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Êxito de Bolsonaro na guerra cultural da

pandemia levou Brasil a catástrofe histórica


Fabricado em canais alternativos de comunicação, o triunfo bolsonarista
gerou o colapso da gestão pública
o

João Cezar de Castro Rocha


Folha de São Paulo - 27.mar.2021 às 23h15

[resumo] Apoio ao presidente em camadas expressivas da população, a


despeito da atuação irresponsável ou mesmo criminosa de seu governo na
pandemia, simboliza a vitória do bolsonarismo na guerra cultural, travada em
redes sociais e canais alternativos de comunicação que propagam torrentes de
notícias falsas, escreve professor. Esse êxito, contudo, acarreta o colapso da
gestão pública e leva o Brasil a viver a maior tragédia de sua história.
“Você não sabe o que é caminhar com a cabeça na mira de um HK”
Jocenir e Mano brown
O paradoxo bolsonarista
O fenômeno bolsonarista é condicionado por um paradoxo que tanto
assegurou seu êxito eleitoral em 2018 quanto anuncia agora o colapso da gestão
pública; ruína tornada tragédia na gestão negacionista da crise sanitária.
Eis o paradoxo: o êxito, incontestável, do bolsonarismo implica o fracasso,
incontornável, do governo Bolsonaro. Quanto mais impactante for o triunfo da
guerra cultural, tanto mais desastrosa será a administração da coisa pública.
O acerto da hipótese infelizmente se confirma na imagem de um Brasil exausto
por tantas vidas perdidas, vidas que poderiam ter sido salvas se a vacinação em
massa não tivesse sido sabotada pelo governo federal, que só voltou atrás em
um cenário propriamente apocalíptico. No dia 23 de março, ultrapassamos a
infame marca de mais de 3.000 mortes de brasileiros em apenas um dia.
(Cada crime uma sentença?)
O paradoxo e sua potência
No momento em que se publicar este texto, teremos superado o trágico número
de 300 mil mortes provocadas pela peste da Covid-19. Ao mesmo tempo,
surgem novas cepas do vírus, ao que tudo indica de contágio mais célere e de
letalidade mais grave. De igual modo, o sistema hospitalar, público e privado,
entra em colapso em todo o país.
(O ser humano é descartável no Brasil?)
No entanto, como se a situação estivesse sob controle, o novo ministro da
Saúde, Marcelo Queiroga, anunciado no dia 15 de março, somente foi
empossado no dia 23, em uma cerimônia discreta que não constava da agenda
oficial, como se o ato em si mesmo tivesse algo de vergonhoso.
Ou seja, por uma longuíssima semana, durante o período mais dramático da
crise, o ministro demissionário, o general Eduardo Pazuello, converteu-se em
uma incômoda sombra assustada, ao passo que o novo titular da pasta buscava
desvencilhar-se de empenhos comerciais.
(Ninguém trabalha no Gabinete de Segurança Institucional? Não se investigou
esse “pequeno” contratempo no Gabinete da Surpresa Infinita?)
Ainda assim: apesar dos tropeços não somente irresponsáveis como também
criminosos no enfrentamento da pandemia, há uma faixa da população que
insiste em apoiar cegamente o governo.
E a turma é eclética: senhores encanecidos fantasiados de soldadinhos de
chumbo, senhoras decididas envelopadas em surradas bandeiras, guerrilheiros
destemidos do éter, valentões tímidos das redes sociais e, não se esqueça,
exóticos empresários tagarelas e elegantes banqueiros muito apaziguados pelo
tanto que sempre lucram em qualquer circunstância. Vale dizer, enquanto as
UTIs do Copa Star, do Einstein e do Sírio-Libanês estiverem devidamente
reservadas.
Como entender esse apoio, que implica a incomum capacidade de deixar de ver
a pilha de corpos que se avoluma dia a dia?
A resposta obriga a um reconhecimento inquietante: na guerra cultural da
pandemia, se a expressão for aceitável, Bolsonaro está vencendo. Triunfo, bem
entendido, fabricado no circuito comunicativo paralelo do bolsonarismo.
Máquina incansável de fatos alternativos, moto-contínuo de notícias falsas,
usina permanente de vídeos de impacto: parafernália disseminada em
correntes multitudinárias de WhatsApp, em canais de YouTube e por meio de
aplicativos como, por exemplo, Mano, que reúne uma constelação de estações
de TV e de rádio, todas gratuitas.
Ao escolher qualquer programa, o usuário é literalmente assediado por caixas
de diálogo, cujo conteúdo é invariavelmente favorável aos delírios
bolsonaristas.
No dia 10 de março, assisti à TV Clima de Ribeirão Preto e fui recebido com
uma mensagem ameaçadora: “Para mim é: Jesus no céu e Bolsonaro na Terra.
Tamu junto”. No dia 22 de março, me arrisquei na Rede Tiradentes de Manaus.
Um usuário, depois de enviar incontáveis mensagens, disse a que veio: “Os
governos estaduais, municipais e muitos empresários ligados a eles têm muito
a explicar à Justiça, à população e, principalmente, a Deus”.
Em grupos de WhatsApp, um vídeo-tsunami mostra um homem de bem
celebrando sua “ressurreição” graças à milagrosa nebulização feita com um
comprimido diluído de hidroxicloroquina. Em vista disso, precisamos de
hipóteses novas para dar conta da complexidade da midiosfera bolsonarista.
Vamos lá: diante da evidência do fracasso do governo, a guerra cultural
radicalizou seus processos. Não mais se trata de esposar teorias conspiratórias
ou de papaguear narrativas polarizadoras em busca do novo inimigo de
plantão. Não é mais suficiente limitar a pulsão bélica a períodos eleitorais. Pelo
contrário, a guerra cultural se converte em um princípio existencial. Não basta
o blablablá do STFimpediuopresidentedeagir, do tratamentoprecoce, da
cloroquinasimvacinanão, do Bolsonaropaidavacina.
Agora, o caos cognitivo deve ser traduzido em uma forma de vida: ostentar a
cloroquina como se fosse uma hóstia profana; não usar máscaras, de
preferência em manifestações a favor da intervenção militar, com Bolsonaro no
poder, por óbvio; tomar overdoses de ivermectina como se não houvesse
amanhã, tampouco sistema hepático; apressar os passos em um arremedo
cômico de marcha militar; deixar de ler a “extrema imprensa” e somente se
informar com a “mídia independente”; nunca assistir à “Globolixo” em
detrimento dos canais confiáveis da rede de youtubers bolsonaristas; confirmar
os delírios conspiratórios no eco que encontram em “jornalistas” e
“subcelebridades” em programas da mídia tradicional.
(Ratatatá, caviar e champanhe)
A guerra cultural passa a ser a própria realidade para os seus militantes. A
palavra torna-se a coisa: o desastre se avizinha.

O bolsonarismo e sua tragédia


Corolário da hipótese: o governo Bolsonaro pretende desidratar o
financiamento do Censo do IBGE em uma proporção selvagem, sem paralelo
em qualquer sistema político contemporâneo: nada menos que 90% dos
recursos destinados à coleta sistemática de referências sobre o país poderão ser
cortados.
Metáfora acabada da guerra cultural bolsonarista, que, em sua monomania
narrativa, dispensa dados objetivos —afinal, sempre há um inimigo à espreita,
não é mesmo? Contudo, como desenvolver um planejamento mínimo da gestão
pública sem dispor de informação confiável?
Qual o resultado palpável dessa desconsideração do mais elementar princípio
de realidade que guiou todos os pronunciamentos irresponsáveis e
negacionistas do presidente?
Postagens do Ministério da Saúde sobre 'tratamento precoce'

1.
Texto sobre tratamento precoce que desapareceu do site do Ministério da
Saúde Reprodução
A ironia bate à porta: recordemos alguns poucos fatos para demonstrar, sem
perder tempo com disputa de narrativas, que o bolsonarismo é incompatível
com governança —e nem sequer penso no luxo de uma “boa governança”, dada
a onipresença paranoica da guerra cultural.
No dia 18 de janeiro, o general Pazuello e sua equipe de
especialistas conseguiram a proeza de falhar na entrega de vacinas para 19
estados —muitos governadores e autoridades esperaram por horas em
aeroportos porque o Ministério da Saúde não foi capaz de organizar uma
planilha de horários de voos! O mestre da logística confundiu-se no
preenchimento de um singelo documento em Excel?
Em fevereiro, depois do inaceitável colapso do sistema hospitalar em Manaus,
o Ministério da Saúde superou seu generoso histórico de equívocos tontos: 76
mil doses da vacina AstraZeneca/Oxford destinadas ao Amazonas foram
enviadas para o Amapá, que deveria ter recebido apenas 2.000 doses. Uma
operação de emergência foi necessária para desfazer a troca.
O ex-ministro general apresentou com voz firme e olhar perdido nada menos
que quatro planos nacionais de vacinação, com datas propriamente
heraclitianas e números infelizmente fictícios. Preciso acrescentar que plano
algum foi implementado?
Passemos do levemente pitoresco ao erro mais obviamente criminoso? Nos
dias 14 e 15 de janeiro, um cenário de terror se abateu sobre Manaus: o oxigênio
acabou nos hospitais da cidade, levando muitas pessoas à morte por asfixia.
Cenas chocantes e comoventes de familiares passando dias inteiros para levar
para casa balões de oxigênio no esforço de salvar seus parentes dominaram os
noticiários.
(Mário de Andrade: Esse homem é brasileiro que nem eu...)
E tudo sempre pode ficar pior no Brasil bolsonarista: 61 bebês prematuros
estavam no meio desse caos. O Ministério da Saúde sabia da iminência da falta
de oxigênio desde o dia 8 de janeiro. No dia 14, em Manaus, no momento
mesmo do desespero, o general Pazuello lançou o aplicativo-guerra-cultural
TrateCOV, programado para receitar o kit-guerra-cultural tratamento precoce.
Há mais: em agosto de 2020, o governo cancelou a compra de parte do
chamado kit intubação, incluindo sedativos e relaxantes musculares, sem os
quais a intubação exige que o paciente seja amarrado à cama, a fim de suportar
a dor intensa provocada pelo procedimento particularmente invasivo. A
simples ideia produz horror: nessas condições, intubar alguém é uma autêntica
sessão de tortura...
A ação do presidente é inqualificável: sabotou a Coronavac e, sem a vacina do
Instituto Butantan, quase não teríamos pessoas imunizadas no país; em agosto
de 2020, recusou a oferta de 70 milhões de doses da vacina Pfizer; provocou
metodicamente aglomerações todo o tempo; recusou-se a usar
máscara; mentiu sobre a determinação do STF acerca da competência de seu
governo no combate à pandemia; antagonizou prefeitos e governadores no afã
de inventar inimigos em série.
Bolsonaro pode imaginar que, na guerra cultural, esteja triunfando. Por isso
mesmo, o Brasil vive a pior tragédia de sua história. O bolsonarismo, vale
repisar, é incompatível com qualquer princípio básico de governança.
Coda
Numa mímica demoníaca, em sua live em 18 de março, Bolsonaro reproduz o
desespero dos que sentem o oxigênio faltar e, emitindo um som gutural, arfa
três vezes. Três vezes arfa e na última parece que ladra. Autorretrato
involuntário, coincidem o guardador e a coisa guardada. No mesmo CPF, dupla
identidade: Cérbero e o Hades.
(Sorri no inferno)

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