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i. A nostalgia da infância
No caso da infância, é inegável que Pessoa dela sentia uma grande saudade, mas trata-se de uma saudade, de uma
nostalgia imaginada, intelectualmente trabalhada e literariamente sentida como "um sabor de infância triste". O
poeta afirma, igualmente que a saudade é "atitude literária", símbolo de pureza, inconsciência, sonho, paraíso
perdido. No entanto, o tom de lamento que perpassa nalguns dos seus poemas resulta do constante confronto com
a criança que outrora foi, numa Lisboa sonhada, mas ao mesmo tempo real porque familiar, palco dos primeiros
cinco anos da sua vida, marcados pela forte relação afetiva com a mãe. Insatisfeito com o presente e incapaz de o
viver em plenitude, Pessoa refugia-se numa infância, regra geral, desprovida de experiência biográfica e submetida a
um processo de intelectualização. A infância é o passado irremediável perdido, o tempo em que, supostamente, o
poeta era feliz e em que não sofria. Como não tinha iniciado a procura de si mesmo, não se sentia fragmentado e
vivia numa alegria inconsciente. A idade adulta é o presente, caracterizado pelo sofrimento, pela saudade do
passado, pelo desconhecimento de si mesmo e pela dor de pensar.
Fernando Pessoa sente-se condenado a ser lúcido, a ter de pensar, isto é, considera que o pensamento provoca a dor,
teoria que alicerça a temática da “dor de pensar”. Na sequencia da mesma, o poeta inveja aqueles que são
inconscientes e que não se despertam para a atividade de pensar, como uma “pobre ceifeira”, que “canta como se
tivesse mais razões para cantar que a vida”, ou como “gato que brinca na rua” e apenas segue o seu instinto. Assim, o
poeta inveja a felicidade alheia, porque esta é inatingível para ele, uma vez que é baseada em princípios que sente
nunca poder alcançar – a inconsciência, a irracionalidade –, uma vez que o pensamento é uma atividade que se
apodera de maneira persistente e implacável de pessoa, provocando o sofrimento e condicionando a sua felicidade.
Impedido de ser feliz, devido à lucidez, procura a realização do paradoxo de ter uma consciência inconsciente. O poeta
deseja ser inconsciente, mas não abdica da sua consciência, pois ao apelar à ceifeira: “poder ser tu, sendo eu!/ Ter a
tua alegre inconsciência/ E a consciência disso!”, manifesta a sua vontade de conciliar ideias inconciliáveis. Em suma,
a “dor de pensar” que o autor diz sentir, provém de uma intelectualização das sensações à qual o poeta não pode
escapar, como ser consciente e lúcido que é.
A Ceifeira
Ela a canta, pobre ceifeira, Ah, canta, canta sem razão! Há na primeira parte um grau de
Julgando-se feliz talvez; O que em mim sente está pensando. subjetividade: o “eu” acha que a ceifeira não
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia Derrama no meu coração tem razões para cantar, considera-a
De alegre e anónima viuvez, A tua incerta voz ondeando! inconsciente.
A dor provocada pela reflexão de que não consegue libertar-se leva ao sujeito poético a refugiar-se no sonho,
como fuga à realidade que o faz sofrer. É em paisagens sonhadas que o poeta procura viver plenamente os seus
sentimentos, libertando-se dos pensamentos que o aprisiona e conseguindo, assim, alcançar a felicidade.
Não sei se é sonho, se realidade
• 1ª parte
Não sei se é sonho, se realidade,
Nas duas primeiras estrofes é formulada a hipótese de, numa
Se uma mistura de sonho e vida, ilha distante, existir felicidade.
Aquela terra de suavidade
- Caráter hipotético: “não sei”, a própria origem ou natureza da
Que na ilha extrema do sul se olvida. hipótese é incerta, sendo expressa através de orações
É a que ansiamos. Ali, ali completivas.
A vida é jovem e o amor sorri. 1ª Estrofe: - é ao mesmo tempo verdadeira e imaginada
• é extrema → longínqua
Talvez palmares inexistentes,
• local agradável, calmo
Áleas longínquas sem poder ser,
• lugar desejado pelas suas qualidades → lá existe o amor
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter 2ª Estrofe: Desejo de atingir a ilha, apesar da consciência de
que é uma fantasia. Este local, embora ilusório, reconforta-o,
Felizes, nós? Ali, talvez, talvez, tranquiliza-o e dá-lhe “sombra e sossego” e talvez lhe traga a
Naquela terra, daquela vez. felicidade que ele procura.
• 2ª PARTE
Mas já sonhada se desvirtua, Nas duas últimas estrofes são associados de forma explícita,
elementos negativos à idealização criada. A ilha sonhada ganha
Só de pensá-la cansou pensar; contornos definidos e perde a sua virtude e a dimensão ideal.
Sob os palmares, à luz da lua,
A terra longínqua é o objeto do sonho e do desejo do “eu” – a
Sente-se o frio de haver luar desvitalização dessa terra torna-a próxima, “nesta”, equivalente
Ah, nesta terra também, também à realidade, levando à conclusão de que “É em nós que é tudo.”
O mal não cessa, não dura o bem. (v.23).
3º Estrofe: A ilusão termina (valor da conj. Adversativa), o
pensamento destrói o sonho, faz com que a ilusão se desfaça; a
Não é com ilhas do fim do mundo, ilha perde as suas qualidades paradisíacas e torna-se um local de
sofrimento, pois também aí, é impossível de viver sem pensar.
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo, 4ª Estrofe: impossibilidade de escapar à infelicidade, se no
íntimo do ser não existir essa capacidade:
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali, − Repetição de expressões negativas enfatiza a conclusão
do “eu”: a cura da alma e a conquista de um coração feliz
Que a vida é jovem e o amor sorri. residem no interior do próprio ser.
Bem sei que há ilha ao sul de tudo → doc. do caderno→ exame 2019/1ª fase
Na perspetiva de Fernando Pessoa, a arte poética resulta da intelectualização das sensações, o que remete para
a temática do fingimento poético. Isto significa que, para este poeta, um poema é um produto intelectual e, por
isso, não acontece no momento da emoção, mas no momento da sua recordação. Assim, ao não ser um resultado
direto da emoção, mas uma construção mental da mesma, a elaboração de um poema define-se como um
“fingimento”. Tal significa que o ato poético apenas pode comunicar uma dor fingida, inventada, pois a dor real
(sentida) continua apenas com o sujeito, que, através da sua racionalização, a exprime através de palavras,
construindo o poema. A dialética sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sentir/pensar percebe-se
também com nitidez ao recorrer ao intersecionismo como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência
sensível e a inteligência. Fingir é inventar, modelar, construir, elaborando mentalmente conceitos que exprimem as
emoções ou que quer comunicar – processo criativo desenvolvido pelo poeta. Em suma, a criação poética constrói-
se através da conciliação e permanente interação da oposição razão/sentimento.
A fragmentação do “eu” de Fernando Pessoa resulta da constante procura de resposta para o enigma do ser, aliada à
perda de identidade. Na verdade, Pessoa vê-se confrontado com a sua pluralidade, ou seja, com diferentes “eus”,
sem saber quem é nem se realmente existe. Contudo, a negação do “eu” como um todo, leva-nos à forma como os
heterónimos foram criados, que nos demonstra a angústia da procura pelo desvendo da vida e da morte, da
perfeição e da tristeza, da humanidade e da divindade.
1ª Estrofe:
Não sei quantas almas tenho.
• Fragmentação /multiplicidade do eu
• causa da fragmentação: está sempre a
Não sei quantas almas tenho. Por isso, alheio, vou lendo mudar, mudança permanente.
Cada momento mudei. Como páginas, meu ser • estranheza, desconhecimento de si
Continuamente me estranho. O que segue não prevendo, mesmo
Nunca me vi nem achei. O que passou a esquecer. • pensamento, autoanálise constante
• sofrimento, dor provocada pelo
De tanto ser, só tenho alma. Noto à margem do que li pensamento constante
Quem tem alma não tem calma. O que julguei que senti.
Quem vê é só o que vê, Releio e digo: «Fui eu?» 2ª e 3ª Estrofe:
Quem sente não é quem é. Deus sabe, porque o escreveu. • o poeta assiste à sua fragmentação
como um espectador distanciado que
vê os outros que vão nascendo dentro
Atento ao que sou e vejo, de si, e que se tornam autónomos
Torno-me eles e não eu. • é como se observasse uma paisagem
Cada meu sonho ou desejo (estrofe 2) ou como se lesse um livro da
É do que nasce e não meu. sua vida (estrofe 3)
• nestas 2 estrofes estão presentes:
Sou minha própria paisagem, → metáfora
+ sentimentos de despersonalização/
Assisto à minha passagem, fragmentação
Diverso, móbil e só, + papel de espectador/leitor
Não sei sentir-me onde estou. + a constante solidão e inadaptação
+ Incapacidade de prever o futuro e desejo de
esquecer o passado