nome da rosa, fiz retratos de todos os monges sobre quem escrevi. [...] Na prepara-
ção de O pêndulo de Faucoult, [...] perambulei várias noites pela cidade, entre duas e três da
manhã, ditando para um gravador de bolso tudo o que conseguia ver, de modo a não errar o
nome das ruas e de seus cruzamentos [...] para a criação de A ilha do dia anterior, evidente-
mente viajei para os Mares do Sul, para a exata localização geográfica onde o livro se passa,
a fim de contemplar as cores da água e do céu em horas diferentes do dia, além dos matizes
dos peixes e dos corais (ECO, 2013, p. 17).

A imagem literária se dá pela simultaneidade de dois movimentos criadores: da imagem


mental para a imagem verbal, e outra que se direciona para as apreensões intuitivas, para a
atenção à vida (BERGSON, 2006). Entre a concepção da imagem seminal e o processo de de-
senvolvimento há um período de “gestação” (2013, p. 16). A profundidade do tempo da criação
literária pode ser vislumbrada na seguinte passagem:

Só fiquei impressionado com a imagem de um monge envenenado enquanto lia um livro.


Talvez tivesse me lembrado de uma experiência que eu tive aos dezesseis anos: ao visitar
um mosteiro beneditino (Santa Scolastica, em Subiaco), atravessei os claustros medievais e

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entrei numa biblioteca sombria onde me deparei com o Acta Santorum aberto sobre o atril.
Folheando o imenso volume em profundo silêncio, com alguns raios de luz filtrados pelos
vitrais, devo ter sentido uma espécie de emoção. Mais de quarenta anos depois, esse senti-
mento emergiu de meu inconsciente. Aquela foi a imagem seminal. O restante veio pouco a
pouco, no esforço de fazer a imagem ganhar sentido. E surgiu por si só, aos poucos, enquanto
eu vasculhava vinte e cinco anos de fichas sobre a Idade Média, produzidas com um objetivo
completamente diferente (ECO, 2013, p. 19-20, grifo do autor).

Em consonância com esta experiência de criação literária, Rita Paiva (2002) explica como a
literatura acontece na duração partir da perspectiva filosófica de Bergson em o Pensamento e
o movente (2006). Na atividade artística, o criador está em constante contato com a mobili-
dade e a imprevisibilidade, duas qualidades intrínsecas à duração. O contato com a duração
estabelecido pela criação literária se deve à sua relação reduzida com os imperativos funcio-
nais da linguagem, cujo processo de escrita criativa é similar ao processo da própria duração;
ou seja, a criação das imagens literárias é nutrida pelo tempo:

A criação da obra se dá na transitividade temporal, e a forma que ela adquire avança e ganha
substância à medida que se desdobra na duração. A imprevisibilidade imanente à realidade
temporal impregna, assim, a consecução artística. O fazer-se da arte se presentifica como
uma recriação do movimento criador do ser (PAIVA, 2002, p. 354).

Sobre esse processo de transformação das imagens literárias em O nome da rosa (1980), Eco
diz que havia um exemplar, em forma impressa, do manuscrito descrito em seu romance:
“Por anos ele estivera comigo em casa, bem na minha prateleira” (2013, p. 61). Além de um ob-
jeto imagético, guardado na profundidade da consciência, há um objeto físico, real, e ambos
se tornam o mesmo para o movimento criador da obra:

Não foi uma coincidência extraordinária, nem um milagre. Eu havia comprado a obra quando
era jovem, folheara-a, vira que estava muito danificada, guardara-a em algum canto e a esque-
cera. Mas, usando um tipo de câmera interna, eu havia fotografado essas páginas e, durante
décadas, as imagens dessas folhas envenenadas jazeram em alguma parte remota da minha
alma, como num túmulo, até o momento em que ressuscitaram – não sei por quê – e eu
acreditei que havia inventado um livro (ECO, 2013, p. 61).

Isso a que Eco chama de “câmera interna” é justamente o estofo criador onde a consciência
se desdobra em imagens. E porque seu movimento é interno, ela acontece na duração. Há
imagens seminais como imagens flutuantes da criação. Da mesma forma que existem perso-
nagens que vivem fora de seus textos originais (ECO, 2013, p. 87), há imagens que insistem
em reaparecer no processo de criação literária, essa repetição do mesmo na verdade atualiza
as imagens dadas no instante em que aparecem:

A primeira foi o pêndulo de Léon Foucault, que eu vira trinta anos antes em Paris e que
me causara uma tremenda impressão – outra emoção enterrada nas profundezas da minha
alma. A segunda imagem foi a de mim mesmo tocando trombeta em um funeral de membros
da Resistência italiana. Uma história verdadeira que eu nunca cansara de contar, porque a
achava bonita – e também porque, quando mais tarde li Joyce, compreendi que havia vivido
o que ele chama (em Stephen Hero) de epifania.Assim, decidi contar uma história começando

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com o pêndulo e terminando com um pequeno trombeteiro em um cemitério numa manhã


ensolarada. Mas como passar do pêndulo para a trombeta? Levei oito anos para responder
a essa pergunta – e a resposta foi o romance (ECO, 2013, p. 20-21).

Trata-se do processo de criação de O pêndulo de Foucault (1988), em que duas imagens vieram
à mente do criador: uma seminal e outra final. O tempo entre as duas imagens é justamente
o esforço imaginante que concretiza a obra artística.

Se há em Eco confissões leves que vão explorar seu próprio fazer literário, na Valise de cro-
nópio (2006) diversos ensaios encontram-se num denso caleidoscópio, todos refletindo o
repertório crítico de um Cortázar erudito e acadêmico. Dentre os dezoito ensaios, esse ar-
tigo atém-se apenas aos ensaios que demonstram o status diferenciado que a imagem lite-
rária adquire e destaca a “Situação do romance”, cuja principal ideia é perceber a literatura
como “conquista verbal da realidade que nasce sobretudo da leitura de vários romances e
da ambição de escrevê-los” (2006, p. 61), “Para uma poética” que define a poesia fundamen-
talmente como imagem e esta imagem assume o papel de “caçadora da realidade” através
da contração do tempo e da expansão do ser e “Alguns aspectos do conto” que traz o tema
do conto como imagem literária.

Em “Alguns aspectos do conto”, o tema do conto é necessariamente uma imagem primordial


ou uma imagem seminal. A natureza do tema, antes dele se desenvolver na pena do escritor,
é imagética. Cortázar compara o conto à poesia como um irmão misterioso em dimensão do
tempo literário. Para o escritor, o conto se move nesse plano do homem onde a vida e a ex-
pressão escrita operam como síntese, o próprio conto é uma síntese viva e uma vida sinteti-
zada. Deve-se ressaltar que Julio Cortázar busca explicar a natureza do tema do conto através
também de imagens literárias porque somente através dessas imagens, de uma metáfora, por
exemplo, será possível compreender a profundidade da imagem que é o tema do conto.

Parece-me que o tema do qual sairá um bom conto é sempre excepcional [...] O excepcio-
nal reside numa qualidade parecida à do imã; um bom tema atrai todo um sistema de rela-
ções conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções,
entrevisões, sentimentos e até ideias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na
sensibilidade (CORTÁZAR, 2006, p. 154, grifo do autor).

A imagem primordial no conto está relacionada com persistência de um bom conto na me-
mória. Ele escreve, ilustrando um apelo aos mecanismos ficcionais e à criação de imagens no
discurso ensaístico (2006, p. 151): “algo assim como um tremor de água dentro de um cristal,
uma fugacidade numa permanência. Só com imagens se pode transmitir essa alquimia secre-
ta que explica a profunda ressonância que um grande conto tem em nós”. Essa ressonância
está no âmago da imagem literária com a função “de recortar um fragmento da realidade, fi-
xando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão
que abra de par em par uma realidade muito mais ampla como uma visão dinâmica que trans-
cende espiritualmente” (2006, p. 151). Para que isso ocorra o contista não pode agir cumula-
tivamente, pois

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[...] não tem o tempo como aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade, vertical-
mente, seja para cima ou para baixo do espaço literário. E isto que assim expresso parece
uma metáfora, exprime, contudo, o essencial do método. O tempo e o espaço do conto têm
de estar como que condensados, submetidos a uma alta pressão espiritual e formal para
provocar essa “abertura” a que me referia antes (CORTÁZAR, 2006, p. 152).

Entre a situação do romance e a poética do conto, existe uma relação da duração das imagens
do romance e do conto que delineia uma perspectiva de abordagem: o romance tem a carac-
terística de propor imagens mediante sua forma interna, cuja estrutura exige do escritor um
tempo maior, uma horizontalidade, um acontecimento por vir até a sua finalização. As ima-
gens do romance terão características diferentes no modo como se modificam e permanecem
daqueles que são criadas por formas mais curtas, como o conto e a poesia, cuja estrutura ofe-
rece um tempo menor, uma verticalidade não cumulativa (sem transições ou intermédios).

Pode-se, então, inferir que as imagens literárias do romance se movimentam mais: ora têm
sua nitidez aguçada e distendida, ora não passam de um vulto em que é preciso voltar algu-
mas páginas para poder recuperar suas cores e contornos; já os seres virtuais do conto têm
uma duração curta, mas por guardar uma tensão de aproximação do objetivo e ter um tema
de misteriosa propriedade (CORTÁZAR, 2006), eles reverberam tanto quanto os do romance.
Estruturas internas diferentes correspondem imagens literárias diferentes.

Ao ingressar em nosso tempo, o romance inclina-se para a realidade imediata, o que está
mais aquém de toda descrição e só admite ser apreendido na imagem de raiz poética que
a persegue e revela. Alguns romancistas reconhecem que nesse fundo inacessível para suas
pinças dialéticas joga-se o jogo do mistério humano, o suporte de suas objetivações poste-
riores. E então se precipitam pelo caminho poético, arremessam pela amurada a linguagem
mediadora, substituem a fórmula pelo ensalmo, a descrição pela visão, a ciência pela magia
(CORTÁZAR, 2006, p. 71).

Ainda podemos ver na Valise (1993) o esforço imaginante e a imagem seminal como instru-
mento de assalto do ser, arma de caça do real. A principal questão nos ensaios “A situação do
romance” e “Para uma poética” é a natureza da imagem literária e como a ela está relacionada
a uma “lógica afetiva” ou “direção analógica”, que na verdade é a intuição e a apreensão da
duração de si e do real através dos mecanismos ficcionais, por exemplo, a metáfora. A refle-
xão acerca da criação literária é uma reflexão acerca dos limites e da natureza da linguagem
que logrará a expressão das imagens que nos desvelam a interioridade: “Bergson não apenas
radicaliza seu enfoque sobre a imagem, mas abre uma fenda para a subversão do instrumento
cristalizador da duração dentro e fora do homem: a linguagem” (PAIVA, 2002, p. 261). Por sua
vez, Cortázar escreve:

Os fatos são simples: de certo modo, a linguagem íntegra é metafórica, referendando a tendên-
cia humana para a concepção analógica do mundo e o ingresso (poético ou não) das analogias
nas formas da linguagem. Essa urgência de apreensão por analogia, de vinculação pré-científica,
nascendo no homem desde as primeiras operações sensíveis e intelectuais, é que o leva a sus-
peitar uma força, uma direção do seu ser para a concepção simpática, muito mais importante
e transcendente do que todo racionalismo quer admitir (CORTÁZAR, 2006, p. 86).

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Essa reflexão sobre a linguagem revelará uma linguagem outra que ronda a inteligência, como
aquela que prepondera na arte. Nesse aspecto, a filosofia de Bergson (2006) está intimamente
relacionada com a criação artística. Essa relação deve ser explanada com a reflexão dos limi-
tes e da natureza da linguagem que revelará uma outra linguagem acobertada pela atividade
criadora. Esta outra linguagem está pautada pelo estatuto da imagem primordial ou seminal.
Cortázar (2006), por sua vez, trata das relações entre o intelecto e a intuição, entre a lingua-
gem e a direção analógica:

O mesmo homem que julga, racionalmente, que a vida é dolorosa, sente o obscuro prazer de
enunciar este fato com uma imagem: a vida é uma cebola, que é preciso descascar chorando
[...]. Então, se a poesia compartilha e leva ao extremo esta premência analógica comum, fa-
zendo da imagem o seu eixo estrutural, a "lógica afetiva" que, ao mesmo tempo, a arquiteta
e habita; e se a direção analógica é uma força contínua e inalienável em todo homem, não
será hora de descer da consideração somente poética da imagem à busca da sua raiz, esse
algo que subjaz e assoma à vida junto com a cor de nossos olhos e nosso grupo sanguíneo?
(CORTÁZAR, 2006, p. 87, grifo do autor).

Há semelhança entre a imagem poética e o estatuto que ela adquire na filosofia de Berg-
son (2006). Cortázar deixa claro essa similaridade ao dizer que o poeta é um “fazedor de
intercâmbios ontológicos” (2006, p. 95), cujo instrumento poético é uma arma de assalto
do ser no intuito não de buscar por mais conhecimentos, mas se tornar outra coisa, de
expandir-se no tempo na medida que põe em prática essas singularidades ontológicas. O
problema do ser também é o problema do real, ou da realidade das coisas. Na expansão
do ser através da imagem poética, a imagem literária ganha o status de caçadora da reali-
dade, vertida em fragmentos:

A poesia prolonga e exercita em nossos tempos a obscura e imperiosa angústia de posse


da realidade, essa licantropia inserta no coração do homem que não se conformará jamais –
se é poeta – com ser somente um homem. Por isso o poeta se sente crescer em sua obra.
Cada poema o enriquece em ser. Cada poema é uma armadilha onde cai um novo fragmento da
realidade [...] E, por isso, a imagem é forma lírica da ânsia de ser sempre mais, e a sua presen-
ça incessante na poesia revela a tremenda força que (saiba-o ou não o poeta) atinge nele a
urgência metafísica de posse (CORTÁZAR, 2006, p. 100-101, grifo nosso).

Depois de expor brevemente o processo de criação literária de cada um dos autores de fic-
ção aqui abordados apenas por seus ensaios e confissões acerca deste processo, conclui-se
voltando ao tema que inicia este artigo: a imagem literária como forma de expressão criado-
ra, como forma de expressão da intuição e da duração na criação literária. Pôde-se perceber
que há semelhanças entre as concepções de imagem literária dos três autores abordados
e fazer algumas aproximações possíveis com o estatuto que a imagem literária adquire na
filosofia de Henri Bergson. Neste aspecto, tanto para Italo Calvino quanto para Humberto
Eco, a criação literária se dá em dois movimentos criativos que sintetizam o que vem a ser
o esforço imaginante: da atenção à vida ao engendramento da imagem seminal ou visiva e
desta para a imagem verbal, literária.

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Dentre a profusão de imagens do esforço imaginante, destaca-se intuitivamente as imagens


seminais da literatura, que acompanham o processo criativo desde os primeiros momentos
em que o preto no branco começa a surgir, em que a pena começa a correr. O esforço imagi-
nante é orientado pelo impulso criador para afrouxar as amarras da linguagem pragmática e
para atingir a intuição reveladora do fazer literário, da realidade, do que se tem como ferra-
menta expressiva e do que é possível exprimir.

A imagem visiva de Calvino e a imagem seminal de Eco, assemelhadas, encontraram lugar na


Valise (2006) e ilustram a concepção da poética do conto, do romance e da poesia que Cor-
tázar explana através da comparação entre a natureza de suas imagens no processo de criação
literária. Na visão Cortázar, tanto as imagens do romance quanto as do conto se precipitam
para uma poética do ser como de forma a assaltar a realidade através não dos mecanismos
intelectuais, mas do esforço imaginante, traduzido como direção analógica da linguagem. No
caso do conto, de forma a extrair da atenção à vida uma imagem prenhe de sentido, que segu-
ramente se tornará o tema do conto. Italo Calvino ilustra a dinâmica do esforço imaginante
como assalto do ser quando expõe a prevalência da criação espontânea de imagens durante
a narrativa, quando consegue verter todas as apreensões do pós-guerra italiano em imagens
fantásticas e quando consegue equacionar as tendências escusas do processo de criação en-
gendrando imagens da subjetividade que têm a função de se contrapor a outras imagens nar-
rativas, imagens querem controlar a revelia o processo narrativo; também ilustra a contração
do tempo e a expansão de si na criação literária, mencionados em Cortázar, quando retoma
a atmosfera daqueles tempos para escrever sobre o futuro necessário da literatura, desta vez
através de conferências reunidas que aqui foram chamadas de imagens literárias, cuja função
é existencial como foi exemplos as imagens da leveza. Já Eco assalta o real e guarda seus frag-
mentos em imagens quando expõe o esforço de verter em imagens verbais sua atenção à vida e
a sua presença nos espaços que caracterizam a sua ficção, e também quando expõe a duração
dos processos intuitivos e de reconhecimento das imagens literárias como imagens seminais.

A filosofia de Henri Bergson é exercida na reflexão sobre as concepções supracitadas. A aten-


ção à vida como método intuitivo direciona o esforço imaginante para a produção de imagens
seminais ou primordiais que posteriormente se transformarão em imagens verbais, em ima-
gens literárias finais, através do esquema dinâmico do esforço imaginante.

Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.

CALVINO Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.

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CALVINO, Italo. Os nossos antepassados: o visconde partido ao meio; o barão nas árvores; o cavaleiro
inexistente. Trad. Nilson Moulin. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Pers-
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A tragédia sofocliana sob o olhar de Nietzsche

Ivanildo Araujo Nunes


Graduando, Letras – Francês/UFS

Quando Nietzsche infere sobre o Teatro grego, afirma que o sofrimento


é a fonte de origem da tragédia, e esta, transfigura-se em Sófocles: e nele
compreende que o drama está associado ao sagrado. Ora, testificamos
tal declaração através de Édipo rei e Édipo em Colono. O dramaturgo ani-
quila as virtudes através de exageros dionisíacos, desmerecendo a medi-
da apolínea. Analisaremos as peças da trilogia tebana, por meio da obra:
A Poética de Aristóteles, Introdução à tragédia de Sófocles e da Origem
da tragédia de Nietzsche, entre outras. Também, apontaremos o quão
contundente o filosofo alemão mostrou-se em sua análise.

Palavras-chave: Sófocles. Nietzsche. Tragédia.

Introdução
Segundo Arnold Hauser; a tragédia é a forma de arte que mais demonstra direta e claramente
os conflitos internos da estrutura social. A tragédia surge em uma sociedade como resposta
à crise da ordem política/ideológica/social. A percepção do povo helênico inclina-o ao “mais
pesado sofrimento”, reconhece em si a selvageria da natureza humana, e em sua negação cria
arte, para salvar-se da vida (NIETZSCHE, 1992, p. 55). No mundo trágico o poeta encontra
redenção, a lei inexorável do declínio, é sublimada no drama ático. Nietzsche aos 24 anos, no
período em que foi professor na universidade de Basiléia, em uma de suas aulas de filologia,
dissertou sobre a tragédia sofocliana, e a recepção do drama grego entre os “modernos”.

Para o filósofo positivista alemão, diferente de Ésquilo e Eurípedes, Sófocles foi o único que
teve uma perspectiva essencialmente trágica. Nietzsche, em sua Introdução à Tragédia de Só-
focles, iniciou uma análise embrionária acerca do drama ático, e esta, gerou a obra A origem
da tragédia, a qual criticou partes do estudo sistemático feito por Aristóteles em sua Poética.

Não apenas Nietzsche, mas muitos filósofos e literatos, focaram e focam sua atenção a Sófo-
cles: Aristóteles, Schiller, Goethe, Schopenhauer, Freud. Embora, Sófocles tenha nos deixado

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apenas sete dramas, ele foi a transição do teatro helênico entre Ésquilo e Eurípedes. Seus es-
critos viraram modelo para os dramas renascentistas e posteriormente os modernos. Dos três
grandes dramaturgos gregos, Sófocles se mostrou o mais inventivo entre eles:

A visão trágica do mundo encontra-se apenas em Sófocles. O destino imerecido parece-lhe


trágico: os enigmas da vida humana, o verdadeiramente aterrador era sua musa trágica. A
catarse aparece como o sentimento necessário de consonância no mundo da dissonância.
O sofrimento, a origem da tragédia, transfigura-se nele: passa a ser compreendido como
algo sagrado. Lembremos do êxtase místico, abençoado, do Édipo em Colono. A distância
entre o humano e o divino é imensurável: diz respeito à mais profunda submissão e re-
signação. A virtude verdadeira é a moderação, não uma virtude ativa, mas apenas negativa
(NIETZSCHE, 2014, p. 32).

Nascido em Colono, por volta de 496 a. C. Sófocles, ficou consagrado por vencer muito dos
concursos anuais de dramaturgia (calcula-se 24) que ocorriam na Grécia. Sófocles logo se tor-
nou o teatrólogo mais homenageado em vida, também cidadão ilustre. O estadista Péricles, o
nomeou como ministro do Tesouro (entre 443 a. C. e 442 a. C.) e por duas vezes foi escolhido
como comandante do exército em expedições militares, tudo por conta do seu talento poéti-
co. Ele criou 123 peças, mas muito dos seus dramas se perderam na história, também muitas
de suas peças ficaram inacabadas. No entanto, apenas sete tragédias finalizadas chegaram ao
nosso tempo: Ajax (450 a. C.) Antígona (442 a. C.), Édipo rei (430 a. C.), Electra (425 a. C.),
As Traquínias (entre 420 a. C. e 410 a.C.), Filoctetes (409 a. C.) e Édipo em Colono (401 a. C.).
Sófocles, morreu em Colono, na cidade em que nasceu, por volta do ano 406 a. C., com 90
anos de idade. Sua obra Édipo rei, é um dos símbolos da modernidade, e mesmo na contem-
poraneidade inspira várias esferas do ensino.

A tragédia antiga
O Édipo rei, e o Édipo em Colono de Sófocles, atraíram a atenção de Nietzsche, pois são obras
que servem como objetos de estudo para explicar a tragédia Antiga. Sobretudo, na execução
do coro, herança do culto ao deus Dionísio (Baco para os romanos), que era celebrado no
regresso da primavera e pela fertilidade dos campos. “De que outra maneira poderia aquele
povo tão suscetível ao sensitivo, tão impetuoso no desejo, tão singularmente apto ao sofri-
mento, suportar a existência, se esta, banhada de uma glória mais alta, não lhe fosse mostra-
da em suas divindades? (NIETZSCHE, 2014, p. 37). A palavra tragédia procede de tragós, que
em grego significa bode, animal utilizado nos sacrifícios da celebração dionisíaca.

O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. Nesse encantamento o entu-


siasta dionisíaco se vê a si mesmo como sátiro e como sátiro por sua vez contempla o deus,
isto é, em sua metamorfose ele vê fora de si uma nova visão, que é a ultimação apolínea de
sua condição. Com essa nova visão o drama está completo (NIETZSCHE, 1992, p. 60).

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No que diz respeito ao culto a Dionísio, ele era executado todo ano para que se tivesse boa
colheita, e neste, haviam cantos, danças, lutas e procissões sacrificais (NIETZSCHE, 2014, p.
24). O ditirambo, como era chamado, utilizavam máscaras, e eram compostos principalmen-
te por camadas inferiores (NIETZSCHE, 2014, p. 39).

Em geral, é admirável a ação do helenismo na espiritualização do festim dionisíaco, quando se


compara com o que surgiu, da mesma origem, em outros povos.Tais festas são antiquíssimas
e encontráveis por toda parte, na Babilônia com o nome de Sáceas. A completa liberdade da
natureza era restaurada por cinco dias; todas as relações sociais e políticas eram rompidas
(NIETZSCHE, 2014, p. 19).

Em um destes eventos cultuais feito por populares, o adorador Téspis assume ser Dionísio, e
“um novo costume compromete toda uma tradição” como afirma Hobsbawm (2002, p. 17). E
foi em Atenas, no período das Olimpíadas (536/5-533/2) (NIETZSCHE, 2014, p. 39), em que
ocorreram encenações teatrais feitas pelo próprio Téspis. O Estado começou a apoiar os espe-
táculos, e este, ainda possuía elementos de culto, introduzido nas apresentações.

Os poetas, participantes dos concursos anuais de dramaturgia, viram nas narrativas orais e
no texto homérico, um elemento comum que fascinava o povo, o mito. Quando Aristóteles
engendrou sua Poética, dividiu o texto escrito em: lírico, épico e dramático. Explorou, sobre-
tudo, o texto dramático e sua execução.

A tragédia foi sofrendo modificações até tornar-se um gênero autônomo (pois se distanciou
de suas raízes culturais e religiosas), isso no século VII a.C. O teatro helênico atingiu todo o
seu esplendor durante o período que vai do século V a.C. ao século IV a.C. Esse período tam-
bém foi conhecido como o Século de Ouro, porque foi durante esse intervalo de tempo que
a cultura grega atingiu o seu apogeu. A cidade de Atenas foi o centro dessas manifestações e
reuniu autores e intelectuais de toda a Grécia.

A tragédia na concepção de aristotélica, era a expressão desesperada do homem, que luta


contra todas as adversidades, mas não consegue evitar a desgraça (destino). O filosofo de Es-
tagira, via o drama como ferramenta de ensino, o argumento (mythos), auxiliava o povo a um
comportamento moral e ao temor aos deuses. Confrontou a epopeia e a tragédia, asseguran-
do que a última é mais eficiente que a primeira, pois, tinha um tema específico e era objetiva
no tema proposto, não ficava com circunlóquios, nem variedade de temas. Delimitou o tem-
po de execução dos espetáculos a revolução solar, que se dava aproximadamente entre três ou
quatro horas, este era o tempo da ação. A ação mimética (verossimilhança), era espelhada na
realidade. O herói1, geralmente era alguém conhecido nas narrativas orais.

Geralmente, a tragédia grega era dividida em 3 partes (prólogo, episódio, êxodo), além
das partes corais. O prólogo antecedia o párodo (entrada do coro); episódio era o desen-
rolar da trama, o coro cantava odes a cada dois episódios (estásimo); e o êxodo era a parte

1.  Diz-se herói, mas aplica-se também a heroína, como no caso da Antígona.

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do drama onde não há mais canto coral. Ocorria por vezes a junção entre atores e co-
ros em lamentos (kammoi). O coro respeitava uma métrica (troqueu) e unidade rítmica
(anapesto), e seu chefe era o Corifeu.

A trama se dava a partir da falta do herói (hamartía) e sua vida de sucessos e vitórias era virada
ao avesso (peripéteia), com isso o herói voltava-se para si (anagnórisis), reconhecia suas faltas
e o valor das deidades, então ocorria a Catarse (katársis), a purificação pela emoção. O grande
taboo, no entanto, era o recurso deus ex-machina, elemento que trazia um final forçado e/ou
improvável para o desfecho da trama.

Édipo rei e Édipo em Colono.


A história edipiana é tecida nas malhas do destino, que para os helênicos é impossível de
se desvencilhar. Quando édipo nasceu, o oráculo profetizou que ele haveria de matar o pai
e casar-se com a própria mãe (BULFINCH, 2002, p.152). Édipo foi então amarrado em uma
floresta para ser devorado por feras. Foi encontrado por um homem, que o entregou ao rei
de Pólibo, em Corinto. Quando adulto, foi ao oráculo saber de sua origem, e lhe foi dito que
seria parricida e desposaria a mãe. Assustado, fugiu de Corinto, e em uma estrada estreita,
contende com um ancião e mata-o. Posteriormente, depara-se com uma criatura mística as
portas da cidade de Tebas. A Esfinge propõe um enigma, e se solucionado ela se mataria. Édi-
po então soluciona a charada, e como recompensa o rei Creonte (rei de Tebas), entrega a mão
da sua irmã Jocasta a Édipo. Édipo torna-se rei em Tebas. E tempos depois ocorre uma peste
sobre a cidade. Convocam o adivinho Tirésias para consultar os deuses, e ele então revela que
o rei Édipo é causa dos males. Pois o ancião que ele matou na estrada estreita, era o antigo rei
Laio, o falecido marido de Jocasta. Posteriormente, Édipo descobre que Jocasta é sua mãe e
Laio era seu pai. Sua mãe mata-se, Édipo então vaza os próprios olhos e sai de Tebas.

O drama Édipo rei, de Sófocles, inicia com o herói já monarca, e preocupado com a peste que
assola Tebas. Tirésias (o adivinho) é trazido a presença do rei, e o confronto deles traz a ver-
dade, Édipo é o culpado. “Será verdade? Pois EU! EU é que te ordeno que obedeças ao decreto
que tu mesmo baixaste, e que, a partir deste momento, não dirijas a palavra a nenhum destes
homens, nem a mim, porque o ímpio que está profanando a cidade ÉS TU! ” (SÓFOCLES,
2005, p. 25). E semelhante a tradição oral, ele vaza os olhos e é exilado da própria cidade que
governa. O passado do herói nos é exposto pelo coro. “Tuas ambições, ergueste-as bem alto,
e chegaste a possuir a mais promissora riqueza. Ó Júpiter! Só ele pôde vencer a horrenda Es-
finge, de garras aduncas e de cantos enigmáticos (...)” (SÓFOCLES, 2005, p. 87). Segundo a
regra aristotélica, toda a ação dura apenas um dia.

Cronologicamente, Édipo em Colono, é o último drama sofocliano. O herói, que derrotara a


Esfinge, foi traído pelas próprias ações, vítima do destino. O antigo rei, agora amadurecido,
teme aos deuses. Cego e maltrapilho, viaja buscando descanso, tem como companhia suas
duas filhas: Antígona e Ismene. Porém, uma nova predição o acompanha:

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Terrificantes deusas, já que vosso assento é o primeiro nesta terra sobre o qual dobrei
os meus joelhos, não me hostilizeis, nem ao deus Febo, pois quando ele proclamou o meu
destino cheio de infelicidade disse que este lugar seria o meu refúgio, depois de errar por
muitos anos, ao chegar a este solo onde acharia finalmente um paradeiro acolhedor, inda
que fosse para encerrar aqui a minha triste vida; e por haver morado nesta região traria o
bem a quantos me acolhessem e ruína certa a quem quisesse repelir-me, fazendo-me voltar
à estrada (SÓFOCLES,1990, p. 109).

Édipo está envelhecido, não almeja mais ser glorificado, mas esquecido. Busca asilo na cidade
de Colono, solo ateniense. E segundo a profecia, a terra que o acolher sairá vitoriosa na guer-
ra2. Os irmãos de Antígona têm ciência sobre a nova predição, e buscam trazer o pai de volta a
Tebas, terra que o exilou. Édipo os amaldiçoa, Polinice e Etéocles enviam Creonte para tentar
tirá-lo a força de cidade. O rei Teseu o protege, e pouco tempo depois, Édipo falece nas terras
de Colono, e pede para o rei ocultar o seu corpo.

A mais dolorosa figura do palco grego, o desventurado ÉDIPO, foi concebida por Sófocles
como a criatura nobre que, apesar de sua sabedoria, está destinada ao erro e à miséria, mas
que, no fim, por seus tremendos sofrimentos, exerce à sua volta um poder mágico abençoa-
do, que continua a atuar mesmo depois de sua morte (NIETZSCHE, 1992, p. 64).

Acompanhamos a maturação do herói nos dois dramas (Édipo rei e Édipo em Colono). Dife-
rente do Odisseu homérico, ele não permanece guerreiro e astuto na sua velhice. Édipo tor-
na-se vulnerável e injustiçado, ao ponto de ser resguardado por suas filhas e por Teseu.

O imerecido do destino no indivíduo parecia-lhes trágico no Édipo. O enigma no destino


do indivíduo, a culpa inconsciente, o sofrimento imerecido, resumindo, o verdadeiramente
aterrador na vida humana, foi sua musa trágica. Aqui, tudo se referia a uma ordem cósmica
superior e transcendente: a vida parecia não ter mais valor. A tragédia é pessimista. Sua mais
pura expressão está nos dois Édipos: no Édipo rei, a dissonância do ser, no Édipo em Colono, a
consonância. (NIETZSCHE, 2014, p. 17).

Os dramas edipianos de Sófocles, encerram, e muita coisa ainda tem de ser dita. As forças que
o levaram a decifrar a Esfinge, o “cegaram” para a sua própria fortuna, o destino dos Labdáci-
das. Segundo Schuller (in SÓFOCLES, 2007, p. 41) a descendência de Édipo foi amaldiçoada
pelos deuses. Avô, pai e filho3, são mero joguete do destino. Como cego, Édipo reconhece que
não há como fugir dos deuses, sua tentativa vã quando moço só lhe trouxe perdas.

Em Colono, o território é consagrado às Eríneas (as Fúrias para os romanos), são elas as res-
ponsáveis por vingar os crimes familiares. Édipo reconhece os seus crimes, sofre por conta de-
les. No entanto, pede acolhida a elas (SÓFOCLES, 2007, p. 28), ele agora tem temor e humil-
dade. A máxima grega “conhece a ti mesmo” (anagnórisis), aplica-se bem a este novo Édipo.

2.  A guerra acontece na tragédia de Ésquilo: Sete contra Tebas.


3.  Lábdaco, Laio e Édipo.

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O Corifeu sela o drama do herói tebano com as seguintes palavras: “Cessem as lágrimas. Não
retorne o pranto. Está tudo acertado” (SÓFOCLES, 2007, p. 140). O chefe do coro, cessa o es-
petáculo e as agruras do filho de Laio.

Nietzsche e Sófocles.
No prefácio da edição brasileira Introdução à tragédia de Sófocles, o professor doutor em fi-
losofia Ernani Chaves, assume que Nietzsche quis restituir a literatura e o pensamento antigo
na sua presença viva, estimulante e atual (NIETZSCHE, 2014, p. 6). Ora, muitos dos escritos
iniciais do filósofo, estão pautados na filosofia schopenhaueriana. A atenção que dá ao drama
helênico não diz respeito apenas a sua aula em Basileia, mas a uma necessidade de emancipar
a cultura alemã, através da música wagneriana.

O coro do teatro grego, invocava força do amago do ser, que expunha toda autenticidade da
arte. Se o coro, como sequela do culto a Dionísio (com suas máscaras, danças e sacrifícios)
representava o orgíaco e as disformes forças da natureza, na métrica do canto estava imbuída
o espirito de Apolo (deus das formas e do equilíbrio).

Apolo, como divindade ética, exige dos seus a medida e, para poder observá-la, o autoco-
nhecimento. E assim corre, ao lado da necessidade estética da beleza, a exigência do "Co-
nhece-te a ti mesmo" e "Nada em demasia”, ao passo que a auto-exaltação e o desmedido
eram considerados como os demônios propriamente hostis da esfera não-apolínea, portan-
to como propriedades da época pré-apolínea, da era dos Titãs e do mundo extra apolíneo,
ou seja, do mundo dos bárbaros (NIETZSCHE, 1992, p. 40).

Para Nietzsche, o povo helênico era amoral, inclinado às ilusões, às bebidas, às loucuras dio-
nisíacas e ao declínio, as festas e cultos eram para sua elevação. Os estados de dor e alegria va-
lorizavam a arte mediante a recuperação e conciliação entre os valores apolíneo e dionisíaco.

"Titânico" e "bárbaro" pareciam também ao grego apolíneo o efeito que o dionisíaco pro-
voca: sem com isso poder dissimular a si mesmo que ele próprio, apesar de tudo, era ao
mesmo tempo aparentado interiormente àqueles Titãs e heróis abatidos. Sim, ele devia sen-
tir mais ainda: toda a sua existência, com toda beleza e comedimento, repousava sobre um
encoberto substrato de sofrimento e conhecimento, que lhe era de novo revelado através
daquele elemento dionisíaco (NIETZSCHE, 1992, p. 41).

A moral socrática e a cura catártica sugerida pela instrução aristotélica foram os fatores de-
cisivo de ruptura para o modelo helênico do drama. “A catarse trágica seria então, de acordo
com este ponto de vista estético moral, muito mais o sentimento de triunfo do homem justo,
moderado, impassível, ou seja, se quisermos caracterizar a questão rigorosamente, o farisaís-
mo do filisteu” (NIETZSCHE, 2014, p. 16).

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Com a retomada da leitura da Poética, no Renascimento, a Tragédia de Eurípedes foi tomada


como paradigma, o coro foi esquecido, e o espirito apolíneo dominou o teatro europeu do
século XVI. Contudo, a força apolínea consiste na precisão das formas e o equilíbrio. Para
Nietzsche, isso é um embuste, o mundo é imperfeito e caótico como afirmou Freud. O teatro
chega na modernidade enfraquecido pelo conceito aristotélico. Semelhante, ao deus ex-ma-
china que o próprio filósofo criticava, a catarse é a solução para um teatro de forçoso, sem
propósito de elevação.

Se com a nossa análise resultou que o apolíneo na tragédia obteve, mercê de sua força de
ilusão, completa vitória sobre o prato-elemento dionisíaco da música, e que ele se aprovei-
tou desta para os seus desígnios, a saber, para uma elucidação máxima do drama, haveria que
acrescentar desde logo uma restrição muito importante: no ponto mais essencial de todos,
aquele engano apolíneo é rompido e destruído (NIETZSCHE, 1992, p. 129).

Mesmo com a tentativa italiana de inserir no drama a música, com a ópera, o exagero das
formas encontra-se ali, semelhante ao teatro inglês renascentista. O ditirambo, nascia do
homem simples e ascendia na busca pelo deus na elevação do culto, no metamorfosear do ser
pelas máscaras e as vestimentas.

A ópera, no entanto, é feita por nobres e não alcança o simples. É exatamente o oposto do
coro dionisíaco, mera representação da realidade helênica. “(...) o coro é uma muralha viva
contra a realidade assaltante, porque ele – o coro de sátiros – retrata a existência de maneira
mais veraz, mais real, mais completa do que o homem civilizado, que comumente julga ser a
única realidade” (NIETZSCHE, 1992, p. 57).

Conclusão
Nietzsche então toma o teatro sofocliano como solução para o declínio do drama. O drama
de Sófocles é antes de Aristóteles, também não recebe influência socrática. A arte de Sófocles,
capta a alma helênica, no que tange ao desespero na busca de solução para a vida e no enten-
dimento dos deuses. Édipo é o modelo helênico, um oximoro de virtude e amoralidade.

Deste modo, o sentido tão simples do Édipo, que se encontra fortalecido no Édipo em Colo-
no, tornou-se completamente deslocado e modificado. Resta então apenas a alternativa de
que Édipo rei é uma tragédia ruim, porque nela o conceito de trágico não teria existido? E,
neste caso, trata-se de uma tragédia-modelo? Aqui, é permitido questionar se o conceito
de trágico não seria mal interpretado, na medida em que não podemos alojar a tragédia
grega nele. Em geral este equilíbrio entre destino e caráter, punição e culpa não é um pon-
to de vista estético e sim moral, acrescido de um ponto de vista jurídico humanamente
limitado; a encenação de uma tragédia assemelha-se a um tribunal de júri: o espectador
é exortado a aceitar a punição que o poeta sugere ao transgressor, a aplaudir sua súplica
(NIETZSCHE, 2014, p. 16).

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Além de captar o mito da epopeia homérica, Sófocles captou os cantos cultuais efetuados
pelo povo nos atos rituais. O encontro da religião e da arte traz no povo helênico a busca por
êxtase e felicidade. “Por isso distinguimos na tragédia uma radical contradição estilística: lin-
guagem, cor, mobilidade, dinâmica do discurso entram, de um lado, na lírica dionisíaca do
coro e, de outro, no onírico mundo apolíneo da cena, como esferas completamente distinta
de expressão” (NIETZSCHE, 1992, p. 62).

As ações edipianas são vistas pelos gregos como possíveis, porém reprováveis. Diferente do
Filocteto do próprio Sófocles, Édipo não tem um encontro direto com deus, ele é instintivo,
semelhante ao coro, com a natureza transgressora e rebelde.

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O cômico na obra de Clarice Lispector

Geovaneide Santos dos Reis1


Graduanda, Letras/UFS

A pesquisa “O cômico na obra de Clarice Lispector”, estuda a presença da


comicidade nas obras da autora, atentando-se para sua funcionalidade
tanto em relação à obra quanto em relação a aspectos da cultura a que se
refere. Tomamos como base teorias de autores que tem como finalidade
o estudo sobre a natureza, procedimentos e funções do cômico. Dentre
eles, O Riso (2007) de Henri Bergson, Os Chistes e sua Relação com o
Inconsciente (1977) de Sigmund Freud e o capítulo “O Chiste” de André
Jolles (1976) em seu livro Formas simples. Então, a partir das nossas aná-
lises, percebeu-se que a literatura também se utiliza da comicidade para
representar o mundo, nossa realidade, revelar verdade, criticar, corrigir,
libertar e até repreender.

Palavras-chave: Cômico, Clarice Lispector, contos, comicidade,


conhecimento.

Introdução
A pesquisa cientifica objetiva apresentar a comicidade em obras de Clarice Lispector, como
também sua funcionalidade tanto em relação à obra quanto em relação a aspectos da cultura
a que se refere. Como base para a pesquisa foram utilizadas teorias que são essenciais para
o conhecimento sobre o cômico. Dentre várias teorias, utilizou-se como referência O Riso
(2007) de Henri Bergson, Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1977) de Sigmund
Freud, o capítulo “O Chiste” de André Jolles (1976) em seu livro Formas simples e o docu-
mentário Ecce Homo: o riso (1998). Para a análise foram selecionados três contos da escritora
Clarice Lispector: “Via Crucis”, escolhido para apresentação no evento e análise neste artigo,
e “O grande passeio”, integrantes da coletânea O primeiro beijo e outros contos (1997) e “O
Corpo” integrante do livro A Via Crucis do Corpo (1998).

1.  Faz parte do grupo de pesquisa O cômico na literatura brasileira, sob a coordenação da profª. Drª. Jacqueline Ramos.

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Iniciemos por alguns aspectos teóricos sobre o cômico. Bergson define o cômico “como o me-
cânico calcado no vivo”, ou seja, a comicidade ocorre quando o vivo comporta-se como uma
máquina, ela é algo eminentemente social, não existe fora do âmbito da sociedade, depende
de um grupo, o cômico é cultural. Ainda, segundo o autor o riso exige certa insensibilidade,
algo como certa anestesia do coração. O risível é certa rigidez mecânica (se comportar meca-
nicamente). O filósofo relata em sua obra que o mecanismo rígido é como um desvio da vida,
o riso é a própria correção, certo gesto social. O riso advém sempre que nossa atenção é des-
viada ao aspecto físico de uma pessoa, quando esteja em “causa o moral”. Bergson considera
que o riso castiga os costumes, porque quando se ri de alguém, está-se rebaixando-a. Então a
função do cômico, apresenta-se como algo que ridiculariza, rebaixa, reprime.

Na teoria de Sigmund Freud, aponta-se o cômico “como uma válvula de escape”, isto é, alivio
de tensão, escoamento de conteúdos retidos através das manifestações do inconsciente. Ele
chama de cômico, o cômico em geral e chiste, aquelas piadas, manifestações cômicas que
dão acesso a conteúdos reprimidos, trazendo assim sua ideia de que o chiste está ligado ao
inconsciente, como dito no supracitado. Freud, antes desse texto, escreveu outro, A interpre-
tação dos sonhos em 1900, mostrando nele que os sonhos são manifestações do inconsciente,
assim como os chistes. O autor, apresenta o cômico como algo subjetivo, que esteja vinculado
a nossa atitude, como também a evocação do consciente.

No documentário Ecce homo: o riso (1998), são apresentados relatos de que o importuno,
a surpresa, as quedas, nos causam o riso. Sempre estamos sujeitos a rir. Esse documentário
apresenta desde o surgimento do riso, até os dias atuais, citando, assim, vários precursores
para o riso. Molière foi um dos maiores comediantes, como também, Charlie Chaplin.

Já, para Jolles, o chiste é definido como uma forma simples, ou seja, desmontar, desfazer a
ética, a lógica, a linguagem, ele desmonta as próprias formas. O chiste é ainda a melhor forma
de entender a disposição mental, isto é, uma energia canalizada para algum elemento, essa
faz parte da nossa psicologia, atuando com a tarefa de desmontar, desfazer, desatar.

A escritora em foco, Clarice Lispector, se destaca em várias obras, sendo sua última obra A
hora da estrela (1977), um romance. Suas melhores prosas se mostram nos contos de Laços
de família (1960) e de A legião estrangeira (1964), como também, em obras como A maçã no
escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1961) e Água-viva (1973), os personagens, alienados e
a procura de um sentido para a vida, adquirem gradativamente consciência de si mesmos e
aceitam seu lugar em um universo arbitrário e interminável.

Dentre suas numerosas obras, foi explorado o romance A paixão segundo G.H., de Clarice
Lispector, que conta, através de um enredo banal, o pensar e o sentir de G.H., a protagonista-
-narradora que despede a empregada doméstica e decide fazer uma limpeza geral no quarto
de serviço, que ela supõe imundo e repleto de inutilidades. Após recuperar-se da frustração
de ter encontrado um quarto limpo e arrumado, G.H. depara-se com uma barata na porta do
armário. Depois do susto, ela esmaga o inseto e decide provar seu interior branco, processan-
do-se, então, uma revelação. G.H. sai de sua rotina civilizada e lança-se para fora do humano,

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reconstruindo-se a partir desse episódio. A protagonista vê sua condição de dona de casa e


mãe como uma selvagem. Tem a presença do grotesco na cena crucial de A paixão segundo
G.H., em que a escultora G.H. come e regurgita a barata que surge do fundo do armário, num
ato ao mesmo tempo sublime e grotesco:

“Toda sacudida pelo vômito violento, que não fora sequer precedido pelo aviso de uma náusea,
desiludida comigo mesma, espantada com minha falta de força de cumprir o gesto que me pa-
recia ser o único a reunir meu corpo à minha alma” (LISPECTOR, 1998b, p. 165). Esse romance
não faz muito o uso da comicidade, desse modo, não sendo selecionado como o corpus.

Os contos, por outro lado, são carregados de comicidade, sendo assim escolhido como corpus
desta pesquisa. Assim, através da análise do corpus selecionado foi possível perceber que a
escritora revela em suas obras, uma certa tentativa de investigar as camadas mais intensas da
consciência humana na procura de compreender o sentido da existência. Através de uma apa-
rentemente linguagem simples, Clarice mergulha numa análise psicológica do ser humano,
revelando então uma permanente preocupação em alcançar a verdade escondida na aparente
simplicidade das palavras. Ademais, acentua-se que na obra de Lispector pode-se entender
melhor a diferença entre forma e estilo, e suas colocações da comicidade em seus textos. Ob-
servemos essa passagem de Bosi (1976) a seguir:

Há na gênese dos seus contos e romances tal exacerbação do momento interior que, a
certa altura do seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise. O espírito, perdido no
labirinto da memória e da autoanálise, reclama um novo equilíbrio. Que se fará pela recupe-
ração do objeto. Não mais na esfera convencional de algo que existe para o eu (nível psico-
lógico), mas na esfera da sua própria e irredutível realidade. O sujeito só "se salva" aceitando
o objeto como tal; como a alma que, para todas as religiões, deve reconhecer a existência de
um ser que a transcende para beber nas fontes da sua própria existência (BOSI, 1976, p. 475).

Desse modo, pela ótica estilística, ela se encontra dentre as primeiras dos escritores brasilei-
ros, já que a mesma mantém uma percepção perspicaz do detalhe, retirando a lógica prosaica
para uma construção de uma prosa poética.

Embasamento teórico
Bergson define cômico, como “o mecânico calcado no vivo”, ou seja, o cômico ocorre quando o
vivo se comporta como uma máquina, é algo eminentemente social, não existe fora do âmbito
do humano, depende de um grupo, o cômico é cultural.

[...]a imitação dos gestos é já risível por si mesma, mais ainda se tornará quando se aplicar
a desviá-los, sem os deformar, no sentido de alguma operação mecânica, como a de serrar
madeira, por exemplo, bater numa bigorna, ou puxar incansavelmente a corda de um sino
imaginário. Não que a vulgaridade seja a essência do cômico (embora de certo modo faça

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parte dele). É, antes, que o gesto apreendido parece mais francamente maquinal quando
o podemos ligar a certa operação simples, como se ele fosse mecânico de propósito
(BERGSON, 1983, p.20).

O riso exige certa insensibilidade, algo como certa anestesia do coração, ele depende das re-
lações culturais. O risível é certa rigidez mecânica, Bergson ainda fala que quando a pessoa
está agindo maquinalmente, torna-se risível. Seu comportamento é um desvio em relação à
flexibilidade da vida.

Bergson apresenta alguns tipos de cômico, partindo daqueles tipos que se relacionam à nossa
infância, nossos brinquedos. A comédia é um brinquedo que imita a vida.

O primeiro citado pelo filósofo é o boneco de mola, reflete uma posição mecânica, porque o
boneco de mola lembra o teatro de Guignol (ritmo de mola que se contrai e distende), levan-
do o riso a aumentar. A mola moral apresentada pelo autor representa o fluxo de falas (expri-
mir e reprimir). A repetição de uma expressão não é risível por si mesma, causa o riso pelo
jogo especial de elementos morais.

O outro brinquedo é a marionete de cordões, este leva a cena de comedias, representa


que o que há de sério na vida advém de nossa liberdade, e ocorre quando deixamos nos
dominar, controlar:

O fantoche a cordões. Inúmeras são as cenas de comédia nas quais um personagem crê
falar e agir livremente, conservando, pois, o essencial da vida, ao passo que, encarado de
certo aspecto, surge como simples brinquedo nas mãos de outro que com ele se diverte.
(BERGSON, 1983, p. 39).

Um outro tipo de cômico é denominado por Bergson de “bola de neve”, um esquema de com-
binação, uma bola de neve que rola e aumenta o volume ao rolar. A bola de neve, leva a pro-
cessos que engrenam em processos, e o mecanismo funciona cada vez mais rápido. A bola de
neve está associada a uma fileira de soldadinhos de chumbo, o qual derrubarmos um, o res-
tante irá cair voltando ao mesmo ponto, e se fazer círculos, desviar-se, será mais risível ainda.

O autor ainda afirma que o mecanismo rígido é como um desvio da vida e o riso seria a pró-
pria correção, certo gesto social. Partindo para o teatro bufo, Bergson traz três processos do
mesmo: a repetição, inversão e inferência de séries.

A repetição é vista como uma combinação de circunstâncias, que se repete em várias ocasi-
ões, uma repetição natural que leva ao cômico. O objetivo é introduzir nos acontecimentos
certa ordem matemática, conservando ao mesmo tempo o aspecto de verossimilhança. O
teatro bufo trabalha o espirito do espectador. A inversão tem muita analogia com a repetição,
é um “mundo às avessas”. A inversão também é vista como uma situação que se volta contra
quem a criou. E por fim temos a inferência de séries, um efeito cômico cuja formula é difícil
de extrair. Pertence ao mesmo tempo a duas series de fatos absolutamente independentes.
Então a inferência de séries, a repetição e a inversão são um processo de mecanização.

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Ao entrar no cômico por intermédio da linguagem, pode-se perceber que, no cômico, a lin-
guagem exprime, traduz-se, de uma língua para outra sob pena, entretanto, de perder grande
parte de seu vigor ao transpor-se para uma sociedade nova. Já no cômico que a linguagem cria,
deve-se o efeito à estrutura da frase e à escolha das palavras. O cômico na linguagem ainda
traz sua relação com o espirituoso, esse levando-nos a rir de um terceiro ou de nós mesmos.

A comicidade de palavras, leva ao deixar-se ir, por um efeito de rigidez ou de velocidade ad-
quirida (dizer o que não se quer dizer ou fazer o que não se quer fazer). Rimos sempre que
nossa atenção é desviada ao aspecto físico de uma pessoa, quando esteja em “causa o moral”.

Ainda na linguagem, as palavras com sentido físico e um sentido moral, ou seja, quando a ex-
pressão toma um sentido próprio, enquanto era empregado no figurado, se tornará cômico se
ainda tiver sentido mesmo invertida a frase. O autor então parte para as três leis fundamen-
tais do cômico na linguagem, chamadas de “a transformação cômica das proposições”, sendo
elas: inversão, inferência e a transposição.

A inversão é a menos interessante, ela refere-se a inversão em frases.

A próxima é a inferência, sendo esta a que dá duas significações independentes, um jogo de


palavras. Dentro da inferência ainda temos os trocadilhos, apresenta dois sentidos diferentes,
mas apenas aparentemente. Por fim temos a transposição, que é a mais profunda (é para a
linguagem corrente, o que a repetição é para a comédia). Possui dois tons extremos, a do So-
lene para o Familiar, levando a formação da paródia. A paródia define o cômico em geral pela
degradação, com exageros.

O exagero fala das pequenas coisas como se fossem grandes, é uma espécie de comicidade,
porém mais enfática, ou seja, que usa ênfase em sua fala ou escrita.

Na transposição tem-se a ironia e o humor, a primeira leva a fingir a acreditar precisamente o


que é e a segunda descreve o que é, fingindo crer que assim que deveria ser, uma transposição
do moral (valores) ao cientifico (racional).

Rimos da mecanização de algumas características. O autor, ainda nos mostra que rimos de
qualquer caráter, qualquer defeito desde que ele seja enrijecido. O riso é provocado através de
quando mostramos ou percebemos o caráter. Tem-se como uma das características a vaidade,
que está ligada a todas as outras características, ela está ligada ao falso modesto.

Então, para Bergson o riso castiga os costumes, porque quando se ri de alguém, está-se rebai-
xando-a. Então a função do cômico, para que serve, vem como algo que ridiculariza, rebaixa,
reprime. Mas por outro lado o cômico serve para coesão do grupo, homogeneização de posi-
ções de um grupo. O autor diz que o cômico é um contraste de incongruência e uma surpresa,
que segundo Kant o cômico criaria uma expectativa que acaba em nada: "O riso advém de
uma expectativa que acaba subitamente em nada” (apud BERGSON, p. 43). E que o cômico
ainda pode se dar pelo disfarce, que é quando um ser tenta parecer o que não é.

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Em Os chistes e sua relação com o inconsciente de Freud, logo no início, conta uma piada e
em seguida afirma que a graça está na forma de contar. Conclusão incial que não se sustentará
até o fim. Ele separa o cômico, um estaria ligado ao inconsciente e o outro não, sendo que o
que está ligado a princípio seja o chiste, tipo de piada, e o que não tem vínculo, o cômico.

Freud chama de cômico, o cômico em geral e chiste, aquelas piadas, manifestações cômicas
que dão acessos a conteúdos reprimidos, trazendo assim sua ideia de que o chiste está ligado
ao inconsciente, como supracitado.

Algo muito importante nesse livro de Freud é a questão da linguagem, como ele disse, o in-
consciente é feito de linguagem, então, ele tem que analisar o problema da linguagem, des-
cobrindo assim que a lógica da linguagem dos sonhos é a mesma lógica da linguagem dos
chistes. Sendo essa uma das conclusões do autor.

Percebe-se que o autor não consegue determinar o que é o cômico. No decorrer de sua obra,
ele tenta separar cômico de chiste, mas ao final ele percebe que não há como separar os dois.

Freud divide seu livro em três partes, sendo a primeira a mais importante, porque nela é onde
há a análise dos chistes, tentando defini-los, trazendo hipóteses, como a serventia dos chis-
tes, apresentado por ele que o chiste serve para que o inconsciente apresente certas coisas, e
que o chiste sirva como válvula de escape.

Nesse primeiro tópico podemos analisar que Freud apresenta a função do cômico, sendo esse
como uma válvula de escape, ou alivio de tensão, ou seja, a expressão de um assunto conside-
rado como “tabu”, coisas vedadas, se daria através da piada, aliviando, assim, algo sobre o que
queriam falar, mas não podiam, sendo essa a válvula de escape.

Então ele estuda o chiste por conta desse inconsciente, levando assim a sabermos o que é
cômico, não ao pé da letra, mas Freud apresenta fatos do que é o cômico. Sendo algo de um
ponto de vista inteiramente subjetivo, algo que esteja vinculado a nossa atitude, como tam-
bém a evocação do consciente.

O autor fala sobre os processos cômicos, como por exemplo, o cômico que advém de con-
densação acompanhada pela formação de um substituto, ou seja, a produção de uma palavra
composta. O autor ainda traz o uso do nonsense, ou seja, o absurdo. Uma piada que não faz
sentido, non = não/sem; sense = sentido.

Portanto, ao decorrer do livro, Freud tenta separar o que é cômico e o que é chiste, apresen-
tando fatos e situações que poderiam compara-los, mas ele conclui que não dá para separar,
porque um domina o outro. E que a linguagem como dito anteriormente, é fundamental para
a elaboração de um chiste, porque a lógica de sua linguagem é a mesma da dos sonhos.

Vejamos, finalmente, o capitulo “O chiste” de André Jolles, o chiste é definido pelo autor
como uma forma simples, ou seja, desmontar ocorrências, desfazer a ética, a lógica, a lingua-
gem, ele desmonta as próprias formas.

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O chiste é ainda a melhor forma de entender a disposição mental, isto é, uma energia ca-
nalizada para algum elemento, essa faz parte da nossa psicologia, atuando com a tarefa de
desmontar, desfazer, desatar. Os estudos das piadas retratam a realidade e, o discurso oficial
reprime, censura. Para o desenvolvimento dessas piadas, utiliza-se de um elemento impor-
tante que é o duplo sentido, ou seja, palavra ou frase que tem dois sentidos diferentes.

O chiste tem como função, desmontar, desfazer a ética, a lógica, a linguagem, ele desmonta
as próprias formas. O chiste ocorre através de suas transposições, suas capacidades de inver-
ter os sentidos das coisas. Os processos que o chiste emprega são inúmeros, ele tem à dispo-
sição de todos para desatar as coisas e desfazer os nós. O cômico se contitui de um universo
desfeito por inversão. Mas não se caracteriza somente pelo desate, como também pelas novas
perspectivas que se atam. Se o chiste tivesse somente a função de desatar, definiria-o como
uma forma dependente das outras, no entanto o cômico desmonta até mesmo as outras for-
mas, criando novas.

Jolles também constata os tipos de chiste, sendo-os: gracejo e zombaria. O gracejo está asso-
ciado aos elementos que não agride, não condena, uma libertação de espirito, um alívio de
tensão, então o chiste também é visto como uma solução. Já a zombaria é agressiva, morali-
zante, tem a função de rebaixar, ridicularizar, dividida assim em sátira e ironia. Respectiva-
mente, tem como objetivo condenar, rebaixar, uma forma agressiva, sendo dirigida ao objeto
que é estranho, que não se faz parte. Na ironia, você participa dela, mas na mesma não há
arrogância, e sim solidariedade, deixando claro a crítica, sem agredir. A ironia cômica para o
autor é quando quem zomba, faz parte do que é zombado. Então, Jolles também relaciona o
chiste a um alivio de tensão como Freud.

“A sátira destrói, a ironia ensina” (JOLLES, 1976, p. 211).

O autor ainda destaca a insuficiência como elemento necessário para que se possa desfazer,
a qual visa corrigir o desvio, também é visto quando o particular se agrega a forma real. Con-
tudo, Jolles, apresenta que o chiste é uma forma simples que sempre vai estar em ascensão na
vida e na literatura, embora a depender da época e da cultura possa adquirir valores diferen-
tes, mas sempre vai estar em todos os domínios.

A “via crucis” de Clarice


O conto “Via Crucis” integrante do livro O primeiro beijo e outros contos (1997), coletânea de
contos da escritora Clarice Lispector, narra a história do nascimento de uma criança, filho de
Maria das Dores que, mesmo casada, mantinha-se virgem mas fica grávida. Ao saber do fato,
o marido pergunta-lhe: “Então eu sou São José? ”. Para cumprirem o destino que lhes é traça-
do, o casal parte para a fazenda de uma tia, em Minas Gerais, para que a criança nasça em um
estábulo, como o filho de Deus. Maria das Dores quer evitar que seu filho siga a via crucis, por
isso não lhe dá o nome de Jesus, chama-o de Emmanuel.

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À vista disso já é possível perceber como o conto é carregado de comicidade, dentre eles o
nome dos personagens, usado de forma irônica pelo narrador, visto que este caçoa desses
nomes ao ficar se referindo aos mesmos com nomes religiosos.

Esse conto, se dá em relação ao religioso, o que nos leva a perguntar, por que os humanos
riem? Para Freud, o cômico seria uma válvula de escape, por exemplo, quando se recorre às
piadas para zombar da própria desgraça, visto que em situações extremamente trágicas há
histórias que conseguem ser mencionadas pelo viés cômico. O que leva o homem a rir? A
surpresa, o contraste, o absurdo, a ironia, a paródia, a sátira, a zombaria. Viu-se a importância
do cômico como limiar que instiga o porque ri e do que se ri, e há diferentes respostas a essas
perguntas. O porque rir e do que se ri despertou para que se buscasse o porquê Clarice nos faz
rir com a paródia no conto “Via Crucis” em relação ao nascimento de Jesus Cristo.

Desde 1925, O. Freidenberg, em A origem da paródia, mostrava que nas civilizações arcai-
cas, antigas e medievais o cômico e o trágico, o ridículo e o sublime são dois aspectos
complementares de uma mesma concepção de mundo e que toda visão sublime implica
uma dupla paródica: Essa dualidade burlesca faz parte do próprio mecanismo do sagrado
(MINOIS, 1946, p.141).

A escritora, nesse conto satiriza o texto sagrado, de forma lúdica aproximando-a do leitor
que, estimulado, quer saber o que há nesse manuscrito velho, ou seja, o que há na Bíblia. A
comicidade já se encontra no início do conto, quando se tem a conversa de Maria das Dores
com a ginecologista sobre ela apresentar uma gravidez sem nunca ter mantido relações se-
xuais com seu esposo. Dessa forma, o texto já começa carregado de absurdo, porque Maria
das Dores era casada, mas nunca tinha tido relações com seu parceiro. “[...] ela diagnosticou
uma suposta gravidez. –Não pode ser! Gritou Maria das Dores. – Por quê? A senhora não é
casada? –Sou, mas sou virgem, meu marido nunca me tocou. Primeiro porque ele é paciente,
segundo porque já é meio impotente” (LISPECTOR, 1997, p. 48). Nessa passagem, tem-se o
uso do gracejo, aqui, busca-se uma fachada de racionalidade para as combinações lúdicas de
palavras, a partir do estabelecimento de um sentido para elas. Ao que tudo indica trata-se do
absurdo associado ao cômico, definido por Bergson:

O absurdo, quando o encontramos na comicidade, não é, pois, um absurdo qualquer. É um


absurdo determinado. Ele não cria a comicidade, antes, ele é que decorre dela. O absurdo
não é a causa, mas o efeito – efeito especialíssimo, no qual se reflete a natureza especial da
causa que o produz (BERGSON, 1983, p. 86).

O conto analisado faz referência a um aspecto cômico estudado por Bergson, o rebaixamen-
to, isso porque a escritora utiliza-se do elevado rebaixando-o. Ela parodia o texto sagrado
sobre nascimento de Jesus.

Lispector também faz o uso de nomes bíblicos para seus personagens, comparando-os à Ma-
ria, mãe de Jesus, mas acrescentando “das Dores”, seu esposo se autonomeia de São José, por
ser pai de uma criança que segundo eles era “divina”. E por fim no menino coloca o nome de
Emmanuel, que quer dizer Deus conosco. Uma representação do sagrado, do cristianismo.

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Como pode ser observado nesse trecho: “Mas parecia que se desse à criança o nome de Je-
sus, ele seria, quando homem, crucificado. Era melhor dar-lhe o nome de Emmanuel” (LIS-
PECTOR, 1997, p. 50). A comicidade apresenta-se quando Maria das Dores quer evitar que
seu filho seja crucificado por se chamar Jesus, mas acaba por reafirmar colocando-o o nome
Emmanuel, conhecido como uma das formas utilizadas para chamar Jesus Cristo. Nesse tre-
cho e em outros que define o nome dos personagens é possível observar o uso do gracejo, pois
a escritora faz combinações lúdicas de palavras, estabelecendo sentido para elas. “ São José
arranjara para si um cajado” (LISPECTOR, 1997, p. 50) “São José cortou o cordão umbilical”
(LISPECTOR, 1997, p. 51) “Nasceu Emmanuel” (LISPECTOR, 1997, p. 51). Assim, segundo
Propp (1992) os nomes cômicos são um procedimento estilístico auxiliar que se aplica para
reforçar o efeito cômico da situação, do caráter ou da trama. Esse autor acrescenta ainda que
“[...] a exigência de verossimilhança, como uma das condições da comicidade, estende-se
também aos nomes” (PROPP, 1992, p. 204). Até o próprio narrador assume esses novos nomes
dos personagens.

A partir de então, o absurdo não deixa de aparecer em cada detalhe do conto, a escritora deixa
claro que a personagem Maria das Dores vai acreditando ser mesmo mãe de um Messias, que
de repente virou santa, preocupando-se também com seu filho, qual seria um novo Messias,
mas que não nascera em vinte e cinco de dezembro, de que seus padrinhos seriam a Virgem
Maria e Cristo. “E Maria das Dores começou a acreditar em milagres. Uma vez julgou ver de
pé ao seu lado a Virgem Maria que lhe sorria. Outra vez ela mesmo fez o milagre: o marido
estava com uma ferida aberta na perna, Maria das Dores beijou a ferida. No dia seguinte
nem marca havia.” (LISPECTOR, 1997, p. 49). “Ia à igreja todos os dias e, mesmo barriguda,
ficava horas ajoelhada. Como madrinha do filho escolhera a Virgem Maria. E para padrinho
o Cristo” (LISPECTOR, 1997, p. 50). A presença do absurdo associado ao exagero vai sendo
apresentado no decorrer do enredo, e o absurdo é um elemento da comicidade, apresentado
por um dos teóricos estudados. Bergson destaca em sua obra que “O que nos causa riso seria
o absurdo encarnado numa forma concreta, um "absurdo visível" – ou ainda uma aparência
de absurdo, admitida a princípio, logo corrigida – ou, melhor ainda, o que é absurdo por um
lado, naturalmente explicável por outro etc.” (BERGSON, 1983, p. 86).

Seu esposo também começa a acreditar que era pai de um ser divino, se vestindo como
José, pai de Jesus, “São José arranjara para si um cajado. [...] sua túnica era de estopa”
(LISPECTOR, 1997, p. 50).

Em “Via Crucis”, Lispector utiliza-se da comicidade de palavras, de trocadilhos semânticos,


esses presentes em várias passagens do conto, definido como um termo usado duas ou mais
vezes num enunciado, e em cada uso com sentido diferente. Visto assim nessa passagem “
Quando chegar a hora, não vou gritar, vou só dizer: ai Jesus!”. Nesse trecho a autora pretendeu
mostrar que Maria das Dores na hora da dor do parto de seu filho “Jesus”, ela chamaria pelo
outro Jesus, o crucificado. Tanto Bergson, como Freud e Jolles, trabalham com a comicidade
de palavras, sendo os trocadilhos para eles, de fato a mesma frase que parece apresentar dois
sentidos independentes, mas apenas aparentemente. Há, em realidade, duas frases diferen-

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tes, compostas de palavras diferentes, que se pretende confundir entre si, tendo vantagem de
produzirem o mesmo som ao ouvido.

Outro elemento presente no conto é o grotesco. Esse apresentado a partir do trecho “A tia
preparava lombinho de porco e todos comiam danadamente” (LISPECTOR, 1997, p.51). Nes-
se trecho o termo “danadamente” está vinculado ao demoníaco. Ainda nesse trecho tem-se
o uso do grotesco, porque a bíblia condenava a glutonaria e Clarice traz a personagem como
uma pessoa que comia muito. O grotesco se liga ao disforme, ao feio, ao extravagante. E a bí-
blia sagrado condena o homem glutão. Como pode-se observar nesses trechos: “Não estejas
entre os bebedores de vinho nem entre os comilões de carne. Porque o beberrão e o comilão
caem em pobreza; e a sonolência vestirá de trapos o homem” (Provérbios 23:20-21). “Mete
uma faca à tua garganta, se és homem glutão” (Provérbios 23:2).

Presencia-se a contradição da história do nascimento de Jesus quando a autora destaca


que o menino de Maria das Dores vivia com força em sua barriga, que ele lhe dava pon-
tapés. Que nasceu dando belos berros. Ao contrário da gravidez de Maria de Jesus, o cru-
cificado. “Enquanto a barriga crescia. O feto era dinâmico: dava-lhe violentos pontapés.
Ás vezes ela chamava São José para pôr a mão na sua barriga e sentir o filho vivendo com
força” (LISPECTOR, 1997, p. 49).

Outro aspecto cômico encontrado no conto é o horário do nascimento do menino Emma-


nuel, “Até que numa noite, às três horas da madrugada” (LISPECTOR, 1997, p. 51). Nesse tre-
cho é possível perceber a forma como a escritora satiriza o texto de forma irônica, pois “três
horas da madrugada” nas estórias de terror e do sobrenatural, é a hora do demônio, porque
muitos acreditam que às 3 da tarde foi o horário da morte de Cristo, e esta hora tornou-se a
hora simbólica de Jesus. Três da madrugada seria a hora oposta, ou seja, a hora maligna.

Por fim observa-se a quebra de expectativa no final do conto, visto que, já dizia Kant: "O
riso advém de uma expectativa que acaba subitamente em nada” (apud BERGSON, 1983, P.
43), essa quebra também carregada de absurdo. “Obteremos uma expressão cômica ao in-
serir uma ideia absurda num modelo consagrado de frase” (BERGSON, 1983, p. 54), ou seja,
as fórmulas e frases estereotipadas tornam-se cômicas à medida que há inserção ou paró-
dias a partir delas, como é o caso do texto literario analisado, em que possa ser que o Jesus
de Maria das Dores não passe pela via crucis, pelo sofrimento, pela cruz como Jesus passou
e como todos nós passamos. Isso porque o conto parodiado faz o uso de diversos absurdos,
levando a acreditar que possa ser que o menino não passe pela via crucis. Pode-se observar
na passagem abaixo:

“Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam.” (LISPECTOR,
1997, p. 51).

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Considerações finais
Para a identificação dos processos cômicos presentes nos contos, foi essencial o estudo dos
três teóricos que mencionamos anteriormente, visto que o corpus analisado apresenta uma
constante marca de absurdo, ironia e jogo de palavras. A autora utiliza esses procedimen-
tos descritos pelos teóricos para, com o cômico, causar as críticas irônicas e o riso. Clarice
utiliza-se nessas obras da comicidade e da ironia para descrever e criticar determinados
aspectos de nossa sociedade.

Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. (1940). O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Natanael C. Caxeiro – 2ª ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41ª ed. São Paulo. Cultri, 1976.

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Tradução: Margarida Salomão. 1ª Edição, Vol. VIII.
Rio de janeiro: Imago, outubro de 1977.

JOLLES, A. O Chiste. In: Formas Simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. P. 205 – 216.

LISPECTOR, Clarice. O primeiro beijo e outros contos. Editor: Fernando Paixão; 2ª edição. Editora Ática:
São Paulo, 1997.

LEDUC, L’ ESPÉRANCE. Vincent, Pierre. Ecce Homo: O riso. [vídeo]. Produção de Vincent Leduc, dire-
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MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução Maria Elena O. Ortriz Assumpção. São Paulo:
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NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1989.

3 da manhã: a hora do demônio. Disponível em: <http://www.assombrado.com.br/2013/09/300-da-ma-


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Os poetas do futuro: um diálogo entre


Nietzsche, Heidegger e Manoel de Barros

Gabriel Kafure da Rocha1


Filosofia/UFPE

Este artigo analisará a relação de Nietzsche com a poética através de sua


trajetória bibliográfica entre a Gaia Ciência, Ditirambos de Dionísio, até
Assim falava Zaratustra. Dentro destas três obras, temos poesias tais
como A vocação dos Poetas, Somente Louco! Somente Poeta e um peque-
no aforismo chamado Dos Poetas, respectivamente. Tentaremos assim
perceber o que foi a poesia de Nietzsche, bem como sua relação com a
totalidade de sua obra. Após esta análise, faremos uma relação entre a
poesia de Nietzsche e do poeta brasileiro Manoel de Barros, de forma a
termos em vista nele um poeta do futuro, já que Nietzsche é um filósofo
que se lança ao nosso presente, se mantendo contemporâneo ainda hoje.
Do mesmo modo, dialogaremos com Martin Heidegger no sentido de
mostrar que em matéria de poesia o fazer do poeta significa a transcen-
dência do real, transcender o real para penetrar no fabuloso da poesia é
o que faz o poeta ser poeta. Aqui a poesia toma lugar para falar por um
caminho que a realidade, enquanto dada, não alcança. No dizer da poe-
sia, isto é, nas imaginações poéticas, o engenhoso do dizer faz as coisas
serem, e os poetas como guardiões desse dizer poético sonham. Sonhar
quer dizer aqui possibilitar tocar num último deus para fazer o que há de
mais alto no sagrado, o brilho. Fazer se diz em grego com a palavra poie-
sis e é no sentido de fazer e deixar-ser para a poesia que o trabalho aqui
se pretende enquanto um aberto diálogo entre as conferências: ... “poe-
ticamente o homem habita” ..., a origem da obra de arte e, entre outros
textos do filósofo alemão Martin Heidegger e o fazer poético do poeta
mato-grossense Manoel de Barros.

Palavras-chave: Poesia; Dasein; Loucura; Mentira; Verdade.

1.  Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) E-mail: gkafure@gmail.
com Artigo em parceria com Gilvanio Moreira Santos, Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) E-mail: giovanifilosofia@gmail.com

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1. Considerações iniciais
A poesia do futuro é a maneira como Nietzsche preconiza a postura dos poetas contemporâ-
neos de lidarem com o mal-estar da modernidade, com o sofrimento e a alienação, os exces-
sos e as faltas de uma maneira não dialética, dentro de uma complementariedade do apolíneo
e dionisíaco. O poetizar é então um vedar-se contra tudo o que é inconcebível, insuperável, é
o vedar-se contra sua própria origem e esquecê-la. Antes, mais como um poeta do vislumbre,
isto é, de um clarão na visão porvindoura nietzschiana, Manoel de Barros, poeta brasileiro,
se mostra como um poeta que faz da poesia liberdade e, com isso, nos dá a aproximar com a
filosofia que abordaremos a seguir. Poesia é um caminho para o descontrair, mas também é
“espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem; designa também a armação
de objetos lúdicos com emprego de palavras imagens cores sons” (BARROS, 1990, p. 215).

Nesse ínterim, para Heidegger, onde a palavra “falhar”, a verdade não poderá existir. No en-
tanto, é na poesia que a palavra não falha e, por isso, o dizer essencial na poesia se essencia-
liza. Nela, o nomear funda, trazendo na palavra o dito que abre ao ser-aí humano a abertura
que ela antecedeu. Nesse sentido, é a poesia este “antecipar-se” que anima a “clareira” que
habita na linguagem, ela é a capacidade fundamental do modo humano de habitar” (HEIDE-
GGER, 2012, p. 179).

Seguindo nesse caminho, o presente artigo tem o intuito de promover um diálogo entre a
poética do futuro nietzschiana; a essência da poesia para o filósofo Martin Heidegger e o dito
poético do mato-grossense Manoel de Barros. Para tanto, subsidiaremos dos textos a Gaia
Ciência; Ditirambos de Dionísio; Assim falava Zaratustra; ... “poeticamente o homem habita”
... e a origem da obra de arte de Martin Heidegger, além das poesias do poeta Manoel de Bar-
ros, respectivamente.

2. Nietzsche e seu pensamento poético


O pensamento poético de Nietzsche nasce desde a sua obra-prima, ou seja, O nascimento da
tragédia, obra fundadora da concepção nietzschiana, de 1871, que já é um ensaio sobre a arte
num sentido geral. Mas é em A Gaia Ciência, texto de 1882, que o filósofo demonstra poemas
de versos livres de forma impactante ao pensamento poético milenarmente convencional. Os
dois capítulos de poemas são Brincadeira, astúcia e vingança e Canções do príncipe Vogelfrei.

A expressão “Gaia Ciência” é a expressão que deriva do nascimento da poesia europeia moder-
na, gai saber ou gaya scienza corresponde à habilidade técnica e ao espírito livre requeridos
para a escrita da poesia. Em Para Além do Bem e do Mal (Secção 20), Nietzsche observa que
“o amor como paixão - que é a nossa especialidade europeia - foi inventada pelos poetas-cava-
leiros provençais, esses seres humanos magníficos e inventivos do gai saber a quem a Europa
deve tantas coisas e a quem quase inteiramente se deve ela própria.” (1997, p.85).

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Vocação de Poeta
Recentemente, ao repousar
Sob essa folhagem
Ouvi bater, tiquetaque,
Suavemente, como em compasso.
Aborrecido, fiz uma careta,
Depois, abandonando-me,
Acabei, como um poeta,
Por imitar o mesmo tiquetaque.

Ouvindo assim, upa,


Saltar as sílabas,
Desatei de repente a rir,
Durante um bom quarto de hora.
Tu poeta? Tu poeta?
Estarás assim mal da cabeça?
«Sim, senhor, você é poeta»,
Diz Pic, o Pássaro, encolhendo os ombros
(NIETZSCHE, 2002, p. 283).

Esta poesia está presente nos apêndices da Gaia Ciência e demonstra justamente a alegria da
poesia, bem como a ironia de estar mal da cabeça. A importância do riso sem motivo, e como
o poeta é como um passarinho que canta no amanhecer do dia, louvando a natureza.

O poema em prosa Assim falou Zaratustra, obra escrita entre 1883 e 1885, oferece outro viés
contra as fronteiras e barreiras impostas pelo cansaço das fronteiras dos gêneros literários; a
proposta é, então, misturá-los. É quando Nietzsche se revela um poeta-filósofo, fazendo uma
filosofia distante do intelectualismo da época, escrevendo algo prazeroso de se ler em termos
estéticos, éticos e poéticos.

DOS POETAS
Mas aceitemos que já tenha sido dito, seriamente, que os
poetas mentem demais: e com razão – NÓS mentimos demais.

Também pouco sabemos e mal aprendemos; assim,


precisamos mentir (NIETZSCHE, 1995, p. 199-202).

As mentiras para a poesia demonstram como a razão precisa do autoengano, é o esclare-


cimento de que as essências são abandonadas pelas aparências, e as aparências enganam.
Precisamos dessas mentiras, não adianta lutar contra a ilusão, pois também precisamos das
ilusões e a arte é uma dimensão desse véu ilusório.

E quem dentre nós, poetas, não tem alterado o seu vinho?


Muito veneno se misturou em nossas adegas, muito de
censurável se fez (NIETZSCHE, 1995, p. 199-202).

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O aspecto dionisíaco é essencial ao poeta, a embriaguez é o estado de transe em que a poesia divi-
na chega aos humanos. É onde vemos o bom do gosto e o ruim, quando experimentamos o vinho.

E assim somos ávidos até das coisas que as velhas, à noite,


contam uma às outras. Chamamos a isso, em nós, o eterno
feminino.
E, como se houvesse um acesso especial e secreto ao saber,
Inacessível aos que aprendem algo: acreditamos no povo e
na sua ‘sabedoria’ (NIETZSCHE, 1995, p. 199-202).

O eterno feminino2 faz parte do caráter sedutor da verdade, Nietzsche fala que a verdade é
uma mulher, mas que a humanidade a masculinizou, transformou a verdade num ser feio,
difícil, intolerante. A verdade nietzschiana deve ser conquistada e ao mesmo tempo cheia de
caprichos, por isso repensamos na verdade, se ela realmente vale a pena. A sabedoria popular
é o mais próximo a verdade, com suas anedotas, seus provérbios.

Mas nisso acreditam os poetas: que aquele que, deitado


na grama ou em solitária colina, aplica o ouvido, aprende um
pouco das coisas que há entre o céu e a terra.
E, quando se tomam de ternura, os poetas sempre julgam
que a natureza se apaixonou por eles –
E que se insinua em seus ouvidos; com segredos e amados
elogios dos quais, orgulham-se e vangloriam-se diante de todos
os mortais!
Ai de nós, há tantas coisas entre o céu e a terra com que
somente sonharam os poetas! (NIETZSCHE, 1995, p. 199-202).

Como diriam os clássicos como Homero, o pai dos poetas que inventou os deuses, na Ilíadas e
Odisséia, O poeta é paixão (pathos), espanto perante a vida e o novo. É o romântico apaixonado
pela natureza. É o sonhador, e para Nietzsche é preciso esse caráter inventivo do inconsciente.

E principalmente acima do Céu: pois todos os Deuses são


metáforas e artimanhas de Poetas!
Em verdade, algo nos guia para o alto – precisamente, para
o reino das nuvens: nelas pousamos os nossos trajes em cores
e, então, chamamos-lhes deuses e acima-dos-homens.

E deveras, todos são leves para tal sede – esses deuses e


acima-dos-homens!
Coitado de mim, estou cansado de todos esses insuficientes,
em pretenso Acontecimento. Coitado de mim, como estou
cansado dos poetas! (INIETZSCHE, 1995, p. 199-202).

2. Tal expressão, apesar de ter sua origem em Goethe, foi utilizada por Nietzsche no sentido dele ser o primeiro
psicólogo do ‘eterno feminino’ –

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É o contraponto entre o super-homem e o poeta. Zaratustra também é poeta, mas ele não
quer que ninguém creia nele. O super-homem e os deuses vistos pelos poetas são como mo-
delos que apontam para o alto e esquecem de ver as profundezas das águas, aliás, os poetas
turvam as águas para parecerem profundas. Nietzsche quer dizer que os poetas ainda assim
são superficiais, mas que ao mesmo tempo não devemos ver isso como um problema da poe-
sia, pois ela não deve ser pensada, mas sim sentida, saboreada, digerida.

É em Ditirambos de Dionísio, série de poemas que fecham a obra O Anticristo, de 1888, p.


83 a 145, que o poeta nos surpreende. Com o título original de Canções de Zaratustra, a obra
apresenta o ideário do que viria a ser hoje a poesia contemporânea mais consequente. Os Di-
tirambos de Dionísio são nove poemas “inspirados” pelo deus Dionísio, que para Nietzsche
simbolizava o oposto dos valores cristãos. Leremos a seguir Nur Narr! Nur Dichter! (Somente
louco! Somente poeta!) Sigamos Nietzsche, nesta obra-prima:

“Pretendente da Verdade – tu?” – assim


zombavam eles.
“Não! Somente poeta!
Um bicho ardiloso, de rapina, insinuante,
que tem de mentir,
Que ciente, voluntariamente tem de mentir
ávido de presa,
disfarçado de cores,
pra si mesmo um disfarce,
para si mesmo um presa,
isso – pretendente da Verdade?...
(NIETZSCHE, 2007, p. 84-91).

Mentiras sinceras nos interessam, Nietzsche está buscando isso, a maior verdade é não ter
verdade. Mentiras que nos ajudem a viver, e não verdades que nos matem. A necessidade
ensina a fazer poesia, todo o mundo dos conceitos é poesia por necessidade – tanto expres-
são quanto disfarce, máscara, transfiguração do animal amedrontado e cobiçoso que há no
homem. Este psicólogo decifrador de almas tem que decifrar o escondido através do disfarce
deste bicho ardiloso chamado homem.

Somente louco! Somente poeta!


Falando somente coisas coloridas,
falando a partir de máscaras de tolo,
subindo por mentiras pontes de palavras,
por arco-íris de mentiras,
entre falsos céus
vagueando, deslizando –
somente louco! Somente poeta!
em todo ermo mais em casa do que em templos,
cheio de capricho de felino

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a saltar por toda janela


zás! para todo acaso,
farejando em casa floresta virgem,
que corras em florestas virgens
entre bestas de jubas coloridas
pecaminosamente sadio e belo e colorido corras
com ávidos beiços,
feliz – zombeteiro, feliz – infernal, feliz –
[sanguinolento,
corras rapinando, deslizando, mentindo...
(NIETZSCHE, 2007, p. 84-91).

A alegria perante o trágico é a própria loucura para Nietzsche. É mais falsa ainda a verdade
que não é acompanhada por uma gargalhada. As máscaras mostram a relação da figuração
e da transfiguração. A mediocridade é a maior das máscaras, não dizer que os medíocres se
mascaram é ter por eles compaixão e bondade. Esta não separação entre o louco e o super-ho-
mem lhe dá forças para suportar o insuportável, mas esta força não é a superação, mas sim o
ânimo de viver do artista, que grita o jubiloso “da capo”.

Ou como a águia, que longamente,


longamente olha, hirta, nos abismos,
em seus abismos...
– oh, como eles se encaracolam
para baixo, para dentro,
em cada vez mais fundas profundezas! –

No ar desanuviado,
quando já a foice da lua
entre rubores purpúreos
verde se insinua e invejosa,
– inimiga do dia,
a cada passo secretamente
ceifando pendentes redes
de rosas, até caírem
pálidas, noite abaixo:
(NIETZSCHE, 2007, p. 84-91).

Nietzsche é um poeta lunar e do ar, como atestam alguns trabalhos nas linhas estéticas da
poética de Bachelard, aquele que encara o abismo e a vertigem da queda.

Assim, limitando-nos quase exclusivamente ao exame das Poesias e dessa obra lírica que é
Assim falava Zaratustra, acreditamos poder fazer a demonstração de que, em Nietzsche, o
poeta explica em parte o pensador e de que Nietzsche é o tipo mesmo de poeta vertical,
do poeta das alturas, do poeta ascencional (BACHELARD, 2001, p. 127-128).

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Nas palavras do próprio Nietzsche a queda tem uma relação próxima com o aspecto psí-
quico da sombra,

Assim caí eu mesmo uma vez


de minha loucura da verdade,
de meus anseios diurnos,
cansado do dia, doente da luz

– caí para baixo, para a noite, para a sombra,


queimado e sedento
de uma verdade
– lembras-se ainda, lembres-te, ardente coração,
como tinhas sede então? –

que eu esteja banido


de toda verdade!
Somente louco! Somente poeta!...
(NIETZSCHE, 2007, p. 84-91).

O intelecto tem esse defeito da mentira e tão assim que compreender o procedimento enga-
nador do intelecto é não colocar um espelho perante o conhecimento, é chegar ao apodera-
mento do conhecimento, a sua vontade de poder conhecer. Ao mesmo tempo, o entendimen-
to de que a sombra do conhecimento acompanha sempre a subjetividade e que não pode ser
ignorada, não pode ser recalcada, deve ser ressignificada pela própria poesia.

3. Heidegger e a linguagem poética de Manoel de Barros

“A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem”


(HEIDEGGER, 2010, p. 8).

A linguagem é um sendo – ser em constante porvir – no habitar que guarda o seu guardião.
Este é o ente que protege o ser para a linguagem. No entanto, quem são os guardiões que pro-
tegem e possibilitam o desvelamento da linguagem como essência? Se há um habitar, nele
transitam aqueles que protegem e salvaguardam a linguagem no seu dizer poético e “os pen-
sadores e poetas são os guardas desta habitação” (HEIDEGGER, 2010, p. 8).

Para tanto, é de pressupor que esse habitar é na vigência, ou na sua essência, quando pensado
a partir da abertura que o possibilita. Essa possibilidade somente é cabível através da poesia
– que aqui toma para si o sentido rigoroso da poiesis (fazer, criar ou produzir). No entanto,
qual é a relação entre o “habitar e o poético”?

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Para trazer à claridade a relação da poesia com o habitar na essência da linguagem, Heidegger irá
se ater ao verso poeticamente o homem habita, do poema No azul sereno floresce, de Hölderlin:

As palavras “... poeticamente o homem habita...” dizem muito mais. Dizem que é a poesia
que permite ao habitar ser um habitar. Poesia é deixar-habitar em sentido próprio [...] pen-
sar a essência da poesia, no sentido de um deixar-habitar, como o construir por excelência
(HEIDEGGER, 2012, p. 167).

Sendo a poesia um construir por excelência, é também ela quem possibilita o habitar na lin-
guagem – ou seja, um morar na casa do ser – afinal, habita-se na linguagem quando se produz
ou se cria poeticamente. Assim, “a poesia constrói a essência do habitar”. É ela quem suporta
ou sustenta o vigor da linguagem para que o ser-aí possa habitar ou deixar-ser poeticamente.
Porém, “Nenhuma coisa é, onde a palavra, isto é, o nome, falhar” (HEIDEGGER, 2011, p. 126).

Onde a palavra “falhar”, a verdade não existe. No entanto, é na poesia que a palavra não falha
e, por isso, o dizer essencial na poesia se essencializa. Nela, o nomear funda, trazendo na pa-
lavra o dito que abre o ser do ser-aí na abertura que ela antecedeu. Nesse sentido, é a poesia
este “antecipar-se” que anima a “clareira” que habita na linguagem. Mas como pode a poesia
ser essa abertura que descortina o ser do ser-aí?

Estando na mundanidade do mundo o ser-aí é possibilidade. Esta possibilidade – que se


encerra na possibilidade da absoluta impossibilidade do existir – é justaposta pela abertura
que revela ao ser-aí a oportunidade de encontro do ser com o ente. Este advém ao ser em um
encontro prestidigitador pela linguagem que a poesia possibilita. “A poesia é a fundação do
ser pela palavra e na palavra” (HEIDEGGER apud NUNES, 2012, p. 254).

Nesse sentido, a palavra é o sopro que dá a vida ao poema. Dando vida a este, funda o ser do
ser-aí pelo dizer fabuloso da palavra. Isto, pois:

A arte do poeta consiste em desconsiderar o real. Em lugar de agir, os poetas sonham. O


que eles fazem é apenas fantasiar. Fantasias são tecidas sem esforço. Fazer se diz em grego
com a palavra poiesis (HEIDEGGER, 2012, p. 166).

Assim, e num sentido muito privilegiado, as imagens poéticas são imaginações. Imaginações
estas que subsidiam o fazer (poiesis) poético e que, por sua vez, caracteriza a arte do poeta. Arte
na qual se aventura o jovem Heidegger nesse trecho do poema Solidão (Eisamkeit) de 1916:

Solidão

Verde luz companheira flutua pelos livros,


Lá fora, anjos estendem mortalhas.
Está nevando.
Ao forno brinca um zumbido, uma crepitação,
O relógio tic-tac dorme. Os ventos sussurram.
Está nevando.

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Formas endurecidas que encontram a luz jamais,


Meus pecados lamentosos erram em mim.
Está nevando
(HEIDEGGER apud KIRCHNER. 2016, p, 421).

Seguindo a pegada do que se diz sobre poesia, observemos como o poeta mato-grossense
Manoel de Barros lida com os seus poemas e se vê na própria poesia:

...poesias, a poesia é
- é como a boca
dos ventos
na harpa
(BARROS, 2013, p. 102).

Segundo o poeta, a poesia é como a boca dos ventos na harpa. Aqui, apesar de, segundo
Manoel de Barros, “Poesia não [ser] para compreender, mas para incorporar”, e levando
em consideração o método hermenêutico heideggeriano, pode-se descrever que a metá-
fora da boca representa essa abertura que a poesia possibilita e que como vento que toca
no instrumento (harpa) libera o som e a harmonia do fantástico para encantar o dizer
poético. Mas poesia ainda é:

Floresta que oculta


Quem aparece
Como quem fala
Desaparece na boca
(BARROS, 2013, p. 102).

Sendo a poesia essa vasta caracterização que a natureza representa na obra do poeta, é ela
quem faz aparecer e ao mesmo ocultar aquilo que a boca faz calar ou nascer.

E é livre
Como um rumo
Nem desconfiado...
(BARROS, 2013, p. 102).

Poesia é liberdade. É um caminho para o descontrair, mas também é “espécie de réstia espan-
tada que sai pelas frinchas de um homem; Designa também a armação de objetos lúdicos com
emprego de palavras imagens cores sons” (BARROS, 2013, p. 167 e 168.).

Nesse sentido, para o poeta, a poesia constitui essa miscelânea de imagens que abastece a
fonte do dizer da palavra e que faz o ser morar na linguagem poeticamente:

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Poesia é a ocupação da imagem pelo Ser.


Poetas e tontos se ocupam de palavras
(BARROS, 2013, p. 241e 243).

Enquanto a poesia é esse deslumbrar do ser pelas imagens, na metáfora do dialeto manoelês,
o poeta “descerra um cardume de nuvens”, que desvela o céu e a terra, descortinando “a es-
trada que se abre como um pertencer” (BARROS, 2013, p. 176), para atingir a dimensão ôntica
mediante as palavras. Essas fundam e trazem as coisas para o mundo dos mortais. Aqui, o
poeta é o mensageiro; o hermeneuta das divindades que possibilita ao ser do ente um grande
encontro. Nessa “quadratura do quadro” – terra e céu; deuses e mortais:

A terra é o sustentáculo da construção, fecundidade na aproximação, estimulando o conjun-


to das águas e dos minerais, da vegetação e da fauna [...] O céu é o caminho do sol, o curso
da lua, o brilho das constelações, as estações do ano, luz e a claridade do dia, a escuridão e
densidade da noite, o favor e as intempéries do clima, a procissão de nuvens e a profundeza
azul do éter [...] Os imortais são acenos dos mensageiros da divindade [...] Os mortais são
os homens. São assim chamados porque podem morrer. Morrer significa: saber a morte,
como morte [...] Dá-se o nome de mundo a este jogo em espelho, onde se apropria a sim-
plicidade de terra e céu, de mortais e imortais (HEIDEGGER, 2012, p. 155 a 158).

Esse conjunto ou “jogo de espelhos” – que constitui o mundo e que, por meio do dizer poéti-
co, faz as coisas aparecerem – se mostra presente na obra de Manoel de Barros em forma de
imagens e representações. A título de exemplo, escutemos o poema Comparamento:

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,


Folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos
(BARROS, 2013, p. 354).

Sendo o rio esse movimento constante, esse contínuo devir que guarda dentro de sua dinâmi-
ca e percurso todos os obstáculos que a natureza/terra lhe oferece, semelhante a este:

Seria como o percurso de uma palavra antes de


Chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
Nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades
(BARROS, 2013, p. 354).

As palavras, no seu jogo de montagem para chegar até o poema, recebem em sua forma sen-
timentos, vontades, desejos e vaidades, tudo isto para poder ser representada pela Matéria
de Poesia que tem no seu valor a utilidade do inútil, pois, se a poesia se tornar uma utilidade
ela deixa de ser poesia:

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Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:


a – Esfregar pedras na paisagem.
b – perder a inteligência das coisas para vê-las.
c – esconder-se por trás das palavras para mostrar-se
(BARROS, 2013, p. 136-138).

A poesia é a chave para penetrar no segredo do mundo e da natureza. Assim, no poema,


elementos que vão contra a lógica utilitarista aparecem como uma forma de penetração do
universo poético desvelando que tudo o que a civilização despreza serve para a poesia. Desse
modo, sendo importante para a poesia “perder a inteligência das coisas para vê-las” ou ainda
“esconder-se por trás das palavras para mostrar-se”.

Completando a importância da reunião de coisas “inúteis” para penetração do mundo poéti-


co, a poesia de Manoel de Barros eleva-se ao grau do fazer poético a ponto de poder, a partir
do seu universo totalizante, agrupar as coisas que a poesia faz aparecer para o mundo. Mundo
esse que para Heidegger não é somente o conjunto das coisas naturais. Para além disto, “ele
é tanto o conjunto de todos os fenômenos como conjunto de todos os objetos da experiência
possível” (HEIDEGGER, 1999, p. 131).

Nesse sentido, o universo poético de Manoel de Barros é perpassado por imagens e dizeres que
sustentam, no vigor da palavra, esses modos de fazer aparecer. Essa desenvoltura de fazer as
coisas que aparecerem é, segundo Heidegger, o que faz um poeta ditar poeticamente e assim
conduzir seu ser para o habitar na linguagem, “pois a linguagem é a casa do ser” (2010, p. 8).

Sendo a poesia essa “elevação” que oportuna o encontro do ser com o homem, é ela também
quem abre no horizonte de possibilidades o desencerrar do ser. Ela é a soleira que sustenta
a fresta e deixa a abertura para a passagem e encontro do ser com o ente. Assim sendo, o que
funda o fundamento é aquilo que a poesia em sua essência revela. “Ao fundar aquilo que per-
manece, a poesia revela a essência humana. Nela o homem recolhe-se no fundo de seu ser-aí”
(HEIDEGGER apud NUNES, 2012, p. 255).

Nesse sentido, como abertura descobridora do ser, a poesia de Manoel de Barros é esse ma-
ravilhar-se que traz em sua miscelânea de eventos singulares a possibilidade de diversos mo-
dos de sentir a essência da existência. Na sua linguagem, “Minhocas arejam a terra; poetas,
a linguagem.” (BARROS, 2013, p. 201.), nesse arejar, ou ainda, desafogar, o poeta penetra no
universo do ser, abrindo uma brecha para que este se encante com as palavras. Ao habitar na
linguagem o poeta se torna o guardião deste habitar. Assim, o Poeta, diz Heidegger, “utiliza
a palavra, não, porém, como aqueles que habitualmente falam e escrevem tem de gastar as
palavras, mas de forma tal que a palavra se torna e permanece verdadeiramente uma palavra”
(HEIDEGGER, 1977, p. 37). Ou como diz o poeta:

A poesia está guardada nas palavras – é tudo que


Eu sei
(BARROS, 2013, p. 167 e 168).

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4. Manoel de Barros como poeta do porvir


Nietzsche na sua maneira de ser filósofo e poeta nos mostra a complementaridade que existe
dentro dessas perspectivas estéticas, o que muitos filósofos desde a antiguidade já discutiam.
Aristóteles ao expressar a poesia como a história que realmente deveria ser contada, mostra
o valor da metaforicidade poética para a historicidade. Nietzsche nos auxilia, então, a sentir
e digerir a poesia, facilitando a nossa percepção de poetas tão “estranhos” tais como o poeta
brasileiro Manoel de Barros, que como veremos a seguir, pode se caracterizar um poeta do
futuro, por inventar propriamente o passado.

Manoel de Barros escreveu um livro intitulado Memórias inventadas (2010), são memórias
que se fazem inventadas pois são a criação do novo. É por isso que no universo da infância, a
criança que Zaratustra, faz as coisas funcionarem de outra maneira: tudo é inventado. Daí a
célebre fórmula de Manoel: “tudo o que não invento é falso” (BARROS, 2004, p. 67) ou ainda a
sua doce confissão: “noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento é mentira”
(BARROS, 2003, p. 45), é a potência criativa, até as memórias são inventadas. O olhar sobre
o passado pode ser desdobrado em múltiplos sentidos, desde que se desprenda e deixe de
reverenciar o passado monumental. O passado pode ser uma grande prisão que impede de se
viver o hoje. Nietzsche falava do perigo deste tipo de olhar para o passado: um olhar que ape-
quena o homem. Em sua Segunda Consideração Intempestiva: Da utilidade e desvantagem da
história para a vida (2003) que nos alerta dessa tendência.

Para Nietzsche, o esquecimento é um ganho e não uma perda. É uma força e não uma fraque-
za e só é capaz de fazer quem sabe brincar. Não se trata de apagar o passado ou de renunciar
a história, mas sim o tipo de olhar que desenvolve o passado com seus véus. No estágio da
criança, após passar pelo camelo e o leão, o que está em jogo é o esquecimento para nascer o
olhar da invenção, é a amnésia e não a anamnese platônica. “Inocência, é a criança, e esque-
cimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial,
um sagrado dizer ‘sim’” (NIETZSCHE, 1995, p.44).

Ao desestabilizar a construção do conhecimento com metáforas, os filósofos alemães Niet-


zsche e Heidegger e o poeta brasileiro mostram a vitória da poesia contra a filosofia, pois
nesta se dissolvem as diferenças e por sua vez a própria dialética, já que os conceitos nascem
da igualação do não igual. Mesmo porque a ciência não tem uma verdade absoluta. Segundo
Ferrer, no que diz respeito a questão da verdade, Nietzsche levanta algo deveras interessante:

O mundo que nos concerne é falso; Isto é, ela não tem substância factual, mas é antes um
preenchimento poético e arredondamento de uma escassa soma de observações; Está “em
fluxo”, como algo se tornando, como uma constante fabricação que nunca se aproxima da
verdade: pois - não há “verdade” (FERRER, 2004, p. 230).

Ainda nesse constructo, para Heidegger, Nietzsche vê na “vontade de potência” a mais ex-
trema possibilidade da vontade de criação, potência da liberdade em si mesma. Por outro
lado, para o filósofo da floresta negra, poesia e pensamento não estão em polos separados,

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ao invés disso residem na vizinhança do pensamento. Aqui, Filosofia enquanto matéria


do pensar não vence ou perde seu lugar para a poesia, ao contrário, ela tem uma estreita
relação com o poetizar.

Mas se em jogo está uma experiência pensante com a linguagem, por que fazer referência a
uma experiência poética? Porque o pensamento segue seu caminho na vizinhança da poesia.
Por isso, é bom pensar no vizinho, naquele que habita a mesma proximidade. Ambos, poesia
e pensamento, precisam um do outro ao extremo, precisam de cada um em sua vizinhança
(HEIDEGGER, 2011, p. 133).

Na linha da crítica que busca uma nova maneira de pensar a poesia enquanto poiesis e a te-
chné, bem como, a tarefa do próprio pensar, caberia refletir, segundo Heidegger, nos perigos
que rodam a técnica moderna. Ela, enquanto meio de produção moderna não é má, porém
produz sem deixar a coisa ser. No entanto, ao contrário da técnica moderna, a poesia – que
produz o imaginário; o sagrado enquanto esse último deus, isto é, a verdade de ser – deixa as
coisas serem. Por isso ela é o mais alto nível da essência da verdade.

Considerações finais
Pensar a essência da linguagem é se colocar em um lugar onde se possibilita uma experi-
ência. Igualmente, “fazer uma experiência com a linguagem significa deixarmo-nos tocar
propriamente pela reivindicação da linguagem, a ela nos entregando e com ela nos harmo-
nizando” (HEIDEGGER, 2011, p. 121). Essa aproximação harmoniosa é o intento que se ensaia
no realizar-se da linguagem. Realizar-se nela é, ao mesmo tempo, nos conduzir para o sen-
tido do dizer poetante como aquilo que revela o ainda não visto; como aquilo que reivindica
para o ser-aí humano um caminho onde os fenômenos basilares acontecem. Nesse, o dizer
originário se revela possibilitando um contato mais autêntico e íntimo com a experiência do
pensar dentro da linguagem.

Igualmente, pensar na linguagem significa aqui, pensar poeticamente; pensar como algo que
revela o criativo, o engenhoso, o inaugural. Da mesma forma, a caminhada do trabalho em
questão, percorreu as mais variadas formas da possibilidade de ser o “produzir poético” esse
momento que oportuna ao ser-aí o encontro com o seu ser.

Nesse sentido, Manoel de Barros se apresentou como um poeta múltiplo, visto que ele con-
segue lidar com a profundidade da relação entre poesia, palavras, imagens e ser. Aliás, essa é
talvez uma das maiores fecundidades da poética, o ato originário de criar imagens e deformá-
-las, e fazer dessas metáforas que Nietzsche caracteriza como turvar as águas para parecerem
profundas, ressaltar que nessa superficialidade é possível encontrar a aparência do ser, na
fenomenologia de que o ser é mostrar-se. Aquilo que fica nas profundezas, na materialidade
sem forma, é não-ser.

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Se tudo isso for mentira, não deixa de ser uma ponte de palavras que é o próprio homem na
sua humanidade, na utilidade de servir de passagem aos pensamentos de si e dos outros.

Destarte, se no primeiro momento vimos que é a partir do “dizer poético” que as coisas fun-
dam-se em seu vigor de essência, em seguida, foi possível mostrar que a linguagem artística
acontece como linguagem na medida em que se poetiza. Poetizar, nesse sentido, é possibili-
tar a linguagem. Por fim, mostramos que o poetizar abre e possibilita o descortinar do ser-aí
em sua lida dentro da existência. Ou talvez fortalecer a própria vontade da imaginação como
potência de vida, de amor fati, aceitação das grandes ironias da vida com um riso poético.

Referências bibliográficas
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ra. 2ª ed. 1990.

________. Retrato do artista quando coisa. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002

________. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2003.

________. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 2004.

________. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Ed. Planeta, 2010.

________. Poesia completa. São Paulo: Leya. 2013.

HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. Lisboa. Edições 70, 1977.

________. A caminho da linguagem. Rio de Janeiro. Vozes, 2011.

________. Ensaios e conferências. Rio de Janeiro. Vozes, 2012.

________. “... Poeticamente o homem habita...”. In: Ensaios e conferências. Tradução de Marcia Sá Caval-
cante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2012.

FERRER, Daniel F. Philosophical aphorisms: critical encounters with Heidegger and Nietzsche, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo e Ditirambos de Dionísio. Tradução, Notas e Posfácio de Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, Editora Schwarcz Ltda., 2007.

________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

________. Para além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

________. Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral. Lisboa. Relógio d`Agua. 2000.

________. Gaia ciência. Curitiba: Ed. Hemus, 2002.

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________. Segunda consideração intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2003.

NUNES. Benedito. Passagem para o poético. São Paulo. Loyola, 2012.

KIRCHNER. Renato. Tradução e breves considerações acerca de alguns poemas do jovem Heidegger. Sofia,
vol. 5, n. 2, Ago. - Dez., 2016, p. 410-425. Vitória (ES).

TÜRCKE, Cristoph. O louco, Nietzsche e a mania de razão. São Paulo: Ed. Vozes, 1993.

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A literatura sob o viés filosófico: intercruzamentos

Ramon Ferreira Santana


Mestre, Letras/UFS

Para Eagleton (2006), a unidade do objeto de análise, no caso, a literatu-


ra, é tão ilusória quanto a unidade do método. Com isso, o trabalho da
crítica não possui apenas um caminho. O objetivo do presente estudo é
refletir acerca dos possíveis intercruzamentos entre a literatura e a filo-
sofia, especialmente no que se refere à incidência da reflexão filosófica
acerca de uma obra literária no sentido atribuído por Benedito Nunes
(1983) como uma das possibilidades de leitura do texto literário.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Filosofia. Intercruzamentos.

“A filosofia não começa nada absolutamente: conduzida pela não


filosofia, ela vive da substância daquilo que já foi compreendido
sem ser refletido; mas se a filosofia não é, quanto às fontes, um
começo radical, ela pode sê-lo quanto ao método [...]”
Paul Ricoeur, O voluntário e o involuntário

Considerações iniciais
Na sua introdução à teoria da literatura, Terry Eagleton inicia a sua argumentação susten-
tando-se na premissa de que, para ele, a literatura não existe (EAGLETON, 2006, p. 24). Esta
espécie de não-definição nos aponta para um problema bastante curioso quando nos debru-
çamos sobre um estudo que carece de uma sistematização maior para existir, como este que
aqui se faz agora. Ora, se não existe a literatura, no seu sentido tradicional enquanto objeto,
consequentemente a definição de métodos específicos de análise está fadada ao fracasso.

Infere-se, então, dentro desta lógica, que a unidade do objeto de análise, no caso, a literatura,
é tão ilusória quanto a unidade do método (EAGLETON, 2006, p. 298). Com isso, o trabalho
da crítica literária não possui apenas um encaminhamento específico, mas uma quantidade
significativa de métodos no processo de constituição do seu corpo de produções.

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É possível, por exemplo, elaborar uma análise que leve em consideração, demasiadamente,
a infância do autor, no caso, por exemplo, Clarice Lispector imigrante que, no período entre
guerras, é trazida pela família para o Brasil; ou, ainda, preocupar-se primordialmente com o
modo com que o texto literário é elaborado a partir das suas estruturas internas específicas
que buscam o seu significado através dos seus sistemas de significação mais amplos relacio-
nados com outros instrumentos e códigos da literatura; ou, ainda, tomar como referência as
questões ligadas às lutas de classe e à organização econômica da sociedade capitalista para
compreender como determinado texto literário faz uso dessas relações na elaboração do seu
enredo, por exemplo, a partir de uma análise que conste, como objeto, estas relações ligadas
às questões econômicas em uma obra como A hora da estrela.

Esses métodos, como indicou o próprio Eagleton (2006, p. 298), nada têm em comum.
São estudos que, caso precisássemos aproximá-los a disciplinas, teriam mais a ver com a
história, a linguística ou a sociologia, por assim dizer. Logo, a crítica literária, na forma
como está sendo aqui exposta, trata-se mais de uma “não-disciplina”, no sentido atribuí-
do por Eagleton (2006).

Literatura e filosofia: pressupostos históricos

As relações entre a literatura e a filosofia datam de tempos remotos, antes mesmo dessas duas
áreas organizarem-se sistematicamente como formas de representação do mundo. Essas re-
lações, no entanto, nem sempre foram estabelecidas levando-se em consideração o que, nas
áreas supracitadas, há em comum, mas, do contrário, foram elas construídas primeiramente
a partir dos elementos que as distinguem.

Notamos, por exemplo, em A república, de Platão, como a filosofia se afirma enquanto dis-
curso privilegiado, tendo em vista que ela se fundamenta naquilo que se concebe como ver-
dadeiramente real, ao passo que a poesia – ou o que chamamos hoje de literatura – subordi-
na-se à filosofia mediante a utilização de discursos considerados não-verdadeiros para sua
composição (PLATÃO, 2000, p. 64).

Neste sentido, a concepção platônica que diferenciava o discurso filosófico do discurso li-
terário foi a base para a formação de uma perspectiva que historicamente condensou-se
de maneira profunda, enraizando-se na tradição ocidental. Por longos séculos, esta pers-
pectiva tratou a filosofia como a maior responsável pela apreensão da realidade, enquanto
a literatura estava limitada ao âmbito da ficção. Daí a suposta superioridade, como dito,
do discurso filosófico, visto que este forneceria “as bases do conhecimento superior, que
completaria, determinando a verdade pela ideia (orthotes), a conformação metafísica da
filosofia – depois ciência (episteme) das primeiras causas e dos primeiros princípios, para
Aristóteles” (NUNES, 1983, p. 188, grifo do autor).

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A república nos atenta ainda para a necessidade de que este discurso literário esteja radical-
mente subordinado aos governantes, e consequentemente ao discurso filosófico, posto que as
fábulas inventadas pelos autores poderiam causar efeitos positivos ou negativos na formação
da sociedade, daí a necessidade de que se escolhessem apenas aquelas que atendessem às de-
mandas de organização e coesão da coletividade, descartando as outras que não causassem
semelhante efeito mediante a maneira “errada” que algum poeta delineasse o modo de ser dos
deuses ou dos heróis.

O texto de Platão acusa, assim, a poesia de afastar o ser humano da verdade, visto que ela está
fundamentada em uma atividade mimética, ou seja, limitada à imitação da realidade, e por
isso, voltada às imagens que nos são inventivas, enganosas e, por consequência, inferiores.
Diz o filósofo:

Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente,
excluirmos da cidade uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impedia. Acrescen-
tamos ainda, para ela não nos acusar de uma tal ou qual dureza e rusticidade, que é antiga
a diferença entre a filosofia e a poesia. Realmente, lá temos a “cadela a ganir ao dono” e a
“que ladra” e o “homem superior a proferir palavras vãs”, e o “bando de cabeças magistrais”
e os “que pensam sutilmente”, como afinal “vivem na penúria” e mil outras provas da anti-
guidade do antagonismo entre elas. Mesmo assim, diga-se que, se a poesia imitativa voltada
para o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente numa sociedade bem
governada, a receberemos com gosto, pois temos consciência do encantamento que sobre
nós exerce; mas seria impiedade trair o que julgamos ser verdadeiro (PLATÃO, 2000, p. 306).

Sabemos que parte significativa do discurso literário surgiu por meio das narrativas míti-
cas que respondiam, àquela altura, a curiosidade dos homens e das mulheres acerca dos
fenômenos que os cercavam. Porém, a partir do momento em que o ser humano deixa de
lado a construção imaginária de explicação da realidade, e passa a apropriar-se daquilo que
esteja fundamentado no que poderia ser considerada uma razão filosófica, a maneira como
serão respondidas as nossas perguntas transforma-se consideravelmente. Daí a relação de
diferença que o campo da literatura e o campo da filosofia estabelecem entre si, conforme
dito anteriormente, já que à literatura reservam-se as construções imaginativas voltadas
para a estética, enquanto à filosofia estariam voltadas as reflexões e o uso do pensamento
para atingir a verdade.

Ainda assim, conforme apontam alguns críticos, por mais que Platão indique essa crítica à
literatura, semeando uma das principais cisões que marcarão o desenvolvimento desses dois
domínios, não há como deixar de notar que ele acaba por ratificar o próprio poder da litera-
tura, visto que a maior parte do domínio filosófico por ele elaborado se deu através da repre-
sentação de diálogos, neste sentido, através de uma forma literária (CARVALHO, 2013, p. 19).

O segundo grande teórico que irá preocupar-se com este problema relacionado aos elos de li-
gação, ou mesmo de distanciamento, entre a literatura e a filosofia será Aristóteles. Discípulo
de Platão, Aristóteles refutou o conceito ontológico do mestre e criou uma concepção estética
para a arte, segundo a qual a imitação não se limita mais ao mundo exterior, mas se sustenta

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pelo critério de verossimilhança e fornece a representação como uma possibilidade, no plano


fictício, sem qualquer compromisso de traduzir a realidade empírica (ARAÚJO, 2011). Essa
elevação do discurso poético se deu, em Aristóteles, quando este fundamentou o conceito de
mimesis1 e afastou o literário da história, aproximando-o consequentemente da filosofia.

De acordo com essa lógica aristotélica, a função do poeta não é necessariamente registrar o
que ocorreu, dado que esse é por excelência o domínio discursivo da história, mas registrar
o que poderia, porventura, ter ocorrido. Sob este prisma, a poesia ao tratar do que poderia
ter ocorrido faz uso de uma lógica universal, ao passo que a história, limitando-se aos acon-
tecimentos, restringe-se ao que é particular. Daí a superioridade da literatura em relação à
história e, por conseguinte, a sua aproximação com a filosofia. Diz Aristóteles:

Pois não diferem o historiador e o poeta por fazer uso, ou não, da metrificação (seria o
caso de metrificar os relatos de Heródoto; nem por isso deixariam de ser, com ou sem
metro, algum tipo de história) mas diferem por isto, por dizer, um, o que aconteceu, outro,
o que poderia acontecer. Por isso a poesia é mais filosófica e mais virtuosa que a história
(ARISTÓTELES apud GAZONI, 2006, p. 67).

Evidencia-se, conforme aponta o comentarista e tradutor da Poética para o português


Fernando Maciel Gazoni (2006, p. 67), a importância do trecho supracitado dado o esta-
tuto que a poesia conquista frente à história. Sob este prisma, o universal na poesia apa-
rece na medida em que se articula de acordo com o provável, o necessário, o que, no mais
das vezes ou sempre, acontece, opondo-se consequentemente ao mosaico desarticulado,
particular e local da história.

Com o advento da modernidade, a partir de uma série de transformações que atingiram não
apenas o modo como a sociedade ocidental organizou-se, assim como também a sua manei-
ra de pensar através do refinamento de suas concepções, a superioridade relativa da filosofia
se mantém ainda em relação à literatura, bem como às artes de uma maneira geral, relativa
posto que a própria filosofia é quem a alardeia.

1.  Por Mimesis ou representação, compreende-se como um “termo afetado por uma certa polissemia, em parte
suscitada pela sua vasta projeção no campo dos estudos literários, a representação remonta, enquanto conceito
a definir, às reflexões platônicas e aristotélicas sobre os procedimentos imitativos adotados pelos discursos de
índole estético-verbal. Como pode ler-se n’A República, ‘em poesia e em prosa há uma espécie que é toda de
imitação, [...] que é a tragédia e a comédia; outra de narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode
encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por ambas, que se usa na composição da epopeia e de
muitos outros gêneros’ (Platão, 1983; 118); e em Aristóteles, a referência à mimesis como imitação exige a distin-
ção entre um modo de representação dramática (p. ex., na tragédia) e um modo de representação narrativa (p. ex.,
na epopeia) (cf. Poética, 1449b, 1450a, 1462a e b)” (REIS & LOPES,1988, pp. 87-88).

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Perspectivas metodológicas para análise do texto literário


Não há uma unidade metodológica específica que sustente a organização dos trabalhos de
crítica literária e isto não é, para os teóricos da literatura, nenhum motivo de preocupação.
Porém, a ausência desta unidade pode também acarretar certos problemas. Ao passo que não
existe uma exclusividade quanto a uma determinada metodologia, a pluralidade metodológi-
ca também é perigosa, visto que certas combinações de diferentes encaminhamentos dificil-
mente conseguirão manter a coesão necessária ao desenvolvimento do trabalho de pesquisa.

Em outras palavras, querer combinar, em uma análise, procedimentos ligados ao estrutura-


lismo, à fenomenologia e à psicanálise certamente acarretará uma fissura metodológica que
tornará o trabalho pouco claro ou sem a devida organização.

Eagleton (2006, p. 299) aponta ainda a existência de certos estudiosos da literatura que fazem
uso exclusivamente de “vislumbres e palpites, intuições e percepções súbitas”. Eles preferem,
por assim dizer, ler a literatura “diretamente” e, a partir dessa leitura, elaborar as suas aná-
lises. Há, para estes, o perigo de, na ausência de uma opção metodológica mais condizente,
perderem-se com a presença implícita de valores ideológicos que quase sempre influenciam
de maneira direta o desenvolvimento desta sensibilidade inteligente capaz de aferir as intui-
ções e os palpites que construirão a crítica literária.

Não há, obviamente, como desconectar as relações entre os problemas teóricos e metodoló-
gicos com as ideologias das quais esses elementos fazem parte. Eagleton nos diz que os dis-
cursos, os sistemas de signo e as práticas significativas de todos os tipos produzem efeitos que
condicionam formas de consciência e de inconsciência (EAGLETON, 2006, p. 317).

Consequentemente, a forma como a ideologia conecta todas essas questões relacionadas ao


objeto e aos métodos de pesquisa faz com que estes sejam levados em consideração sob um en-
foque inteiramente novo. Não se trata, diz Eagleton (2006, p. 317) de partir de certos problemas
teóricos ou metodológicos, mas de começar com o que se quer fazer para daí procurar quais
métodos e quais teorias melhor nos ajudam a chegar a este propósito que definimos. Logo,

qualquer método ou teoria que contribua para a meta estratégica da emancipação humana,
para a produção de “homens melhores” por meio da transformação socialista da sociedade,
é aceitável. Estruturalismo, semiótica, psicanálise, desconstrução, teoria da recepção, e assim
por diante: todas essas abordagens, e outras, têm aspectos valiosos que podem ser aprovei-
tados (EAGLETON, 2006, p. 318).

Isto não significa, no entanto, que qualquer teoria ou qualquer método possa ser mobilizado
para atender qualquer objetivo pretendido de pesquisa. Nem todos os métodos serão redu-
tíveis a finalidades particulares específicas. É importante que se respeite os limites definidos
pelos métodos para que o pluralismo já referido anteriormente mantenha a sua coesão. Cada
opção metodológica de pesquisa deve ser orientada de acordo com o que a teoria relacionada
àquele método é capaz de atender.

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Convém destacar a esse respeito que com a crescente especialização metodológica que, já
no século XX atingiu a crítica literária, em parte inclusive pela força de interação do próprio
sistema de ensino, sobretudo o universitário, com os estudos literários que nele se incor-
poraram, a feição da atividade crítica se modificou profundamente em relação ao que ela
era até aquele momento, e sobre ela se colocaram exigências inteiramente novas, conforme
Carlos Reis (1997, p. 35).

Essa especialização a que se refere o teórico não se limita unicamente à uniformização de


determinado método específico. Do contrário, as ramificações de inúmeras possibilidades
metodológicas de análise contribuíram para que a crítica passasse a desempenhar um papel
fundamentalmente distinto daquele que historicamente lhe foi instituído no que se refere à
prática valorativa do texto literário.

É importante ressaltar que as especializações metodológicas do fazer crítico da literatura fo-


ram responsáveis, por sua vez, para a própria institucionalização deste campo de produção
humana. Ainda segundo Reis (1997, p. 25), quando mencionamos o caráter institucional da
literatura, ou quando falamos em instituição literária, estamos desde logo a nos remeter para
as práticas e para os sujeitos que asseguram o fenômeno literário, sua feição de estabilidade e
de notoriedade pública.

Emerge daí a relevância de que se organizem teorias acerca deste objeto que é a literatura,
bem como métodos de crítica e de análise, academias, prêmios e toda dimensão sociocultural
que está a ela vinculada.

No que se refere a este primeiro capítulo, queremos demonstrar que o aporte metodológico
utilizado na elaboração do presente trabalho sustentou-se na perspectiva filosófica de análise
do texto literário, sem limitar esse campo de produção humana ao breviário de ideias filosófi-
cas diluídas a que se referem Wellek e Warren (2003, p. 137). Sob este viés, a verdade filosófica,
ou pelo menos o que se concebe como tal, não é o que necessariamente interessa à literatura,
posto que o valor de um texto não está no conteúdo filosófico que ela apresenta.

O que nos interessa aqui é, enquanto um estudo de literatura, observarmos as relações entre
as ideias filosóficas e a literatura no que concerne à sua constituição na textura da obra de
arte. Neste sentido, as ideias passam a ser analisadas sem limitarem-se ao que comumente
acontece no âmbito da análise puramente filosófica e passam a ser enxergadas “quando dei-
xam de ser ideias no sentido comum de conceitos e tornam-se símbolos ou mesmo mitos”
(NUNES, 1983 p. 156) inseridos no interior do espaço literário.

Literatura e filosofia: intercruzamentos metodológicos


Gostaríamos de começar considerando de início o entrelaçamento existente entre a filosofia
e a literatura que, como dito, datam de épocas remotas. No entanto, a aproximação no que se

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refere ao que há em comum entre esses dois domínios tem se evidenciado de maneira bastan-
te acentuada muito recentemente.

Indicar essa possibilidade de análise sob o ponto de vista citado é apresentar, a priori, que o
estabelecimento dessas relações não foi somente o objeto a que se destina esta pesquisa, mas
também o modo pelo qual a presente análise se constituiu – conforme tem sido feito em uma
significativa parte da produção dos teóricos e críticos da literatura.

Apontar para essa possibilidade de se fazer uma leitura do texto literário sob a ótica da filoso-
fia não é, certamente, novidade alguma, posto que, se considerarmos uma tradição que gra-
dualmente tem se consolidado nos estudos literários, o olhar sob uma perspectiva filosófica
em torno da literatura é um dos caminhos intrínsecos à própria construção do conhecimento.

A partir da crise metafísica, como veremos mais adiante, conforme indicou Benedito Nunes
(1983, p. 189), é inerente o conhecimento da literatura, por via do mesmo caminho que levou
a reflexão filosófica a encontrar, desde a Fenomenologia, a presença da linguagem enlaçada às
próprias coisas, ou seja, a presença originária das coisas na experiência que tornou a literatura
objeto de conhecimento filosófico já que esta não deixa de ser a forma de representação das
coisas através de uma forma do domínio simbólico.

Dessa maneira, ao indicar a reflexão filosófica referente à leitura do texto literário, Bene-
dito Nunes salienta que analisar filosoficamente é colocar o objeto estudado “sob a mul-
tiplicidade de nexos que o sustentam” (NUNES, 1983, p. 192). O teórico evidencia ainda
que o estudo proposto a partir desse modelo de análise faz uso de uma abordagem inter-
disciplinar, já que a metodologia não se reduz somente aos pressupostos limitados a uma
única área do conhecimento – tem-se, conforme é possível inferir, o uso das perspectivas
de leitura de duas áreas distintas (no caso, a literatura e a filosofia), sem que isso limite o
texto literário à mera representação das ideias filosóficas, no sentido do que já dizia an-
teriormente Wellek e Warren (2003, p. 137).

Ao considerar essa capacidade que a filosofia, assim como outras áreas do conhecimento,
tem de adentrar em outros espaços, no caso aqui especificamente o da literatura, para uma
abordagem de uma obra literária sob esse enfoque, segundo ainda Benedito Nunes, é ne-
cessário que consideremos alguns pontos de reflexão para que assim seja possível colocar o
objeto de análise, no caso o texto literário, sob a multiplicidade de nexos que o sustentam
(NUNES, 1983, p. 192).

O teórico ressalta ainda que em uma análise dessa natureza, com enfoque interdisciplinar,
cujo ângulo de análise depende da capacidade de abertura das disciplinas aqui evidenciadas,
podemos considerar inúmeras conexões possíveis, não nos limitando somente a tratar de um
isto que desconsidera completamente a existência e a relevância de um aquilo.

Ora, isso não significa que esta abordagem seja propriamente totalizadora, tendo em vista
a impossibilidade de se estabelecer um estudo que possua esta capacidade, e é exatamente

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por este motivo que Benedito Nunes insere alguns pontos de incidência da reflexão filosófica
acerca de uma obra literária, considerada como uma forma. São elas:
a) a linguagem;
b) as conexões da obra com as linhas de pensamento histórico-filosófico;
c) a instância de questionamento que a forma representa em função das ideias que são
problemas do e para o pensamento (NUNES, 1983, p. 192).

O primeiro desses pontos, a linguagem, aspecto mais sistematicamente estudado na literatu-


ra, que nos concede a possibilidade de observarmos os recursos poéticos e retóricos dos quais
a obra faz uso para atingir o seu poder verbal.

O segundo ponto de incidência para o exame filosófico a que se propõe o referido teórico
brasileiro refere-se às conexões da obra literária com as linhas do pensamento histórico-
-filosófico. Assim, por mais que desconsideremos as articulações metafóricas elaboradas a
partir do espaço social, histórico e humano, a narração é elaborada a partir de uma reflexi-
vidade, desprendida da linguagem filosófica, que emerge através das sentenças que com-
põem todo o tecido narrativo.

O terceiro, por fim, a instância de questionamento, ou seja, um problema que passa a ser re-
presentado pelas ideias expostas ao longo do texto literário não somente de maneira extrín-
seca, como um problema filosófico exterior, mas do contrário, intrinsicamente prenunciado
ao longo da construção do texto literário, por mais que ele não se formule sistematicamente.

Convém destacar que o aparecimento dessa forma de se analisar o texto literário sob uma
perspectiva filosófica diferente dos moldes clássicos que separaram, durante séculos, esses
dois campos hierarquicamente, só foi possível mediante, conforme será apresentado pos-
teriormente, o deslocamento da noção de verdade que, não mais limitado ao âmbito do
que fosse elaborado racionalmente através de um conhecimento científico, passou a fazer
uso também da compreensão e do modo como o ser humano interpreta a sua realidade sem
limitar-se ao uso da razão.

Em outros termos, a literatura e a filosofia passam a avizinhar-se consideravelmente a partir


dessas profundas mudanças no modo como ambas as áreas eram classificadas. Com isso, o
próprio Benedito Nunes (2011, p. 9) aponta, também, para a possibilidade de se estabelecer
três diferentes relações entre a filosofia e a poesia – poesia, no caso, entendida como o ele-
mento imaterial da arte literária.

Referimo-nos ao elemento imaterial quando a poesia, neste sentido, está adequada à subje-
tividade, diferente, portanto, das demais manifestações literárias como o poema e a prosa,
que se situam no campo material, estético e estilístico. Sendo estes dois campos muito vas-
tos – muitas vezes confundidos –, e a poesia uma manifestação que transcende as barreiras
da literatura, incidindo, inclusive, sob as demais artes, referimo-nos a ela, aqui, pois, em seu
aspecto criativo e essencial à produção literária (CARLINI, 2011).

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São elas as relações estabelecidas por Benedito Nunes:


a) disciplinar;
b) supradisciplinar ou extradisciplinar;
c) transacional.

A primeira delas considera tanto a poesia como a própria filosofia áreas distintas, que man-
têm cada qual a sua natureza específica, cabendo à filosofia empenhar-se para conceituar a
poesia, determinar-lhe a essência, posto que ela é um objeto de investigação que como qual-
quer outro recai em seu âmbito reflexivo. Evidencia-se que, nessa primeira relação, a poesia é
considerada inferior dada a necessidade de que a filosofia a explique e compreenda por meio
do seu saber conceptual.

Ao desvincularmos essa relação disciplinar que é, por sua vez, também hierárquica, conforme
aponta Benedito Nunes, passamos para uma incorporação desses dois campos, que originam
assim a relação supradisciplinar ou extradisciplinar.

Nesse modelo, o campo filosófico é intercruzado ao campo poético de modo que as antigas
barreiras disciplinares até então instransponíveis deixam de existir. Esse intercruzamento, no
entanto, não se dá apenas em relação ao que há em comum entre os dois campos supracita-
dos, mas do contrário, forma-se também baseado em uma tensão que é resultado dos anta-
gonismos e das oposições que há no âmago desses domínios discursivos.

A noção desse espaço híbrido entre a poesia e a literatura dá origem à terceira relação, transa-
cional, que é, por sua vez, estabelecida a partir do movimento de ir e vir de uma área para ou-
tra. Neste sentido, tanto a filosofia quanto a poesia, de acordo com Benedito Nunes, mantêm
as suas identidades separadas, cada qual dentro da sua forma, sem que haja, porém, qualquer
hierarquização ligada à superioridade de uma em detrimento da outra.

Assim, “a filosofia não deixa de ser filosofia tornando-se poética, nem a poesia deixa de
ser poesia tornando-se filosófica. Uma polariza a outra sem assimilação transformadora”
(NUNES, 2011, p. 14).

Considerações finais

Por fim, independentemente do enviesamento metodológico a ser escolhido pelo estudioso,


não há como desconsiderarmos que a teoria literária pura, conforme indicou Eagleton (2006,
p.294), e, consequentemente, também a crítica, jamais se desvinculam do seu aporte ideoló-
gico e dos encaminhamentos históricos e políticos dos quais elas são frutos diretos.

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Neste sentido, compreendendo o significado de “político”, segundo a ótica do mesmo teórico,


como a maneira pela qual organizamos a nossa vida social conjuntamente, bem como as re-
lações de poder vão se estabelecendo. Tratar de literatura, na contemporaneidade, é também,
inevitavelmente, parte da história política e ideológica de nosso tempo.

Ainda que se tente fugir dessas ideologias modernas, Eagleton (2006, p. 297) argumenta que
a teoria literária acaba por elaborar traços de cumplicidade até mesmo inconscientes com es-
sas ideologias, traindo assim o seu elitismo, o seu sexismo ou o seu individualismo por meio
de uma linguagem fundamentalmente estética e apolítica, por assim dizer.

Esse individualismo possessivo que supõe estar, no centro do mundo, o ser humano solitário
debruçado sobre o livro não deixa também de ser um reflexo dos “valores de um sistema polí-
tico que subordina a socialidade da vida humana à solitária empresa individual” (EAGLETON,
2006, p. 297). Todos esses valores, consequentemente, influenciarão de modo direto tanto os
métodos de investigação como os próprios objetivos específicos a que se destina a pesquisa.

Referências
ARAÚJO, Maria Cláudia. A Poética de Aristóteles sob a abordagem de Lígia Militz da Costa. Kalíope. São
Paulo, ano 7, n. 14, p. 70-82. jul./dez., 2011.

CARLINI, Daniel Castello Branco. A poesia como elemento de criação da arte literária. Blog Literário.
Disponível em: <http://180graus.com/blog-literario/a-poesia-comoele mento-de-criacao-da-arte-litera-
ria-por-daniel-castello-branco-ciarlini-450655.html>. Acesso em: 03 mar. 2017.

CARVALHO, Maria Helena. Filosofia e Literatura: O sentido e a medida de uma relação possível em Mau-
rice Blanchot e Paul Ricoeur. Dissertação de mestrado em Filosofia. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2013.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução para o português de Waltensir Dutra;
Revisão da tradução de João Azenha Júnior. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. Tese de doutorado em Fi-
losofia. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.

NUNES, Benedito. Literatura e Filosofia: Grande sertão: veredas. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Litera-
tura em suas fontes. 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

________. Poesia e filosofia: uma transa. In: A Palo Seco: escritos de filosofia e literatura. Aracaju, n. 3,
vol. 1, p. 8-17, 2011.

PLATÃO. A república. Tradução para o português de Pietro Nassetti.

REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1997.

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REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Tradução
para o português de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 137.

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Linguagem e poesia: o fazer poético de


Manoel de Barros à luz de Martin Heidegger

Gilvanio Moreira Santos1


Mestrando, Filosofia/UFPE

O artigo tem por intenção, em primeiro instante, tratar da noção de fa-


latório (Gerede) cotidiano a partir da obra Ser e tempo do filósofo M.
Heidegger, na qual o pensador nos traz uma reflexão sobre como, em
nossa lida cotidiana, estamos dominados por um discurso pouco cria-
tivo, repetitivo e sem profundidade. Do mesmo modo, poremos em di-
álogo os ditos poéticos do poeta mato-grossense Manoel de Barros e as
conferências proferidas por Heidegger: ... poeticamente o homem habita
...; a essência da linguagem e a origem da obra de arte, onde é discutida
a questão da poesia e a essência da linguagem.

Palavras-chave: Linguagem. Poesia. Dasein.

Considerações iniciais
O fundamento ontológico existencial da linguagem é a fala. [...] A linguagem é o pronuncia-
mento da fala. [...] a fala constitui a abertura do ser-no-mundo e sua própria estrutura é
pré-moldada por essa constituição fundamental da presença. [...] toda fala tem algo sobre
que fala que, como tal, constitui propriamente o dito dos desejos, das perguntas, dos pro-
nunciamentos. Nele, a fala se comunica. [...] No entanto, dado que a fala perdeu ou jamais
alcançou a referência ontológica primária ao referencial da fala, ela nunca se comunica no
modo de uma apropriação originária deste sobre o que se fala, contentando-se com repetir
e passar adiante a fala. [...] repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta de solidez.
Nisso se constitui a falação (HEIDEGGER, 2009, § 34 e §35).
Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, falamos bem em encontrar um dito
que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de qualquer modo. Dizer ge-
nuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer, própria ao dito, é por sua vez
inaugural (HEIDEGGER, 2011, p. 12.).

1.  Bolsista CAPES. E-mail: giovanifilosofia@gmail.com

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Para Heidegger o dasein2 é um ente privilegiado por possuir linguagem, fala e discurso. No
entanto, há muito que esta fala perdeu sua relação de profundidade com as coisas e, por isso,
também perdeu um modo todo de desvelar as coisas no mundo de forma originária. Da fala
sobrou a falação, na falação a fala se tornou ordinária. A falação, assim, caracteriza esse fala-
tório cotidiano onde de modo vertiginoso ela se reproduz em um dizer que não se aprofunda,
mas somente repete o que lê ou escuta. Pensar a respeito do fenômeno do falatório, isto é,
sobre esta repetição quase que desenfreada do discurso pouco profundo que se espraia coti-
dianamente, é fazer surgir a possibilidade de pensar o dasein cotidiano como abertura para
um dizer que não somente utilize a linguagem como forma do pensamento que calcula; que
instrumentaliza ou comumente usa a linguagem. Ao contrário, a tentativa aqui é pensar a
linguagem enquanto essência do dizer.

Nesse sentido, explorar os fenômenos do falatório, Impessoalidade à luz do filósofo Martin


Heidegger é aproximar o dasein cotidiano de seu ser si-mesmo. “Demorar junto as coisas” é o
que se pretende como caminho para que o dasein possa ver os fenômenos que lhes aparecem
todos os dias, não pelo “olhar hipnotizado” do cotidiano, mas sim por um ver fenomenológico
que lhe possibilite estar atento às questões que o cercam todos os dias.

Do mesmo modo, meditar sobre a linguagem poética como modo privilegiado do dizer é ten-
tar desvelar a tentativa de fugir do falatório cujo modo de ser é o impessoal; é, ao mesmo tem-
po, indicar o dizer poético como uma forma de proteção da linguagem contra todo o desgaste
desse mesmo falatório. O dizer da poesia aqui não se faz com uma linguagem qualquer, mas
como uma linguagem que transcende o modo pressuposto ou manipulado como instrumen-
to ou matéria; uma linguagem que possibilita o manifestar, o descortinar do ser como de fato
o é, ou seja, em seu vigor de ser.

Desta forma, o presente artigo tem o intuito de promover um diálogo entre a essência da lin-
guagem do filósofo Martin Heidegger e o dito poético do mato-grossense Manoel de Barros.
Para tanto, dialogaremos com – além de outros textos – as obras: Ser e tempo; ... poetica-
mente o homem habita ...; a origem da obra de arte e a essência da linguagem e das poesias
do poeta Manoel de Barros. Nesse sentido, nosso objetivo é meditar sobre: (1) o fenômeno
da linguagem ordinária, isto é, a do falatório cotidiano como modo de ser do impessoal e (2)

2.  De modo generalíssimo, podemos dizer que o Dasein é esse modo mesmo como estamos aí no mundo. Esse
aí (Da) do ser (Sein) é a essência pertencente ao estar-fora. Estar-fora é o caráter ek-stático do dasein; sua ma-
neira mesma de existir “explodindo para fora”; seu modo de ser pura intencionalidade. Com o termo: Dasein
(que aparece na língua alemã por volta dos séculos XVIII e hoje é comumente traduzido por ser-aí) Heidegger
quer, não somente, ressaltar a relação do homem com o seu ser-no-mundo, mas também dar ênfase ao fato de
que este está lançado no mundo e é neste mundo que o jogo de ação acontece. Aqui preferimos não traduzir o
termo dasein por ser-aí por motivos que o próprio Heidegger deixa claro na Carta sobre o humanismo (2010) e
em seu Seminário sobre Heráclito, de 1966/67, realizado com Eugen Fink respectivamente: “Da-sein” é uma pa-
lavra chave do meu pensar, por isso ela é causa de graves erros de interpretação. Da-sein não significa para mim
exatamente “eis-me”, mas, se é que me posso exprimir num francês sem dúvida impossível ser-o-aí e o-lá significa
exatamente Alétheia, desvelamento-abertura (HEIDEGGER, 2010, p, 89). “Tudo o que tinha sido conquistado em
ser e tempo como nova posição se perdeu” (HEIDEGGER, 1966/1967).

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a linguagem poética como dizer privilegiado do dasein humano. Para tanto trilharemos tal
caminho: (1) O falatório cotidiano como modo de ser do impessoal; (2) o apelo do ser como
saída do impessoal; (3) Poesia como modo do dizer privilegiado da linguagem e, por fim, (4)
Heidegger e a linguagem poética de Manoel de Barros.

1. O falatório cotidiano como modo de ser do impessoal

“A expressão “falatório” não deve ser aqui empregada numa acepção


pejorativa. Ela significa terminologicamente um fenômeno positivo, que
constitui o modo-de-ser do entender e interpretar do dasein cotidiano”
(HEIDEGGER, 2012, p. 471).

Para Heidegger, o fenômeno do falatório cotidiano não deve ser visto como algo negativo,
afinal, se trata de um modo de ser do dasein. No entanto, este modo de ser cotidiano também
encobre o ser si-mesmo de cada um, pois, sendo o falatório fundado no impessoal, ou seja, no
modo de despersonalização da pessoa, ele distancia o modo próprio, isto é, o modo autentico
de cada dasein, afinal, segundo Heidegger, “Perdendo-se na publicidade do impessoal e em
seu falatório, o dasein, ao ouvir impessoal ele mesmo, deixa de ouvir o seu próprio si-mesmo
(HEIDEGGER, 2012, p. 745). Ainda sobre isto nos diz Nunes:

A comunicação transmite o que se tornou constante e regular: o estado público, que limita
as possibilidades do discurso à reprodução do já compreendido e interpretado. O discurso
decai numa atividade repetitiva e reflexa. Por espelhamento da interpretação dominante
de todos, o discurso (die Rede) se transforma, de redundância em redundância, no falatório
ou na parolagem (Gedere), como linguagem instrumentalizada. [...] Nesse estado público da
linguagem, que prescreve até a maneira verbal de sentir, de pensar e de agir, a possibilidade
originária de abertura do discurso cede lugar à possibilidade inversa de encobrimento do
ser-no-mundo (NUNES, 2012, p. 102 e 103).

Estar-no-mundo é compartilhar conceitos, significados, discursos que nos orientam para


uma circunvisão de mundo3. Porém o caráter do discurso ora depositado na medianidade
cotidiana se faz de um modo em que o dasein humano se distancie daquilo que ele é em sua
autenticidade. Fundado no falatório, o dasein humano se faz na sua mais “pura” impessoali-
dade. Ele não é si-mesmo, pois é todos e ao mesmo tempo não é ninguém, afinal, “A-gente,
que não é ninguém determinado e que todos são, não como uma soma, porém, prescreve o
modo-de-ser da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2012, p. 365).

3.  Para uma maior explanação sobre o conceito de mundo em Heidegger conferir: Mundo vivido: das vicissitudes
e dos usos de um conceito da fenomenologia (STEIN, 2004, p. 141-151). Para a circularidade da compreensão em
Heidegger conferir: Compreensão e finitude: estrutura e movimentação da interrogação heideggeriana (STEIN, 2001,
p. 243-262). Para mais, Cf.Verdade e método (Gadamer, 1999. p. 400 a 416).

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Pelo discurso sedimentado no cotidiano nós somos o impessoal – o A-gente – porque somos
“os ninguém”. Estando nessa “impropriedade”, quer dizer, nessa falta de si-mesmo pela re-
petição e pouco aprofundamento, pelo pouco demorar-se junto às coisas, o ser-no-mundo
que cada um de nós somos se encontra distante de nós mesmos. Aqui a marca do impessoal4
(Mann) se dá num instante em que o dasein cotidiano imerso nas determinações historica-
mente constituídas não questiona os porquês dos padrões estabelecidos pela nossa socieda-
de. Hipnotizado, ele somente repete mecanicamente o que foi lido e mal interpretado. Nesse
sentido, diz Roberto Kahlmeyer-Mertens:

Ao conviver com os outros, o ser-no-mundo compartilha um conjunto de sentidos e sig-


nificados consolidados no mundo fático. [...] “os outros” são todos que compartilham um
mundo cotidianamente; do mesmo modo, são ninguém, por afinal não possuir identidades
nesse constructo que prescreve tacitamente diretrizes de conduta e modos padronizados
de se portar nas muitas demandas do mundo cotidiano. Acatando regras estipuladas por
uma maioria indistinta e assumindo modos de procedimentos adequados a um mundo com-
partilhado, o ser-no-mundo se deixa absorver (benommen) num comportamento impessoal
com relação aos outros e a si mesmo (KAHLMEYER-MERTENS, 2015, p, 92).

Segundo o autor, o ser-no-mundo é esse que em sua lida cotidiana e na impessoalidade obe-
dece e absorve o mundo a partir de comportamentos estabelecidos por padrões previamente
dados pela sociedade. Aqui, a sociedade estabelece meios para que o dasein simplesmente se
“enquadre” e obedeça. Nessa marcha hipnótica o dasein não é nada além do que “um repe-
tidor parasitário de ideias e opiniões alheias”, no entanto, lutar contra essas determinações e
todo esse enquadramento é uma possibilidade que emerge, por escolha, no próprio dasein.

Junto ao fenômeno do falatório se encontram, segundo Heidegger, tanto a curiosidade, como


também a ambiguidade. A curiosidade aqui é a busca incessante das novidades sem antes
aprofundar as novidades antigas. É o pouco demorar junto ao que surgiu e com pressa agarrar
mais uma novidade, pois “a curiosidade se caracteriza por uma específica incapacidade de
permanecer no imediato. [...] Nessa incapacidade de permanecer nas coisas, a curiosidade se
ocupa da constante possibilidade da distração (HEIDEGGER, 2012, p. 485).

Ao mesmo tempo, o caráter ambíguo em que está metido o dasein na sua lida cotidiana se
apresenta como um movimento pendular que transita entre o curioso e o repetitivo, ou seja,
a ambiguidade se situa entre a rapidez e fugacidade da novidade – curiosidade – para a repe-
tição superficial do novo pouco profundo – falatório. Para tanto, diz Heidegger:

Ambíguo o Dasein o é sempre “aí”, isto é, na abertura pública do ser-um-com-o-outro,


onde o falatório mais ruidoso e a curiosidade mais inventiva mantêm funcionando
“o estabelecimento” onde cotidianamente tudo ocorre e, no fundo, nada acontece
(HEIDEGGER, 2012, p. 491).

4.  Sobre a questão do Impessoal em Heidegger, Cf. Nada a caminho: impessoalidade, niilismo e técnica na obra
de Martin Heidegger (CASANOVA, 2006.).

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Fazendo uma ponte com nossas novidades cibernéticas e outras tecnologias podemos dizer
que esse caráter pouco demorado com que nos metemos está também presente nas nossas
pesquisas acadêmicas; seja nas leituras5 diárias dos nossos “produtos” midiáticos; seja no
entretenimento e pouco aproveitamento de nosso dia-dia ou nas nossas relações cotidianas.
Essa maneira vaga e aligeirada – própria do dasein cotidiano – se mostra como modo que
nos relacionamos sem “fundo” com estes entes, com os outros e com nós mesmos. Ao mes-
mo tempo, este mesmo falatório está presente não somente na repetição e velocidade das
informações; de ditos que são veiculados pelas mídias atuais6 – seja através dos veículos de
comunicação da internet, entre outros –, mas também nas determinações sedimentadas ao
longo da tradição histórica7, isto porque extrapolando o mero discurso cotidiano o falatório
se tornou ao longo da história “uma espécie de objetificação da linguagem, nossas palavras
transformadas em coisas reificadas (NUNES, 2007, p. 75.).

2. O apelo do ser como saída do impessoal


Segundo Heidegger, nossa relação com as coisas desde há muito perdeu sua relação de sen-
tido originário e se tornou uma apropriação um tanto autoritária do discurso vago no mero
falatório cotidiano8. Fugir desse discurso repetitivo, superficial e pouco profundo é, nesse
sentido, buscar singularizar-se; é buscar o ser si-mesmo que há em cada um de nós e que nos
faz autênticos. Segundo Casanova, singularizar significa, para Heidegger:

Não poder mais simplesmente repetir o discurso cotidiano. No momento em que a


singularização se dá, esvaziam-se a significância e os “em-virtude-de” sedimentados que
tornavam possível até então a projeção compreensiva do campo existencial do ser-aí
(CASANOVA 2013, p. 159).

O impessoal do que nos fala Heidegger é o modo mesmo como estamos no mundo como todos e
como ninguém, pois “cada um é o outro e nenhum é ele mesmo” (HEIDEGGER, 2012, p. 367). No
impessoal o dasein assume o comportamento dos outros e nunca é ele mesmo. “O quem do da-
sein no mais das vezes não sou eu mesmo, mas a-gente-ela-mesma” (HEIDEGGER, 2012, p. 735).

5.  Isso porque “a repetição do discurso aqui não se funda somente no ouvir-dizer. Também se alimenta do lido
por cima” (HEIDEGGER, 2012, p. 475).
6.  “O falatório rege também os caminhos da curiosidade, dizendo: o que a-gente deve ter lido e deve ter visto”
(HEIDEGGER, 2012, p. 487).
7.  Isto em virtude de ser o falatório cotidiano, no mais das vezes, uma rearticulação das determinações histori-
camente constituídas. Sem se aprofundar ou questionar no que escutamos ou lemos, somente repetimos o que
no tempo passado foi determinado e dito como verdade por outrem.
8.  “Na medida em que a difusão do falatório aumenta, intensifica-se além disso ainda mais esse domínio e a força
de sua coerção” (CASANOVA, 2006, p. 71).

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É importante lembrar que o fenômeno do falatório cotidiano e a entrada do dasein no impes-


soal não se dá para Heidegger como algo negativo. Para este, o dasein, na sua cotidianidade
mediante, está no jogo pendular da verdade e da não-verdade; do velamento-desvelamento –
entre a letheia-aletheia –; entre a impessoalidade e seu ser si-mesmo. O que importa buscar,
nesse sentido, é o ser si-mesmo que é próprio de cada ser-no-mundo, isto é nossa singulari-
dade. Por isso, o que está em questão em Heidegger é, em geral, uma nova maneira do dasein
experimentar o mundo; de lidar cotidianamente com este; seja na ocupação com os entes em
geral, seja na preocupação com os outros9. Aqui, a singularidade do dasein se dará não so-
mente na lida cotidiana – enquanto possibilidade –, mas também e, essencialmente, no dizer
originário da linguagem10, i.é., na linguagem poética11.

Em contrapartida, segundo o filósofo, o caminho para a saída do impessoal acontece pelo


fenômeno da escuta (hören): a maneira autentica em que o dasein ouve a si-mesmo. Para
que o fenômeno do escutar se dê originariamente é preciso saber ouvir, por isso nos diz o fi-
lósofo: “O ouvir constitui o estar-aberto primário e autêntico do dasein para o seu poder-ser
mais próprio” (HEIDEGGER, 2012, p. 461). O estar-aberto, ao mesmo tempo, se dará quando
o dasein for arrebatado por momentos limites de sua existência; pelas disposições de humor
que lhes vêm como possibilidade do habitar no autêntico existir. O mundo intima o dasein
para seu apelo pelo fato da existência lançar o dasein nas diversas formas fundamentais das
tonalidades de humor12 – Angústia13 , tédio, temor, alegria, entre outros. O apelo do ser é a
intimação do mundo ao dasein para que este se deixe-ouvir pelo seu próprio apelo, isto pois,
“o apelo rompe o ouvir de a-gente, no qual o dasein não se ouve” (HEIDEGGER, 2012, p. 745).

Dessa forma, o “apelo do ser” seria a retirada do dasein de sua medianidade cotidiana; da sua
saída dos “ninguém” que na impessoalidade somos; da saída do falatório para o qual ele está
imerso e enfeitiçado. Isso porque segundo Heidegger “o falatório é a possibilidade de tudo

9.  Aqui o sentido da chamada “desconstrução” da ontologia enquanto metafísica se dá mais no sentido de uma
forma de repensar nossa relação junto as coisas e os outros, do que uma destruição da história das ontologias.
Para Gadamer: “Quem se encontrava com Heidegger tinha que aprender, em primeiro lugar, que uso de con-
ceitos não é um negócio inocente. Ele tinha que aprender que existe algo como um aparato conceitual no qual,
por causa do aparente caráter óbvio, está em ação uma atividade antecipadora dificilmente explicável. O pôr à
mostra desta atividade antecipadora era o negócio do pensamento que o jovem Heidegger denominou ‘destruição’.
Apesar de todo o impulso revolucionário que impelia o jovem Heidegger, esta palavra destruição nada tinha de
‘arrasador’, mas era ‘atividade reveladora’. Destruição era a liberação da força denominativa da linguagem. Através
da liberação da palavra nominadora ‘a destruição’ prepara o caminho para a expressão conceitual” (GADAMER
apud STEIN 2004, p. 64). Para mais, conferir Heidegger nos parágrafos 6§ e 73§ de Ser e Tempo.
10.  Para questão do “repensar o seer e a linguagem”, Cf. Contribuições à Filosofia: Do acontecimento-apropriador.
(HEIDEGGER, 2015.)
11.  Cf. “... Poeticamente o homem habita...”. (HEIDEGGER, 2012, p. 163-181).
12.  Cf. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. (HEIDEGGER, 2011.).
13.  Para a questão da angústia em Heidegger Cf. Heidegger e a essência do Homem. (HAAR, 1997, p. 83, “a
angústia originária”).

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entender sem uma prévia apropriação da coisa (HEIDEGGER, 2012, p. 475). Igualmente, ain-
da diz o filósofo que o dasein “só pode tornar-se livre em suas possibilidades positivas quan-
do o falatório encobridor se tenha tornado ineficaz e o interesse “comum” tenha morrido”
(HEIDEGGER, 2012, p. 489).

3. Poesia como modo do dizer privilegiado da linguagem14


Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, falamos bem em encontrar um dito
que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de qualquer modo. Dizer ge-
nuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer, própria ao dito, é por sua vez
inaugural (HEIDEGGER, 2011, p. 12).

Na passagem acima, o filósofo menciona frases como: “não um dito qualquer” e “um dito
inaugural”. Entretanto, o que quer dizer o filósofo com essas expressões? Inicialmente, o que
seria um dito qualquer? Seria esse um dito descomprometido, desinteressado de alguma pre-
tensão? Seria ele o dizer que em especial nada nos revela? Certamente. Afinal, esse dizer des-
compromissado é um que está distante do descortinar originário das coisas. Nele a linguagem
se torna um instrumento para a fala ordinária; uma espécie de “poder” anônimo que coagula
a possibilidade da linguagem ser ela mesma, não revelando o sentido de ser no que está em-
butido no dito genuinamente.

Ao mesmo tempo que há uma instrumentalização da linguagem, também podemos dizer


que há um dito inaugural, um diferenciar do dito qualquer. Nesse, o dasein inaugura o ain-
da não dito. Isso em virtude de um apropriar-se do “lar do ser”, de sua morada, de forma
clareada. É neste dizer que a linguagem acontece enquanto linguagem. Contudo, se há um
dizer genuíno, como é possível pensá-lo a partir da linguagem que funda? Que linguagem é
essa que nomeia e que, por sua vez, serve de fundamento essencial para todas as coisas? “O
que significa nomear? Será apenas atribuir palavras de uma língua aos objetos e processos
conhecidos e representáveis como neve, sino, janela, cair tocar”? (HEIDEGGER, 2011, p. 15).
A propósito, diz Heidegger:

Nomear não é distribuir títulos, não é atribuir palavras. Nomear é evocar para a palavra.
Nomear evoca. Nomear aproxima o que se evoca. Mas essa aproximação não cria o que se
evoca no intuito de firmá-lo e submetê-lo ao âmbito imediato das coisas vigentes. A evoca-
ção convoca. Desse modo, traz para uma proximidade a vigência do que antes não havia sido
convocado. Colocando a evocação já provocou o que se evoca (HEIDEGGER, 2011, p. 15).

14.  Cabe pensar aqui numa virada do pensamento heideggeriano, porém não um abandono da problematização
do tratado: Ser e Tempo. Sobre essa questão, em 1962, numa carta a Richardson diz Heidegger: “O pensamento
da viravolta é uma mudança de rumo em meu pensamento. Mas, essa mudança de rumo não é consequência
fundada na modificação do ponto de vista ou mesmo abandono da problematização de “Ser e Tempo””. Nesse
sentido, o artigo aqui desenvolvido tem a intenção de fazer a retomada da questão do ser, não com abandono
do que foi dito nos tópicos anteriores, mas no sentido de agarrar o pensamento da virada heideggeriana como
uma radicalização desse mesmo pensamento pelo dito da linguagem poética.

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Nessa ordem de sentido, Heidegger nos conduz a ideia de uma espécie de nomear que funda.
Esse fundamento é o dizer que não está preso ao entendimento comumente pensado do falar.
Para ele, o nomear é aquilo que abre a possibilidade do manifestar e do evocar. E esse é o cha-
mar que provoca a aproximação do dasein ao fundamento do dizer genuíno do essencializa:

As palavras não são simples vocábulos, assim como baldes e barris dos quais extraímos
um conteúdo existente. Elas são antes mananciais que o dizer perfura, mananciais que têm
de ser encontrados e perfurados de novo, fáceis de obturar, mas que, de repente, brotam
de onde menos se espera. Sem o retorno sempre renovado aos mananciais, permanecem
os baldes e os barris, ou têm, no mínimo, seu conteúdo estancado (HEIDEGGER apud
NUNES, 2012, p. 255).

Dada a circunstância de que as palavras não são simples dizeres e são nelas que as coisas se
fundam, no entanto, como é possível exaurir, e, ao mesmo tempo, alcançar esse dizer que
passa longe de vocábulos quaisquer? Onde será que a palavra se funda e nomeia todas as coi-
sas como o dizer essencial?

Só na medida em que a linguagem nomeia pela primeira vez o ente é que um tal nomear traz
o ente à palavra e ao aparecer. Semelhante nomear nomeia o ente para o seu ser a partir
deste. Um tal dizer é um projetar do clarificado, no qual se diz com que consistência o ente
vem ao aberto. Projetar é a libertação de um lançar e é como tal lançar que a desocultação
se ajusta ao ente enquanto tal (HEIDEGGER, 1977, p. 59).

É por meio da linguagem e através dela que o nomear abre, e, por sua vez, possibilita. Essa
abertura acontece quando o dasein está na essência consistente do dizer na palavra. Esse
dizer consistente é o “projetar para clarificado”. Esse é a fresta que oportuna ao dasein partir
ao encontro do antes não visto, do ainda não desvelado. Contudo, que dizer projetante seria
esse? A propósito, diz Heidegger:

“O dizer projetante é poesia: a fábula do mundo e da terra, a fábula do espaço de jogo de


combate e, assim, do lugar de toda a proximidade e afastamento dos deuses. A poesia é a
fábula da desocultação do ente (HEIDEGGER, 1977, p. 59).

Nesse sentido, é na poesia que o dizer genuíno se une na palavra e através dela funda todas as
outras coisas. Ela é a verdade como aquilo que revela e desoculta o ente enquanto tal. Pois, “a
verdade, como a clareira e ocultação do ente, acontece na medida em que se poetiza” (HEI-
DEGGER, 1977, p. 58). Dessa forma, É no dizer poetante que o dasein se lança no descerra-
mento do seu ser e nas manifestações da sua lida existencial. Porém, se é por meio do dizer
poetante que o nomear abre, e, por sua vez, possibilita, como é possível pensar a poesia como
abertura que possibilita a linguagem originária?

Para Heidegger: “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem” (HEI-
DEGGER, 2010, p. 8). A linguagem é um sendo – ser em constante porvir – no habitar que
guarda o seu guardião. Este é o ente que protege o ser para a linguagem. No entanto, quem são
os guardiões que protegem e possibilitam o desvelamento da linguagem como essência? Se há

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um habitar, nele transitam aqueles que protegem e salvaguardam a linguagem no seu dizer
poético e “os pensadores e poetas são os guardas desta habitação” (HEIDEGGER, 2010, p. 8).

Para tanto, é de pressupor que esse habitar é na vigência quando pensado a partir da abertura
que o possibilita. Essa possibilidade somente é cabível através da poesia – que aqui toma para
si o sentido rigoroso da poiesis. Ela é aquilo que possibilita a linguagem como dizer desve-
lante. Entretanto, quais as implicações que nos inquietam quando pensamos a poesia como
possibilidade originária da linguagem? Como poderíamos aceitar essa afirmação?

Se pensarmos que linguagem é, antes de tudo, pensamento, poderemos nos iluminar com a
possibilidade de que haja uma vizinhança do pensar para com a poesia. No pensar há uma
força que permite à poesia esse vigor inaugurante. Para tanto, cabe entender o que se abre na
clareira do dizer poético e do pensar:

O poeta e o pensar se necessitam mutuamente. [...] Essa necessidade decorre da estreita


vizinhança, em que se encontram, um próximo ao outro. [...] o poeta e o pensar são modo
do dizer. Mas à proximidade, ao que estabelece a vizinhança entre os dois, chamamos de dito
(HEIDEGGER, 2011, p. 187).

Sendo a poesia um lugar onde se sustenta um modo próprio do produzir inaugural onde o
originário se manifesta para comemorar a linguagem – e desvelar o ser si-mesmo de cada da-
sein – é possível amparar a possibilidade de ela ser a abertura que possibilita a essência da lin-
guagem como dizer elevado. Essa linguagem inaugural se sustenta na experiência do “pensar
poetante”, ou seja, um pensar próprio da poesia como no que se avizinha do pensar dinâmico;
próprio de um modo de ser poético, modo esse: criativo, engenhoso e inaugural.

Deste modo, a poesia já é o antes que se manifesta na linguagem. Ela é a polpa que já se en-
contra no limiar entre o dito e o silenciar, entre o ocultar e o desocultar para saltar para o lugar
que surge na oportunidade da linguagem originária. Nesse sentido, é a poesia este antecipar-
-se que anima a “clareira” que habita na linguagem. Aqui o dizer poético possibilita a abertura
que aproxima o dasein de um encontro com seu ser si-mesmo. Este, advém ao dasein em um
encontro prestidigitador pela linguagem que a poesia possibilita. Por isso, diz Heidegger:
“Pensar desde a linguagem significa: alcançar de tal modo a fala da linguagem que essa fala
aconteça como o que concede e garante uma morada para a essência, para o modo de ser dos
mortais” (HEIDEGGER, 2011, p. 10).

Sendo a poesia essa “elevação” que oportuna o encontro do dasein com seu modo de ser fora
do impessoal, é ela também quem abre no horizonte de possibilidades do descerrar do ser.
Ela é a soleira que sustenta a fresta e deixa a abertura para a passagem e encontro do ser si-
-mesmo de cada dasein. Assim sendo, o que funda o fundamento é aquilo que a poesia em sua
essência revela. “Ao fundar aquilo que permanece, a poesia revela a essência humana. Nela o
homem recolhe-se no fundo de seu ser-aí” (HEIDEGGER apud NUNES, 2012, p. 255).

Nesse sentido, como abertura descobridora do dasein, a poesia é este maravilhar-se que traz
em sua miscelânea de eventos singulares a possibilidade de diversos modos de sentir a es-

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sência da existência, e o guardião deste possibilitar é o poeta, este, diz Heidegger, “utiliza
a palavra, não, porém, como aqueles que habitualmente falam e escrevem tem de gastar as
palavras, mas de forma tal que a palavra se torna e permanece verdadeiramente uma palavra”
(HEIDEGGER, 1977, p. 37).

4. Heidegger e a linguagem poética de Manoel de Barros

“A linguagem é a casa do ser.


Nesta habitação do ser mora o homem”
(HEIDEGGER, 2010, p. 8).

"Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada.


Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei.
Sobre o nada eu tenho profundidades"
(BARROS, 2013, p. 7).

Para trazer à claridade a relação da poesia com o habitar na essência da linguagem,


Heidegger irá se ater ao verso poeticamente o homem habita, do poema “No azul sereno
f loresce”, de Hölderlin:

As palavras “... poeticamente o homem habita...” dizem muito mais. Dizem que é a poesia
que permite ao habitar ser um habitar. Poesia é deixar-habitar em sentido próprio [...] pen-
sar a essência da poesia, no sentido de um deixar-habitar, como o construir por excelência
(HEIDEGGER, 2012, p. 167).

Sendo a poesia um construir por excelência, é também ela quem possibilita o habitar na lin-
guagem – ou seja, um morar na casa do ser – afinal, habita-se na linguagem quando se produz
ou se cria poeticamente. Assim, “a poesia constrói a essência do habitar”. É ela quem suporta
ou sustenta o vigor da linguagem para que o dasein possa habitar ou deixar-ser poeticamente.

Em uma passagem da obra A caminho da linguagem Heidegger nos diz que “nenhuma coisa
é, onde a palavra, isto é, o nome, falhar” (HEIDEGGER, 2011, p. 126). Ou seja, onde a palavra
“falhar”, a verdade não existe. No entanto, é na poesia que a palavra não falha e, por isso, o
dizer essencial na poesia se essencializa. Nela, o nomear funda, trazendo na palavra o dito
que abre o ser do dasein na abertura que ela antecedeu. Nesse sentido, é a poesia este “an-
tecipar-se” que anima a “clareira” que habita na linguagem, afinal “a poesia é a fundação
do ser pela palavra e na palavra” (HEIDEGGER apud NUNES, 2012, p. 254). Nesse sentido,
a palavra é o sopro que dá a vida ao poema. Dando vida a este, ela abre o ser do dasein pelo
dizer fabuloso da palavra. Isto, pois:

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A arte do poeta consiste em desconsiderar o real. Em lugar de agir, os poetas sonham. O


que eles fazem é apenas fantasiar. Fantasias são tecidas sem esforço. Fazer se diz em grego
com a palavra poiesis (HEIDEGGER, 2012, p. 166).

Assim, e num sentido muito privilegiado, as imagens poéticas são imaginações. Imaginações
estas que subsidiam o fazer (poiesis) poético e que, por sua vez, caracteriza a arte do poeta. Arte
na qual se aventura o jovem Heidegger nesse trecho do poema Solidão (Eisamkeit) de 1916:

Solidão
Verde luz companheira flutua pelos livros,
Lá fora, anjos estendem mortalhas.
Está nevando.
Ao forno brinca um zumbido, uma crepitação,
O relógio tic-tac dorme. Os ventos sussurram.
Está nevando.
Formas endurecidas que encontram a luz jamais,
Meus pecados lamentosos erram em mim.
Está nevando.
(HEIDEGGER apud KIRCHNER. 2016, p, 421).

Seguindo a pegada do que se diz sobre poesia, observemos como o poeta mato-grossense
Manoel de Barros lida com os seus poemas e se vê na própria poesia:

...poesias, a poesia é
- é como a boca
dos ventos
na harpa
(BARROS, 2013, p. 102).

Segundo o poeta, a poesia é como a boca dos ventos na harpa. Aqui, apesar de, segundo
Manoel de Barros, “Poesia não [ser] para compreender, mas para incorporar”, e levando
em consideração o método hermenêutico heideggeriano, pode-se descrever que a metá-
fora da boca representa essa abertura que a poesia possibilita e que como vento que toca
no instrumento (harpa) libera o som e a harmonia do fantástico para encantar o dizer
poético. Mas poesia ainda é:

Floresta que oculta


Quem aparece
Como quem fala
Desaparece na boca
(BARROS, 2013, p. 102).

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Sendo a poesia essa vasta caracterização que a natureza representa na obra do poeta, é ela
quem faz aparecer e ao mesmo ocultar aquilo que a boca faz calar ou nascer.

E é livre
Como um rumo
Nem desconfiado...
(BARROS, 2013, p. 102).

Poesia é liberdade. É um caminho para o descontrair, mas também é “espécie de réstia es-
pantada que sai pelas frinchas de um homem; Designa também a armação de objetos lúdicos
com emprego de palavras imagens cores sons” (BARROS, 2013, p. 167 e 168).

Nesse sentido, para o poeta, a poesia constitui essa miscelânea de imagens que abastece a
fonte do dizer da palavra e que faz o ser morar na linguagem poeticamente:

Poesia é a ocupação da imagem pelo Ser.


Poetas e tontos se ocupam de palavras.
(BARROS, 2013, p. 241e 243).

Enquanto a poesia é esse deslumbrar do ser pelas imagens, na metáfora do dialeto manoelês,
o poeta “descerra um cardume de nuvens”, que desvela o céu e a terra, descortinando “a estra-
da que se abre como um pertencer” (BARROS, 2013, p. 176.), para atingir a dimensão ontológi-
ca mediante as palavras. Essas fundam e trazem as coisas para o mundo dos mortais. Aqui, o
poeta é o mensageiro; o hermeneuta das divindades que possibilita ao ser do ente um grande
encontro. Nessa “quadratura do quadro” – terra e céu; deuses e mortais:

A terra é o sustentáculo da construção, fecundidade na aproximação, estimulando o conjun-


to das águas e dos minerais, da vegetação e da fauna [...] O céu é o caminho do sol, o curso
da lua, o brilho das constelações, as estações do ano, luz e a claridade do dia, a escuridão e
densidade da noite, o favor e as intempéries do clima, a procissão de nuvens e a profundeza
azul do éter [...] Os imortais são acenos dos mensageiros da divindade [...] Os mortais são
os homens. São assim chamados porque podem morrer. Morrer significa: saber a morte,
como morte [...] Dá-se o nome de mundo a este jogo em espelho, onde se apropria a sim-
plicidade de terra e céu, de mortais e imortais (HEIDEGGER, 2012, p. 155 a 158).

Esse conjunto ou “jogo de espelhos” – que constitui o mundo e que, por meio do dizer poéti-
co, faz as coisas aparecerem – se mostra presente na obra de Manoel de Barros em forma de
imagens e representações. A título de exemplo, escutemos o poema Comparamento:

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau,


Folhas secas, penas de urubu
E demais trombolhos.
(BARROS, 2013, p. 354).

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Sendo o rio esse movimento constante, esse contínuo devir que guarda dentro de sua dinâmi-
ca e percurso todos os obstáculos que a natureza/terra lhe oferece, semelhante a este:

Seria como o percurso de uma palavra antes de


Chegar ao poema.
As palavras, na viagem para o poema, recebem
Nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades
(BARROS, 2013, p. 354).

As palavras, no seu jogo de montagem para chegar até o poema, recebem em sua forma sen-
timentos, vontades, desejos e vaidades, tudo isto para poder ser representada pela Matéria
de Poesia que tem no seu valor a utilidade do inútil, pois, se a poesia se tornar uma utilidade
ela deixa de ser poesia:

Muita coisa se poderia fazer em favor da poesia:


a – Esfregar pedras na paisagem.
b – perder a inteligência das coisas para vê-las.
c – esconder-se por trás das palavras para mostrar-se
(BARROS, 2013, p. 136-138).

A poesia é a chave para penetrar no segredo do mundo e da natureza. Assim, no poema,


elementos que vão contra a lógica utilitarista aparecem como uma forma de penetração do
universo poético desvelando que tudo o que a civilização despreza serve para a poesia. Desse
modo, sendo importante para a poesia “perder a inteligência das coisas para vê-las” ou ainda
“esconder-se por trás das palavras para mostrar-se”.

Completando a importância da reunião de coisas “inúteis” para penetração do mundo poéti-


co, a poesia de Manoel de Barros eleva-se ao grau do fazer poético a ponto de poder, a partir
do seu universo totalizante, agrupar as coisas que a poesia faz aparecer para o mundo. Mundo
esse que para Heidegger não é somente o conjunto das coisas naturais. Para além disto, “ele
é tanto o conjunto de todos os fenômenos como conjunto de todos os objetos da experiência
possível” (HEIDEGGER, 1999, p. 131).

Nesse sentido, o universo poético de Manoel de Barros é perpassado por imagens e dizeres que
sustentam, no vigor da palavra, esses modos de fazer aparecer. Essa desenvoltura de fazer as
coisas que aparecerem é, segundo Heidegger, o que faz um poeta ditar poeticamente e assim
conduzir seu ser para o habitar na linguagem, “pois a linguagem é a casa do ser” (2010, p. 8).

Sendo a poesia essa “elevação” que oportuna o encontro do ser com o homem, é ela também
quem abre no horizonte de possibilidades o desencerrar do ser. Ela é a soleira que sustenta
a fresta e deixa a abertura para a passagem e encontro do ser com o ente. Assim sendo, o que
funda o fundamento é aquilo que a poesia em sua essência revela. “Ao fundar aquilo que per-

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manece, a poesia revela a essência humana. Nela o homem recolhe-se no fundo de seu ser-aí”
(HEIDEGGER apud NUNES, 2012, p. 255).

Nesse sentido, como abertura descobridora do ser, a poesia de Manoel de Barros é esse ma-
ravilhar-se que traz em sua miscelânea de eventos singulares a possibilidade de diversos mo-
dos de sentir a essência da existência. Na sua linguagem, “Minhocas arejam a terra; poetas,
a linguagem” (BARROS, 2013, p. 201.), nesse arejar, ou ainda, desafogar, o poeta penetra no
universo do ser, abrindo uma brecha para que este se encante com as palavras. Ao habitar na
linguagem o poeta se torna o guardião deste habitar. Assim, o Poeta, diz Heidegger, “utiliza
a palavra, não, porém, como aqueles que habitualmente falam e escrevem tem de gastar as
palavras, mas de forma tal que a palavra se torna e permanece verdadeiramente uma palavra”
(HEIDEGGER, 1977, p. 37). Ou como diz o poeta:

A poesia está guardada nas palavras – é tudo que


Eu sei.
(BARROS, 2013, p. 167 e 168).

Considerações finais
Pensar a essência da linguagem é se colocar em um lugar onde se possibilita uma experiência.
Igualmente, “fazer uma experiência com a linguagem significa deixarmo-nos tocar propria-
mente pela reivindicação da linguagem, a ela nos entregando e com ela nos harmonizando”
(HEIDEGGER, 2011, p. 121). Essa aproximação harmoniosa é o intento que se ensaia no rea-
lizar-se da linguagem. Realizar-se nela é ao mesmo tempo, nos conduzir para o sentido do
dizer poetante como aquilo que revela o ainda não visto. Como aquilo que reivindica para o
dasein humano um caminho onde os fenômenos basilares acontecem. Nesse, o dizer origi-
nário se revela possibilitando um contato mais autêntico e íntimo com pensar na linguagem.

Igualmente, pensar na linguagem significa aqui, pensar poeticamente; pensar como algo que
revela o criativo, o engenhoso, o inaugural. Da mesma forma, a caminhada do trabalho em ques-
tão percorreu as mais variadas formas da possibilidade e modos de ser da linguagem, seja no
que tange ao uso comum e vulgar da linguagem, seja no modo mais elevado, isto é, no “produzir
poético”, como esse momento que oportuna ao dasein um encontro com o seu ser si-mesmo.

Assim, no primeiro momento exploramos a questão da linguagem no falatório cotidiano e


seu modo de ser no impessoal. Do mesmo modo, no segundo momento analisamos em que
instante “a voz da consciência” – apelo do ser – apela para o ser e sua saída do impessoal. No
terceiro momento, meditamos no sentido de pensar como o dizer da linguagem poética pos-
sibilita o habitar na linguagem. Isto é, como a partir do “dizer poético” as coisas fundam-se
em seu vigor de essência. E, por fim, dialogamos com os ditos poéticos do poeta Manoel de
Barros e as análises heideggerianas da linguagem.

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O repertório poético de Sílvio Romero

Luziane dos Santos1


Mestranda, Educação/UNIT

O estudo apresenta procedimentos poéticos que Sílvio Romero utilizou


em seu livro Cantos do fim do século, analisado apartir da obra de Ângela
Alonso Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império e
da obra de Antonio Candido O método crítico de Sílvio Romero, em que
o autor mostra como Romero supera o romantismo com um posicio-
namento cientifico que permitia que sua obra fosse um produto e não,
apenas literatura. É a partir dessas obras que analisaremos o repertório
filosófico e poético utilizado por Sílvio Romero na composição de seus
poemas nessa obra.

Palavras-chave: Literatura. Repertório. Sílvio Romero.

Introdução

(...) sem ideal e sem tradições impossíveis é formar-se um povo; sem poesia e sem história
não pode haver literatura; poetas e historiadores são os sacerdotes ativos e oficiantes da
alma de uma nacionalidade.

A Poesia de Sílvio Romero é caracterizada de um gênero poético pensado como texto onde
são evidenciadas muito mais que belas palavras, com a finalidade de trazer o leitor para um
novo plano de leitura. Em seu texto “Cantos do fim do século” o autor utiliza ações performá-
ticas para compor seu repertório, em seu prólogo intitulado a “A poesia hoje”, expõe questões
e aspectos da poesia como ela vem sendo construída por outros autores que alcance é dado a
esse fazer poético.

Para a compreensão deste texto, objetivamos apresentar procedimentos poéticos que Sílvio
Romero utilizou em seu livro Cantos do fim do século, analisado a partir da obra de Ângela
Alonso Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império e da obra de Antonio

1.  Universidade Tiradentes, bolsista Procaps I, Orientação da Profa. Dra. Ilka Miglio de Mesquita.

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Candido, O método crítico de Sílvio Romero, em que mostra como Romero supera o roman-
tismo com um posicionamento cientifico que permitia que sua obra fosse um produto e não,
apenas literatura. É partir dessas obras que analisaremos o repertório filosófico e poético
utilizado por Sílvio Romero na composição de seus poemas nesta obra. Para tanto é preciso
fazer uma espécie de perfil biográfico do autor embora não seja o objetivo deste texto. Quem
foi Silvio Romero? Sergipano nascido na vila de Lagarto poeta, escritor, ensaísta, crítico lite-
rário, promotor, professor fez parte da geração de 70 da escola de Direito de Recife, todas as
essas atividades que foram exercidas por Romero foram importantes para a formação de sua
rede de sociabilidade.

Arte poética não se resume apenas em belas palavras, é um gênero que tem o objetivo de sen-
sibilizar o leitor e leva-lo a outro plano de reflexão. Sendo que a poesia apesar de causar tal
sensação ela também é uma forma de manifestação, questionamento e de expor ideias atra-
vés do método e da ação performática e escolhida pelo autor.

Compondo o repertório
Em suas notas Romero nos diz que essa obra sofreu influência de outros autores vamos ob-
servar o trecho a seguir “Os contos do fim do século mostram a influência, até certo ponto,
d’esta inovação da forma; mas o seu espirito é outro e bem diverso” (ROMERO, 1878, p. 240).
Apesar de existir um certo distanciamento entre autores como Tobias Barreto, Castro Alves,
Gonçalves Magalhães na abordagem escrita cada um com sua peculiaridade proporcionou
ao Romero ferramentas para a composição de seu repertório. Essa ambientação fez parte da
construção da ação performática.

Há muitos annos que a pobre litteratura brasileira não assiste ao espetáculo de uma só ideia
aproveitável sendo discutida e acatada, e produzida os fructos a que tem direito incontestá-
vel uma ideia elevada._ Vive, entretanto diariamente a repisar cançadas caduquice, e, o que
é mais apropriado para caracterisa-la, a repelir, como heterodoxo e inacceitável, qualquer
tentamen de insubordinação contra seus preceitos acanhados (ROMERO, 1878, p. 235)2.

Para o autor a literatura brasileira não carregava em si nenhuma originalidade, mas apenas
uma reprodução de obras vindas da Europa, portanto os textos devem carregar um itinerário
que reforce a nacionalidade e não apenas mera reprodução.

No prologo da sua obra Cantos do fim do século, o autor tece comentários sobre a composição
do repertório poético, segundo ele:

A poesia é um resultado da organização humana, nada tem de absoluto, nem de sobrenatu-


ral: nada também de desprezível e de repugnante para nós.

2.  Mantemos a grafia da obra.

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Compreende-se, à luz destas idéas, que todos conhecem, menos certa classe de litteratos,
valor do desconsolo ou do enthusiasmo de se deixam possuir (Romero,VI-VIII).

A composição de uma poesia possui muito mais que versos e rimas, traz em seus versos uma
visão de uma época, ideologias do autor é necessário que a mesma carregue em si ideias ex-
postas pelo autor. Evidente que o pensamento crítico de Sílvio Romero reforça não só como as
ideias fervilhavam, mas como o autor se posicionava diante de situações politicas e literárias.
Vejamos o que Candido afirma:

O pensamento crítico de Sílvio Romero se apresenta como parte duma interpretação social
e como arma de interferência na vida e na cultura. Só podemos avaliar, pois, se levarmos em
conta a sua relação com o momento em que viçou (CANDIDO, 1988, p. 15).

Em seu livro O método crítico de Sílvio Romero Antonio Candido nos mostra a obra como um
produto, que surge das inquietações e de fatores ideológicos que servem como inspiração poé-
tica. “produto como os outros, condicionado pela evolução cultural” (CANDIDO, 1988, p. 102).

João Alexandre Barbosa relata:

O método, entretanto, não se confunde com as técnicas utilizadas para a sua efetivação,
embora exista uma relação metonímica, em que as últimas funcionam como partes opera-
cionais de uma totalidade que é o método. O método é antes uma maneira, uma escolha,
uma maneira de escolha por entre possíveis técnicas do que sua utilização pura e simples
(BARBOSA, 2006, p. 15).

Partindo do que foi exposto fica evidente que o método utilizado pelo autor é determinante
para a construção de seu da sua obra, os textos de Romero trazem em si características do au-
tor, já que ele era um polemista. Portanto “Quanto à poesia e o problema mais geral das con-
cepções literárias. Embora baralhe as acepções literárias e filosóficas dos termos, um esforço
interessante para assumir posição mais inteligente” (CANDIDO, 1988, p. 38).

Na citação abaixo Antonio Candido nos mostra:

Um ensaio do mesmo ano – espécie de teoria científica da poesia –, publicado em jornal


que ignoramos qual seja reproduzido como prefácio dos Cantos do fim do século sob o
título “a poesia de hoje”, revela desembaraço inexistente nos anteriores. Sendo a poesia um
gênero predominante na literatura brasileira de então, não é de espantar que ela tenha o
nosso autor se dirigindo de preferência. Mesmo mais tarde, quando o panorama literário se
mostrava bem mais vasto, ainda tinha pelas questões de poesia um apego de namorado feliz
(CANDIDO, 1988, p. 39).

Nesse ensaio Romero expõe uma serie de criticas ao romantismo evidenciando uma nova
forma de construção poética, pois para o autor seus poemas são caracterizados por terem
traços com a metafísica e isto lhe davam uma característica cientifica. Por outro lado Antonio
Candido na citação abaixo nos diz:

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Sílvio Romero nunca deixou bem clara a sua concepção de poesia. Neste ensaio, um dos
mais explícitos que se escreveu a propósito, defende a autenticidade do lirismo, decla-
rando-o realidade humana autêntica e negando, contra Scherer, que se confunda com o
romantismo. O seu ideal, seria, porventura, o mesmo de Guyau: uma poesia nutrida no
pensamento, usando a alegoria da discrição, mas de um ponto de vista acentuadamente
pessoal (CANDIDO, 1988, p. 41).

Ação performática
O que são as ações performáticas? São os métodos que os autores que os autores encontraram
como forma de divulgação de sua obra. Podemos citar como exemplo as pessoas com quem o
autor se relaciona criando sua rede de sociabilidade. Alguns poemas das páginas 63 à 73 da re-
ferida obra foram publicadas anteriormente nos jornais de Pernambuco antes de compor a obra
e sofreram duras criticas. Essa foi uma das ações das ações performáticas utilizadas pelo autor.
Nem sempre esse tipo de ação era premeditado, mas era muitas vezes o único recurso disponí-
vel na época para divulgação dos textos. Observamos um fragmento do poema o inferno.

X
O Inferno

Grande... em sua fornalha os séculos ardem


A seiva dos rebeldes lá fumaça ;
E sempre o diabo, interprete profundo,
Bebe o licor da vida em negra taça.

E' incêndio voraz... quem disse?... Engano


E' o gênio gastando as excrescencias,
Que a todo vulto athletico sustentam
E gostam de morar nas eminencias.

E todos os gigantes destemidos,


Que se arrojam intrépidos na vida,
Tendo na fronte a pegada do enygma,
Hão de passar por baixo da medida...
(ROMERO, 1878, p.67).

Neste fragmento o autor faz uma expõe uma crítica aos costumes da época e como o conhe-
cimento, sendo que a transformação social ocorria através dos séculos e o conhecimento po-
deria tirar uma nação não civilizada de seu retardamento evolucionista, pois só através da
evolução da cor é que uma sociedade é evoluida, este tipo de pensamento era disceminado
apartir das teorias de evolucianismo social como darwinismo social, spercianismo dentre ou-
tas. Vejamos o que nos diz Lilia Mortiz Schwarcz:

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A critica apo determinismo racial não implicava, portanto, destacar a perspectiva evolutiva.
Os homens continuavam desiguais, porém passiveis de “evolução e perfectibilidade” em
função da ação de um Estado soberano e acima das diferenças não só econômicas como
raciais (2004, p.182.)

XI
As Cruzadas

E' um tumulto divino,


Que traz o destino agora;
Bateu mais forte esta hora
Nos ouvidos do Senhor,
Lá nos lábios do Eremita
Queima a palavra de fogo;
Jérusalem faz um rogo;
Seu manto mostra de dor...

Velha cidade cahida


De seu pedestal de sonhos,
Escrava de olhos tristonhos,
Escuta o passado e vae
Ao Golgotha ver si o tormento,
Negro phantasma implacavel,
De seu crime é perdoavel.
Si Jesus da tumba sae (1878, p. 75).

Neste poema romero utiliza mímese representação da realidade, pois a sociedade do século
XIX era escravocata, em alguns versos o autor faz referência claramente a escravidão, o crime
que ele se refere é a cor, pois o negro nas teorias de evolução social da época diziam que o ne-
gro era inferior nessa categorização de evolucionismo racial.

Podemos observar que as ações perfomaticas utilizadas por Sílvio Romero foram determi-
nates para a propagação de suas obra e também para construção de se repertório (...) “é uma
caixa de ferramentas intelectual, um conjunto de recursos disponíveis que podem ser selecio-
nados e articulados para a luta política.!” (ALONSO, 2002, p. 18).

Alonso em seu livro Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império apre-
senta as ideias que circulavam na geração de 70 e como a rede de sociabilidade foram impor-
tantes para a disseminação destas. As teorias estrangeiras favoreceram a construção do movi-
mento abolicionista, as ideias eram compreendidas e apropriadas e trazidas ao Brasil, porém
eram vistas de modos diferentes, pois na construção do repertório a performance do sujeito é
importante para a sua criação. Só o sujeito não constrói o repertório é preciso de uma rede de
sociabilidade para que o mesmo seja criado e posto em atividade. O conceito de repertório é
composto de padrões analíticos, noções argumentos, teorias, esquemas e formas estilísticas,
a categoria do repertório é dada pelo sujeito através das experiências. A autora no mostra que:

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Repertório intelectual o fenômeno de adoção de teorias científicas e liberais na crise do


império pode ser redefinido como um movimento político-intelectual de contestação for-
mado por grupos sociais díspares em origem social, mas em comunidade de situação diante
do status quo imperial: politicamente marginalizados (ALONSO, 2002, p.101).

Conclusão
Em vista de tudo que foi exposto e da leitura das obras citadas foi possível analisar que existiu
uma espécie de transição na forma de escrita de Sílvio Romero, pois ele era um crítico muito
polêmico em sua época. Através de leituras ele sofreu influências de teorias como o darwi-
nismo social e outras que foram importantes na construção do pensamento de romeriano,
suas ideologias eram expostas claramente em seus textos dando movimento as estes. Em
seu repertório poético Romero também traz suas especificidades e expõe que por expor uma
análise metafisica seus poemas publicados em Cantos do fim do século possui um caráter
cientifico sobressaindo do romantismo.

Podemos concluir que período em que esteve na escola de Direito de Recife influenciou
em suas ações performáticas e também em sua rede de sociabilidade. Apesar de ser pu-
blicado anos depois de ser escrito e por sofrer duras críticas, este livro mostra um lado di-
ferente de Sílvio Romero com palavras estruturadas e menos agressivo que outros textos
que o autor escreveu.

Referências
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ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.

CANDIDO, Antonio. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1988.

ROMERO, Sílvio. Oito anos de jornalismo_ II: Cantos do fim do século (1869-1873). Rio de Janeiro,
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Acesso em: 07 july 2017. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2237-1184.v0i11p96-110.

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SANTOS, CASIMIRO D. A história do ensino jurídico brasileiro: o seminário de Olinda como precursor
dos cursos jurídicos no brasil império. Revista Thesis Juris, Local de publicação (editar no plugin de tradu-
ção o arquivo da citação ABNT), 2, jul. 2013. Disponível em: <http://www.revistartj.org.br/ojs/index.php/
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SIRINELLI, Jean François. Os intelectuais. In: REMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de
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SCHNEIDER, Luiz Alberto. O Brasil de Sílvio Romero: Uma Leitura da população brasileira no fi-
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SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-
1930). São Paulo: Companhias das Letras, 1993.

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Nas veredas da comicidade e do riso

João Paulo Santos Silva


Mestrando, Letras/UFS-bolsista CAPES

Em Grande Sertão: veredas (1956) o tom sério da narrativa se mescla com


o aparecimento de elementos cômicos que, apesar de esparsos, partici-
pam da estruturação da narrativa. Este trabalho analisa as manifestações
da comicidade, tais como procedimentos, técnicas, estruturas cômicas,
chistes, e a representação do riso nesse romance, de Guimarães Rosa
(1908-1967), buscando relacionar esses mecanismos com o enredo. As-
sim, partiremos dos seguintes teóricos da comicidade e do riso: Bergson
(2007), Freud (1977), Jolles (1976), Propp (1992), Minois (2003), além
das discussões sobre a ficção rosiana feitas por Candido (1990), Galvão
(1986) e Utéza (1994). Ademais, problematizam-se as relações entre o
sério e o cômico, o constante alívio de tensões, bem como a relativização
de valores e comportamentos que repensam a lógica usual do mundo. O
aparecimento sutil desses elementos cômicos concorre para a superação
de preocupações metafísicas pela via do riso.

Palavras-chave: comicidade, riso, Guimarães Rosa.

Introdução
Desde que foi publicado, em maio de 1956, Grande Sertão: veredas tem sido objeto de impor-
tante debate pela crítica que o recepcionara. Sobre a riqueza plurissignificativa desse roman-
ce, num dos primeiros textos críticos sobre essa narrativa, Candido (1991) assinalava:

Na extraordinária obra-prima Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler, e nela
tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, confor-
me o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta
confiança na liberdade de inventar (CANDIDO, 1991, p. 294).

Inseridos nessa obra-prima estariam, segundo nosso estudo, relevantes mecanismos cô-
micos, bem como a representação do riso, o que pode “para quem souber ler” figurar como
uma das maneiras de se evidenciar a profunda atividade criativa do escritor a serviço da

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construção da sua narrativa, isto é, “o traço fundamental do autor”. Nessa obra, Guimarães
Rosa traz a narrativa do ex-jagunço Riobaldo, que teria feito um pacto com o diabo para
vencer o terrível Hermógenes. A dúvida vivida no romance é saber se o demônio existe ou
não, posto que a redenção de Riobaldo depende disso. Há também um “conflito amoroso”,
um amor proibido entre este e Diadorim, mulher travestida de homem. A jagunçagem re-
presentada na obra rosiana mescla, portanto, a vida sertaneja com conflitos existenciais e
filosóficos comuns a qualquer homem.

De um modo geral, objetivamos, mediante a revisão dos textos teóricos que tratam da con-
cepção do cômico no século XX, investigar a representação do riso e as manifestações da
comicidade no único romance rosiano atentando-se para a funcionalidade do cômico. Se em
seus contos a comicidade é mais evidente, no seu único romance ela aparece de uma forma
mais sutil. Em Risada e meia: comicidade em Tutameia, tese de doutorado da profa. Jacqueli-
ne Ramos, defende-se que a função da comicidade desse livro de contos “não seria a de causar
riso, mas a de dar acesso a ‘novos sistemas de pensamento’” (2009, p. 12). Não só se trata de
uma análise de uma obra de Rosa, como também a tese discorre de uma forma mais geral so-
bre o aparecimento da comicidade na ficção do autor mineiro. No capítulo “O cômico na obra
rosiana”, tem-se uma abordagem, entre outros, sobre Grande Sertão: veredas. Para a estudio-
sa, o cômico, além de ser pouco presente nessa obra, quando aparece, teria a função de aliviar
tensões ou estaria relacionado ao demoníaco1. Isso, contudo, não significa dizer que esses
elementos não sejam passíveis de uma análise mais profunda, sobretudo no que concerne às
funções da comicidade e de que forma esta contribui para a construção da tessitura narrativa.

Não obstante, ao longo das 624 páginas2 de Grande Sertão: veredas há chistes, comicidade de
palavras e de situações, bem como a presença da representação do riso nas suas mais variadas
formas e tipos. O alívio de tensões, o rebaixamento de algo reprovável, o caráter de síntese
e um riso de superação de um pensamento angustiante (a negação do diabo para a própria
salvação) são as principais funções da comicidade e do riso na narrativa.

1.  Sobre a comicidade no romance em comento Ramos (2009) afirma: “Em Grande sertão: veredas, o cômico é
menos abundante. Aparece eventualmente, em meio a comentários: ‘O sr. sabe: sertão é onde manda quem é
forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado. E bala é um pedacinho de metal’ (1986:
18). Percebem-se, em outros momentos, certos gracejos que parecem amenizar a tensão. Na abertura da obra,
após narrar o episódio do cão defeituoso que nascera e fora tomado como demônio, nosso narrador, Riobaldo,
conclui: ‘pão ou pães é questão de opiniães’ (1986: 8) O mesmo ocorre no episódio de Pedro Pindó (o pai que
passa a sentir prazer nos castigos impingidos ao filho), amenizado pelo cometário chistoso: ‘Ave, vi de tudo, neste
mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há’ (1986: 13). Ao se referir ao estran-
geiro dono de grande loja, há certa graça nas tentativas de pronúncia do nome: ‘Wusp? É. Seo Emilio Wuspes...
Wúspis...Vupses. Pois esse Vupes apareceu lá’ (1986: 66). O riso associa-se, outrossim, ao demoníaco no caso de
Hermógenes, o das grandes risadas: ‘ele [Hermógenes] vinha por ali, `refalsa, socapa de se rir e se divertir no
meio dos outros, sem a soberba, sendo em sendo o raposo meio’ (1986: 218)” (RAMOS, 2009, p. 51).
2.  ROSA, J. G. Grande Sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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No entanto, faz-se pertinente para nosso estudo a distinção entre comicidade e riso. Aque-
le refere-se ao que faz rir e este ao resultado fisiológico humano diante da situação cômi-
ca. O primeiro é a causa, o segundo efeito. Assim, para a compreensão da comicidade e do
riso recorremos à leitura dos principais teóricos. Em Bergson buscaram-se as definições
mais essenciais, a definição do cômico, seus principais procedimentos e formas. Já Freud
analisa os chistes como forma de acesso ao inconsciente e isso pareceu-nos presente em
Grande Sertão: veredas.

A perspectiva cômica
Bergson buscou definir o cômico, em O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade,
como "o mecânico calcado no vivo" (2007, p. 22), ou seja, o comportamento fixo e repeti-
vo humano é a fonte de um riso que reprime para corrigir o desvio, tornando a sociedade
mais coesa e una. Partindo desse conceito, Bergson procurou entender a gênese do cômico.
Assim, elencou os principais recursos que concorrem para a consecução do risível. A repe-
tição de um comportamento seria um desses procedimentos, posto que advém de uma fixi-
dez introjetada no ser humano. Veja-se, como, por exemplo, Tempos modernos, de Charles
Chaplin, em que o protagonista acaba incorporando a "natureza" das máquinas. Ademais,
tem-se a comicidade derivada de situações na qual se vislumbra uma circunstância diferen-
te da lógica usual que desencadeia o riso.

Freud (1977), por sua vez, procura compreender o papel da comicidade, sobretudo dos chistes,
na vida psíquica humana. Em Os chistes e sua relação com inconsciente, o pai da psicanálise
destrincha a estrutura chistosa num esforço para evidenciar a sua relevância para a manifes-
tação do inconsciente. Por isso, ao suspender a pressão externa exercida pela moral represso-
ra os chistes aliviariam as tensões e derivariam prazer dos processos mentais. Ao fazê-lo, esse
recurso se assemelharia ao onírico, que também daria vazão aos desejos recalcados. Em sín-
tese, ao caráter de brevidade do chiste somam-se o desconcerto, que seria a "surpresa" diante
de algo diferente, e o esclarecimento, que é o "entendimento" posterior.

Com Jolles (1976) entramos em contato com outra concepção do chiste e da própria comicida-
de. Para ele, um chiste pode ser satírico, quando há o rebaixamento daquilo que se ri, e pode
ser, por outro lado, irônico, quando mantido no mesmo nível daquele que ri. A comicidade
seria a disposição mental que suscita o chiste. Essas manifestações do pensamento, dessa
forma, ampliariam a obtenção de efeitos cômicos, já que haveria a disposição, entendida aqui
como ânimo psíquico, para “desatar nós” mediante o dito chistoso.

É necessário, entretanto, asseverar que, primeiro, em Grande Sertão: veredas não há comici-
dade tal qual nos seus contos, isto é, a comicidade aparece no romance de forma sutil e em
menor quantidade comparada às demais obras. Segundo, no romance há mais representação
do riso do que o uso da comicidade propriamente dita. Em outras palavras, o riso mostra-se

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mais recorrente e, portanto, mais ligado ao enredo, relacionando-se com um dos eixos cen-
trais da trama que é a negação da existência do diabo. Os risos das personagens denotam
significados de rebaixamento e de superação, bem como de reconhecimento da identidade
grupal, que era vista, conforme Bergson (2007), como a propriedade que a comicidade pos-
suiria de manter uma coesão social, estabelecendo uma unidade entre os indivíduos. Riobal-
do sentia-se bem com os demais jagunços em momentos que terminavam em gracejos e isso
lhes dava mais ânimo para o combate.

Por isso que a obra Comicidade e riso, de Vladímir Iákovlevitch Propp (1895-1970), é de funda-
mental importância para compreendermos os mais variados tipos de risos que aparecem no
romance rosiano. Nesse estudo, Propp apreende da cultura russa uma tipologia do riso, uma
vez que “diferentes aspectos de comicidade levam a diferentes tipos de riso” (PROPP, 1992, p.
24). Além disso, faz reflexões acerca de outros teóricos apontando-lhes os equívocos dessas
teorias. Dessa forma, Propp abrange com esse estudo as principais teorias do cômico e procu-
ra estabelecer “definição da especificidade do cômico, da psicologia do riso e a percepção do
cômico” (PROPP, 1992, p. 14). Uma de suas defesas é de que a relação trágico-cômica só será
levada em consideração quando for necessária, já que o “cômico deve ser estudado, antes de
mais nada, por si e enquanto tal” (PROPP, 1992, p. 18, grifo do autor).

Conquanto seja uma narrativa de tom austero – dada a gravidade do modus vivendi dos ja-
gunços –, tem-se em Grande Sertão: veredas uma ambivalência funcional do cômico: alivia
tensões, mas, além disso, revelaria o reprimido, dando acesso ao inconsciente. Os gracejos,
os trocadilhos linguísticos, as sínteses cômicas revelam, portanto, uma comicidade que se
encontra sutilmente construída nas entrelinhas da narrativa e que está profundamente en-
trelaçada com o enredo. A despeito de não se tratar de uma obra cômica, é perceptível o uso
desse recurso na obra de forma magistral por Rosa. Nos momentos de grande tensão há uma
reflexão ou uma síntese de matiz cômica que ameniza a situação e permite ao leitor uma des-
contração, como que para lhe dar um novo fôlego para continuar avançando na leitura.

Indubitavelmente, o riso diabólico é imprescindível nessa empreitada. Em Grande Sertão: ve-


redas o riso aparece, como já apontamos, relacionado ao demoníaco. Conforme Propp (1992,
p. 35), “Se é impossível imaginar Cristo rindo, é muito fácil, ao contrário, imaginar o diabo
rindo”. Nesse sentido, as discussões de Minois (2003) acerca da diabolização do riso na Idade
Média em História do riso e do escárnio foram necessárias para pensar o papel desse diabo ri-
dente. A preponderância do pensamento sério de cunho cristão acabou por demonizar o riso,
excluindo-o da égide divina: “É a desforra do diabo, que revela ao homem que ele não é nada,
que não deve seu ser a si mesmo, que é dependente e que não pode nada, que é grotesco em
um universo grotesco” (MINOIS, 2003, p. 112).

Como um dos eixos do romance é justamente a dúvida da existência do diabo, essa comici-
dade ganha importância. Na figura de Hermógenes, o demoníaco acaba ganhando um cor-
po humano e, assim, ao riso cabe uma concepção de escárnio do outro ou de até mesmo de
superioridade. Ademais, durante a Idade Média o riso achava-se ligado ao demoníaco, o que

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se explicava na ideia cristã de que Jesus nunca rira. Trata-se, pois, de uma retomada de uma
discussão milenar acerca do papel do riso.

Já Riobaldo, por sua vez, pretende rir do diabo, numa atitude de menosprezo à existência
demoníaca. Para o narrador-protagonista é fundamental rir, o que funciona como alívio de
uma tensão e como superação de um trauma. É curioso notar que num romance de grande
tensão – porque se trata da brutalidade da vida sertaneja pela via da jagunçagem – o riso e
a comicidade se entrecruzam na narrativa. Os elementos cômicos estão intercalados e bem
distribuídos ao longo da narrativa. Apesar de serem pouco frequentes quando comparados a
Tutameia e a Primeiras estórias, ambas coletâneas de contos, há em Grande Sertão: veredas
procedimentos cômico-chistosos que o tornam passível de uma análise mais acurada.

Por outro lado, há “causos” inseridos na narrativa que além do aspecto cômico possuem a
propriedade de síntese moralizante. Os elementos cômicos promovem um texto mais fluido
de se ler quando não há divisão em capítulos e o ritmo é o da oralidade, que desdobra uma
narrativa noutra num processo que parece beirar ao infinito. A comicidade, nesses casos, as-
sume um caráter pedagógico-prazeroso. Assim, aspectos cômicos se incrustam na narrativa3
juntamente com essas pequenas estórias ilustrativas da lógica da esperteza, do engano, da
superstição que se correlacionam com a narrativa central4. Vejamos um exemplo disso:

Um José Misuso uma vez estava ensinando a um Etelvininho, a troco de quarenta mil-réis,
como é que se faz a arte de um inimigo ter de errar o tiro que é destinado na gente. Do que
deu o preceito: – “... Só o sangue-frio de fé é que se carece – pra, na horinha, se encarar o
outro, e um grito pensar, somente: Tu erra esse tiro, tu erra, tu erra, a bala sai vindo de lado,
não acerta em mim, tu erra, tu erra, filho de uma cã!...” Assim ele ensinou ao Etelvininho, o
Misuso. Mas, aí, o Etelvininho reclamou: – “Ara, pois, se é só isso, só issozinho, pois então eu já
sabia, mesmo por mim, sem ninguém me ensinar – já fiz, executei assim, umas muitas vezes...”
– “E fez igualzinho, conforme o que eu defini?” – indagou o José Misuso, duvidando. – “Igualzi-
nho justo. Só que, no fim, eu pensava insultado era: ... seu filho duma cuia!...” – o Etelvininho
respondeu. – “Ah, pois então” – o José Misuso cortou a questão – “... pois então basta que
tu me pague só uns vinte mil-réis...” A gente muito rimos todos (ROSA, 2001, p. 450).

A quebra de expectativa com um final surpreendente de uma pequena estória assemelha-se


a um chiste que suscita um riso, quando não uma gargalhada. A esperteza de José Misuso em
querer ensinar uma técnica de desvencilhar de balas quando na verdade ele queria enganar
Etelvininho é a estrutura cômica. Tanto as personagens quanto o leitor se veem diante de uma
cena permeada de graça e de desafogo de tensões.

3.  Ao analisar o causo de Maria Mutema Galvão (1986, p. 13) conclui: “Nas linhas mais gerais tem-se o conto
no meio do romance, assim como o diálogo dentro do monólogo, a personagem dentro do narrador, o letrado
dentro do jagunço, a mulher dentro do homem, o Diabo dentro de Deus”.
4.  Em entrevista a Günter Lorenz (2009, p. 39) G. Rosa afirma: “Não, não sou romancista; sou um contista
de contos críticos. Meus romances e ciclo de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção
poética e a realidade”.

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Se esse romance pode ser lido como uma epopeia, é porque seus traços épicos o remetem para
o tempo medieval. A esse respeito Proença (1991, p. 311) defende que intercalação de episó-
dios seria o “processo de reter o desenvolvimento da ação, prolongando o interesse da narra-
tiva”. Uma vez que a comicidade também é intercalada nas sínteses episódicas, depreende-se
a importância dessas pausas na narrativa.

Se Riobaldo soube fazer uso da comicidade na construção da narrativa, é porque ele entende a
importância não apenas pedagógica do riso, como também a de derivar prazer dos processos
mentais. O ex-jagunço precisa urgentemente rir para superar um passado dúbio, demoníaco
e angustiante para viver sua aposentadoria em paz. Rir, portanto, é uma maneira de superar
medos e de relegar ao plano da não existência o suposto pacto satânico. Nessa perspectiva,
vejamos de que forma Alberti (2002) discute isso:

[...] o riso partilha, com entidades como o jogo, a arte, o inconsciente etc., o espaço do indi-
zível, do impensado, necessário para que o pensamento sério se desprenda de seus limites.
Em alguns casos, mais do que partilhar desse espaço, o riso torna-se o carro-chefe de um
movimento de redenção do pensamento, como se a filosofia não pudesse mais se estabele-
cer fora dele” (ALBERTI, 2002, p. 11).

Com efeito, em Grande Sertão: veredas os procedimentos cômicos e a representação do riso


estão presentes nos mais variados elementos narrativos: no enredo, nas personagens, no
narrador-protagonista. Além disso, é possível observar uma perspectiva temporal do narra-
dor (que rememora o passado), isto é, a leitura de que Riobaldo se vale do riso no presente
para superar angústias do passado (o pacto, a vida jagunça) parece encerrar um dos princi-
pais papeis do cômico na narrativa.

No enredo de tonalidade séria e mais propenso ao trágico do que ao cômico, o eixo narrativo,
como já dissemos, sucumbe ao risível em pontos estratégicos que quebram expectativas e os
quais suscitam o alívio de tensões, bem como ensinamentos. Não se trata de uma comédia,
tampouco de uma obra em que saltam os elementos cômicos. Na verdade, tem-se uma nar-
rativa em que predominam a tensão das guerras de jagunços e a preocupação metafísica que
conformam um regionalismo de cunho universalista. Ainda assim há procedimentos cômicos
e o riso como elementos constitutivos essenciais na confecção do fio narrativo. O que justifica
nossa empreitada de estudo do risível no romance.

As personagens, por sua vez, trazem revelações no que concerne à comicidade. Riobaldo mos-
tra-se um homem espirituoso no narrar, absorvendo e reinventando as narrativas que com-
põem a sua. Por outro lado, o riso como superação parece-lhe ser essencial para reafirmar a
inexistência do demônio. Já Diadorim possui um aspecto de seriedade constante que a impe-
de de rir. A figura demoníaca aparece relacionada ao riso como rebaixamento ou zombaria.
Esse escarnecimento está presente em Hermógenes, o vilão também jagunço, mas quase que a
encarnação, para Riobaldo, do próprio diabo. O encontro com os catrumanos sugere um gro-
tesco cômico que revela a miséria da marginalização social. O interlocutor de Riobaldo tam-
bém é narrado como alguém espirituoso – “O senhor ri certas risadas...” (ROSA, 2001, p. 23).

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O riso está intimamente ligado ao pensamento reflexivo que põe em xeque uma realidade
mutável pela reestruturação da memória biográfica de Riobaldo. O riso do narrador-protago-
nista requer o rememorar dos acontecimentos e a negação exaustiva da existência do demô-
nio. Ainda conforme Alberti (2002):

O estatuto do riso como redentor do pensamento não poderia ser mais evidente. O riso e
o cômico são literalmente indispensáveis para o conhecimento do mundo e para a apreen-
são da realidade plena. Sua positivação é clara: o nada ao qual o riso nos dá acesso encerra
uma verdade infinita e profunda, em oposição ao mundo racional e finito da ordem esta-
belecida (ALBERTI, 2002, p. 12).

Em suma, Grande Sertão: veredas, que se inicia com um travessão – sinal indicativo de fala,
mas que também evoca o sinal de negação –, é a paradoxal negação pela afirmação, o não-ser
dentro do ser, o diabo dentro de Deus e – por que não? – o cômico dentro do sério. A com-
preensão sobre o papel dos aspectos cômicos em Grande Sertão: veredas é, pois, essencial a
fim de que se entenda de que forma a comicidade participa do processo de produção de uma
obra, potencializando seus significados e expandindo sistemas de pensamento.

O riso e o demoníaco
O processo marcante da relação que se estabelece no romance entre Riobaldo e o demônio
suscita aspectos risíveis. É preciso destacar, contudo, que haveria uma recriação da figura
satânica pelo contexto sertanejo5, o que foi objeto de estudo na dissertação de mestrado O
demônio interior em Grande Sertão: veredas, de Andrade (2011). Para o estudioso, a noção
demoníaca como “personificação do mal” estaria atrelada à natureza própria do homem ser-
tanejo. Com efeito, “a existência do diabo se presentifica na consciência e no imaginário so-
ciocultural do sertão, a partir da sua objetivação na linguagem” (ANDRADE, 2011, p. 90). Ca-
beria, portanto, ao indivíduo – no caso, Riobaldo – despojar-se das amarras dessa lógica para
tornar-se sujeito independente e senhor de si.

No início de Grande Sertão: veredas é narrado por Riobaldo um acontecimento que, não obs-
tante a tensão provocada, está permeado de traços cômicos:

Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem
ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que,
por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de

5.  Andrade (2011) defende que em GS:V: “Neste, constatamos a figura do Satã infernal, de caráter obsedante,
como representação mental restrita ao imaginário coletivo do sertão” (ANDRADE, 2011, p. 5). No entanto, con-
forme discorre na dissertação Andrade (2011) sustenta que: “houve, por parte do velho Riobaldo, a aceitação do
demônio interior – em detrimento do tradicional Satã infernal – diante da catástrofe individual, nas conversas
com Quelemém e nos três dias de diálogo com o doutor” (ANDRADE, 2011, p. 123).

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gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem
sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas
risadas... (ROSA, 2001, p. 23).

Entrevê-se nesse trecho a definição de cômico no sentido bergsoniano6, isto é, o elemento


humano refletido na natureza. Esta só pode ser cômica sob a perspectiva humana. E, além
disso, percebe-se a relação do riso com o demoníaco: o riso está para o homem, assim como
o demônio está para o homem. A expressão “rindo feito pessoa” ilustra isso. O que se segue
assemelha-se a um dito chistoso “Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo.
Povo prascóvio”. A semelhança em si do bezerro com a figuração humano-demoníaca des-
pertaria o risível. Conforme Propp (1992, p. 38), “Os olhos saltados de uma rã, a testa franzida
de rugas de um filhote de cachorro, as orelhas salientes e os dentes arreganhados do morcego
fazem-nos sorrir”. O narrador sintetiza a concepção demoníaca7 do bezerro e ridiculariza esse
pensamento pertinente a uma mentalidade arcaica, – porquanto “prascóvio”, segundo Castro
(1970, p. 119), é uma variante de pacóvio, que, por sua vez, significa tolo –, daquele povo que
decide matar o bezerro-demônio. Utéza (1994), que faz um estudo profundo acerca da meta-
física deste romance, destrinchando as sutilezas das discussões filosóficas que permitiram a
tônica de universal ao regionalismo rosiano, também faz uma discussão desse excerto:

O tom é negativo: são as superstições de um mundo retrógrado – povo prascóvio – que o


narrador pretende fustigar. E, no entanto, à medida que o discurso se organiza em torno do
tema, vemos a perspectiva avançar até uma tomada de posição muito menos desfavorável.
Em confronto com os dois perturbadores que acabam de invadir bruscamente sua tranquili-
dade – o monstro e o estranho –, o dono do lugar prefere de início tomar a postura do es-
pírito forte: recusando-se formalmente a alinhar-se com a interpretação da monstruosidade
segundo o sagrado, ele procura impor diante do estranho, pela repetição de ‘eu’, a imagem
de um personagem superior ao seu meio. O resultado é um primeiro efeito cômico, con-
sequência da defasagem entre o modelo aparentemente pretendido e a produção efetiva,
tanto no plano linguístico como no da manipulação dos conceitos (1994, p. 69).

Há ainda nessa passagem uma inversão cômica: “Não tenho abusões”. Na verdade, Riobaldo
não se importa de ser incomodado para emprestar suas armas. O chiste é resultado dessa
troca: abusados seriam aqueles que o incomodam para esse empréstimo, que se sugere ser
corriqueiro. Finalmente, o narrador marca as risadas do seu interlocutor (“O senhor ri certas
risadas...”) que podem denotar o caráter cômico daquela situação. Nesse caso, como esse in-
terlocutor é narrado como alguém culto, da cidade, um doutor, percebe-se que esse riso pode
ser lido como um riso de superioridade sociocultural da cultura letrada sobre as superstições
de um povo iletrado e imerso em suas próprias crenças. Outra possibilidade de leitura vis-

6.  Consoante Utéza (1994, p. 35), o ensaio Le Rise, de Bergson, fazia parte da biblioteca de Guimarães Rosa.
7.  Para Hansen (2000, p. 104): “A mímese, ao mesmo tempo que instala (ver - stellt) na Floresta negra, descentra
no mato de Riobaldo: binariamente da representação, que evidencia a força do simulacro, espaço do Diabo sem-
pre fora do lugar em seus efeitos de humor” (HANSEN, 2000, p. 104).

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lumbra a perspectiva do riso desse interlocutor diante da atitude de Riobaldo (“abusões”), o


que aponta para a ambiguidade que se instala pela via do riso.

Noutra passagem o riso do interlocutor acha-se vinculado ao sério e ao filosófico: “Ao que,
me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado. Surgidamente, aí, principiou um
desejo que tive – que era o de destruir alguém, a certa pessoa. O senhor pode rir: seu riso
tem siso” (ROSA, 2001, p. 185-186). Infere-se a mescla do sério com o cômico nesse momen-
to, o que pode denotar uma retomada de uma problemática medieval acerca do papel do
riso, segundo Minois (2003):

A fusão do cômico com o sério vai marcar toda a religião popular da Idade Média. O ele-
mento cômico dos relatos religiosos é, muitas vezes, involuntário; não tem por finalidade
fazer rir, mas edificar, assimilando o mundo terreno ao risível. [...] O medo, o riso, o sagrado
e o profano estão intimamente ligados (MINOIS, 2003, p. 140).

Mas, por outro lado, de maneira sutil o riso acha-se no romance de Rosa intimamente ligado
ao fio condutor da narrativa: a existência do diabo e sua exaustiva negação. Uma das formas
que o narrador se vale para a construção dessa negação é evidenciar os enganos a que os indi-
víduos estão propensos a cometer. A seguinte passagem ilustra isso:

Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o
Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se
louvou que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns
vinte minutos bastava... porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem
sabe – sem ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou
assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? (ROSA, 2001, p. 24-25).

Ora, o interlocutor de Riobaldo aparece como objeto de contestação acerca de um feito her-
cúleo: teria ele, o doutor, em 20 minutos andado pelas encostas do Rio São Francisco. Com
efeito, àquele a quem Riobaldo dirige a palavra estaria se divertindo por estar fingindo ser o
próprio Diabo. Isso tudo decorre da insinuação de Riobaldo, que estende a estrutura “é e não
é” também para o interlocutor. A relativização chega a ponto de anular de vez a existência do
demo, posto que teria havido apenas uma confusão. A comicidade situacional se materializa
pelo exagero do rápido percurso do rio São Francisco e da confusão jocosa de um homem, que
pelo seu feito é apresentado com capacidade demoníaca. Conforme Propp (1992, p. 88), “O
exagero é cômico apenas quando desnuda um defeito”. Logo, a racionalização de um proble-
ma existencial metafísico tende para o cômico. Noutro trecho isso acontece também:

Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas,
fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembleias, que não tem
diabo nenhum, não existe, não pode.Valor de lei! Só assim, davam tranquilidade boa à gente.
Por que o Governo não cuida?! (ROSA, 2001, p. 31).

Às autoridades caberia a possibilidade de se decretar de uma vez por todas a inexistência do


Diabo. Essa constatação desperta certo veio jocoso, uma vez que a legitimação das regras
da vida e das instituições que norteiam a vida em sociedade passa pelo papel desempenha-

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dos pelas pessoas competentes via documentos (nascimento, certidão de nascimento; morte,
certidão de óbito, etc.). Assim, o metafísico, a existência do demo, é trazido para o plano do
empírico e, portanto, subjugado pelas suas normas. O que se coaduna convenientemente
com o desejo de Riobaldo de negar o demo.

A gargalhada pode aparecer relacionada às atitudes más e, por extensão, ao demônio. Minois
(2003) assinala:

[...] o riso é considerado inimigo da perfeita vida cristã, um elemento perturbador da


ordem, nascido com o pecado original e uma manifestação de orgulho, porque o riso é
sempre um sentimento de superioridade, zombaria e desprezo pelo outro. Sobretudo o
riso desenfreado, barulhento e prolongado, mas essa não é a tendência natural de toda
hilaridade? (MINOIS, 2003, p. 149).

O riso, pois, se converte em algo demoníaco, o que nos remete à concepção da Idade Média
a qual preconizava que o riso não pertencia ao divino, mas sim ao diabólico pelo seu caráter
preponderante de zombaria. O seguinte episódio parece ilustrar isso:

[...] faz tempo, fui, de trem, lá em Sete-Lagoas, para partes de consultar um médico, de nome
me indicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por via das dúvidas, não me sombre-
arem por jagunço antigo.Vai e acontece, que, perto mesmo de mim, defronte, tomou assen-
to, voltando deste brabo Norte, um moço Jazevedão, delegado profissional. Vinha com um
capanga dele, um secreta, e eu bem sabia os dois, de que tanto um era ruim, como o outro
ruim era. A verdade que diga, primeiro tive o estrito de me desbancar para um longe dali,
mudar de meu lugar. Juízo me disse, melhor ficasse. Pois, ficando, olhei. E – lhe falo: nunca
vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco,
trouxo de atarracado, reluzia um cru nos olhos pequenos, e armava um queixo de pedra,
sobrancelhonas; não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou
calado, a gente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre, e bufava, um pou-
cadinho. Só rosneava curto, baixo, as meias-palavras encrespadas.Vinha reolhando, historian-
do a papelada – uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços,
ladrões de cavalos e criminosos de morte. Aquela aplicação de trabalho, numa coisa dessas,
gerava a ira na gente. O secreta, xereta, todo perto, sentado junto, atendendo, caprichando
de ser cão. Me fez um receio, mas só no bobo do corpo, não no interno das coragens. Uma
hora, uma daquelas laudas caiu – e eu me abaixei depressa, sei lá mesmo por que, não quis,
não pensei – até hoje crio vergonha disso – apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí,
digo: eu tive mais raiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homem nem me olhou,
nem disse nenhum agradecimento. Até as solas dos sapatos dele – só vendo – que solas du-
ras grossas, dobradas de enormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse Jazevedão,
quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que vinha entrando, sem
ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços dos coitados. E que
nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... (ROSA, 2001, p. 33-34).

Nesse excerto, tem-se a figura, a princípio, séria do delegado Jazevedão (“Não ria, não se riu
nem uma vez”) que por maldade escarnecia dos seus presos e “dava gargalhadas”. O riso ex-
pressa uma zombaria que humilha outrem. E, ademais, acha-se vinculado a uma descrição
dele que nos permite relacionar com o demoníaco: o aspecto animalesco apontado por Rio-

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baldo (“só rosneava”, “presa pontuda de guará”) reforça essa imagem. Nesse sentido, é perti-
nente o que Propp (1992) infere:

[...] a representação de uma pessoa com o aspecto de porco, macaco, gralha ou urso indica
as qualidades negativas correspondentes do homem. [...] A comparação com animais é cô-
mica apenas quando serve para desvendar um defeito qualquer (PROPP, 1992, p. 66-67).

Em O o: A ficção da literatura em Grande Sertão: Veredas, João Adolfo Hansen traz à baila
uma análise brilhante e esclarecedora em que os elementos linguísticos são confrontados
com a sua literariedade na obra. A erudição do texto acompanha a complexidade suscitada
pelo romance. Para ele, a fala sertaneja avulta como sendo o grande êxito do regionalismo de
Rosa. No tocante a esse episódio de Jazevedão, Hansen (2000) percebe que as gargalhadas
podem revelar a marcação das desigualdades sociais:

Quando Riobaldo conta, por exemplo, o ligeiro incidente com o delegado Jazevedão, sua
fala é marcada por índices de fanfarronice, que afirmam e confirmam sua posição atual, me-
recedora de respeito e reconhecimento: Jazevedão, delegado autoritário, delegado violento,
ou seja, delegado, pisa os pés descalços dos capiaus pobres e ignorantes mas não podia ter
sido grosseirão com ele, Riobaldo, que se abaixou para pegar a folha de papel no chão, pois
Riobaldo anda calçado... (HANSEN, 2000, p. 63).

Por outro lado, o demônio é relacionado – desde o início da narrativa com o bezerro com cara
de demônio – ao aspecto cômico. De igual modo, quando Riobaldo enumera os diversos no-
mes do demônio8 para seu convidado a própria substantivação correlaciona-se com o risível:

O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem,


o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o
Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos...
(ROSA, 2001, p. 55).

Ao demônio é atribuído, entre outros, os nomes “O-que-nunca-se-ri” e “Sem-Gracejos”. O


riso aqui não é apenas correlacionado com o demônio, mas também dele faz parte no esforço
de negá-lo. Isso não significa dizer que ele não desperta o risível; aponta, pois, para a inexis-
tência do cômico na sua própria personalidade, vez que ele “nunca-se-ri”, atribuindo um ca-
ráter de seriedade ao demoníaco que inviabilizaria a imagem do demônio ridente e zombetei-
ro. À Diadorim é atribuído um aspecto de seriedade que o impede de rir. Isso, por outro lado,
pode ser lido como o matiz demoníaco que está contido nele. Não é à toa que um dos nomes
do diabo mencionado na narrativa é “Muito-Sério” e “O-que-não-ri”. Para Coutinho (2009, p.
25): “Ela é, como seu próprio nome sugere, Deus e diabo, luz e trevas, carne e espírito, dor e
prazer, homem e mulher, e constitui pela sua contradição a imagem do questionamento pre-
sente em toda a obra rosiana”.

8.  Segundo Leite (2007, p. 45): “Riobaldo, sozinho nas Veredas-Mortas, enfrenta seus próprios demônios e passa a
dominar o medo. Medo que começa a perder quando, depois de se referir ao diabo por mil nomes, correntes na
voz do povo –‘o aquilo’, ‘o Pai do Mal’, ‘o Tendeiro’, ‘o Manfarro’, ‘Quem que não existe’, ‘o Solto-Eu’, ‘o Ele’, ‘Mão
peluda’, ‘o Careca’, entre outros – consegue chama-lo pelos nomes ‘oficiais’: ‘Lúcifer’, ‘Satanás’”.

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Contudo, a associação do humano ao demoníaco figura como uma das tônicas do roman-
ce. Riobaldo quando finge ter coragem parece-nos cômico, posto que ele é alguém que
vive amedrontado:

Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim
ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara
de valentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência foi comprada a todos custos, ca-
minhou com os pés da idade. E, digo ao senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer
quando Deus manda, depois quando o diabo pede se perfaz. O Danador! (ROSA, 2001, p. 62).

Correlacionada ao demoníaco, a coragem é criada artificialmente. A reflexão de Riobaldo


acerca da postura do homem diante de Deus e do demônio é o motivo de certo cômico situ-
acional. O fingimento como maneira de se criar uma realidade é algo que desperta um veio
cômico. O artificial parece sobrepujar o natural como – nas palavras de Bergson – o mecânico
tende a se fixar no vivo.

O risível denota também rebaixamento, expressão de descrença em mitos e superstições:

Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me esperar chegar. – “Redemonho!” –


o Caçanje falou, esconjurando. – “Vento que enviesa, que vinga da banda do mar...” – Diado-
rim disse. Mas o Caçanje não entendia que fosse: redemunho era d’Ele – do diabo. O demônio
se vertia ali, dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri?
Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, rio meio do redemunho... Acho o mais terrível da minha
vida, ditado nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me escute. A gente
vamos chegar lá. E até o Caçanje e Diadorim se riram também (ROSA, 2001, p. 262).

Riobaldo, Caçanje e Diadorim riram de uma situação, na perspectiva deles, cômica – “O diabo,
no meio do redemunho...”. O fato de o diabo supostamente viajar num redemoinho pareceu-
lhes cômico. Mas, como ele mesmo adverte – naquela hora pareceu-lhe cômico... porque, mais
adiante, ele se valeria desse “expediente” para realizar um pacto – o que não seria engraçado...
A perspectiva cética – ou pelo menos hesitante – de Riobaldo quanto à existência demoníaca
parece se destacar9. Caçanje, por sua vez, reforça a crença de redemoinho como expressão
diabólica. A palavra “redemonho” possui dentro a corruptela de demônio (re + demonho =
demônio), isto é, o diabo está dentro do redemoinho.

A interação entre Riobaldo e o diabo torna-se conflituosa na medida em que aquele tenta me-
dir forças com este. Nesse caso, um caráter de seriedade é outra vez atribuído ao demoníaco,
já que Riobaldo ri, mas o demo não:

Mas, Ele – o Dado, o Danado – sim: para se entestar comigo – eu mais forte do que o Ele;
do que o pavor d’Ele – e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez. Cobra
antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se

9.  O riso de Riobaldo nesse trecho foi evidenciado por Andrade (2011): “A risada de Riobaldo demonstra certa
incredulidade diante da crendice secular, de modo que já se esboçava a natureza de seu espírito cético” (AN-
DRADE, 2011, p. 100).

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deu. A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio do
pé-de-vento – o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoinhos: ... o
Diabo, na rua, no meio do redemunho... Ah, ri; ele não (ROSA, 2001, p. 437).

Entrevê-se um riso de superação e de afirmação de superioridade, portanto como rebaixa-


mento do diabo. Rir deste é superá-lo, isto é, expurgar o medo que se tem da condenação
infernal e do diabo (MINOIS, 2003, p. 244).

Riobaldo é alguém amedrontado com a vida jagunça, com o suposto pacto que teria feito com
o demônio. Seu comportamento desconcertado ilustra essa marcação do medo:

Ou eu temi também o Tranjão, o Tibes, o Cujo, que eu mesmo ajustara por meu vigiador?
Seja o que; hoje mais rezo. O homem nas costas da égua, desinquieta, que agora dava debate.
Decerto porque, animal de montada, no que percebe aquele humano pavor alheio, o todo
desprezo ao cavaleiro está obrigado a demonstrar. Conseguinte que, sobre assim, todos ri-
ram mais: – “Oé, eh, ele já está se deixando!” – algum reparou (ROSA, 2001, p. 492).

O risível advém do desajeitamento de Riobaldo, que demonstra receio de matar um homem


que estava na égua. Além disso, Riobaldo está com medo do olhar demoníaco vigilante so-
bre si. Isso fica evidenciado quando ele precisa matar esse homem que estava na égua para
satisfazer o demônio:

Eu pronunciei: – “Rai’-a-puta-pô! Não tenho que matar este desgraçado, porque minha pa-
lavra prenhada não foi com ele: quem eu vi, primeiro, e avistei, foi esse cachorrinho!...” Só
um assarapanto de silêncio. Daí, me vivavam. Todos entenderam, me admiraram. A tanto que
sei. Agora, eu, digo ao senhor: dele, do Demo – naquele instante – agora era eu quem ria!
(ROSA, 2001, p. 492).

Riobaldo tinha feito uma promessa ao demo de matar o primeiro que lhe aparecesse. No en-
tanto, como ele se arrependera resolveu matar um cachorrinho. Percebe-se aí a troça que ele
faz do diabo. O riso é, pois, de superioridade. A situação prossegue na narrativa:

Tornei a transdizer: – “Adoude!... E nem não foi essa cadela.A égua, essa é que foi – a que pri-
meiro deu nas minhas vistas!” Real, mudando o propósito – e para que isto bem se entenda.
Fio que me aprovaram. Divertidos, todos; quem é que ia me contrariar? (ROSA, 2001, p. 493).

Ainda no contexto da promessa ao diabo, Riobaldo torna a mudar de ideia e afirma que na
verdade tinha visto primeiro uma égua: “O que foi como pronunciei: – ‘Delibero o certo: o
primeiro que eu vi, foi essa égua. Ela tinha de receber a morte... Ah, mas égua não é gente, não
é pessoa que existe’” (ROSA, 2001, p. 495). Nesse processo, ele está na verdade enganando o
diabo. Na disputa Riobaldo-demônio o riso mostra-se como um pêndulo. No entanto, era o
demo quem riria por último: “Ah, no final da vez, o que ria o riso principal era ele, o demo. O
Tisnado!” (ROSA, 2001, p. 494). Como que reafirmando o ditado “quem ri por último ri me-
lhor”, o narrador marca que o riso final era do diabo. Nesse caso, essa lógica segue o raciocínio
de Propp (1922, p. 181): “Quem ri é o vencedor: o perdedor nunca ri. O riso moral, ou seja, o

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riso comum e saudável do homem normal, é o signo da vitória daquilo que ele considera jus-
to”. Para Minois (2003), que investiga a demonização do riso, é como se houvesse uma dialé-
tica homem-diabo:

O diabo nunca está suficientemente longe. Ora, com ele, nunca se sabe e é o caso de rir ou de
chorar, se é ele que ri de nós ou nós que devemos rir dele. [...] Parece desconfiança, pois, por-
que a espantosa criatura troça de nós, certa de nos ter sob suas rédeas (MINOIS, 2003, p. 208).

Quando um jagunço ouve pela primeira vez o nome Diadorim, lhe veio à mente a figura de
um pássaro: “Mas o Quipes se riu: – ‘Dindurinh’... Boa apelidação... Falava feito fosse o nome
de um pássaro. Me franzi. – O Reinaldo é valente como mais valente, sertanejo supro. E dana-
do jagunço... Falei mais alto. – Danado... – repeti” (ROSA, 2001, p. 583). Riobaldo fez questão
de asseverar o caráter de valentia, de Diadorim, que não podia ser posto à prova. O par Da-
nado-Diadorim evoca a associação ao demoníaco concernente a Diadorim. Hansen (2000) lê
essa percepção cômica de Quipes como “corruptela talvez de ‘andorinha’ – articulação figural
de Diadorim...” (HANSEN, 2000, p. 137).

A temática do transcendental, na figura do demônio, e do medo perseguem o protagonista da


narrativa. Analisemos o seguinte trecho:

E conheci: oficio de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não tive!
Não tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu vencer: ilha em
águas claras... Conheci. Enchi minha história. Até que, nisso, alguém se riu de mim, como que
escutei. O que era um riso escondido, tão exato em mim, como o meu mesmo, atabafado.
Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que isso era ideia falsa
próxima; e, então, eu ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanão! Sujo!... e dele disse somentes
– S... – Sertão... Sertão... (ROSA, 2001, p. 607).

Há nessa passagem a afirmação de Riobaldo como sendo alguém destemido, e ele mesmo
supunha que o diabo faria zombaria dele como se dissesse que Riobaldo era medroso, o que
era verdade. Isso tudo, claro, se passa nas reflexões do jagunço consigo mesmo. No seu ínti-
mo, havia uma dialética “eu-diabo” materializado no “riso escondido” que impactava na sua
concepção da realidade de um sertão demonizado.

Ademais, há a realidade externa – o sertão – que se impõe também como problemático. Logo,
o riso de escárnio (“alguém se riu de mim”) de Riobaldo ataca ele mesmo. É preciso notar que
Rosa em entrevista a Lorenz revela que “Riobaldo é o sertão feito homem” (LORENZ, 2009,
p. 53). O excesso de negação (“Não pensei no que não queria pensar”; o “não” dentro de Sa-
tanão) também reforçam a perspectiva da comicidade. Na leitura de Utéza (1994):

Em face desta realidade percebida como manifestação duma vontade estranha, a razão do
herói e seu desejo de rejeitar a possessão diabólica conjugam seus esforços para expulsar
do campo da consciência esta interpretação pelo ‘Mal’ – não queria pensar, ideia falsa. [...] Em
outros termos, o subconsciente de Riobaldo, impondo-lhe Santão quando ele queria dizer
Sertão, denunciaria um erro imputável à razão (UTÉZA, 1994, p.383).

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A possibilidade de compreensão de uma ausência como presença – o que parece ocorrer nes-
se trecho em que o “diabo é o sertão” – configura-se, segundo Hansen (2000), como um dos
paradoxos do romance:

[...] o diabo é essencialmente falante, ainda que seu modo seja o silêncio...[...] No momento
mesmo do pacto, invocado, não comparece existente; mas o silêncio, a ausência mesma indi-
cam, para Riobaldo, o sentido de sua presença e existência (HANSEN, 2000, p. 90).

O risível oriundo de uma comparação paródica com uma passagem bíblica também é visto
no romance:

Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra, eu vencendo, aí estremeci num re-
lance claro de medo – medo só de mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maior
do que eu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadas dava. Que eu de repente me
perguntei, para não me responder: – “Você é o rei-dos-homens? ...” Falei e ri. Rinchei, feito
um cavalão bravo Desfechei. (ROSA, 2001, p. 155).

Há nessa passagem uma paródia com o momento bíblico do julgamento de Cristo em que se
questiona se Jesus seria o Rei dos Judeus. Com essa imagética, pretende-se esboçar a supos-
ta grandeza da coragem de Riobaldo, já que ele também está com medo. A ambivalência do
trecho é evidente: ao colocar-se como um salvador ele também ri de si mesmo, o que pode
ser relacionado com o riso demoníaco de superioridade. Consoante Propp (1992, p. 85, grifo
do autor), “a paródia representa um meio de desvendamento da inconstância interior do que
é parodiado”. Ou seja, trata-se de um meio de desvelar algo, que, no caso em tela, são as in-
dagações de Riobaldo para consigo mesmo. Todavia, a paródia para ser cômica precisa revelar
“a fragilidade interior do que é parodiado” (PROPP, 1992, p. 87). As contradições do jagun-
ço-narrador medroso denunciam o quão ele era “frágil” num contexto (batalhas, sertão) que
exigia constante empenho para guerrear.

A superação de Riobaldo pela via do riso fica sugerida ao tempo em que ele questiona seu
companheiro de jagunçagem acerca das preocupações metafísicas:

Porque, veja o senhor o que eu vi: para o Jõe Bexiguento, no sentir da natureza dele, não rei-
nava mistura nenhuma neste mundo – as coisas eram bem divididas, separadas. – “De Deus?
Do demo?” – foi o respondido por ele – “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e
aparta... Quem é que pode ir divulgar o corisco de raio do borro da chuva, no grosso das nu-
vens altas?” E por aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, ele era engraçado (ROSA, 2001, p. 238).

O riso de Riobaldo acha-se relacionado com os questionamentos metafísicos acerca da exis-


tência e/ou da natureza divina e demoníaca. Um riso de alívio, posto que confirma as próprias
convicções dele, ou atesta o que ele quer confirmar. A contradição da personagem que prega
o maniqueísmo é o motivo do riso. Mas, por outro lado, segundo Utéza (1994) esse riso pode
ser revelador de preconceitos:

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No entanto, o riso do protagonista que fecha a discussão metafísica e permite a transição


para a história de Maria Mutema não deve enganar-nos: Jõe Bexiguento e aquilo que ele
conta só podem fazer rir aqueles que se deixam levar por preconceitos, do mesmo modo
que o jagunço Riobaldo. Afastado sutilmente a solidariedade daquele que se ria de Jõe e pro-
curando contar integralmente a história que ele lhe havia contado, o narrador assinala seu
interlocutor do Cansanção-Velho como um personagem fora do comum que merece nossa
maior atenção pela mensagem oculta de que é portador (UTÉZA, 1994, p. 134).

O pressuposto de que à vida cabe um caráter de flexibilidade tal qual proposto por Bergson
(2007) parece materializar-se no trecho que se refere à austeridade de Maria Mutema: “Ela
sempre de preto, conforme os costumes, mulher que não ria – esse lenho seco” (ROSA, 2001,
p. 238). O fato de ela não rir é assinalado por Riobaldo como sendo de um caráter austero –
“lenho seco”. O riso estaria associado à vida.

Conclusão

Não obstante o caráter de seriedade que a narrativa suscita, é possível vislumbrar procedi-
mentos cômicos que permeiam a narrativa e lhe conferem significados correlacionados com
o enredo. Os chistes, as inversões, a quebra de expectativa, o cômico situacional, as perso-
nagens ridentes, entre outros, desempenham no texto inúmeras funções, tais como síntese
pedagógica, acesso ao socialmente reprimido, meio de prazer, alívio de tensões e, sobretudo,
superação de uma angústia: a negação exaustiva da existência do diabo e a consequente re-
denção de Riobaldo consigo mesmo.

Além da comicidade propriamente dita, a representação do riso na narrativa procurou recriar


a realidade pela linguagem a fim de efetuar mudanças pela via do “monólogo dialógico”. As-
sim, o riso de Riobaldo procura rebaixar a figura demoníaca ao nível da não-existência. Mas,
por outro lado, em Grande sertão aparece diversos tipos de riso em distintas situações. Por
meio da leitura de Comicidade e riso, de Propp (1992), pudemos defender essa perspectiva, na
qual a zombaria como forma de rebaixamento sobressaiu e em que o riso aparece marcado.

Assim, o estudo da comicidade em Grande Sertão: veredas aduz mais uma perspectiva de
leitura para esse romance ao tempo em que evidencia a sua riqueza plurissignificativa. Uma
narrativa entremeada de comicidade sem ser uma comédia propriamente dita aponta para a
sutileza dos aspectos cômicos da referida obra. Os Estudos Literários ficam expandidos com
a contribuição das teorias da comicidade, já que estas trazem a lume elementos outros para a
constituição de um instrumental de leitura possível para o objeto literário.

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Henri Bergson e Evaldo Coutinho:


em torno da ideia de “intuição filosófica”

José Paulo Maldonado de Souza


Mestre em Filosofia/UFPE
Professor Substituto de Filosofia Geral/UFPB

No livro O espaço da arquitetura (1970), Evaldo Coutinho desenvolveu


a tese de que a filosofia é uma forma de arte, enquadrando-a como um
gênero ao lado do cinema, arquitetura, literatura, etc., sob o curioso dís-
tico de que “os sistemas filosóficos, também são obras de arte, do mesmo
modo que estas são também filosofias”. A tese evaldiana implica um des-
vio das ideias de Bergson expostas na conferência "A Intuição Filosófica”
(1911). Trata-se de abordar tal concepção e o diálogo entre os autores.

Palavras-chave: Conceito de filosofia; Autonomia da arte; Estética.

1. Introdução
O objetivo da comunicação é explorar e divulgar a tese evaldiana de que “a filosofia é uma
forma de arte” e mostrar como esta tese deriva de ideias bergsonianas. Mais especificamen-
te, de uma “distorção” do conceito de “intuição filosófica” de Henri Bergson, desenvolvido
sobretudo na Conferência homônima, intitulada de “A Intuição Filosófica” (1911). Como pre-
tendemos fazer isso? Primeiro, é preciso remontar a argumentação (pelo menos parcialmen-
te) de Evaldo Coutinho conforme ela aparece em O espaço da arquitetura (1970), capítulo
2, “A espacialidade permanente”, subcapítulo 2, “A intuição filosófica e a intuição artística”,
e eventualmente em outros escritos auxiliares. Segundo, é preciso desenvolver a distinção
bergsoniana entre inteligência e intuição como dois “movimentos inversos do espírito”, so-
bretudo do modo como ela aparece em A evolução criadora (1907); depois disso, será possí-
vel mostrar que na base do pensamento de Evaldo Coutinho existe um “intuicionismo” dis-
torcido a seu modo. O que se pode esperar da análise provisória deste diálogo? Do ponto de
vista da interpretação do autor: a) articular internamente e explorar possibilidades de leitura
do conceito evaldiano de filosofia como arte; b) recompor parte do quadro de influências do
filósofo brasileiro, rastreando pontos de contato efetivo entre ele e outros autores; do ponto

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de vista da historiografia da filosofia brasileira; c) demonstrar uma influência ampla do berg-


sonismo na obra de Evaldo Coutinho; d) mostrar como este capítulo perdido da recepção do
bergsonismo e do intuicionismo no Brasil solicita novas categorias da parte da historiografia
da filosofia brasileira (não é possível simplesmente adicionar Evaldo Coutinho na narrativa
atual sem descaracterizá-la).

Mas antes, um breve parênteses: quem é Evaldo Coutinho? Evaldo Coutinho foi um filósofo
da cidade do Recife, nascido em 1911, falecido em 2007. Escreveu nove obras lançadas pela
editora Perspectiva, publicadas entre 1971-1998, em que se destacam a criação de um sistema
filosófico, o “solipsismo de inclusão”, uma teoria estética, que poderia ser chamada de “es-
tética da autonomia”, e uma quintologia literária, “matéria-prima” de seu sistema filosófico
– chamada de A Ordem Fisionômica. Apesar de praticamente desconhecido do público e da
academia, os poucos conhecedores de sua obra são unânimes: suas ideias, hoje inexploradas,
têm potencial de impactar seriamente as categorias tradicionais da critica e historiografia
da filosofia brasileira, quando forem redescobertas, o que deverá acontecer (se acontecer)
inevitavelmente em forma de revival de um extemporâneo. No entanto, desde pelo menos
o lançamento do filme documentário A composição do vazio (2001), é possível apontar para
uma mudança de cenário e uma renovação do interesse em torno de sua obra.

2. O princípio de autonomia da arte


Dizer que a filosofia é uma forma de arte pressupõe uma teoria global da arte, uma Estética
ou filosofia da arte. A estética evaldiana é inteiramente baseada no “princípio de autonomia”.
Seus princípios e conceitos fundamentais estão expostos no primeiro capítulo do livro o es-
paço da arquitetura, “a espacialidade permanente”. No seguinte trecho de uma entrevista, o
filósofo fala abertamente sobre o caráter de sua filosofia da arte:

P – qual o seu ponto de vista filosófico em relação ao estudo da estética?


R – O princípio realmente filosófico da arte era, para Lionello Venturi, o da autonomia da ati-
vidade artística. Entretanto, mais duas autonomias devem acrescentar-se a esta: a do gênero
artístico e a da obra de arte em particular. Considerando-se esses três princípios, que são
como círculos concêntricos, dos quais o primeiro tem o maior diâmetro, melhor se aclara o
fenômeno da obra de arte individual, mas que contém uma concepção genérica, universali-
zadora. O artista vê o mundo impregnado por sua concepção própria; cada coisa rotineira-
mente objetivada passa a tomar a accepção estendida pelo autor (COUTINHO, 1973).

Três observações. Primeira, o “princípio de autonomia da arte” evaldiano se diz em três senti-
dos, conjuntura que pode ser graficamente representada por três círculos concêntricos que se
contém um ao outro, do maior para o menor, que também são como espiras circulares de um
espiral. Em O espaço da arquitetura, é textual: “A consideração da autonomia (...) no plano
estético se gradua à maneira de círculos concêntricos: a autonomia da arte, a autonomia do
gênero artístico e, com diâmetro ainda menor, a autonomia da obra de arte” (COUTINHO,

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1998, p. 15). Segunda observação, Evaldo Coutinho acredita estar sofisticando o “princípio da
autonomia da atividade artística” de Lionelo Venturi1, adicionando “mais duas outras autono-
mias: a do gênero artístico e a de cada obra de arte em particular”. Terceira e mais importante:
a autonomia da arte não é definida pelo Belo ou pela Beleza: “o belo é teoricamente secundá-
rio” (COUTINHO, 1993, p. 23). Em apoio a este raciocínio, ele diz em outro lugar2:

Com efeito, muitos autores definem a estética desse modo: a disciplina que aborda o pro-
blema do belo através da arte. Situo-me entre os que discordam. Posso escrever um ensaio
de estética atribuindo ao belo apenas um papel relativo: o de ter sido, efetivamente, um dos
ditames da estética do classicismo (COUTINHO, 1973).

Portanto, o verdadeiro “ponto de vista filosófico” da teoria, crítica, historiografia, bem como
da criação e fruição da arte, para Evaldo Coutinho, é o que ele chama em trecho supracitado
de “concepção própria” do artista, que veremos se trata da “intuição artística”. O belo é aci-
dental; a intuição é substancial. A autonomia da arte enquanto atividade espiritual livre sig-
nifica, positivamente e negativamente, que a comunicação da intuição realiza suas exigências
imanentes por meio de um conjunto próprio de princípios, regras e normas, que não se con-
fundem e que não podem ser afetadas por ingerências de atividades do espírito desenvolvidas
no sentido oposto ou alheio da atividade intuitiva, como por exemplo, o compromisso com
a resolução dos problemas da vida cotidiana (a arte autônoma e livre inclusive da presença
obrigatória de uma “mensagem” edificante ou pragmática), bem como das ingerências da
ciência positiva sobre a estética. A estética deve manter-se livre do “influxo, sempre danoso,
de concepções da ciência positiva sobre a filosofia da arte” (COUTINHO, 1998, p. 21). Nesse
sentido Evaldo Coutinho diz:

convindo lembrar que se rejeitam as tentativas de aplicação do processo científico desde


que se procure incidi-lo nesse âmago personalíssimo da obra [de arte, a intuição]; o qual
não se repete, salvo nas vezes das concordâncias que, somadas, levam ao conceito de “estilo
histórico”; mas, a existência da arte não se vivifica unicamente com esses casos de contíguas
intuições, antes ela se ilumina com os aparecimentos incomuns, com os fenômenos insula-
dos por motivo da originalidade da intuição, quando se legitima um teor que é o único em
seu gênero; como tal, impróprio a se conter em departamento de alguma classificação, o que
não ocorre, e é obviamente sabido, com relação àqueles aspectos que detêm uma constante
apreciável, que não é o caso da substância exclusiva de cada autor, conquanto se já verdadei-
ramente artista (COUTINHO, 1998, p. 12).

Ao passo que a ciência positiva se detêm sobre “constantes apreciáveis”, classificação e aná-
lise de fatos que se repetem, a estética se detêm sobre “fenômenos insulados”, intuições ou
concepções singulares e personalíssimas. Eis que na base do princípio de autonomia da arte
evaldiana, no ponto preciso em que a arte como atividade autônoma do espírito se distingue

1.  Lionello Venturi (1885- 1961), crítico de arte italiano, escreveu a History of art criticism (1936).
2.  Em contraste ao classicismo, Evaldo Coutinho (1991, p. 23) complementa ainda em outro lugar: “Na configu-
ração barroca, até o feio se legitima. O feio, o obscuro, o complexo”.

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das outras atividades não-intuitivas, entremostra-se, ainda que implicitamente, como pres-
suposto, a distinção bergsoniana entre “inteligência” e “intuição” como os “dois movimentos
inversos do espírito”.

3. Os dois movimentos inversos do espírito


Gilles Deleuze, em A lógica do sentido (1969), referindo-se a Alice no país das maravilhas, dá
uma chave de leitura para a distinção bergsoniana entre intuição e inteligência, quando diz:
“Pertence a essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo” (DELEUZE,
1998, p. 1). Para Bergson, a consciência é puxada em dois sentidos opostos porque o real ¬
o devir, a vida, o tempo, a duração ¬ avança em dois sentidos opostos ao mesmo tempo, daí
vem a expressão “dois jatos do tempo da consciência”. Em A evolução criadora (1907), Bergson
esboça a seguinte imagem que ilustra a conjuntura:

Imaginemos pois um recipiente cheio de vapor em alta pressão e, aqui e ali, nas paredes
do vaso, uma fissura por onde o vapor escapa em jato. O vapor lançado no ar condensa-
-se quase que por inteiro em gotículas que voltam a cair, e essa condensação e essa queda
representam simplesmente a perda de algo, uma interrupção, um deficit. Mas uma pequena
parte do jato de vapor subsiste, não condensada, durante alguns instantes; esta se esforça
por reerguer as gotas que caem; consegue, no máximo, tornar a queda mais lenta. Assim, de
um imenso reservatório de vida devem lançar-se incessantemente jatos, cada um dos quais,
tornando a cair, é um mundo. A evolução das espécies vivas no interior desse mundo re-
presenta aquilo que subsiste da direção primitiva do jato original e de uma impulsão que se
prolonga em sentido inverso da materialidade (BERGSON, 2005, p. 268-269).

Em Bergson, os dois sentidos opostos pelos quais a consciência é puxada correspondem à


duas formas de conhecer, duas faculdades: “Intuição e inteligência representam duas direções
opostas do trabalho consciente: a intuição caminha no próprio sentido da vida, a inteligência
vai em sentido inverso, e se encontra assim muito naturalmente regrada pelo movimento da
matéria” (BERGSON, 2005, p. 289). A inteligência ou pensamento corresponderia, no plano
da cultura, às atividades da ciência positiva e do senso comum. Desse modo, Bergson diz: “o
conhecimento usual e o conhecimento científico são necessariamente duas visões do mes-
mo gênero, ainda que de precisão e de alcance desiguais” (BERGSON, 2006, p. 146). Ambos
são “destinados a preparar nossa ação sobre as coisas” (BERGSON, 2005, p. 146), e ambos
recorrem ao tratamento da realidade que Bergson chamou de “o método cinematográfico da
inteligência”, “o único a ser prático, uma vez que consiste em regular o andamento geral do
conhecimento pelo da ação” (BERGSON, 2005, p. 331). A metáfora do cinema aplicada à in-
teligência, em resumo, consiste em que a rotina do pensar atua como uma coleção de instan-
tâneos imóveis de um determinado movimento, “imagens virtuais” ou “paragens possíveis”
de um movimento real, a recolecção destes fotogramas em série, dá a ilusão do movimento,
mas jamais o próprio movimento. A vida ou movimento é “compenetração reciproca, criação
indefinidamente continuada” (BERGSON, 2005, p. 193) e não uma seriação de estados neu-

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tros e exteriores. É por isso que no cinema as imagens em movimento parecem “animadas”
ou “vivas”, mas não passam de uma sucessão de flagrantes “inertes” e “estanques” religados
posteriormente por um trabalho de intelecção:

Percepção, intelecto, linguagem geralmente procedem assim. Quer se trate de pensar o


devir, quer de exprimi-lo, quer mesmo de percebê-lo, não fazermos realmente nada além
de acionar uma especie de cinematógrafo interior. Resumiríamos então tudo o que pre-
cede dizendo que o mecanismo de nosso conhecimento usual é de natureza cinematográfica
(BERGSON, 2005, p. 331).

Por outro lado, a intuição corresponde no plano das atividades espirituais, em diferentes graus
de precisão, à arte, à filosofia, e à mística. O “objetivo” principal do exercício livre da intuição
não é pragmático, está voltado para o espírito, não para a matéria. Não se trata de resolver os
problemas da nossa vida, mas de reconduzir-nos “para o interior mesmo da vida” (BERGSON,
2005, p. 191). “O conhecimento desinteressado do real” procede pela intensificação e dilatação
indefinida do objeto, por meio do esforço de imaginação, de introspecção ou espiritualidade,
na tentativa de instalar-se no interior mesmo do objeto, “por uma espécie de simpatia” (BER-
GSON, 2005, p. 192). Desde que “instinto é simpatia” (BERGSON, 2005, p. 191), Bergson pôde
definir a intuição, do ponto de vista das funções imanentes da vida, como “o instinto tornado
desinteressado, consciente de si mesmo” (BERGSON, 2005, p. 191). E acrescenta:

Que um esforço desse tipo não seja impossível, já o mostra a existência, no homem, de
uma faculdade estética ao lado da percepção normal. Nosso olho percebe os traços do ser
vivo, mas justapostos uns aos outros e não organizados entre si. Escapa-lhe a intenção da
vida, o movimento simples que corre através das linhas, que as liga umas as outras e lhes dá
uma significação. É essa intenção que o artista visa recuperar, recolocando-se no interior do
objeto por uma especie de simpatia, desfazendo, por um esforço de intuição, a barreira que
o espaço interpõe entre ele e o modelo. É verdade que essa intuição estética, como aliás a
percepção exterior, alcança apenas o individual. Mas podemos conceber uma investigação
orientada no mesmo sentido que a arte e que tomaria por objeto a vida em geral, assim
como a ciência física (BERGSON, 2005, p. 192).

Com efeito, no decurso da evolução das formas de vida, o impulso vital (élán vital), movimen-
to de diferenciação, não apagou os vestígios de intuição na inteligência, e de inteligência na
intuição. Deleuze (1999, p. 76) diz: “Daí haver uma auréola de instinto na inteligência, uma
nebulosa de inteligência no instinto, um quê de animado nas plantas, um quê de vegetativo
nos animais”. Disso decorrem duas noções para nossa comunicação: a) o exercício da arte e da
filosofia diz respeito à intuição, mas necessita das mediações da inteligência e da linguagem
para sua comunicação, embora não se defina por ela, e; b) o exercício da faculdade intuitiva
pode ser conduzido por um esforço voluntário e até “metodológico”. Como diz Deleuze (1999,
p. 7): “a intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa”, mas “é o
método do bergsonismo”. Deleuze chega a elencar cinco regras do método no melhor estilo
das Regulae cartesiana. E com o “método da intuição” ou a “intuição como método”, ainda
segundo Deleuze (1999, p. 8), Bergson contava “estabelecer a filosofia como disciplina abso-
lutamente ‘precisa’, tão precisa em seu domínio quanto a ciência no seu, tão prolongável e

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transmissível quanto a própria ciência”. E Bergson, ele mesmo diz: “Assim distinguimos ni-
tidamente a metafísica da ciência. Mas assim também lhes atribuímos um idêntico valor”. E
ainda nesse mesmo sentido:

Não haveria lugar para duas maneiras de conhecer, filosofia e ciência, caso a experiência não
se apresentasse a nós sob dois aspectos diferentes, de um lado sob a forma de fatos que
se justapõem a fatos, que se repetem aproximadamente, que se medem aproximadamente,
que se desdobram enfim no sentido da multiplicidade distinta e da espacialidade, do outro
sob a forma de uma penetração recíproca que é pura duração, refratária à lei e à medida
(BERGSON, 2006, p. 143).

Essa reconstrução parcial e didática da distinção entre inteligência e intuição em Bergson,


deve ser suficiente para que se possa perceber que a ideia de que a filosofia é definida pela
“intuição”, em oposição à ciência positiva e em contiguidade à arte, é uma ideia bergsoniana.

4. O intuicionismo em Evaldo Coutinho


A hipótese inicial da comunicação é: existe um intuicionismo de base no pensamento eval-
diano, e essa base permitiu a construção da tese de que a “filosofia é uma forma de arte” por
meio de um desvio. A influência de Bergson em Evaldo Coutinho quanto ao conceito de “in-
tuição” parece clara. É em termos confessamente bergsonianos que Evaldo Coutinho pensa
a intuição. Por exemplo, quando a define por contraste à “rotina do pensar”, nos seguintes
termos, e em outros que poderiam ser multiplicados:

Com o pensamento em súbita densidade, em êxtase, surge a intuição que é o degustamento


de algo que se excepciona da rotina do pensar, a clareza repentina a suscitar-me o desejo de
fazê-la perene, pois com a energia de sua evidência, ela se assemelha, ainda, a uma revelação
incontestável (COUTINHO, 1987, p. 11).

Embora essa influência seja mais difícil de ser observada quanto ao conceito de “inteligên-
cia”, desde que nenhuma epistemologia é encontrável na ordem fisionômica – um caso raro
ou único de ontologia sem considerações positivas sobre as ciências – ela pode ser observada
quando o “pensamento comum” é conceituado de acordo com algo bem semelhante ao “mé-
todo cinematográfico da inteligência” de Bergson. Em A imagem autônoma (1972), encontra-
-se em várias passagens uma reflexão desenvolvida no seguinte sentido:

Sabe-se que o olhar humano atua, freqüentemente [sic], como se fora a objetiva, residindo
nele, por conseguinte, o exemplo do que seria a câmera do cinema. Sem dar-se conta do
evento, há um cineasta implícito no portador da visão (COUTINHO, 1996, p. XI).

A diferença mais visível é que Bergson explora muito mais o aspecto “artificial”, “mecânico”
e “ilusório” da metáfora do cinema, enquanto Evaldo Coutinho avança a curiosa concepção

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de que a experiência cotidiana pode beneficiar-se conceitualmente da dimensão estética do


cinema, configurando-se a “circunstância de que uma pessoa pode conduzir-se de maneira
cinematográfica” (COUTINHO, 1996, p. 34), “o perscrutador, da janela que alcança a perspec-
tiva da rua, descobre pequenos enredos nos indivíduos que passam (...) encarnando o sentido
que firmaram os olhos da testemunha” (COUTINHO, 1996, p. 34), mudando a acepção usual
do olhar cotidiano para uma “curiosidade que se confunde com o encarecimento artístico”
(COUTINHO, 1996, p. 31); bem como a cinematografia pode beneficiar-se do prestígio inte-
lectual do mecanismo cinematográfico, tornando-se “de certo ângulo, mais processo mental
de conhecimento que arte propriamente dita” (COUTINHO, 1998, p. 3).

Em Evaldo Coutinho, teoria e crítica do cinema e do conhecimento se tocam, mas sem formar
uma epistemologia, o que há é uma certa noção sobre o funcionamento da “inteligência” e do
“pensamento” em geral, sugerindo talvez uma gnoseologia. Para Evaldo Coutinho, o aspecto
intelectual do cinema não se restringe ao funcionamento do mecanismo do cinematógrafo
registrar e exibir o movimento (note-se que o cinematógrafo que Bergson alude registra e
exibe as fitas no mesmo aparelho), mas se estende à forma de fruição das imagens puras (em
movimento, descoloridas e silenciosas), que é o subentendimento de uma imagem ausente
por meio de uma imagem presente, isto é, as imagens virtuais do cinema assim como as da
consciência cotidiana se encadeiam como em uma espécie de linguagem, daí o exercício de
fruição do cinema ser intelectual, do mesmo modo que a intelectualidade é uma espécie de
fruição cinematográfica. No cinema, o público é obrigado a perseguir o “liame lógico” entre a
imagem e seu sentido e, mais que isso, entre a imagem anterior e a posterior, para “remontar”
o sentido da sequência como sequência e não como posições isoladas. A diferença da “ima-
gem pura” do cinema para as “imagens verbais” da literatura é que a primeira tem o significa-
do translúcido, de entendimento imediato, a segunda é opaca, meramente evocativa:

Os valores do cinema, integrantes do conceito de imagem enquanto matéria não capitulada


em outra arte, são, com o descolorido de sua aparência, o movimento, quer o próprio da
figura, quer o estabelecido mercê da sucessão de cenas, o ritmo, as angulações da câmera, as
proximidades e os distanciamentos desta para o objeto fotografado, a dimensão do suben-
tendimento, valor este que acrescentara ao aspecto artístico do cinema uma outra feição
de cunho eminentemente intelectual, como seja, a potência de ilação que vem a oferecer
determinada imagem, tendo em vista outra, não imprecisa, vaga, tal se vê no setor da poesia
literária, mas inconfundível, cabal, nominada” (COUTINHO, 1998, p. 7).

A fruição cinematográfica envolve o subentendimento que, se é de um “agradável entrosa-


mento”, também é “como uma operação de conhecimento intelectual, o que refoge do cará-
ter meramente artístico” (COUTINHO, 1996, p. 131). Fica sugerido assim na obra de Evaldo
Coutinho, que a operação cotidiana do conhecimento intelectual (o olhar, pensamento, co-
nhecimento usual) se amplia com uma adjetivação estética, parecendo razoável supor um
intuicionismo – a presença da distinção bergsoniana entre intuição e inteligência – subjacen-
te ao desenvolvimento do pensamento evaldiano, ainda que não haja uma teoria positiva ou
explícita sobre a ciência.

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5. A intuição estética e a intuição filosófica


A célebre conferência de Bergson em Bolonha, intitulada “A Intuição Filosófica”, tem como
tema dominante a apresentação de um método de abordagem aos sistemas filosóficos, cuja
finalidade é reconduzi-los à uma imagem intermediária entre a complicação da letra e sua
simplicidade de espírito, isto é, entre o conteúdo ideativo original da intuição filosófica e
a dispersão da intuição em conceitos e imagens no sistema filosófico. Não se pode “intuir a
intuição” do filósofo tal e qual, isto é, a intuição original é um tipo de “segredo privativo” do
filósofo; por outro lado, também não se pode obter a intuição filosófica através da análise e
síntese das diferentes partes componentes do sistema, pois embora a pesquisa possa ser ex-
pandida e sofisticada indefinidamente nesse sentido, ela não revela o essencial de uma filo-
sofia. O que Bergson pretende mostrar é que por meio do esforço do novo método é possível
descobrir ou reconstruir uma imagem que salta entre o simples da intuição e o complicado
da obra, e que ao ser atingida rebateria o especialista em sistemas filosóficos, ao menos por
alguns instantes, àquilo que Bergson chamou de:

algo simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca
conseguiu dizê-lo. E é por isso que falou por toda a sua vida. (…) Toda a complexidade de sua
doutrina, que pode ir ao infinito, não é portanto mais que a incomensurabilidade entre sua
intuição simples e os meios de que dispunha para exprimi-la. Qual é essa intuição? Se o filó-
sofo não pôde formulá-la, não seremos nós que o conseguiremos (BERGSON, 2006, p. 125).

A impressão que se tem é que a intuição em Bergson aparece frequentemente em sentido


verbal, como ação ou acontecimento, ora como “ato”, “movimento”, “direção”, “sentido”, “fa-
culdade”, “exercício da faculdade”, e até “método”. Nesse sentido se pode dizer, por exemplo:
“a intuição” ou “o intuir da duração real”. Menos frequentemente aparece em sentido nominal
como se fosse “algo” acontecido, vivenciado ou possuído, principalmente quando a intuição
vem qualificada de estética ou filosófica, nesse sentido é possível dizer, por exemplo, “a in-
tuição filosófica de Espinosa” ou “a intuição filosófica de Berkeley", etc. Nesse segundo sen-
tido, pode-se dizer que existe uma multiplicidade de “intuições filosóficas” singulares. Isso
porque a intuição filosófica ou estética, em Bergson, diz respeito ao contato com realidades
singulares por consciências individuais, e se parecem muito mais com uma “visão pessoal do
mundo” do que com a faculdade de “intuição intelectual” (intellektuelle Anschauung) que
Kant rejeitou radicalmente e que consiste, grosso modo, em uma espécie de capacidade de
conhecimento direto das coisas em si mesmas para além das formas da experiência. No mais
Evaldo Coutinho e Bergson concordam sobre as características fundamentais da “intuição
filosófica” conforme expostas na Conferência: que ela é uma espécie de “verdade pessoal”,
um tipo de “visão de mundo singular”, um pensamento simples e básico, único talvez, que se
complica ou dispersa na multiplicidade dos conceitos, imagens e problemas do sistema, que
ela advém numa espécie rara e privilegiada de “experiência incomum”, que ela não pode ser
comunicada sem as interferências intrínsecas da linguagem, etc.

Entretanto, e esta é a questão do escopo desta comunicação, Bergson parece nunca demarcar
claramente a distinção precisa entre a intuição filosófica e a intuição estética. De modo geral

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e até mesmo abstrato, elas poderiam ser distinguidas de acordo com os “dois movimentos
inversos do espírito”, isto é, diferenciadas “em graus” mas não “em natureza”. Desse modo, a
distinção entre a intuição do artista e a do filósofo se deve a uma diferença de “extensão”, di-
minuta no artista, ampla no filósofo (e talvez mais ampla ainda no caso da mística), mas não
diferença na “direção” ou no “sentido” do esforço consciente. Mas tal distinção ainda parece
um tanto quanto vaga e não chega a esclarecer a questão de se esta diferença de “extensão” ou
de “grau” diz respeito à amplitude do conteúdo ideativo da intuição estética ou filosófica ou
diz respeito aos meios materiais e formais com os quais cada um, filósofo e artista, dispõem
tradicionalmente para comunicar a sua intuição do mundo, ou ainda a ambos os fatores.

6. O desvio
Henri Bergson e Evaldo Coutinho têm a opinião de que a “intuição encontradiça na arte é do
mesmo gênero da que se encontra no sistema filosófico” (COUTINHO, 1998, p. 95). Mas não
há em Bergson o mesmo interesse de Evaldo Coutinho em assimilar completamente a filoso-
fia no âmbito artístico. Então Evaldo Coutinho, como não encontrando uma distinção clara
entre a intuição dos artistas e a intuição dos filósofos em Bergson, distorce o intuicionismo,
recusando-se a enxergar, como seria natural, que a intuição filosófica seja de algum modo
distinta da intuição estética, mesmo em graus, isto é, não acredita que a filosofia conserve
uma autonomia nem mesmo relativa diante da arte, pelo contrário a filosofia se subordina
completamente à arte. Então em O espaço da arquitetura, o filósofo dedica um subcapítulo
inteiro para revisitar a Conferência de Bergson, avançando o seguinte passo:

As considerações desenvolvidas ao longo da conferência [A Intuição Filosófica, de Henri


Bergson], visando à comunicabilidade da intuição, se restringem à produtividade do filósofo,
como se este detivesse, sozinho, tão elevado predicamento; quando, em verdade o poeta, o
escultor, o pintor, o arquiteto se definem pela qualidade de também serem detentores de
intuição (COUTINHO, 1998, p. 95).

E ainda em outro lugar:

É na obra de arte que a intuição se efetiva, que o sentimento das coisas se mostra em bus-
ca de adesões, entendendo-se nesse explícito mister as artes propriamente ditas e mais os
sistemas filosóficos, que também são obras de arte, do mesmo modo que estas são também
filosofias (COUTINHO, 1998, p. 70).

Algumas observações. Por que os filósofos são artistas? Porque fazer filosofia diz respeito a
busca de comunicação da intuição por meio de obras, e é a arte que se define essencialmente
como a atividade em que o “sentimento das coisas se mostra em busca adesões”, de “univer-
sal solidariedade”, e nisso fazer filosofia se assemelha a fazer literatura, escultura, pintura,
arquitetura. Por que os artistas são filósofos? Porque fazer arte, qualquer gênero, supõe que o
autor possua uma “intuição do universo”, um “sentimento das coisas” tão cósmico, tão univer-

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sal, tão ubíquo, tão amplo quanto à intuição do filósofo. Em conclusão, ao que tudo indica,
Evaldo Coutinho suprime as diferenças de grau entre a intuição estética e a intuição filosó-
fica, une a arte e a filosofia. Na união de escopos do conceito de arte e de filosofia, à rigor, é a
filosofia que se torna uma das várias formas ou um dos gêneros autônomos de arte e não vice-
-versa. Acontece que os demais gêneros de arte não poderiam ser compreendidos sob o con-
ceito de filosofia, enquanto criação de um sistema filosófico por um filósofo. O filósofo não é
um pintor, e a tela à óleo não é um sistema filosófico, mas as telas “também são filosofias” na
medida em que são miniaturações de uma intuição do universo tão ubíqua quanto à filosó-
fica. Do outro lado, a filosofia sim pode ser subsumida no conceito de arte, e ser considerada
conjuntamente com a literatura, a pintura, ao cinema, como esforços conscientes, atividades
espirituais, cujo sentido é a comunicação da intuição. Nesse sentido, Evaldo Coutinho diz: “a
intuição do filósofo e a intuição do artista são a mesma intuição (…) pertencendo, dessarte, os
portadores de sentimento cósmico, a uma categoria única, é compreensível que uma comuni-
dade de adjetivações alie todos em um só título” (COUTINHO, 1998, p. 100). No vocabulário
evaldiano a “intuição estética” e a “intuição filosófica” tornam-se sinônimas funcionais, aten-
dendo a diversos nomes no decorrer da obra: intuição cósmica, ideação ubíqua, sentimento
das coisas, pensamento básico, concepção de mundo, intuição do universo, etc., que ele varia
e intercambia “por uma questão de estilo pessoal” (EVALDO, 1993).

7. Comunicação da intuição
Evaldo Coutinho aprofunda a questão bergsoniana da distinção de grau entre a intuição esté-
tica e filosófica. A intuição do filósofo e a intuição do artista são a mesma intuição, “apenas”
com a ressalva de que são “variáveis quanto ao modo de se fazerem discerníveis, à necessi-
dade, que tem cada um, de valer-se do muito ou do pouco (COUTINHO, 1998, p. 100). No
seguinte trecho o filósofo se demora na mesma problemática:

A diferença entre a intuição filosófica e a intuição do artista se prende à forma de expan-


são, à permissibilidade oferecida pela matéria, a qual se versatiliza diversamente segundo se
trata de matéria real ou de matéria representativa. A elasticidade da intuição do filósofo não
se detém ante limites, havendo a admoestação de que, estorvada em virtude de um óbice
qualquer, simplesmente a confecção não atingirá a filosofia, sendo correta a observação de
Schopenhauer: a filosofia ou é idealista ou não é filosofia, entendendo-se por idealidade o
transcurso em que vive a intuição do filósofo. Esta se institui de maneira substancial e não
acidental, residindo nesse ponto o cerne da convencionada divergência entre o sistema filo-
sófico e a obra de arte; os meios de que desfruta o filósofo são a realidade inteira, temporal
e intemporal, que, não podendo esgotar-se analiticamente, deixa subentendida a parte que
não figura escrita no sistema; os meios de que desfruta o elaborador de arte são valores de
representação, parcelas estanques, ocasionais, não podendo concorrer, embora ele produza
em todos os dias, em longa existência, com a abundância da realidade. Dispondo de escas-
sos recursos, o pintor, o escultor verá sempre em sua obra a desproporção entre o que ela
apresenta e o móvel da apresentação, o pouco de sua matéria não consentindo a desejada
amplitude (COUTINHO, 1998, p. 96).

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O problema da comunicação da intuição – que ela não pode ser conhecida em seu original,
que ela deve usar os meios da inteligência e da linguagem para ser comunicada, que o espírito
de simplicidade se complica na letra, etc – está articulado na obra evaldiana em torno do con-
ceito de “acidentalidade” e seu correlativo “substancialidade”. A ideia é que do transcurso da
comunicação, da intuição do autor à recepção do público, acontecem “perdas”, como “chia-
dos”, “interferências”, “ruídos”, tecnicamente, uma acidentalidade, no conteúdo original da
mensagem. A fim de ser comunicada, a intuição precisa ser exteriorizada e como que “inscri-
ta” por sobre uma “matéria da arte”. A matéria da arte é como uma superfície de inscrição da
intuição. É no transcurso do “autor à matéria” e da “matéria ao público” que reside a acidenta-
lidade. Sendo assim, a acidentalidade é dupla: a acidentalidade da criação e a acidentalidade
da fruição estética. Há o que o autor quis dizer, o que ele disse efetivamente, e o que cada um
do público absorveu. A intuição não pode ser simplesmente transladada tal e qual do espí-
rito do artista para a matéria da arte. É preciso um trabalho de conversão da intuição para a
linguagem específica de cada arte de acordo com suas exigências respectivas e intrínsecas, de
acordo com o “campo formal” de cada matéria. Neste esforço de expressão, consiste a “criati-
vidade artística” ou “filosófica” (sinônimas funcionais no vocabulário evaldiano), e a carrei-
ra artística (e também a filosófica) representa os sucessivos esforços do artista (ou filósofo)
“vencer” a acidentalidade. Acontece que os demais artistas, devido a “escassez” intrínseca de
suas matérias nunca poderão vencer a acidentalidade da comunicação como os filósofos.

Um exemplo: a intuição de mundo de um pintor deve ser externada por via da cor e das for-
malidades intrínsecas que decorrem da natureza íntima da cor e sua manipulação, isto é, os
valores cromáticos ou o campo formal da matéria da cor; e então, a presença da intuição na
obra estará delimitada aos temas e subtemas admissíveis ou não pela linguagem específica da
matéria colorida. Sabe-se que nem tudo pode ser comunicado cromaticamente. E inclusive
é possível conceber que existam temas intrinsecamente anfigúricos ou irrepresentáveis por
meio da cor. Mas no caso da filosofia a “matéria da arte” do filósofo é o Ser em sua totalida-
de não havendo para a expressão da intuição temas ou elementos passíveis de “recusa”. Por
exemplo: “quando logo nas páginas de abertura [de O mundo como vontade e representação],
ele [Schopenhauer] insiste na presença da vontade em todos os domínios do ser, sua intui-
ção se patenteia como autêntica ideação ubíqua” (COUTINHO, 1998, p. 109). Não se dirá que
uma tela à óleo de uma paisagem determinada esteja mais apta à comunicar com a mesma
precisão e substancialidade um sentimento cósmico do que um conjunto de conceitos e ima-
gens verbais articulados em forma de sistema, que tem a pretensão ou privilégio de abstração
e universalização de aplicação que obras de arte que lidam com parcelas do ser não têm.

Em entrevista, respondendo à pergunta: “Qual é arte filosófica?”, Evaldo Coutinho (2001, p.


40) responde:

É uma harmonia superior, uma ideação ubíqua, como eu chamo na obra. O princípio bá-
sico é que ela está presente em tudo. E um dos caracteres da Filosofia é a universalidade
de aplicação. Um termo é filosófico quando ele tem aplicação universal. A minha ideação
tem aplicação universal. A circunstância da morte absoluta, uma funeralidade total, é um
princípio filosófico.

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A ideação, o conteúdo ideativo singular envolvido na intuição artística ou filosófica, é “ubíqua”,


pois representa o modo pelo qual o autor perspectiva tudo quanto existe, é “o sentimento com
que o artista se vê a si próprio e ao mais do universo, oferecendo deste uma acepção que lhe é
pessoal” (COUTINHO, 1996, p. 28). O problema é que, se nos demais gêneros de arte, a idea-
ção é ubíqua, a matéria com que contam os artistas é estanque e no mais das vezes meramente
representativa. O mesmo não ocorre com a filosofia, porque ambas a ideação e a matéria são
ubíquas. Além de contar com uma “ideação ubíqua”, que se aplica a tudo, possui como matéria
específica o Ser enquanto tal e em totalidade, e deste modo não devem haver elementos da
realidade que recusem-se da infiltração de uma intuição filosófica, assim como, por exemplo,
a cromaticidade pode recusar-se ou dificultar ao extremo a infiltração de uma intuição eventu-
almente irrepresentável em cores. A intuição do artista ainda que seja de dimensão tão cósmi-
ca ou universal quanto a do filósofo, no sentido de abarcar a imensidão por meio de um pen-
samento simples, deve necessariamente ser comunicada por meio de matérias particulares,
e esta seria a base da “convencionada” diferença entre intuição artística e intuição filosófica,
“apenas quanto ao modo de se fazerem discerníveis”, “acidentalmente na tela, no espaço ar-
quitetônico, no volume, ou substancialmente no sistema filosófico” (COUTINHO, 1998, p. 15).

8. Considerações finais
Da conceituação da “filosofia como arte” decorrem importantes problemas e temas para a te-
oria estética evaldiana, mas que não caberiam no escopo da comunicação, dentre os quais se
destacam: a exploração das categorias de “arte ideal” e “arte empírica”, que envolve a distinção
precisa entre a filosofia e a literatura, as categorias de “arte de realidade” e “arte de representa-
ção”, e a distinção precisa entre a arquitetura, filosofia e mística, a lei de autonomia do gênero,
que levanta a questão de se o Ser enquanto tal pode consistir em “matéria da arte” e em que
sentido a lei da exclusividade da matéria se aplica à filosofia; a lei de autonomia da obra e a
questão da lógica interna do sistema filosófico; a questão da crítica e da historiografia filosó-
fica solidária com a artística, o problema do cancelamento das intuições e da indulgência com
que devem ser recepcionadas, entre inúmeros outros temas possíveis de serem trabalhados
na exploração do conceito evaldiano de filosofia. Talvez seja lícito, pelo menos, deixar suge-
rido, à guisa de conclusão desta breve comunicação, que entremostra-se um bergsonismo no
fundo do pensamento evaldiano e que esta base foi a condição de possibilidade da construção
do conceito de “filosofia como arte” por meio de um desvio.

Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. Evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

________. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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COUTINHO, Evaldo. A imagem autônoma: ensaio de teoria do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1996.

________. Da concepção estética e da intransferível visão poética do mundo. Diário de Pernambuco, Re-
cife, 8 abr. 1973. Jornal de Ladjane, p. 1. Introdução e entrevista: Octávio de Faria.

________. A artisticidade do ser. São Paulo: Perspectiva, 1987.

________. O ano da criação. Revista Continente Multicultural, Recife, ano 1, n. 3, p. 33-42, mar. 2001. Edi-
ção especial "Evaldo 90 Anos". Entrevistador: Alexandre Bandeira.

________. O espaço da arquitetura. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

________. O vazio interior define a arquitetura. Diário Oficial de Pernambuco, Recife, dez. 1991. Suple-
mento Cultural, p. 22-23. Entrevistador: Anco Márcio Tenório.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999.

________. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.

EVALDO Coutinho: um filósofo da arte e da existência. Direção: Genésio Linhares. Produção: Departa-
mento de Filosofia da UFPE. Depoentes: Ângelo Monteiro, Daniel Lima, Evaldo Coutinho. Recife: 1993. 1
VHS (115 min), son., color.

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“Eu, comigo e Deus”: uma autoanálise inquietante

Patricia Gonçalves Tenório1


Letras/PUC-RS

A partir de um conto de minha autoria extraído de Vinte e um/Veintiuno


(2016), tentarei realizar uma autoanálise utilizando o conceito de inquie-
tante, aplicado pelo pai da psicanálise Sigmund Freud em “O homem
de areia”, de E. T. A. Hoffman, e o conceito de encarnação, aplicado pelo
filósofo francês Georges Didi-Huberman em “A obra-prima desconheci-
da”, de Honoré de Balzac.

Palavras-chave: Inquietante, Encarnação, Filosofia & Literatura.

Porto Alegre, 04 de Maio de 2017.

Eu, comigo e Deus


Ficava em 20, Maresfield Gardens, num subúrbio de Londres. Vindo de metrô, descia na es-
tação de Hampstead Northern, atravessava a rua e subia uma ladeira. Me perdi duas vezes até
encontrar a placa da casa-museu, uma casa de dois andares, tipicamente inglesa. A rua estava
calma, com as folhas das árvores levitando pelo chão.

Ao entrar, encontrei uma senhora, bem velhinha, que vendia os bilhetes e souvenirs. Ela me
disse que não podia fotografar, mas me chamou a um canto da loja e perguntou:

– Quer ver onde Freud encontrou Deus?

1.  Patricia Gonçalves Tenório escreve prosa e poesia desde 2004. Tem onze livros publicados e defendeu em 17
de setembro de 2015 a dissertação de mestrado em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernam-
buco, linha de pesquisa Intersemiose, “O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: um romance indicial, agostiniano
e prefigural”, sob a orientação da Prof. Dra. Maria do Carmo de Siqueira Nino. Acaba de ingressar (2017.1) no
Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) no
Doutorado em Escrita Criativa, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. Contatos: patriciate-
norio@uol.com.br e www.patriciatenorio.com.br

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Parei um instante com a pergunta. Poderia ficar séculos remoendo em minha mente uma
resposta digna de meus estudos, digna da lucidez, digna de...

– Não acredito em Deus.

Ela me olhou de mansinho. Passou a mão enrugada no meu rosto jovem. Puxou-me pelo braço.

– Venha mesmo assim.

Eu não sabia se ia ou corria embora. Mas resolvi arriscar, e resolvi caminhar pelo peque-
no jardim, e me sentei em uma das espreguiçadeiras, onde um dia sentou Freud com o
suposto visitante.

– Foi aqui.

Ela me deixou a sós. A sós com meus pensamentos. A sós com a possibilidade de ser Freud
algum dia, um dia de verão londrino, sentando numa espreguiçadeira, com uma jarra de li-
monada rósea na mesa ao lado.

– Deus está aqui.

Freud se engasgou com o gelo da limonada rósea quando a moça (que será uma velhinha)
trouxe um senhor de barba branca, comprida, para sentar na outra espreguiçadeira.

Ficaram os dois fazendo ninho em suas barbas brancas. “Então, assim que era Deus?”, pensou
Freud, ele e os seus pensamentos que não paravam de pensar.

– Sim, sou mesmo assim. Ou de outra forma qualquer. Mas quis te aparecer como ao povo
judeu, judeu que tu és.

– ... produto da minha imaginação...

– Herança da tua fé.

Freud serviu-se de mais limonada. Serviu também a Deus.

– Aceita?

– Obrigado.

– Mas, ao que devo a visita?

– Tu deves saber.

– Não sei.

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– Adivinha.

– Não sou bom com jogos.

– Mas desvendas estórias.

A limonada estava doce demais. Freud serviu-se de algumas pedras de gelo.

– Algum de seus filhos.

– O maior de todos.

– O Cristo?

– Exatamente. Há séculos me atormenta um fato. Por isso vim aqui falar contigo.

– Sou todo ouvidos.

– O Horto das Oliveiras.

– O Horto das Oliveiras... Da grande angústia... O suor de sangue...

– Teria ele vacilado? Será que ali meu filho, meu grande filho, o maior de todos, me traiu?

– Por que me pergunta isso? Pelo que dizem, você sabe de tudo...

– Mas eu quero saber o que tu pensas.

– Você sabe o que eu penso...

– Quero ouvir-te falar.

Freud se levantou da espreguiçadeira. Eram duas cadeiras espreguiçadeiras pintadas de bran-


co. Antes, porém, eram na madeira, sem pintura, com apenas uma camada de verniz.

– Se eu acreditasse em você – disse Freud caminhando pelo jardim, em um típico dia de verão
londrino –, eu diria que seu filho não o traiu. Aliás, nunca ele foi mais fiel do que naquele
momento em que, suando sangue, antecipando tudo o que iria sofrer num futuro próximo,
bem próximo, pediu “Pai, afasta de mim este cálice de amargura”, para, logo em seguida, vol-
tar atrás e dizer “Que seja feita a tua vontade, e não a minha”.

– Mas tu não acreditas em mim.

Freud tirou do bolso uma pequena caixa de charutos.

– Aceita?

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– Não, obrigado.

Acendeu o charuto, deu uns cinco passos e voltou a sentar na espreguiçadeira.

– Eu diria que ele não o traiu. As circunstâncias eram propícias para que desistisse: ele sabia
que os amigos o abandonariam, que seria torturado e morto, o que tinha a seu favor? Até hoje
me pergunto: “O que tinha a seu favor?” Um louco alemão que extermina judeus feito ele?
Que por isso precisou fugir para a Inglaterra? Um câncer na boca que o impediria de falar?
Um futuro mais que incerto, com dissidências entre os seus seguidores, julgamentos cretinos
dos seus estudiosos? Não, não, ele não o traiu. Ele permaneceu coeso, coerente, com toda a
sua humanidade, continuou escrevendo e fumando o seu charuto, e vivendo o restante da
vida que ainda possuía.

A conversa estava fluindo bem quando a moça (que um dia será uma velhinha) interrompeu.

– Tem um rapaz, barbudo, cabelos longos, querendo falar com os senhores.

– Arrá! Agora vai ficar interessante, “Deus”! – Freud fez o gesto de aspas.

Deus deu de ombros.

– Pode mandar o rapaz entrar, Fräulein, e traga mais uma cadeira para ele.

O jovem, barbudo, cabelos longos, atravessando o jardim lentamente, conversando com a


moça, que seria velha um dia, explicando a diferença entre as margaridas e os girassóis, acom-
panhando o voo das borboletas.

Ao se aproximar de Deus e Freud, o jovem parou. Cumprimentou Deus com a cabeça. Olhou
diretamente para Freud e falou:

– Prazer, sou o Cristo.

– Prazer, Sigmund Freud.

A espreguiçadeira devidamente arranjada, a limonada rósea servida.

– Bonita casa, Sigmund.

– Obrigado, Cristo, gentileza sua.

De repente, Freud começou a rir. Ria balançando os óculos, balançando o charuto, fazendo as
cinzas caírem na grama bem aparada do jardim de verão londrino.

– Só falta agora o Espírito Santo!

– Mas ele já está aqui, Sigmund. Lembre-se, “Onde dois ou mais estiverem reunidos...”.

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– E sua santa Mãe?

– Freud...

– Desculpe, Deus, mas não pude resistir... É tão hilário, tão absurdo! Ter vocês aqui! Os dois.
Quer dizer, os três.

– Não acredita, não é, Sigmund? Quer ver minhas chagas, feito Tomé?

– Acredito no poder da mente, oh, Cristo. Acredito no poder da minha imaginação, que viaja
quase dois mil anos para conversar com você e com seu pai, graças ao “Espírito Santo” – Freud
com as aspas nos dedos.

Ficaram os três se entreolhando: Freud, Deus e Cristo. O Espírito Santo deveria estar prote-
gendo o lugar, pois ninguém mais chegou e interrompeu o colóquio divino-humano.

– Mas como você ia dizendo, Deus...

– Não, eras tu quem transcorria sobre a não traição do meu filho, o maior de todos.

– Obrigado, Pai.

– Mas por que me pergunta, se ele está aqui? Ele próprio pode responder.

– Mas ele já respondeu com a própria vida. Basta.

– Sigmund, queremos saber o que você pensa.

– Mas vocês o sabem!

– Será?

– E não seria? Se vocês forem quem dizem que são e fazem o que dizem que fazem, decerto
possuem a minha resposta. A propósito, como conseguiram chegar aqui e entrar com tanta
facilidade? Fräulein é muito desconfiada com visitas... Entendam, o meu caso é muito deli-
cado. Estou numa posição em que todos querem saber o que penso: o que penso de Hitler,
dos campos de concentração, da mente humana, dos sonhos, de jovens escritores que um
dia virão aqui visitar esta mesma casa, atravessar o mesmo jardim, e (talvez) quem sabe
sentar nesta cadeira com seu bloco de anotações, caneta em punho e fazer surgir palavras
– desconexas, a princípio –, mas que em seguida irão se conectando, e congruindo, e se
mostrando lúcidas e coerentes. Acredito nessas palavras, nessas, eu acredito. Acredito por-
que foram ruminadas, e ficaram rondando e rodando a cabeça jovem sem dar explicações,
simplesmente existindo. Até que o toque de uma pessoa amada, o sorriso de uma criança,
ou apenas um dia de verão londrino, entre margaridas e girassóis, as borboletas em seu voo

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solitário, até que um desses elementos extraordinários da vida trouxesse à tona o sentido
dessas palavras. O sentido que as aproximou do seu centro, e nada mais importava para
quem escrevia, porque ao centro chegou.

A senhora bem velhinha tocou no meu ombro.

– Faltam dez minutos para o museu fechar.

Fiquei assim, sem palavras, meu corpo, sem movimento, porque estive eu, comigo e Deus
durante a tarde inteira e não senti a tarde passar. Como se o passado, o presente e o futuro
houvessem se fundido em um tempo só, e como se os personagens tivessem preenchido meu
corpo, ao mesmo tempo.

Então, tempo e espaço me coabitaram. Ou melhor, tempos e personagens. Porque fui Deus,
Freud e Cristo, fui o Espírito Santo entre eles.

Minhas mãos tremiam, e muito me custou juntar o bloco de anotações, a caneta, a mochila.
As pernas também estavam bambas, e foi com dificuldade que me levantei e me apoiei na
senhora bem velhinha para atravessar o jardim, a loja de souvenirs, a casa-museu de dois an-
dares e chegar até a porta do 20, Maresfield Gardens.

A velhinha me acenou em despedida. Parecia mais jovem do que eu, eu que havia envelhecido
séculos em uma tarde.

Ao me lembrar disso tudo, hoje, eu, com meus filhos e netos, sinto como se o tempo não hou-
vesse passado, ou como se houvesse passado tão rápido que estivesse próxima a hora do re-
encontro com os personagens, no mesmo jardim inglês, naquelas espreguiçadeiras brancas.

– Vejam, ainda guardo comigo a ponta do charuto de Freud!

O inquietante
No volume XIV das Obras completas, o médico neurologista judeu, nascido em Freiberg in
Mähren – pertencente na época ao Império Austríaco –, Sigsmund Schlomo Freud (1856-
1939), mais conhecido como Sigmund Freud, o pai da psicanálise, escreve sobre o inquietante.

É raro o psicanalista sentir-se inclinado a investigações estéticas, mesmo quando a estética


não é limitada à teoria do belo, mas definida como teoria das qualidades de nosso sentir.
Ele trabalha em outras camadas da vida psíquica, e pouco lida com as emoções atenuadas,
inibidas quanto à meta, dependentes de muitos fatores concomitantes, que geralmente cons-
tituem o material da estética. Pode ocorrer, no entanto, que ele venha a interessar-se por
um âmbito particular da estética, e então este será, provavelmente, um âmbito marginal,
negligenciado pela literatura (FREUD, 2010, p. 329).

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Sabemos do interesse de Freud pela literatura, a literatura como uma das expressões maiores
da alma humana, e matéria-prima para as análises da nova ciência que ajuda a fundar. En-
contramos, por exemplo, no volume XIV de A história do movimento psicanalítico, o estudo
“Os arruinados pelo êxito” (1916), no qual o pai da psicanálise analisa casos de pessoas que
adoecem (a histeria) pelo êxito, e não pelo fracasso, como seria de se esperar. Para isso, aplica
seus conceitos na literatura – os textos dramáticos “Macbeth”, do poeta, dramaturgo e ator
inglês, nascido em Stratford-upon-Avon, William Shakespeare (1564-1616), e “Rosmersholm”,
do poeta e dramaturgo norueguês, nascido em Skien, Henrik Ibsen (1828-1906).

O trabalho analítico não encontra dificuldade alguma em demonstrar que são as forças
da consciência que proíbem ao indivíduo obter a tão almejada vantagem proveniente da
feliz mudança da realidade. Constitui tarefa difícil, contudo, descobrir a essência e a origem
dessas tendências julgadoras e punitivas, cuja existência, onde não esperamos encontrá-las,
tantas vezes nos surpreende. Pelas razões habituais não examinarei o que sabemos ou con-
jecturamos em relação a casos de observação clínica, mas em relação a figuras que grandes
autores criaram a partir de seu rico conhecimento da mente (FREUD, 1974, p. 359).

A partir da narração dos dois textos ficcionais, Freud irá analisar o comportamento das res-
pectivas personagens centrais: Lady Macbeth e Rebecca Gamvik. Durante a análise dos tex-
tos, irá expor e nos questionar do porquê de Lady Macbeth, apesar de vitoriosa, ter consegui-
do assassinar quem lhe impediria de tornar-se rainha, inicia uma sequência de episódios de
sonambulismo e repetições compulsivas – vide a cena da interminável lavagem das mãos para
tentar limpar o sangue das vítimas. Da mesma forma, Rebecca Gamvik quando está prestes a
tornar-se a esposa de seu patrão Johannes Rosmer, é tomada por uma impotência paralisante,
que não tem a ver com a culpa por induzir o suicídio da esposa doente de Rosmer, mas por
causa de um segredo de seu passado que não consegue identificar e decifrar, e que a lança no
“caminhar cegamente” ao encontro de seu destino. Quando o irmão da esposa de Rosmer, o
Prior Kroll, revela que Rebecca era filha de Dr. West que a adotou e com quem, sem saber que
era filha, manteve relações sexuais, o véu da cegueira se desfaz, e Rebecca entende porque
não pôde ser feliz no êxito com Rosmer: ela simplesmente estaria repetindo conscientemente
o que viveu inconscientemente com seu pai.

Em “O inquietante”, Freud irá aplicar o conceito título do estudo em um conto do escritor ale-
mão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822), mais conhecido por E. T. A. Hoffmann,
“O homem de areia” (1816). “Se agora passamos a examinar as pessoas e coisas, impressões,
eventos e situações que chegam a despertar em nós, com particular força e nitidez, a sensação
do inquietante, o primeiro requisito é escolher um bom exemplo inicial” (FREUD, 2010, p.
340).

Mas ainda não.

Antes, Freud investiga incansavelmente a origem do termo unheimlich em diversas línguas


(entre outros, latim – suspectus, inglês – uncanny, francês – inquiétant, espanhol – sinies-
tro, português – demoníaco). Interessante observar que, na versão brasileira da Standard

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Edition, o termo é traduzido como “O estranho”, o que talvez não gere o movimento que “O
inquietante” parece fornecer. Unheimlich é o contraponto de heimlich, que significa familiar,
conhecido, e o pai da psicanálise deduz que o termo transita de um ponto a outro, sem neces-
sariamente negar-se, mas como se pudesse ocupar dois lugares ao mesmo tempo – guarde-
mos esta dedução freudiana.

Em “O homem de areia”, Hoffmann narra a história de Natanael, rapaz muito sensível que
na infância era assombrado pela história da chegada misteriosa todos os dias à noite do ad-
vogado do pai, Sr. Coppelius, chegada que coincide com a narração da história do homem de
areia pela babá, homem de areia que seria uma figura monstruosa que arranca os olhos das
crianças que não querem ir dormir para levar esses mesmos olhos para seus filhotes de abu-
tres, ou corujas. Acontece um terrível e fatal acidente com o pai de Natanael, e este desconfia
de Coppelius, que desaparece logo em seguida.

A história se repete quando Natanael já é um homem feito, noivo de Clara, mas que se apaixo-
na pela filha do professor Spalanzani, o qual se relaciona com um vendedor de óculos chama-
do Coppola. A filha do professor chama-se Olímpia, e na realidade é uma boneca de madeira,
um autômato.

Esse trânsito do termo unhemlich que nos referimos acima e solicitamos que “guarde-
mos esta dedução freudiana” é a chave para compreendermos tanto o conto de Hof-
fmann, quanto para ser utilizado juntamente com outro conceito de um filósofo francês
na autoanálise do meu conto.

Mas ainda não.

A dúvida é o elemento que Freud identifica como disparador da angústia do personagem


Natanael no conto de Hoffmann. Enquanto não “sabe a verdade” – e a verdade (às vezes) nos
libertará (outras vezes nos enlouquecerá) –, Natanael vive a fantasia da paixão obstinada
por Olímpia, uma paixão cega como se lhe tivessem sido arrancados os olhos. Freud nos faz
atentar para o complexo de castração do jovem, complexo que não se refere somente à perda
do órgão genital masculino, mas também aos olhos, feito Édipo os arranca no momento da
descoberta de que realizou o seu destino – assassinou o pai e casou-se com a mãe.

Podemos aproximar essas duas análises aplicadas na literatura por Freud, “O inquietante” e
“Os arruinados pelo êxito”, quando compreendemos que, no primeiro caso, Natanael paralisa
no encontro dessa verdade, quando antes estava “em trânsito”, na dúvida, nem lá nem cá, ocu-
pando dois lugares ao mesmo tempo, inclusive o feminino e o masculino. No segundo caso, a
paralisia também acontece com o encontro com a verdade, verdade que vem à tona com Lady
Macbeth – os “assassinados” vêm lhe cobrar a vida –, com Rebecca, a descoberta do incesto
revela o que a inquietava desde sempre, mas que não encontrava palavras para explicar.

Consideramos o inquietante como esse vir à tona do inconsciente que o “Conhece-te a


ti mesmo” proferido pelo Oráculo de Delfos à Édipo e realizado incansavelmente nas

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sessões de terapia e análise revela a quem possa interessar. Guardemos mais esta dedu-
ção – desta vez minha e de Freud –, para a parte final do presente estudo, quando iremos
aplicar em um conto meu.

A encarnação
Em 1985, o filósofo, historiador, crítico de arte e professor da École des Hautes Études en
Sciences Sociales em Paris, Georges Didi-Huberman (1943), realiza um estudo sobre o conto
do escritor francês, nascido em Tours, Honoré de Balzac (1799-1850), “A obra-prima desco-
nhecida” (1837). Didi-Huberman realiza na filosofia o que o poeta inglês romântico, nascido
em Londres, John Keats (1795-1821), afirma em carta a Woodhouse (em 1818) sobre a poesia: a
construção de uma carcaça.

Quanto à personalidade poética em si (quero dizer essa espécie à qual pertenço, se sou
alguma coisa; essa espécie diversa do sublime wordworthiano ou egotístico...), ela não é
ela própria – ela não tem eu – é tudo e é nada – não tem personalidade – aprecia a luz e a
sombra – vive no prazer, seja ela má ou boa, alta ou baixa, rica ou pobre, vil ou nobre – tem
deleite igual ao conceber um Iago ou uma Imogênia. O que choca o filósofo virtuoso deleita
o poeta camaleão. [...] O poeta é o mais impoético de tudo o que existe, porque não tem
identidade, continuamente adentra e enche outro corpo. O sol, a lua, o mar e os homens e
mulheres, que são criaturas de impulso, são poéticos e têm um atributo imutável; o poeta
não tem nenhum, nenhuma identidade. É certamente a mais impoética de todas as criaturas
de Deus (KEATS, 2010, p. 35-36).

Didi-Huberman prepara um “outro corpo” – uma carcaça – que passeia por diversas áreas de
conhecimento, não somente a filosofia, mas a psicanálise, a semiótica, a hermenêutica...

A pintura pensa. [...] Sabedoria e ciência sempre se infectaram e se perverteram, entrança-


ram-se; constituem-se, em suma, com o sentido. Ora, o próprio sentido é um entrelaçamen-
to, uma perversidade. Ao menos três paradigmas aí produzem nós e jogos: os paradigmas
do semiótico (o sentido-sema), do estético (o sentido-aisthesis) e do patético (o sentido-
-pathos). Acontece que Leonardo da Vinci, em suas Profezie, deu à palavra sentimento toda a
extensão e a perversidade dessa rede. [...] – Eis o que ele escreve: Quanto piu si parlerà colle
pelli, veste del sentimento, tanto piu s’acquisterá sapientia. Quanto mais se falar com as peles,
vestiduras do sentido, mais se adquirirá sapiência. Trata-se das peles quando se conjugam,
diz ele, escrituras, le scritture, e sentido do tato, il senso del tatto (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.
19-20, itálico da tradução).

... E então começa a analisar o conto de Balzac.

“A obra-prima desconhecida” narra a estória de Nicolas Poussin, um jovem pintor que, re-
cém-chegado à cidade de Paris, procura um mentor em François Porbus – o (ex) pintor de
Henri IV –, e encontra um rabugento/velho amigo do mesmo: o Mestre Frenhofer. Mestre
para Porbus que o enxerga “por inteiro”, enquanto Poussin, na sua imaturidade e rompante de

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gente jovem, o enxerga “em partes”, um fracassado. Mas aos poucos essa (primeira) impres-
são do jovem se modifica a tal ponto de dar tudo, até mesmo a sua (mais que) amada Gillete
para posar nua e com isso poder (entre)ver “A obra-prima desconhecida” do velho Frenhofer.
Gillete “encarna” a modelo ideal e posa para que seja “acabada” a “obra inacabada” do Mestre
Frenhofer, pintura havia muitos anos iniciada, mas nunca satisfazendo a perfeição desejada
pelo velho pintor, apenas por “um pezinho delicioso” que se pode enxergar. Então descobre-
-se que foi construída uma “muralha de pintura” por sobre a imagem “desencarnada”.

Perfazer a pintura, fazê-la ir até o fim. Isto pôde significar antes de tudo algo como sua im-
plicação no ideal: pintura adequada à sua ideia, a seu projeto, a seu dispositivo, mesmo a seu
algoritmo. Seria ali uma perfeição, digamos, platônica ou, diversamente, pitagórica. Houve
outra, não menos mítica, desta feita ovidiana, pode-se dizer, e que supunha a perfeição da pin-
tura como o acontecimento de sua metamorfose: como se ela fosse requisitada a se tornar
o que representava, a se per-fazer em corpo (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 105).

Para realizarmos uma autoanálise do meu conto “Eu, comigo e Deus”, podemos aproximar:

1) O “se per-fazer em corpo”, o “preenchimento da carcaça”, a “encarnação” encontrada


por Didi-Huberman no conto de Balzac “A obra-prima desconhecida” aos conceitos que
intuímos dos dois textos de Freud:
2) Ao “trânsito” entre o familiar e o não-familiar do termo unheimlich, feito se ocupasse
“dois lugares” ao mesmo tempo no conto de Hoffmann;
3) Com a paralisia no encontro com “a verdade”, com o inconsciente de Lady Macbeth e
Rebecca, em Shakespeare e Ibsen.

Mas agora sim.

A autoanálise
Penso que uma das maiores dificuldades de quem escreve é se afastar o suficiente da reali-
dade, da vida, para conseguir transformá-las em ficção. E a segunda maior dificuldade: ser
sujeito e objeto da sua própria escrita.

Quando me propus autoanalisar “Eu, comigo e Deus” senti a paralisia se enraizando em meus
ossos, congelando o sangue, fazendo os olhos estremecerem nas órbitas.

A teoria é ferramenta poderosa que pode alavancar a poesia, a crítica engrandecer a ficção.
Pode. Porque também pode engessar. Mas considerando que essa é a função essencial da es-
crita criativa em ambiente acadêmico, ou seja, fornecer um manancial teórico para se poder
dar o salto no fazer poético, arriscarei uma autoanálise inquietante.

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“Eu, comigo e Deus” faz parte de um conjunto de vinte e um contos intititulado Vinte e um/
Veintiuno. A história da feitura deste livro daria, por si só, um conto “estranho”, ou “inquie-
tante”: o convite através de e-mail no início de 2015 para lançar um livro por uma editora
espanhola, editora que somente conheci pessoalmente quando no lançamento em abril de
2016, em Madri.

O conto narra a história de um(a) personagem que visita o Museu de Freud na Maresfield
Gardens, número 22. O artifício de não revelar o gênero do(a) personagem através da não uti-
lização de artigos (o jovem, a jovem), pronomes (da/do jovem, dele, dela), concordância no-
minal (“quem escreve” ao invés de escritor(a)), considero que esse artifício está relacionado
ao trânsito entre os dois significados opostos do termo utilizado no estudo de 1919 de Freud,
ou seja, unheimlich, entre o familiar e o desconhecido. Vejamos:

“Ela me olhou de mansinho. Passou a mão enrugada no meu rosto jovem. Puxou-me pelo
braço” (p. 02).

“Ela me deixou a sós. A sós com meus pensamentos. A sós com a possibilidade de ser Freud
algum dia, um dia de verão londrino, sentando numa espreguiçadeira, com uma jarra de li-
monada rósea na mesa ao lado” (p. 02).

“[...] de jovens escritores que um dia virão aqui visitar esta mesma casa, atravessar o mesmo
jardim, e (talvez) quem sabe sentar nesta cadeira com seu bloco de anotações, caneta em pu-
nho e fazer surgir palavras – desconexas, a princípio –, mas que em seguida irão se conectan-
do, e congruindo, e se mostrando lúcidas e coerentes. [...] O sentido que as aproximou do seu
centro, e nada mais importava para quem escrevia, porque ao centro chegou” (p. 06).

Outro ponto interessante nesse “trânsito” do unheimlich: “Teria ele vacilado?” (p. 03). A per-
gunta do Deus-Pai da Trindade à Freud parece ser o tema do conto. A dúvida. O trânsito. O
ocupar dois lugares ao mesmo tempo e que abre espaço à encarnação.

O(A) jovem chega ao Museu de Freud e é convidado(a) a conhecer o lugar onde Freud encon-
trou Deus. “Quem escreve” não acredita em Deus, mas mesmo assim, “na dúvida”, atravessa o
jardim de verão londrino e senta-se na espreguiçadeira, na “possibilidade de ser Freud algum
dia”. E a “carcaça” é preenchida. A “encarnação” se realiza.

A “carcaça” pode ser preenchida pelo próprio Freud...

“– Eu diria que ele não o traiu. As circunstâncias eram propícias para que desistisse: ele sabia
que os amigos o abandonariam, que seria torturado e morto, o que tinha a seu favor? Até
hoje me pergunto: “O que tinha a seu favor?” Um louco alemão que extermina judeus feito
ele? Que por isso precisou fugir para a Inglaterra? Um câncer na boca que o impediria de
falar? Um futuro mais que incerto, com dissidências entre os seus seguidores, julgamentos
cretinos dos seus estudiosos? Não, não, ele não o traiu. Ele permaneceu coeso, coerente,
com toda a sua humanidade, continuou escrevendo e fumando o seu charuto, e vivendo o
restante da vida que ainda possuía” (p. 04).

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Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

...que por sua vez já havia preenchido “quem escreve”.

“Fiquei assim, sem palavras, meu corpo, sem movimento, porque estive eu, comigo e Deus
durante a tarde inteira e não senti a tarde passar. Como se o passado, o presente e o futuro
houvessem se fundido em um tempo só, e como se os personagens tivessem preenchido
meu corpo, ao mesmo tempo” (p. 06).

Além da paralização encontrada por Freud em “O inquietante” e “Os arruinados pelo êxito”
em Natanael, Lady Macbeth e Rebecca na descoberta da “verdade”, além do “se per-fazer
em corpo”, o “preenchimento da carcaça”, a “encarnação” encontrada por Didi-Huberman no
conto de Balzac, descubro em “Eu, comigo e Deus” a mesma estrutura utilizada pelo filólogo
judeu alemão Erich Auerbach (1892-1957) em Mimesis: a representação da realidade na lite-
ratura ocidental (1946).

Exilado pela perseguição nazista durante a Segunda Grande Guerra Mundial, Auerbach es-
creve em Istambul, Turquia, a sua bíblia. Escreve sem dispor de variedade de bibliografia,
confiando em sua memória prodigiosa. Ao se apropriar do conceito de “figura” dos Primeiros
Padres da Igreja Católica, entre eles, São Paulo, conceito que consiste de, para angariar mais
fiéis entre os judeus, pagãos, gentios, os Primeiros Padres tentaram ligar figuras do Antigo
Testamento, tais como, Elias, Moisés, Davi, Josué, com a “Figura” do Cristo no Novo Testa-
mento, aqueles prefigurando a vinda do Messias, Messias que será o preenchimento perfeito
do que fora anunciado pelos profetas, Auerbach aplica o conceito de “figura” ao tentar ligar
textos de Homero, passando por Rabelais, Balzac,... até chegar a Virgínia Woolf com a narra-
tiva e/ou o romance moderno.

A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas,
em que o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o
segundo abrange ou preenche o primeiro. Os dois polos da figura estão separados no tem-
po, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da
corrente da vida histórica. Só a compreensão das duas pessoas ou acontecimentos é um ato
espiritual, mas este ato espiritual lida com acontecimentos concretos, sejam estes passados,
presentes ou futuros, e não com conceitos ou abstrações; estes últimos são secundários, já
que promessa e preenchimento são acontecimentos históricos reais que ou já aconteceram
na encarnação do Verbo, ou ainda acontecerão na segunda vinda (AUERBACH, 1997, p. 46).

A dúvida permanece. A encarnação se realizou. O homem de areia em Coppelius, em Coppo-


la. A verdade vindo à tona em Lady Macbeth, em Rebecca, ultrapassando a “muralha de pin-
tura” do Mestre Frenhofer, se revelando em “quem escreve” esta análise marginal – à margem
de si e ao mesmo tempo ao “centro” –, esta autoanálise inquietante que em mim atravessou,
que em mim se transfigurou, o conhecimento “em parte” do que veremos “face-a-face” segun-
do a I Carta de São Paulo aos Cotíntios (13, 1-12).

“Ao me lembrar disso tudo, hoje, eu, com meus filhos e netos, sinto como se o tempo
não houvesse passado, ou como se houvesse passado tão rápido que estivesse próxima
a hora do reencontro com os personagens, no mesmo jardim inglês, naquelas espregui-
çadeiras brancas” (p. 07).

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Referências bibliográficas
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários
tradutores. São Paulo: Perspectiva, (1946 in) 2011.

________. Figura. Tradução: Duda Machado. Revisão da tradução: José Marcos Macedo e Sa-
muel Titan Jr. São Paulo: Ática, (1938 in) 1997.

BÍBLIA SAGRADA. 142. ed. Edição Claretiana. São Paulo: Ave-Maria, 2001.

FREUD, Sigmund. “O inquietante”. In: Obras completas, vol. XIV, São Paulo: Cia das Letras,
(1919 in) 2010, p. 328-373, [FREUD, S. “Das UNHEIMLICHE”, in: FREUD, S. Der Moses des
Michelangelo, Frankfurt a. M.: Fischer, (1919 in) 1992(1996), p. 135-172].

FREUD, Sigmund. “Os arruinados pelo êxito”. In: A história do movimento psicanalítico.
Volume XIV. Comentários e notas: James Strachey. Tradução sob Direção-Geral e Revisão
Técnica: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, (1916 in) 1974, p. 357-374.

KEATS, John. Ode sobre a melancolia e outros poemas. Organização e tradução: Péricles
Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2010.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada. BALZAC. Honoré de. A obra-prima des-


conhecida. Tradução: Osvaldo Fontes Filho e Leila de Aguiar Costa. São Paulo: Escuta, (1985
in) e (1837 in) 2012.

TENÓRIO, Patricia (Gonçalves). Vinte e um. Veintiuno. Tradução: Alexandra Viscrian e


David Pérez Garcia. Madri, Espanha: Mundi Book Ediciones, 2016.

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