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conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
Rumos do Sul
Periferia e pensamento social
Mariana Chaguri
Mário Medeiros
(orgs.)
Copyright © 2018 Mariana Miggiolaro Chaguri e Mário Augusto Medeiros da Silva
R89
Inclui bibliografia
9 Introdução
15 Introdução geral
Marcelo C. Rosa
Sociologias do Sul?
É ainda muito difícil, senão impossível, falar de uma única “sociologia do sul”,
“epistemologia Sul” ou mesmo “teoria do sul”. Como apresentarei adiante, essas clas-
sificações representam uma tentativa relativamente recente de trabalhar críticas exis-
tentes sobre a geopolítica do conhecimento em ciências sociais (Canagarajah,
2002; Hountondji, 1997, Amin, 1988). Mais do que um movimento teórico,
a sociologia do sul seria um projeto contra-hegemônico heterogêneo que reflete o
desconforto contemporâneo com a história teórico-metodológica da disciplina.
Em um trabalho anterior (Rosa, 2014), procurei demonstrar que os autores e
autoras que utilizam essas terminologias ligadas ao Sul tendem a olhar para questões
e objetos diferentes. Para autores como Commaroff e Commaroff (2011), é
a teoria prática dos marginalizados e sua criatividade que importam, enquanto para
Santos e Meneses (2009) são as epistemologias subjugadas que estão no centro
da análise. Para Connell (2007), o foco está na articulação entre as construções
teóricas e seus desafios empíricos. Utilizando o termo “Sul” estes três trabalhos com-
partem com outras tradições a crítica da geopolítica do conhecimento nas ciências
sociais em relação a produção, circulação e distribuição de nossas grandes teorias.
Nessas perspectivas há uma patente exclusão de certos processos, objetos, métodos
e teorias, por elas terem como origem lugares que estão fora do circuito acadêmico
e das linguagens Euro-Americanas.1
viáveis para lidar com objetos e existências que desafiam as bordas espaço-temporais
dos marcos teóricos hegemônicos, dentre os quais situa-se a modernidade. A ques-
tão fundamental que emerge dos usos correntes da coetaneidade, se refere a impos-
sibilidade da adoção de uma narrativa histórica linear e singular que disponha temas
e questões de pesquisa numa cartografia evolutiva ou desenvolvimentista. A alter-
nativa metodológica seria considerar a possibilidade de que nossos temas, objetos
e sujeitos de pesquisa não estejam necessariamente encompassados por um único
princípio analítico, seja ele temporal ou espacial.
Neste conjunto de propostas teóricas que se valem da noção de Sul, a agenda
mais desafiadora seria dada pela pesquisa sobre formas de existência deixadas de
lado no atual quadro analítico da sociologia, mas que seriam potencialmente ativos
produção e reprodução da vida coletiva em certas partes do mundo. Neste ponto, um
dos maiores obstáculos para se seguir adiante é a própria noção largamente difundi-
da sobre o que é sociologia e sua necessária unicidade. Este dilema foi tema central
de publicações e debates de presidentes da Associação Internacional de Sociologia
como podemos ver na pioneira intervenção de Archer (1991) e no afiado debate
entre Sztompka (2011) e Burawoy (2011).
mônico como se relacionavam com os indígenas andinos que era por meio de sua
religião e não sua política.
Reforçando o argumento deste texto, se há uma demanda para uma sociologia
que seja especificamente do Sul, suas propriedades deveriam se diferenciar daquelas
consagradas pelo Norte, mesmo no tocante ao modo como ela classifica seus sujei-
tos (xamã ou ativista política são apenas duas possibilidades). Ao fazer isto o Sul,
se for relevante como unidade analítica, também seria continuamente produzido
no interior da disciplina, na medida em que consiga trazer novas fronteiras para o
conhecimento da vida coletiva que esgarcem termos como religião, política e cam-
pesinato, por exemplo.
4 Devo a uma palestra recente da professora Elias Reis (UFRJ) a lembrança sobre os
efeitos violentos mas necessários, da teoria em certos casos de comparação.
Rumos do Sul 115
Comparação
Uma das maiores dificuldades da noção de Sul, como apontado anteriormente
é o próprio contexto no qual ela surge e se desenvolve. Em boa parte da literatura o
Sul tende a ser compreendido e descrito como o lugar no qual certas características
tidas como desejáveis no norte estariam em falta ou não existiriam. Nesta chave,
termos como Norte e Sul, são comparativamente diferentes porque muitas partes do
mundo ainda não teriam sido transformadas em lugares próximos aos exemplares
desejados da modernidade ou secularização, por exemplo.5
O dilema acima pode ser entendido também por meio das metáforas: global
como comparação (com um escopo limitado) versus global como expansão do esco-
po, do métodos e dos objetos.
Para aquelas que chegaram até aqui está claro que a arquitetura deste texto
defende a segunda forma de pensar uma sociologia global. Comparações, da manei-
ra como têm sido usadas em muitos casos, repousam em parâmetros e escalas que
contribuem diretamente para a construção de um centro analítico normal discipli-
nar (ou que assim deveria ser). Este é um problema para as ciências sociais em todo
o mundo. A noção de global tende a ser vista como espraiamento de uma noção
homogeneizante de tempo e espaço. Quem tende a se beneficiar deste forma de ca-
racterizar o global, nas ciências sociais, são, não por acaso, aqueles que consagraram
certas noções desejáveis de sociedade e civilização. O indesejável tende a ser produ-
zido como o Outro.
Mesmo nas narrativas de cientistas sociais do Sul esses espaços tendem a não
ser vistos ou descritos como parâmetros para um futuro desejável vis-à-vis o Norte
(a menos que aceitemos como desejável o futuro caótico e de crise continua cons-
truído por Commaroff e Commaroff, 2011). Neste ultimo caso, o Sul é pro-
movido a condição de exemplar em relação ao resto do mundo que agora evoluiria
forçadamente para lidar sua já conhecida improvisação e crise.
Metodologicamente existem aqui dois tipos de situação em que a comparação
caminha pari-passu com a noção de exemplaridade: a) a descrição de uma ordem de-
sejável; b) a descrição de uma existência como desordenada e, portanto, indesejável.
As reações a versão original deste texto foram em geral formadas por agudas
críticas que emergem de preocupações genuínas sobre nossas capacidades de reali-
zar generalizações de alcance global. Como fazer algo global sem que se use a com-
paração? Esta é uma das perguntas mais frequentes que enfrento.
Não-exemplaridade
Este texto defende que sim é possível ter uma disciplina de alcance global, sem
que a comparação seja o único método analítico. Para isso, é preciso que levemos
a sério a possibilidade de estudos não-exemplares para lidar com questões como
diversidade e pluralidade (em geral pluralidade e diversidade de algo transformado
em central), mas também com a coetaneidade - coisas que existem ao mesmo tempo
que outras tidas como centrais para a narrativa metodológica da disciplina (Fabian ,
1983). De certa forma, a proposta seria combinar processos historico-metodotologi-
camente tidos como grandes ou de longa duração, com outros que tendem a ganhar
o rótulo de locais e de curta-duração.
Rumos do Sul 117
Bibliografia
ADESINA, Jimi. Sociology and Yorùbá Studies: epistemic intervention or
doing sociology in the ‘vernacular’? African Sociological Review n. 6 , vol. 1. 2002,
p. 91-114.
ALATAS, Syed Farid. ‘Ibn Khaldu In and Contemporary Sociology’.
International Sociology vol. 21, n. 6. 2002, p. 782–795
___________. On the Indigenization of Academic Discourse. Alternatives:
Global, Local, Political vol. 18, n. 3. 1993, p. 307-338
Alatas, Syed Hussein. ‘Intellectual imperialism. Definitions, threats and
problems’. Southeast Asian Journal of Social Sciences vol. 28, n. 1. 2000, p. 23-45.
Amin S. L’eurocentrisme: critique d’une idéologie. Paris: Anthropos; 1988.
Anzaldúa, Gloria. and Reuman, Ann. “Coming into play: an interview
with Gloria Anzaldúa”. Melus, vol. 25, n. 2. 2000, p. 3-45.
Archer, Margareth. “Sociology for one world: unity and diversity”.
International Sociology. Vol. 6, n. 2. 1991, p. 131-47.
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