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Rumos do Sul

conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
Rumos do Sul
Periferia e pensamento social

Mariana Chaguri
Mário Medeiros
(orgs.)
Copyright © 2018 Mariana Miggiolaro Chaguri e Mário Augusto Medeiros da Silva

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que


entrou em vigor no Brasil em 2009.

Edição: Haroldo Ceravolo Sereza


Editora assistente: Danielly de Jesus Teles
Projeto gráfico, diagramação e capa: Mari Ra Chacon Massler
Revisão: Alexandra Colontini
Assistente acadêmica: Bruna Marques
Editora de projetos digitais: Dharla Soares
Imagem da capa: pixabay

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros, rj

R89

Rumos do sul : periferia e pensamento social / organização Mariana Mi-


ggiolaro Chaguri , Mário Augusto Medeiros da Silva. - 1. ed. - São Paulo :
Alameda, 2018.
il. ; 23 cm.

Inclui bibliografia

1. Geopolítica - Brasil. I. Chaguri, Mariana Miggiolaro. II. Silva, Mário


Augusto Medeiros da.

18-47906 CDD: 320.120981


CDU: 911.3:32(81)

alameda casa editorial


Rua Treze de Maio, 353 – Bela Vista
cep 01327-000 – São Paulo – SP
Tel. (11) 3012-2403
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Sumário

9 Introdução

9 As periferias como ponto de vista


Mariana Chaguri e Mário Medeiros

15 Introdução geral

17 Uma sociologia local e cosmopolita


Elide Rugai Bastos

33 Rumo ao Sul: a atualidade da periferia


Mariana Chaguri e Mário Medeiros

53 Parte I: Teoria, pensamento social, periferia

55 Uma sociologia política na periferia e o Estado-nação


André Botelho

77 Qual a relevância teórica do pensamento social no Brasil?


João Marcelo E. Maia

89 Epistemologia do Sul como Teoria Crítica? Nota crítica sobre


a teoria da emancipação de Boaventura de Sousa Santos
Josué Pereira da Silva

109 Sociologias do Sul e ontoformatividade: questões de objeto e


método
Marcelo C. Rosa
123 Parte II: Colonialismo e trânsito das ideias

125 Rabindranath Tagore e a Nação Universal: comunidade e


nação discutidas a partir de escritos de um espírito indiano
Cláudio Costa Pinheiro

153 Difamação, periferia e resistência no rastro do canto imperial


José Luís Cabaço e Rita Chaves

165 Alianças periféricas? Saberes e poderes nas margens do Índico


Maria Paula Meneses

181 Parte III: Produção de conhecimento e periferias

183 Sobre a “penúria cultural” e outros elementos constitutivos da


cultura literária transatlântica no Brasil oitocentista
Alexandro Henrique Paixão

201 Experiências plebeias e interpretações do Brasil: Florestan


Fernandes e Alfredo Volpi
Antonio Brasil Jr.

225 Ariel na América: viagens de uma ideia


Bernardo Ricupero

259 Frantz Fanon, a negritude e o ativismo negro brasileiro do


final da década de 1950
Deivison Faustino

273 Parte IV: Circulação das ideias e seus efeitos

275 Contingências da periferia: da “formação” à “inserção” da


literatura brasileira
Alfredo Cesar Melo

289 Política externa brasileira e o luso-tropicalismo (1961-1963)


Simone Meucci e Alexsandro Eugenio Pereira

311 O Congresso pela Liberdade da Cultura na periferia: a revista


Cadernos Brasileiros, 1959-1970
Marcelo Ridenti
339 A arte (não épica) da resistência
Pedro Meira Monteiro

349 Sobre as Autorias


Sociologias do Sul e ontoformatividade:
questões de objeto e método

Marcelo C. Rosa

Sendo a sociologia compreendida como um conjunto de conhecimentos e tra-


dições heterogêneas, como ela poderia se beneficiar do atual debate na teoria social
sobre o papel do Sul e de suas teorias? O objetivo principal deste capítulo é o de
esboçar certas questões que as críticas ancoradas na noção de Sul trazem para uma
possível renovação e ampliação da disciplina. Mais especificamente, pretende-se ob-
servar esta questão a partir do diálogo com perspectivas teóricas que têm criticado
os limites de quais objetos e processos são tomados como dignos de serem tematiza-
dos globalmente para o entendimento do mundo social.
Uma maneira razoavelmente decente de se introduzir estes esforços seria per-
cebê-los como uma saudável disputa por construção de relevância temática e meto-
dológica, que produz consequências teóricas para quem se considera parte do Sul e
pensa em fazer sociologia.
Qual ou quais seriam estas relevâncias e consequências do Sul? O caminho
para se iniciar este debate não pode fugir de uma discussão sobre os princípios te-
órico- metodológicos nos quais se assentam as diferentes perspectivas que pensam
o Sul, seja como teoria ou metodologia. Como pretendo demonstrar ao longo do
texto, tais escritos têm sido eficazes em produzir evidências das dimensões coloniais
(institucionais e subjetivas) da noção de modernidade, por exemplo. No entanto,
enquanto pertinentemente colocam estas questões na linha de frente de nossas dis-
cussões, estas tendências emergentes estão ainda a procurar por métodos e modos
de fazer pesquisa que possam revelar existências, agências e, portanto, ontologias,
que ainda não sejam parte do escopo tradicional da sociologia como conhecemos.
Ou seja, que caminhem para além do que conhecemos em termos de objeto.
Do diálogo com esta literatura soam pertinentes ao menos três questões:
1. que a noção de social e, portanto nossos objetos, não tem sido definida ou
estabilizada sem que a vida no norte seja o parâmetro principal;
2. que a sociologia e as ciências sociais deveria ser ativas na produção de
coletivos e existências que estejam fora de nossas agendas atuais;
110 Mariana Chaguri e Mário Medeiros (orgs.)

3. de que para isso é necessária uma política metodológica que dentro da


sociologia parta da constatação de dominância de certas formas de exis-
tência sobre outras em termos valorativos.
Ao final do texto, estas questões serão articuladas para dar ênfase a proposta
de que as sociologias do Sul poderiam, temporariamente, desempenhar um papel
importante no debate global da sociologia se assumissem como tarefa a construção
teórico-metodológica de existências ainda sem definição na disciplina. Estas ontolo-
gias emergentes seriam fundamentais para expandir e contestar as formas atuais de
produção e reprodução de conhecimento em ciências sociais.

Sociologias do Sul?
É ainda muito difícil, senão impossível, falar de uma única “sociologia do sul”,
“epistemologia Sul” ou mesmo “teoria do sul”. Como apresentarei adiante, essas clas-
sificações representam uma tentativa relativamente recente de trabalhar críticas exis-
tentes sobre a geopolítica do conhecimento em ciências sociais (Canagarajah,
2002; Hountondji, 1997, Amin, 1988). Mais do que um movimento teórico,
a sociologia do sul seria um projeto contra-hegemônico heterogêneo que reflete o
desconforto contemporâneo com a história teórico-metodológica da disciplina.
Em um trabalho anterior (Rosa, 2014), procurei demonstrar que os autores e
autoras que utilizam essas terminologias ligadas ao Sul tendem a olhar para questões
e objetos diferentes. Para autores como Commaroff e Commaroff (2011), é
a teoria prática dos marginalizados e sua criatividade que importam, enquanto para
Santos e Meneses (2009) são as epistemologias subjugadas que estão no centro
da análise. Para Connell (2007), o foco está na articulação entre as construções
teóricas e seus desafios empíricos. Utilizando o termo “Sul” estes três trabalhos com-
partem com outras tradições a crítica da geopolítica do conhecimento nas ciências
sociais em relação a produção, circulação e distribuição de nossas grandes teorias.
Nessas perspectivas há uma patente exclusão de certos processos, objetos, métodos
e teorias, por elas terem como origem lugares que estão fora do circuito acadêmico
e das linguagens Euro-Americanas.1

1 A expressão Euro-América é adotada por pesquisadores como Law (2004), Coma-


roff and Comaroff (2011) e Anzaldúa and Reuman (2000). De um lado o
termo poderia ser rejeitado por ser amplo e indefinido (já que existem muitas coisas
heterogêneas na Europa, por exemplo. Por outro, o termo parece apropriado para ser
usado estratégicamente para apontar caracteristicas predominates no modo predo-
miante de fazer sociologia contemporânea.
Rumos do Sul 111

É preciso ressaltar também que apesar da conotação geográfica do termo, o


Sul nestes trabalhos recentes não se refere a uma região específica. Uma teoria feita
fora da Euro-América não necessariamente problematiza a geopolítica do conheci-
mento, nem o fato de uma autora ter nascido ou viver no Sul delimita sua produção
a este ponto de vista. Nyamnjoh (2012), por exemplo, chama criticamente este
tipo de intelectuais baseados na periferia de “mudas de estufa”, pois seriam nutridos
e alimentados no ambiente artificial de uma metanarrativa teórica que sustenta geo-
politicamente o cânone da disciplina. No genérico Sul geográfico, podem ser produ-
zidas boas teorias tradicionais (assim como boas mudas) que em nada reivindiquem
as questões acima elencadas ou que sejam afetadas pelo ambiente distinto.
Do meu ponto de vista o termo Sul ganha força analítica relevante nas ciências
sociais somente quando argumentos/actantes/atores/processos/histórias estrategi-
camente apresentados como locais, são mobilizados para criticar os padrões domi-
nantes, métodos e narrativas das disciplinas. Seriam, portanto, significativos ao te-
rem seus efeitos construídos na vida coletiva. Do contrário estaríamos lidando com
a sociologia como já conhecíamos com seus problemas e avanços já conhecidos.
O Sul e Norte (ou a Euro-América) são, neste texto e para os autores aqui ci-
tados, metáforas razoavelmente dinâmicas e limitadas para compreender a história
das disciplinas e o tipo de crítica recente que emerge desta literatura. Nela, apesar
das diferenças, podemos encontrar três tipos gerais de argumento:
1. aquele que foca os efeitos do colonialismo/capitalismo/modernidade na
produção, distribuição e circulação das teorias e práticas do Sul ;
2. aquele que indica a existência de atores/processos/histórias que emergi-
ram do encontro colonial e que não receberam a devida atenção das teo-
rias Euro-americanas;
3. aquele que indica a existência de agências e ontologias, ainda indefinidas
porque pouco estudadas, no Sul que seriam razoavelmente independente
dos efeitos dos processos causados pelo Norte como colonialidade e mo-
dernidade, por exemplo.
Mais adiante, o texto defende que a segunda e, principalmente, a terceira pro-
posição ainda precisam de maior desenvolvimento e trabalho para que possam se-
rem vistas como desafios significantes para a teoria social dominante.

O sul na economia política do conhecimento global


Um dos problemas mais complexos deste desafio é o de como trazer esses obje-
tos indeterminados para dentro do escopo da disciplina. Reconhecendo como a vida
112 Mariana Chaguri e Mário Medeiros (orgs.)

no Sul seria afetada pela renovada experiência da violência geopolítica da expansão


colonial, seu foco serão em certas obras as agências que emergem do encontro entre
o ocidente, a modernidade e certos processos e enraizados nas existências do Sul
(Quijano, 2000; Mignolo, 2000; Walsh, 2002)
Autores e autoras como os acima citados situam esses sujeitos emergentes e
indeterminados em lugares sociológicos tais como as bordas do sistema mundo ou
da modernidade, frequentemente evocando termos como privação e apagamento.
Neste registro, o retrato das vidas no sul presentes na sociologia mais tradicional é,
do meu ponto de vista, pouco desafiado. Na melhor das hipóteses, estas obras dão
espaço para certas ênfases na criatividade de certos lugares do Sul para lidar com
temas conhecidos como pobreza, exclusão, racismo e patriarcalismo recrudescidos
pelo encontro colonial (e.g. Commaroff e Comaroff, 2011).2
Assim, o Sul é relegado, em diversos casos, ao papel de vítima diante das pode-
rosas agências e histórias do Norte. Esta estratégia tende a levar a criação de Outros
que de início são ontológica e metodologicamente dependentes ou derivados da
modernidade e de suas matrizes de conhecimento3. Estaria uma socióloga ou qual-
quer outra produtora de conhecimento no Sul satisfeito com o papel de vítima nesta
história de produção do conhecimento?
Neste tipo de argumento, encontramos ainda pouco espaço para possíveis
“Outros” autônomos ou sociologicamente independentes da dualidade moderni-
dade/colonialidade e das suas emergentes ontoformas hibridas (Connell, 2012).

O sul como desafio ontológico


Se há aquelas vivendo ou produzindo conhecimentos no Sul “do outro lado”
ou na “fonteira” - como afirma Mignolo (2007) em um modelo interpretativo
que, apesar de critico, não deixa de ser dualista -, isto implica pensar que há formas
de existências ainda não exploradas pela disciplina. A noção de coetaneidade consa-
grada por Fabian (1983) e reproduzida por Comaroff e Comaroff (2011),
Mignolo (2007) e Santos e Meneses (2009), representa uma das alternativas

2 Em uma tentativa de definir o termo “sul-global” afirmam Connell e Dados


(2012, p. 12) afirmam que o termo “ sul global” funciona mais do que como uma me-
táfora para o subdesenvolvimento. Ele se refere a uma história inteira de colonialismo,
neoimperialismo e a mudanças econômicas e sociais específicas, por meio das quais
desigualdade de padrões de vida, expectativa de vida e acesso a recursos são mantidas.
3 No seu já clássico texto sobre as vozes subalternas Spivak (1988) demonstra que a
própria produção de “outros” pode ser mais importante para o ocidente do que os
próprios outros que estão fora dele.
Rumos do Sul 113

viáveis para lidar com objetos e existências que desafiam as bordas espaço-temporais
dos marcos teóricos hegemônicos, dentre os quais situa-se a modernidade. A ques-
tão fundamental que emerge dos usos correntes da coetaneidade, se refere a impos-
sibilidade da adoção de uma narrativa histórica linear e singular que disponha temas
e questões de pesquisa numa cartografia evolutiva ou desenvolvimentista. A alter-
nativa metodológica seria considerar a possibilidade de que nossos temas, objetos
e sujeitos de pesquisa não estejam necessariamente encompassados por um único
princípio analítico, seja ele temporal ou espacial.
Neste conjunto de propostas teóricas que se valem da noção de Sul, a agenda
mais desafiadora seria dada pela pesquisa sobre formas de existência deixadas de
lado no atual quadro analítico da sociologia, mas que seriam potencialmente ativos
produção e reprodução da vida coletiva em certas partes do mundo. Neste ponto, um
dos maiores obstáculos para se seguir adiante é a própria noção largamente difundi-
da sobre o que é sociologia e sua necessária unicidade. Este dilema foi tema central
de publicações e debates de presidentes da Associação Internacional de Sociologia
como podemos ver na pioneira intervenção de Archer (1991) e no afiado debate
entre Sztompka (2011) e Burawoy (2011).

Ontoformas e políticas ontológicas


Tomando as demandas de Law (2004) e Mol (1999) de uma “política ono-
tológica”, nos parece importante retornar ao diálogo com noção de ontoformativi-
dade esboçada por R. Connell em algumas de suas obras. Na perspectiva da autora
(Connell, 2011; 2012), relações de gênero e encontros coloniais são situações
privilegiadas para se observar empiricamente essas novas ontologias e seus proces-
sos de formação. Se interpreto corretamente o uso desta noção pela autora, sua uti-
lização inicial tende a ser teoricamente limitada ao entendimento de novas formas
de existência (corpos, por exemplo). Existências que se tornaram parte do mundo
social do Sul por meio de ações específicas e típicas de cada realidade local nesses
encontros nem sempre tão frutíferos para o lado colonizado.
De la Cadena (2015, p. 208) fez algo semelhante ao descrever a vida de um
ativista político e xamã peruano. Por meio deste caso, a autora chama atenção para
o fato de o também ativista nas lutas por terra em seu país, desempenhar aquilo
que os norte-americanos chamavam de “práticas religiosas indígenas”, mas que
analiticamente ele nunca seria somente isso (em inglês “not only”). Na perspectiva
de De la Cadena, ele não poderia ser reduzido apenas a aquilo que os norte-
-americanos, ou cientistas sociais tradicionais, já conheciam ou ao modo hege-
114 Mariana Chaguri e Mário Medeiros (orgs.)

mônico como se relacionavam com os indígenas andinos que era por meio de sua
religião e não sua política.
Reforçando o argumento deste texto, se há uma demanda para uma sociologia
que seja especificamente do Sul, suas propriedades deveriam se diferenciar daquelas
consagradas pelo Norte, mesmo no tocante ao modo como ela classifica seus sujei-
tos (xamã ou ativista política são apenas duas possibilidades). Ao fazer isto o Sul,
se for relevante como unidade analítica, também seria continuamente produzido
no interior da disciplina, na medida em que consiga trazer novas fronteiras para o
conhecimento da vida coletiva que esgarcem termos como religião, política e cam-
pesinato, por exemplo.

Desafios metodológicos: o global, a comparação e exemplaridade


Quando apresentei a primeira versão deste texto, utilizei o exemplo da
Sociologia da Religião de Max Weber para discorrer sobre os limites intrínsecos da
comparação em Sociologia. Meu ponto era simples. Quando lemos as volumosas
obras do clássico alemão da sociologia sobre a religião na China e na Índia nós ten-
demos a compreendê-las por sua maior ou menor diferença em relação às formas
cristãs cristalizadas típica-idealmente na “Ética Protestante”. Ao final aprendemos
muito sobre as peculiaridades, ou afinidades eletivas do ocidente com o capitalismo,
mas continuamos a saber pouco sobre o oriente. Como soe ser, o não ocidental – que
contém uma parte importante do que hoje poderíamos chamar de Sul – é lido e in-
terpretado a partir da normatividade judaico-cristã ocidental. A mesma lição valeria
para as formas elementares da vida religiosa de Durkheim, tão bem problematiza-
das por Butler (2006; 2009). Recentemente Arjomand (2017), retoma o papel
fundacional da sociologia comparativa, atentando para potencialidades e prováveis
limites deste método-teoria.
Neste ponto, a questão central não seria se posicionar a priori contra a com-
paração, mas problematizar a relação entre a pesquisa e as teorias no e do Sul.
Como podemos desenvolver, a partir do sul, teorias razoavelmente inovadoras, se
nossos pontos de partida e de chegada (no mais da vezes) são objetos e questões
já consagrados pelas construções teórico-metodológicas Euro-Americanas? Nestes
casos, a comparação tende a não desafiar e transformar os modelos teóricos, e a te-
oria atuaria, quando abusada como centro imutável, como uma forma de violência
epistemológica.4

4 Devo a uma palestra recente da professora Elias Reis (UFRJ) a lembrança sobre os
efeitos violentos mas necessários, da teoria em certos casos de comparação.
Rumos do Sul 115

Ao tomarmos a posição reivindicada por Law (2004), métodos nas ciências


sociais são performativos. Eles literalmente fazem certas coisas existirem, enquanto
obscurecem e destroem violentamente outras. Em sendo assim, nosso principal de-
safio seria de lidar com o Sul não somente (De la Cadena, 2015) como algo que
já foi performado como consensual pelas interpretações Euro-Americanas domi-
nantes em nossas teorias. Uma agenda de pesquisa neste tema deveria tomar como
necessária a tarefa desenvolver metodologias eficientes para performar esse deseja-
do Sul isso.
De meu ponto de vista, o sul poderia ser visto não como um espaço ou tempo
delimitado ou congruente. Ele deveria ser colocado como uma nova e temporária
fronteira para as ciências sociais. Uma fronteira na qual surge a oportunidade geo-
política de que teorias e métodos estejam em debate.
A própria aposta não comparativa contribuiria assim para que, em ultima ins-
tância, chegássemos, com estas novas formas de fazer pesquisa e ciências sociais, a
termos possivelmente muito melhores que Sul (querendo ou não ainda uma compa-
ração dependente do norte).
No atual momento da disciplina, me parece que o trabalho de diversos cole-
gas aqui citados já nos faz a todos cientes das questões ligadas a esta geopolítica do
conhecimento sociológico. Como um pesquisador nascido e vivendo no Sul não me
agrada a pesquisa que nos rotula simplesmente como vítimas desta conjuntura his-
tórica encompassadora. Para muito além de vítimas, nos todos fazemos coisas que as
grandes teorias que usamos não cobrem totalmente. Inclusive teorias.

Comparação
Uma das maiores dificuldades da noção de Sul, como apontado anteriormente
é o próprio contexto no qual ela surge e se desenvolve. Em boa parte da literatura o
Sul tende a ser compreendido e descrito como o lugar no qual certas características
tidas como desejáveis no norte estariam em falta ou não existiriam. Nesta chave,
termos como Norte e Sul, são comparativamente diferentes porque muitas partes do
mundo ainda não teriam sido transformadas em lugares próximos aos exemplares
desejados da modernidade ou secularização, por exemplo.5

5 Eu ainda lembro que em meu primeiro concurso de para professor universitário de


sociologia o ponto sorteado para minha aula foi Racionalização, Secularização e Re-
volução. Não por acaso estas são narrativas centrais na construção e desenvolvimento
da diferença entre a Europa e o resto do mundo.
116 Mariana Chaguri e Mário Medeiros (orgs.)

O dilema acima pode ser entendido também por meio das metáforas: global
como comparação (com um escopo limitado) versus global como expansão do esco-
po, do métodos e dos objetos.
Para aquelas que chegaram até aqui está claro que a arquitetura deste texto
defende a segunda forma de pensar uma sociologia global. Comparações, da manei-
ra como têm sido usadas em muitos casos, repousam em parâmetros e escalas que
contribuem diretamente para a construção de um centro analítico normal discipli-
nar (ou que assim deveria ser). Este é um problema para as ciências sociais em todo
o mundo. A noção de global tende a ser vista como espraiamento de uma noção
homogeneizante de tempo e espaço. Quem tende a se beneficiar deste forma de ca-
racterizar o global, nas ciências sociais, são, não por acaso, aqueles que consagraram
certas noções desejáveis de sociedade e civilização. O indesejável tende a ser produ-
zido como o Outro.
Mesmo nas narrativas de cientistas sociais do Sul esses espaços tendem a não
ser vistos ou descritos como parâmetros para um futuro desejável vis-à-vis o Norte
(a menos que aceitemos como desejável o futuro caótico e de crise continua cons-
truído por Commaroff e Commaroff, 2011). Neste ultimo caso, o Sul é pro-
movido a condição de exemplar em relação ao resto do mundo que agora evoluiria
forçadamente para lidar sua já conhecida improvisação e crise.
Metodologicamente existem aqui dois tipos de situação em que a comparação
caminha pari-passu com a noção de exemplaridade: a) a descrição de uma ordem de-
sejável; b) a descrição de uma existência como desordenada e, portanto, indesejável.
As reações a versão original deste texto foram em geral formadas por agudas
críticas que emergem de preocupações genuínas sobre nossas capacidades de reali-
zar generalizações de alcance global. Como fazer algo global sem que se use a com-
paração? Esta é uma das perguntas mais frequentes que enfrento.

Não-exemplaridade
Este texto defende que sim é possível ter uma disciplina de alcance global, sem
que a comparação seja o único método analítico. Para isso, é preciso que levemos
a sério a possibilidade de estudos não-exemplares para lidar com questões como
diversidade e pluralidade (em geral pluralidade e diversidade de algo transformado
em central), mas também com a coetaneidade - coisas que existem ao mesmo tempo
que outras tidas como centrais para a narrativa metodológica da disciplina (Fabian ,
1983). De certa forma, a proposta seria combinar processos historico-metodotologi-
camente tidos como grandes ou de longa duração, com outros que tendem a ganhar
o rótulo de locais e de curta-duração.
Rumos do Sul 117

A noção de coetaneidade ajudaria a questionar a aparente necessidade de um


encopassamento singular global para descrevermos o que chamamos de sociedade
ou social. Em princípio ela permitiria existências dentro e fora do que é considerado
global, ao mesmo tempo (Adesina, 2002).
O exemplo mais claro deste dilema emerge também de certas perspectivas
usadas nas chamadas teorias do sul. Como vimos, termos como modernidade e
colonialidade criam um encompassamento que tem como parâmetro principal o
domínio actancial do Norte e a maneira pela qual os países do Sul o receberam, in-
terpretaram e sofreram. Obviamente se trata de uma clássica questão comparativa,
mas o centro da análise e o parâmetro metodológico é o efeito da ação do Norte e as
possíveis reações no sul.
Apoiado no que já havia descrito anteriormente, uma proposta razoavelmen-
te inovadora do Sul deveria se distanciar do que já é exemplarmente descrito no
Norte, na tentativa de dar lugar a possíveis existências ainda não mapeadas ou não
contidas nas bulas teóricas que nos orientam. Tal proposta caminharia no sentido
de ampliar os objetos/sujeitos e processos da disciplina aumentado o volume do
que é considerado relevante para nós como pesquisadores. Esse aumento implica-
ria transformações em nosso próprio trabalho de ensino e pesquisa, uma vez que
tanto os cursos como as referências bibliográficas teriam que lidar com um leque
maior de possibilidades.
Não se trata de ignorar ou substituir os debates já consagrados como globais.
Uma das possibilidades, seguindo movimentos emergentes na sociologia contempo-
rânea, é ser mais generoso com a noção de ontologia, que pode deslocar o foco de
nossas atenção para existências ainda não estudadas. Em um momento de contesta-
ção da geopolítica do conhecimento, talvez seja necessário produzir – pensando na
força performativa dos métodos – deliberadamente dissonâncias e objetos incomen-
suráveis para os atuais parâmetros que temos ao tentar falar do sul (Oyewumi,
2002; De la Cadena, 2015).

Considerações finais: para além do Sul


Para além de elencar formas de existência expressas na relação com a terra, na
poesia, na religião, gêneros e cosmologias, como faz a literatura trabalhada ao longo
do texto, é necessário que nossas pesquisas trabalhem para marcar seus efeitos es-
pecíficos em certas vidas coletivas no mundo. Problematizar os efeitos relevantes, se
torna fundamental para uma sociologia que queira demarcar aquilo que chamamos
abertamente de Sul a partir de suas agências.
118 Mariana Chaguri e Mário Medeiros (orgs.)

Como ressaltado anteriormente, esta seria um condição necessária para rea-


brir as disputas sobre o sentido do termo social admitindo que se trata de um objeto
necessariamente impreciso e, por isso, precário e limitado (Latour, 2005; Law
and Urry, 2004). Tão importante quanto isso, é reconhecer o “social” e o “Sul”
dos quais tanto escrevemos e, por vezes, abusamos são intrinsecamente resultado
das nossas opções teóricas e metodológicas (Chakrabarty, 2000). A política
metodológica resultante destas reflexões estaria ligada a produção pelos cientistas
sociais de renovadas alternativas que tenham ancoragem empírica densa o suficiente
para serem vistas como existentes e convincentes. A busca pela ontoformatividade
(Rosa, 2016) como método e identidade dos projetos sociológicos do Sul, contri-
buiria assim para o adensamento da topografia do social como conhecemos hoje.
Este adensamento de atores, actantes e, portanto, de ontologias dependeria da
capacidade de pesquisadores resistirem à tentação de descrever e classificar seus ob-
jetos emergentes como falhas, incompletudes ou exemplares de algo que já é conhe-
cido e, portanto, controlado. O desafio ontoformativo aqui proposto permitiria que
pensássemos aquilo que hoje tratamos como o sul não somente como uma diferença
e um efeito da Euro-América, mas como um terreno ainda pouco explorado nesta
área do conhecimento.

Bibliografia
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