Você está na página 1de 25

3.

L EGADO: um a ja nel a a berta

OPUS ARTIFICEM PROBAT


100 ANOS, 100 FOTOGRAFIAS DAS FACHADAS (2009-14)
Esmeralda Paupério, Clara Pimenta do Vale, Domingas Vasconcelos, Bárbara Rangel

Era uma vez quatro homens, ilustres escultores do Porto, formados na Aca-
demia de Belas-Artes da cidade. Trazem vestidas batas de mangas compridas
cingidas aos pulsos, os seus fatos de trabalho no atelier. Param na Praça e olham
para o edifício em construção. Do alto das fachadas, grossos cabos pendem das
roldanas, subindo e descendo ferramentas e materiais.
Passam por eles quatro mulheres, de saias rodadas e xaile cruzado, trans-
portando argamassa à cabeça. Elas não fazem parte desta história, nesse início
do século XX.
O arquiteto chega. Estudou no Porto e em Paris, é diplomado pelo go-
verno francês. Aprumado, no seu fato de três peças, José Marques da Silva – Sim! Sim! E instrumentos musicais, muitos e variados, de todos os
(1869­‑1947) havia convocado Henrique Araújo Moreira (1890-1979), Diogo tipos. E flores, festões, folhas, faunos, pautas de música com claves de
de Macedo (1889-1959), José Sousa Caldas (1894-1965) e Joaquim Gonçalves fá e de sol e a assinatura de músicos, de Beethoven…
da Silva (1863-1912) para, juntos, delinearem o discurso decorativo das fa- – E os textos?
chadas do Teatro São João. – Sim, talvez uma página com o nome de Goethe e estátuas a encimar a
Apure-se o ouvido para escutar esta reunião na obra: fachada principal, alusivas às tramas do teatro e…
– Sim, sim, claro. E à vida: a Dor, a Bondade, o Amor e o Ódio…
– Sim, sim, claro. As artes cénicas têm de estar presentes nas fachadas. – Ah, sim, mas só o Ódio será masculino, é claro que o Amor terá de ser
Pretende-se um trabalho modernista, no contexto deste edifício e da uma mulher…
memória do anterior… – Oh! Mas assim não há simetria, três mulheres e um homem?
– O dinheiro é pouco e esta Grande Guerra torna tudo mais complicado… – Porque não? Será o último do friso. E motivos geométricos, vários e
– Há que concluir a obra! repetidos, alguns com volume…
– Não, não vamos fazer estátuas em granito. As paredes de suporte não – Algo eclético e elegante, tudo executado com os materiais modernos,
resistiriam… tirando partido da inovadora pedra artificial.
– Rebocos em pedra artificial, semelhante ao que se faz agora em – E quanto pesarão as estátuas? Como se colocam lá em cima? Como se
França, e esculturas em cimento armado? ligam e se fixam os elementos?
– Sim. Este material moderno permite outra liberdade e a custos mais – E as mísulas e as cornijas? Quem desenha? Quem faz?
baixos… – Quantos operários em obra? E quantos mestres?
– O modernismo do edifício ficará plasmado nos materiais e técnicas – E o cimento? Já se garante o fornecimento em Portugal?
construtivas. Faremos imagens alusivas às artes cénicas! – E a opinião dos engenheiros franceses? Auguste Perret? A opinião
226 | 22 7 – Carrancas? Bobos? Uma Medusa? dele é importante…
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

100 anos passados, quatro mulheres, profissionais licenciadas em Engenharia computador em tempo de confinamento motivado pela pandemia do vírus
Civil ou em Arquitetura pela Universidade do Porto, encon­tram-se. Sacodem SARS-CoV-2 (Covid-19). Como selecionar 100 fotografias de entre as mais
as calças e as botas, tiram as luvas e arregaçam as mangas das camisas. Uma de 3000? Exige-se um esforço acrescido para cumprir o trabalho previsto,
delas traz ainda o fluorescente colete verde, indispensável na obra. Cabelos mas nada pode impedir a partilha e a disseminação do conhecimento, nem
desalinhados, de quem andou sobre as coberturas quando o vento soprou da arte e da cultura! Sim, claro, a escolha das imagens será feita, para além
forte, marcas do capacete na testa, batom esbatido, que o nevoeiro e a morri- dos afazeres a que o confinamento obrigou: o trabalho profissional a partir
nha do Porto não ajudam a manter a compostura de uma mulher no andaime de casa, o acompanhamento de filhos que continuam os estudos à distância,
da obra. o voluntariado para o fabrico e distribuição de equipamentos de proteção,
Conversam sobre a recuperação em curso no Teatro Nacional São João. destinados a quem, nos hospitais, cuida dos infetados.
Sim, sim, continuemos. Manhãs de domingo, tardes e serões. Mostremos
– Como é possível não existirem registos dos trabalhos dos escultores? os trabalhos feitos em cima dos andaimes, a escala das peças decorativas,
Quem fez o quê? o rigor da execução, a expressão das esculturas e as marcas que o tempo
– Como colocaram as estátuas lá em cima? nelas vai deixando. Com estas fotografias procuraremos surpreender os
– E quanto pesarão? Têm juntas… menos atentos e chamar a atenção para as fachadas do Teatro. Lançaremos
– Possivelmente terão sido feitas por partes. um convite para uma visita ao edifício através do olhar, diligente e curioso,
– E as mísulas e as cornijas? a quem quiser descobrir segredos, que, afinal, estavam há tantos anos à vista
– O que terá sido modelado in situ, nas próprias fachadas? de todos! Seremos todos a olhar pela cidade, porque quem a faz são os cida-
– Como ligaram e fixaram os elementos? dãos e a história nela entranhada.
– E quantos operários haveria em obra? Onde terão ido buscar Sabemos agora que o cimento armado não é eterno, que a sua degradação
o cimento? é contínua. E sabemos agora que este imenso património decorativo pode
– Quem terá decidido a composição das fachadas? desaparecer se não for continuamente cuidado.
Que a seleção de imagens da obra de conservação deste edifício notável
100 anos após o papel das mulheres na Construção Civil se cingir ao “acar- aqui apresentada possa evidenciar a importância da manutenção regular e
tar da massa” à cabeça, estas quatro mulheres, familiarizadas com a obra e a programada deste vasto património do início do século XX. Nós, que o rece-
recuperação do património, escolhem 100 fotografias dos elementos escultó- bemos e continuamos a desfrutar e a cuidar dele, poderemos assim entregá-
ricos concebidos por quatro homens. Discutem opções, partilham ecrãs de -lo às gerações futuras!
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

228 | 229
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

230 | 231
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

232 | 233
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

23 4 | 235
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

236 | 23 7
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

238 | 239
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

24 0 | 241
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

24 2 | 24 3
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

24 4 | 24 5
3. L EGADO: um a ja nel a a berta
3. L EGADO: um a ja nel a a berta

ESMERALDA PAUPÉRIO é engenheira civil, integra o Instituto


da Construção da Faculdade de Engenharia da Universidade
do Porto e, desde 2000, o Núcleo de Reabilitação. Trabalha na
área da inspeção, diagnóstico e definição de intervenções estru-
turais, em particular no âmbito do património cultural imóvel.
É membro do Conselho de Administração do ICOMOS Portugal
e membro convidado do GECoRPA – Grémio do Património.

CLARA PIMENTA DO VALE é arquiteta, Professora Auxiliar na


Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e inves-
tigadora do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo.
Membro dos corpos sociais dos Arquitetos sem Fronteiras –
Portugal, da Sociedade Portuguesa de Estudos de História de
Construção e da Associação Portuguesa para a Reabilitação
Urbana e Proteção do Património.

DOMINGAS VASCONCELOS é arquiteta. Técnica Superior


na Divisão de Património  Cultural da Câmara Municipal
do Porto. Membro da Comissão Portuguesa do Conselho
Internacional dos Monumentos e Sítios e do Comité Científico
Internacional sobre Lugares de Religião e Ritual.

BÁRBARA RANGEL é arquiteta, investigadora e Professora


Auxiliar do Departamento de Engenharia Civil da Faculdade
de Engenharia da Universidade do Porto. A sua carreira pro-
fissional começou com o Arq. Rafael Moneo e com o Arq.
Álvaro Siza. As áreas de investigação em que trabalha e publica
são Integrated Project Design e Digitalização da Construção.
É editora da revista  Cadernos d’Obra  e editora convidada da
Springer Science.

Todas as imagens: © Instituto da Construção da Faculdade de


24 6 | 247 Engenharia da Universidade do Porto.
coleção
Cadernos do Centenário | 2
Caderno de Obra

direção editorial
João Luís Pereira (TNSJ)

coordenação técnica e científica


Esmeralda Paupério (IC)
Xavier Romão (FEUP)

coordenação editorial
Fátima Castro Silva (TNSJ)

edição
Teatro Nacional São João
Instituto da Construção – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

colaboração
Direção Regional de Cultura do Norte
Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva

design
Sal Studio

revisão
Madalena Alfaia

© 2020, Teatro Nacional São João

impressão
ORGAL Impressores

1.ª edição: novembro de 2020


Depósito legal n.º
ISBN 978-989-54947-0-5

tiragem
500 exemplares

Esquissos inicial e final da frontaria do Teatro: © Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva.
Imagem atual do Teatro © João Tuna, Teatro Nacional São João.

O TNSJ É MEMBRO OPERAÇÃO CENTENÁRIO MECENAS DO CENTENÁRIO


ÍNDICE

11 OBRA ABERTA
Pedro Sobrado

15 DISSEMINAR O CONHECIMENTO
Humberto Varum

17 TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO:


UM SÉCULO A CRIAR MEMÓRIAS
António Ponte

1. PROJETO: 2. INTERVENÇÕES:  3. LEGADO:


NOVOS MATERIAIS, ETAPAS NA UMA JANELA
NOVOS PROGRAMAS CONSTRUÇÃO ABERTA
“JOÃO, VÊ, VÊ, VÊ! IT’S ALIVE! ”
21
DE UM SABER 163 ROTEIRO DAS FACHADAS
CONVERSA COM JOÃO CARREIRA Esmeralda Paupério, Xavier Romão
Ana Martins
105 UMA CÁPSULA DE TEMPO:
OBRA DE CONSERVAÇÃO 227 OPUS ARTIFICEM PROBAT
37 MARQUES DA SILVA, E RESTAURO DAS FACHADAS 100 ANOS, 100 FOTOGRAFIAS
UM CRIADOR NO LIMIAR CONVERSA COM ÂNGELA MELO, DAS FACHADAS (2009-14)
DA MODERNIDADE MARGARIDA LENCASTRE Esmeralda Paupério, Clara Pimenta do Vale,
O TEATRO SÃO JOÃO ENQUANTO DESAFIO E ISABEL DIAS COSTA Domingas Vasconcelos, Bárbara Rangel

PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO Clara Pimenta do Vale


DO SÉCULO XX
Ana Tostões
121 ELEMENTOS DECORATIVOS
DAS FACHADAS DO TEATRO
53 ANVERSO E REVERSO NACIONAL SÃO JOÃO
VINTE E DUAS FOLHAS VOLANTES COM COMO SE CONSTRUÍRAM,
NOTAS E DESENHOS DO ARQUITETO PORQUE SE DEGRADARAM
JOSÉ MARQUES DA SILVA Esmeralda Paupério, Xavier Romão,
Luís Soares Carneiro Nelson Vila Pouca

69 DIALOGAR COM A 149 ARGAMASSAS DO TEATRO


VIBRAÇÃO DA CIDADE NACIONAL SÃO JOÃO
CONVERSA COM ÁLVARO SIZA VIEIRA BASES PARA INTERVENÇÕES NOS
Ana Martins REVESTIMENTOS DECORATIVOS
Ana Velosa
75 A CIDADE VISTA DA OBRA
(2009-19)

Você também pode gostar