Você está na página 1de 2

Leila Míccolis

Aquarela

Da minha infância
retiro as fotografias da família
no luto diário,
os olhos invisíveis
condenando curiosidades,
o baú de preciosidades
(e traças devassas),
trancadas a cadeado,
os sonhos desenfreados,
a mística do susto,
os flagrantes,
evitados a custo,
e por fim retiro-me do porão
com tudo o que continha minha imaginação
delirante.
Fica a vida.
Que nem parecia importante.

Vã Filosofia...

Falas muito de Marx,


de divisão de tarefas,
de trabalho de base,
mas quando te levantas
nem a cama fazes...

Conservas

No meio das noites, a noite


em que se fantasia cometer loucuras:
a tia tenta o suicídio,
o primo foge de casa,
a irmã se prostitui,
a cunhada sai pela rua, nua,
o menor incestua...
Uma noite singular,
uma noite sem par,
uma noite só.
Depois, arrependidos, todos voltam
a viver dos conselhos da vovó.
guerra fria
 
Sou mulher: minha trincheira
é de pó
e aspira dor.
O meu campo de batalha
e também minha mortalha
é dentro da minha casa
a fazer balas (de açúcar),
e a tratar dos ferimentos
dos filhos que caem no chão.
Fogo e facas, uso apenas
pra cozinhar minhas penas.
É inofensivo o arsenal
que utilizo, a ponto tal
que o meu tanque (de cimento)
arma que nunca enferruja
é feito de roupas sujas. 

Você também pode gostar