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Pádua Fernandes

Dentes com metacarpos


para Julián

Meu amigo para diante do abismo,

procura os pais desaparecidos;

o que encontrará, não sabemos,

o quanto suas mãos mergulharão

na matéria viscosa do nada, ignoramos,

que tipo de nada, porém humano,

dele retirarão, resta saber,

embora imaginemos

que no fundo do abismo

outro se abra

e depois outro

indefinidamente.

Vejo que meu amigo murmura,

mas não comigo;

fala com suas mãos,

ensina-lhes que o abismo é uma terra

sobre a qual pisamos

todos os dias

e que pode ser escavado

da mesma forma que o tutano


dentro dos ossos.

Ele sussurra para as mãos

No mundo inteiro
quase só há desabrigo,
todos os refúgios da humanidade
compõem-se principalmente do abismo.
Os felizes que nele caem
parecem crer
que nada há mais profundo
do que o humano
e que os homens
desde sempre
foram filhos da queda.

Suas próprias mãos não acreditam nele.

Meu amigo salta para o abismo;

grito, mas a queda não ocorre,

retém-no na superfície

a superfície do nada.

O discurso do disparo

– Os direitos humanos da bala;


eles não são os mesmos
antes e depois do disparo.
Antes, o direito ao voo;
depois, ao corpo.
São talvez opostos,
mas a bala também não é a mesma
antes e depois do disparo.
Estão vivos? Mandei atirar.
Tiram fotos? Mandei apagar
as luzes. Ainda tremem? Não
aparecerão na tevê. Porém
filmam? A hemorragia
borra a imagem. Querem fazer corpo
de delito? Seu corpo é um delito,
os hospitais não atenderão
ao crime.

– Os direitos humanos do disparo:


o gatilho e a bala,
que são da mesma cor
até o momento
em que o direito é dispensado.

Há um vídeo. Não tenho


que explicá-lo. Os autores
é que são suspeitos por
ainda estarem de pé.
A polícia deve explicar
como, se tudo isso ocorreu,
tudo isso foi filmado,
e como o sangue que pulsa
na tela ainda pulsa no corpo.

– Os direitos humanos;
humanos, talvez,
mas, por isso, tortuosos
e fugidios, inscrevem-se
na carne, que palpita
sob os retos instrumentos de poder.

Descem do morro? Mando-o


arrasar, a terra insolente erguida
servirá para um aterro
sob que os corpos
encontrarão sua utilidade.

– Os direitos humanos do alvo:


saber-se alvo
e não furtar-se ao sangue
que a bala libertará
do que é apenas corpo.

Cem mil na rua? Digam


que foram cem, mil é
redundância. Trezentos mil?
Decretarei que foram cinquenta,
não é tempo de carnaval.
Um milhão? Decido que nada
ocorreu, a cidade foi planejada
segundo o design da mordaça.

– Direitos humanos do desaparecimento:


entraram pela porta da delegacia
e foram abrigados eternamente.

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