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FERNANDO PESSOA - ORTÓNIMO

a. Temas a estudar - ortónimo:

i. A nostalgia da infância

No caso da infância, é inegável que Pessoa dela sentia uma grande saudade, mas trata-se de uma saudade, de uma
nostalgia imaginada, intelectualmente trabalhada e literariamente sentida como "um sabor de infância triste". O
poeta afirma, igualmente que a saudade é "atitude literária", símbolo de pureza, inconsciência, sonho, paraíso
perdido. No entanto, o tom de lamento que perpassa nalguns dos seus poemas resulta do constante confronto com
a criança que outrora foi, numa Lisboa sonhada, mas ao mesmo tempo real porque familiar, palco dos primeiros
cinco anos da sua vida, marcados pela forte relação afetiva com a mãe. Insatisfeito com o presente e incapaz de o
viver em plenitude, Pessoa refugia-se numa infância, regra geral, desprovida de experiência biográfica e submetida a
um processo de intelectualização. A infância é o passado irremediável perdido, o tempo em que, supostamente, o
poeta era feliz e em que não sofria. Como não tinha iniciado a procura de si mesmo, não se sentia fragmentado e
vivia numa alegria inconsciente. A idade adulta é o presente, caracterizado pelo sofrimento, pela saudade do
passado, pelo desconhecimento de si mesmo e pela dor de pensar.

Quando as crianças brincam Pobre velha música!


Quando as crianças Observa as crianças → Pobre velha música! O sujeito poético já ouviu
brincam estímulo exterior → recorda Não sei porque agrado, aquela música numa situação
E eu as oiço brincar, a infância anterior em que ele próprio
Enche-se de lágrimas →
as referências «fui» de alegria era outro, isto é, diferente do
Qualquer coisa em
(passado), «sou» momento em que escreve.
minha alma Meu olhar parado.
(presente) e «serei» (futuro) v.9: A expressão que mostra
Começa a se alegrar.
inscrevem-se numa linha a intensidade do desejo de
contínua marcada pelo Recordo outro ouvir-te. voltar ao passado é "ânsia
E toda aquela infância desconhecimento, Não sei se te ouvi tão raiva".
Que não tive me vem, interrompida somente pelo Nessa minha infância v.12: O sujeito poético
Numa onda de alegria sentir («sinta»). Que me lembra em ti. questiona-se sobre a
Que não foi de Metáfora → mostra a possibilidade de ter sido feliz
ninguém. alteração dos seus Com que ânsia tão raiva na infância, não sabendo,
sentimentos e que esta responder a essa pergunta.
Quero aquele outrora!
grande alegria é sentida No entanto, afirma que
Se quem fui é enigma, intensamente, as crianças E eu era feliz? Não sei: agora, no momento da
E quem serei visão, são vistas como as ondas Fui-o outrora agora. escrita, viveu um momento
Quem sou ao menos de um mar que avassalam de felicidade por conta desse
sinta o sujeito poético. passado infeliz.
Isto no coração. No presente quer imaginar A nostalgia caracteriza-se
e sentir que teve uma pela violência do desejo.
infância alegre, que não
teve.
Manifesta o desejo de
sentir a alegria daquelas
crianças, ser feliz pelo
menos naquele momento.
Em ambos, a memória da infância é despertada por um estímulo sensorial exterior apreendido através da audição: «eu
as ouço brincar»; «música ouvir-te». A interiorização da sensação exterior conduz à autoanálise e à reflexão produzindo
diferentes emoções, em consonância com as características do estímulo ouvido.
A reflexão introspetiva do «eu» articula as diferentes dimensões temporais e revela a dualidade entre o pensar e o
sentir.
A convergência do passado e do presente não equivale a uma complementaridade, pois existe desconhecimento
relativamente aos efetivos sentimentos da infância
ii. A dor de pensar:

Fernando Pessoa sente-se condenado a ser lúcido, a ter de pensar, isto é, considera que o pensamento provoca a dor,
teoria que alicerça a temática da “dor de pensar”. Na sequencia da mesma, o poeta inveja aqueles que são
inconscientes e que não se despertam para a atividade de pensar, como uma “pobre ceifeira”, que “canta como se
tivesse mais razões para cantar que a vida”, ou como “gato que brinca na rua” e apenas segue o seu instinto. Assim, o
poeta inveja a felicidade alheia, porque esta é inatingível para ele, uma vez que é baseada em princípios que sente
nunca poder alcançar – a inconsciência, a irracionalidade –, uma vez que o pensamento é uma atividade que se
apodera de maneira persistente e implacável de pessoa, provocando o sofrimento e condicionando a sua felicidade.
Impedido de ser feliz, devido à lucidez, procura a realização do paradoxo de ter uma consciência inconsciente. O poeta
deseja ser inconsciente, mas não abdica da sua consciência, pois ao apelar à ceifeira: “poder ser tu, sendo eu!/ Ter a
tua alegre inconsciência/ E a consciência disso!”, manifesta a sua vontade de conciliar ideias inconciliáveis. Em suma,
a “dor de pensar” que o autor diz sentir, provém de uma intelectualização das sensações à qual o poeta não pode
escapar, como ser consciente e lúcido que é.
A Ceifeira

Ela a canta, pobre ceifeira, Ah, canta, canta sem razão! Há na primeira parte um grau de
Julgando-se feliz talvez; O que em mim sente está pensando. subjetividade: o “eu” acha que a ceifeira não
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia Derrama no meu coração tem razões para cantar, considera-a
De alegre e anónima viuvez, A tua incerta voz ondeando! inconsciente.

Ao contrário da ceifeira, o “eu” não


voz da Ondula como um canto de ave Ah, poder ser tu, sendo eu! consegue viver “sem razão” (v.13) e
ira No ar limpo como um limiar, Ter a tua alegre inconsciência, está sempre “pensando” (v.14).
E há curvas no enredo suave E a consciência disso! Ó céu! Ciente da impossibilidade do seu
Do som que ela tem a cantar. Ó campo! Ó canção! A ciência desejo (v.17) lança uma apóstrofe,
desejando que as entidades
Ouvi-la alegra e entristece, Pesa tanto e a vida é tão breve! invocadas o invadam, ocupem a sua
Na sua voz há o campo e a lida, Entrai por mim dentro! Tornai alma e o levem.
E canta como se tivesse Minha alma a vossa sombra leve!
Mais razões para cantar que a vida. Depois, levando-me, passai! Tem a consciência de que não
se consegue libertar do
________________________________________________ pensamento. Através da
constatação de que a ciência
_________________________ pesa tanto numa vida tão breve,
• 1ª PARTE: o “eu” revela o seu desejo de se
- Sujeito poético mostra sentimentos contraditórios: embora se aproximar de um estado de
alegre com o canto harmonioso da ceifeira, sente também uma inconsciência e manifesta a dor
profunda angústia (paradoxo) por não se conseguir libertar dos seus que sente em ser consciente.
pensamentos, nem conseguir agir da mesma forma descontraída e
inconsciente. Traços caracterizadores da
- Tempo verbal predominante: presente do indicativo – projeta a voz ceifeira:
doce da ceifeira. - voz bonita/suave
• 2ª PARTE: - trabalha no campo
- Sujeito poético exprime a sua emoção perante a canção - vive no campo
inconscientemente alegre da ceifeira. - considera-se/ aparenta estar
- Apelo à ceifeira para que continue a cantar porque esta emoção o feliz (2,4,9,12, vv)
obriga a pensar e a desejar ser ela, sem deixar de ser ele e a
desejar ter a sua alegre inconsciência e ter consciência disso. (v.17)
Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua O gato:


Como se fosse na cama, - É livre, não tem preocupações sociais, por isso age da mesma forma
Invejo a sorte que é tua tanto na sua intimidade, como em contacto com os outros.
- Age por instintos, de acordo com as suas necessidades básicas
Porque nem sorte se chama.
- v.8: conhece o real através dos sentidos, não intelectualiza a existência
- É feliz → por ser irracional, por ser dono da sua vida, por não pensar.
Bom servo das leis fatais V.10: paradoxo que realça a ideia de que para o poeta, o ser inconsciente
Que regem pedras e gentes, é o não-ser.
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes. Sujeito poético:
• Sente inveja dele → o gato não pensa, vive só de sensações, por
És feliz porque és assim, ser feliz, “eu” reconhece a sua incapacidade de ser inconsciente.
• O suj. poético pensa, autoanalisa-se, e não se reconhece, sente-
Todo o nada que és é teu. se fragmentado.
Eu vejo-me e estou sem mim, • A intelectualização do “eu” e a consciência de se desconhecer a si
Conheço-me e não sou eu. mesmo transporta-o à angústia e à solidão.

Comparação → mostrar a inconsciência do ser


Dicotomias: sentir/pensar, consciente/inconsciente.
A repetição do verbo “ser” evidencia a interligação entre o ser
inconsciente, instintivo e o ser “feliz”, estabelecendo uma relação de
identidade entre ambos os aspetos.

iii. sonho e realidade:

A dor provocada pela reflexão de que não consegue libertar-se leva ao sujeito poético a refugiar-se no sonho,
como fuga à realidade que o faz sofrer. É em paisagens sonhadas que o poeta procura viver plenamente os seus
sentimentos, libertando-se dos pensamentos que o aprisiona e conseguindo, assim, alcançar a felicidade.
Não sei se é sonho, se realidade
• 1ª parte
Não sei se é sonho, se realidade,
Nas duas primeiras estrofes é formulada a hipótese de, numa
Se uma mistura de sonho e vida, ilha distante, existir felicidade.
Aquela terra de suavidade
- Caráter hipotético: “não sei”, a própria origem ou natureza da
Que na ilha extrema do sul se olvida. hipótese é incerta, sendo expressa através de orações
É a que ansiamos. Ali, ali completivas.
A vida é jovem e o amor sorri. 1ª Estrofe: - é ao mesmo tempo verdadeira e imaginada
• é extrema → longínqua
Talvez palmares inexistentes,
• local agradável, calmo
Áleas longínquas sem poder ser,
• lugar desejado pelas suas qualidades → lá existe o amor
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter 2ª Estrofe: Desejo de atingir a ilha, apesar da consciência de
que é uma fantasia. Este local, embora ilusório, reconforta-o,
Felizes, nós? Ali, talvez, talvez, tranquiliza-o e dá-lhe “sombra e sossego” e talvez lhe traga a
Naquela terra, daquela vez. felicidade que ele procura.
• 2ª PARTE

Mas já sonhada se desvirtua, Nas duas últimas estrofes são associados de forma explícita,
elementos negativos à idealização criada. A ilha sonhada ganha
Só de pensá-la cansou pensar; contornos definidos e perde a sua virtude e a dimensão ideal.
Sob os palmares, à luz da lua,
A terra longínqua é o objeto do sonho e do desejo do “eu” – a
Sente-se o frio de haver luar desvitalização dessa terra torna-a próxima, “nesta”, equivalente
Ah, nesta terra também, também à realidade, levando à conclusão de que “É em nós que é tudo.”
O mal não cessa, não dura o bem. (v.23).
3º Estrofe: A ilusão termina (valor da conj. Adversativa), o
pensamento destrói o sonho, faz com que a ilusão se desfaça; a
Não é com ilhas do fim do mundo, ilha perde as suas qualidades paradisíacas e torna-se um local de
sofrimento, pois também aí, é impossível de viver sem pensar.
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo, 4ª Estrofe: impossibilidade de escapar à infelicidade, se no
íntimo do ser não existir essa capacidade:
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali, − Repetição de expressões negativas enfatiza a conclusão
do “eu”: a cura da alma e a conquista de um coração feliz
Que a vida é jovem e o amor sorri. residem no interior do próprio ser.

Simbologia da Ilha: A ilha simboliza a felicidade conseguida


através da vivência dos sentimentos, e sem a interferência do
pensamento.

Bem sei que há ilha ao sul de tudo → doc. do caderno→ exame 2019/1ª fase

iv. o fingimento artístico:

Na perspetiva de Fernando Pessoa, a arte poética resulta da intelectualização das sensações, o que remete para
a temática do fingimento poético. Isto significa que, para este poeta, um poema é um produto intelectual e, por
isso, não acontece no momento da emoção, mas no momento da sua recordação. Assim, ao não ser um resultado
direto da emoção, mas uma construção mental da mesma, a elaboração de um poema define-se como um
“fingimento”. Tal significa que o ato poético apenas pode comunicar uma dor fingida, inventada, pois a dor real
(sentida) continua apenas com o sujeito, que, através da sua racionalização, a exprime através de palavras,
construindo o poema. A dialética sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sentir/pensar percebe-se
também com nitidez ao recorrer ao intersecionismo como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência
sensível e a inteligência. Fingir é inventar, modelar, construir, elaborando mentalmente conceitos que exprimem as
emoções ou que quer comunicar – processo criativo desenvolvido pelo poeta. Em suma, a criação poética constrói-
se através da conciliação e permanente interação da oposição razão/sentimento.

AUTOPSICOGRAFIA Título: auto = reflexão do poeta


O poeta é um fingidor psico = interferência dos aspectos psicológicos
Finge tão completamente grafia = escrita
Que chega a fingir que é
dor Carácter Universal → 3ª pessoa
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que 1ª Estrofe: Tese→ o poeta é um fingidor


escreve, Argumentos → vv. 2,3,4
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve, 2ª Estrofe:
Mas só a que eles não têm. • interpretação do tema pelos leitores
• cada leitor sente aquilo que desperta nele, aquilo que a sua interpretação do
E assim nas calhas de roda poema determina
Gira, a entreter a razão, • Nota: a obra poética é autónoma, tendo diferentes leituras e diferentes
Esse comboio de corda interpretações (causando diferentes emoções)
Que se chama coração.
3ª Estrofe: Conclusão:
Dor fingida → vv 2,3 • O coração comparado a um comboio de corda (através da metáfora), fornece à
Dor real → vv 4 razão a matéria prima necessária à criação do poema, isto é, as emoções vão ser
Dor lida → vv 6,7,8 trabalhadas poeticamente
• O movimento circular do comboio sugere a relação entre a razão e o pensamento

ISTO Título: O poema é uma resposta aos leitores de


Dizem1 que finjo ou minto Por isso2
escrevo em “Autopsicografia” que o acusaram de fingir/mentir nos seus
Tudo que escrevo. Não. meio poemas. O poeta pretende agora dizer, que a sua teoria é
Do que não está ao pé, simples e que é apenas “isto”. Pronome demonstrativo que
Eu simplesmente sinto
Livre do meu enleio, enuncia que o “eu” vai explicitar: explicitação do que considera
Com a imaginação. ser “fingir” e o que pretende atingir com o fingimento.
Não uso o coração. Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê! 1ª Estrofe: - A oposição convicta aos que criticaram a teoria do
Tudo o que sonho ou sujeito artístico.
1
passo, forma verbal que - Fingir poeticamente não equivale a mentir, mas sim a
traduz o desdém do sentir/ imaginar. Sentir «com a imaginação» é a atitude que
O que me falha ou finda, “eu” pela opinião dos possibilita a própria criação artística, sendo esta uma procura
É como que um terraço outros. da perfeição. refutação da opinião dos outros
Sobre outra coisa ainda. 2
conector com valor 2ª Estrofe: As emoções são a passagem/ponto de partida
Essa coisa é que é linda conclusivo (comparação terraço) para uma coisa mais bonita: a criação
poética, a arte, a realidade imaginada. O poema é um “belo
artístico”, o objetivo que pretende atingir é comparado a um
terraço que separa dois elementos, mas encobrindo uma outra
que o seduz: a beleza artística.

3ª Estrofe: → Conclusão: o poeta tenta libertar-se da sua


realidade e das suas emoções e remete os sentimentos para os
leitores, recusa da poesia enquanto expressão imediata dos
sentimentos.

v. Ligação com o Heterónimo / Fragmentação do “eu”

A fragmentação do “eu” de Fernando Pessoa resulta da constante procura de resposta para o enigma do ser, aliada à
perda de identidade. Na verdade, Pessoa vê-se confrontado com a sua pluralidade, ou seja, com diferentes “eus”,
sem saber quem é nem se realmente existe. Contudo, a negação do “eu” como um todo, leva-nos à forma como os
heterónimos foram criados, que nos demonstra a angústia da procura pelo desvendo da vida e da morte, da
perfeição e da tristeza, da humanidade e da divindade.
1ª Estrofe:
Não sei quantas almas tenho.
• Fragmentação /multiplicidade do eu
• causa da fragmentação: está sempre a
Não sei quantas almas tenho. Por isso, alheio, vou lendo mudar, mudança permanente.
Cada momento mudei. Como páginas, meu ser • estranheza, desconhecimento de si
Continuamente me estranho. O que segue não prevendo, mesmo
Nunca me vi nem achei. O que passou a esquecer. • pensamento, autoanálise constante
• sofrimento, dor provocada pelo
De tanto ser, só tenho alma. Noto à margem do que li pensamento constante
Quem tem alma não tem calma. O que julguei que senti.
Quem vê é só o que vê, Releio e digo: «Fui eu?» 2ª e 3ª Estrofe:
Quem sente não é quem é. Deus sabe, porque o escreveu. • o poeta assiste à sua fragmentação
como um espectador distanciado que
vê os outros que vão nascendo dentro
Atento ao que sou e vejo, de si, e que se tornam autónomos
Torno-me eles e não eu. • é como se observasse uma paisagem
Cada meu sonho ou desejo (estrofe 2) ou como se lesse um livro da
É do que nasce e não meu. sua vida (estrofe 3)
• nestas 2 estrofes estão presentes:
Sou minha própria paisagem, → metáfora
+ sentimentos de despersonalização/
Assisto à minha passagem, fragmentação
Diverso, móbil e só, + papel de espectador/leitor
Não sei sentir-me onde estou. + a constante solidão e inadaptação
+ Incapacidade de prever o futuro e desejo de
esquecer o passado

Mudança do “eu” para o “quem” → ele tem


vários, alargamento a outras pessoas

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