Você está na página 1de 2

A Falência – 1901 – Júlia Lopes de Almeida (1862 – 1934) – Realismo-Naturalismo Brasileiro - UNICAMP

Incentivada pelo pai e pelo marido, o poeta português Filinto de Almeida, Júlia se dedicou às causas feministas e à
literatura, tendo sido muito lida em vida. Apesar de seu empenho na fundação da ABL, não foi aceita, por ser mulher.
O romance A Falência, não veiculado como folhetim, tem como cenário o Rio de Janeiro de 1891, o auge do café,
e um narrador isento e onisciente em 3ª pessoa, que não condena nem aprova o adultério e a forma de
enriquecimento, embora sugira ser favorável ao trabalho. O enredo traz a família do rico português Francisco
Theodoro e sua esposa Camila, que tiveram um casamento arranjado, visto que Mila veio de uma família pobre
sergipana,que, no Rio, estava hospedada na casa de duas tias, as irmãs solteironas: a beata D. Joana e a avarenta D.
Itelvina. As velhas tinham uma empregada, a negrinha Sancha, que, apesar de abolida a escravidão, era surrada por
Itelvina, o que veio a causar indignação de Ruth, filha de Mila.
Compõe a família de Francisco e Camila o filho mais velho, Mário, um jovem belo e rebelde de 19 anos, que vivia
envolvido em farras e amantes, também a filha Ruth, de 14 para 15 anos, que adorava tocar violino, as gêmeas de 6
anos Lia e Raquel e Nina, filha do irmão de Mila, o qual fugira por não se adaptar ao trabalho. No entanto, a pedido
de Ruth, Francisco gratificará a sobrinha, dando-lhe uma casa modesta. Nina tinha uma paixão secreta pelo primo
Mário e, com a ajuda da empregada, a mulata Noca, respeitada por toda a família, dedicava-se aos afazeres da casa.
Noca representa a cultura popular, pois prevê desgraça com a quebra de um espelho e com a morte da cacatua de
Mila. Uma personagem interessante é Ruth, pois, apesar de ver na música uma forma de fuga da realidade, mostra-se
sensível e forte ao longo da narrativa. Aliás é interessante a descrição impressionista que a envolve, marcada pelo
cromatismo (cores) e pela claridade: “Ruth não os ouvia, voava como uma pluma, cerrando os olhos à claridade que
se difundia nas cores gloriosas de um crepúsculo(entardecer) ardente.”
Há dois frequentadores do palacete bastante ligados à bela Milla de 40 anos; o forte e loiro capitão João Rino, que
a deseja secretamente, e o médico da família, o refinado Doutor Gervásio, que mantém com a dona da casa uma
relação adúltera, já que ela tinha certeza de que o marido a traía também. Ambos mantinham um imóvel para os
encontros secretos. O adultério já era de conhecimento de Nina, Noca e Mário. Este chega a ameaçar a contar tudo ao
pai, que, ambicioso, nada percebia, porque se distanciava da família. A ambição desmedida de Francisco o leva a
desprezar também as artes e os livros, bem como a fazer caridade, apenas para se promover na sociedade. Note esse
aspecto exposto pelo narrador onisciente, por meio do discurso indireto livre (interrogações, exclamações,
repetições, reticências na fala do narrador): “Ser o mais poderoso, o mais rico, o mais forte, tendo partido do nada,
não seria ter alcançado a suprema glória na terra?”
A família mantém uma vida de ostentação num palacete em Botafogo, visto que Francisco, de origem paupérrima e
através de muito trabalho, enriquecera com o comercio do café. Seu armazém tem dois pavimentos: o depósito,
dominado pelos trabalhadores braçais e o andar superior, onde está seu escritório, no qual trabalham os guarda-livros
Ribas, Senra e o Motta. Este último, por ser muito pobre e doente, receberá, a pedido de Francisco, uma visita de
Gervásio. A ida do médico à periferia é pretexto para a autora expor as desigualdades sociais do Rio da época. O
escritório é frequentado, dentre vários outros, pelo especulador Inocêncio Braga, que insiste para que o comerciante
faça investimentos arriscados, a fim de igualar sua fortuna à do vizinho, o brasileiro Gama Torres, que nunca
aparece no enredo, mas cujo sucesso invejava Theodoro, pois o rival enriquecera através de especulações financeiras
e não pelo trabalho árduo. As desigualdades sociais são uma constante nesta obra realista-naturalista, repleta de
zoomorfismos (homem=animal): “Os carregadores serpeavam por meio de tudo aquilo, como formigas em
correição, com a cabeça vergada ao peso da saca.” O naturalismo também vem à tona quando a negra Sancha e a
mulata Noca são determinadas pela inferioridade da raça.
Certo dia, Francisco, Mila, Ruth e Gervásio vão visitar a fragata Netuno comandada por Rino. Lá conhecem
Catarina, irmã do capitão, defensora dos direitos da mulher, que tem acalorado debate com o conservador sexista
Francisco, que diz:“A mulher nasceu para mãe de família. O lar é o seu altar, deslocada dele, não vale nada.” Neste
episódio, a autora se mostra cautelosa quanto aos leitores conservadores da época, pois, ao mesmo tempo que
Catarina se torna porta-voz dos direitos da mulher, a personagem se dedica aos afazeres domésticos e se diz contra o
voto feminino. O pai de Rino e Catarina matara a esposa, ao descobrir que ela era uma adúltera. Neste trecho do
enredo, Francisco também se mostra conservador, ao defender a extinta monarquia, num debate com Rino, defensor
da liberdade republicana. Constatando que Rino era leitor assíduo dos clássicos, Gervásio, ciente do interesse do
capitão por Mila, vê nele um rival perigoso. No retorno ao palacete, Mila sente ciúme, por perceber o desconcerto de
Gervásio ao se esbarrar com uma mulher de vestida de preto. Dias depois, Rino se despede de todos e parte para o
Pará. Na verdade se distancia para esquecer Mila. O rebelde Mário acaba aceitando se casar com a aristocrata
Paquita, e uma luxuosa festa no palacete sela o noivado. Ambos se casam e viajam para a Europa.
Rui Barbosa, ministro da fazenda de Deodoro da Fonseca, empreende o encilhamento, uma política econômica, por
meio da qual o governo disponibilizava dinheiro para os empresários investirem na expansão industrial. No entanto,
parte do empresariado investiu esse recurso em especulações financeiras. Assim, o termo “encilhamento” (ato de
arrear o cavalo para a corrida) faz referência tanto à política que daria a “largada” para a industrialização quanto às
apostas na Bolsa, semelhantes às apostas em corridas de cavalo. Tais apostas arriscadas geravam enriquecimento
rápido, como o do vizinho Gama Torres, mas por outro lado, também levavam muitos à falência. Eis como isso é
retratado na obra: “A pouco e pouco os seus amigos (de Francisco) iam-se atirando à voragem da Bolsa”. Assim,
Francisco, cedendo às pressões de Inocêncio Braga, arrisca em especulações e perde toda sua fortuna. Braga some e
parte para a Europa. Francisco se mata com um tiro na cabeça. Eis a desgraça prevista por Noca.
Falidos, Camila muda-se com as filhas, Noca e Nina para a pequena casa doada a esta. Mesmo a contragosto, Mila
aceita deixar as gêmeas a serem criadas pela baronesa de Lage, irmã de Paquita, e propõe a Gervásio que se casem,
mas este diz ser impossível, revelando já ser casado com a mulher de preto em quem esbarrara e que se negava a
conceder o divórcio a ele. O amante confessa ter passado a trair a esposa, quando soube que ela o traía.Decepcionada
com os homens, mas fortalecida, Mila, acatando o conselho de Ruth, traz de volta as gêmeas e junto com as demais
mulheres da casa dedica-se ao trabalho árduo pela sobrevivência. Rino retorna do Pará e, perguntado pela irmã se irá
procurar Mila, ele reponde: “_Para quê?”
Finalmente, resta-nos questionar: qual a falência que intitula a obra? A falência econômica ou moral? ou as duas?
Aliás, sugere-se que ambas, na obra, são a causa da falência do Brasil, pois assim refletiu Francisco, no fim de sua
vida ambiciosa: “o Brasil seria arrastado vertiginosamente pela maldade de uns, pela ignorância de outros e a
ambição de todos.”

Você também pode gostar