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H
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Professor
permanente do Programa de Pós-graduação em psicologia Social da UFS. Endereço: Cidade
Universitária Professor José Aloísio de Campos. São Cristóvão - Sergipe. CEP: 49.100-000
E-mail: klebermatos@uol.com.br
HH
Graduada em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisadora e bolsista do PIBIC
2009/2010.
E-mail: elen.naiara@yahoo.com.br
HHH
Estudante de Psicologia na Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador e bolsista do PIBIC
2009/2010.
E-mail: anciao_eldar@hotmail.com
Kleber Jean Matos Lopes; Elen Naiara Batista Madeiro; Jameson Thiago Farias Silva
Introdução
Máquinas de ver multiplicam seus usos e funções acionando modos de vida
na contemporaneidade. A sensação de registro das ações humanas parece já ter
sido incorporada ao movimento das pessoas nas grandes cidades, tanto em am-
bientes privados como em situações de convívio público. Câmeras digitalizam os
acontecimentos e se fazem testemunhas privilegiadas daquilo que difere e daquilo
que se repete na produção do dia-a-dia na vida das pessoas. Já há um tempo, pais
podem verificar a vida dos filhos em creches e escolas, como também em casa
através de um terminal de computador ligado a câmeras ordenadas nesses lugares.
Grandes ou pequenos estabelecimentos comerciais fazem o mesmo em relação a
seus funcionários e clientes. Terminais “24 horas” de bancos fazem a captura da
imagem dos seus usuários. Ônibus de transporte coletivo também mantém um
registro eletrônico do que acontece em seu interior. A idéia de materialização da
máxima vigilância através desses modos de registro digital de imagens se efetiva
em processos de decisão variados, marcados por interesses diversos, mas esses
processos guardam em comum uma política preventiva e de checagem, que lhes
configuram como um dispositivo otimizado do controle do que se fez, para assim,
sendo necessário, intervir no que se passou ou naquilo que se está a fazer.
O controle do presente é o sentido fundamental dessa política imagética,
que mantém dispositivos de vigilância, que, se não garantem a manutenção de
práticas regulares para os comportamentos, denunciam e ocasionalmente punem
os desvios do que está estabelecido como conduta. Olhares das câmeras espa-
lhados pelo recantos do planeta convergem para uma política do ver que atua
na gerência das populações, tomando assim uma massa por conjunto, ativando
também um modo de experiência individual de resguardo. Um modo de o sujeito
cuidar de si, para que sua distinção no conjunto ao qual pertença esteja pré-esta-
belecida nos limites de possibilidade do mesmo. Daí o olhar absoluto e objetivo
das câmeras para o vivo se alia a cada olhar humano, num movimento em busca
de dizer de si por aquilo que conserva o ser vivo, imerso em coisas que lhe são
próprias, mas sempre disposto numa ordem biopolítica (FOUCAULT, 1999). O
olhar do controle apresenta as suas credenciais e ensina como se deve olhar pra
si, ver o que está dado e daí regular os próprios movimentos. Tomar decisões.
Inquietante, entretanto, notar como essa biopolítica do ver e de produção
das imagens e seus consequentes modos de consumo instauram um ideal de ni-
tidez a ser perseguido. O olhar deixa de ser tomado como algo que possa ser
pensado, passando a funcionar como algo a ser medido. Uma materialização se
objetiva na cena e no que ela contém enquanto imagem, como se a cena fosse
apenas o que se movimenta naquilo que a câmera flagra, como se não houvesse
vida no antes ou no pós-foco. Aquilo que destoa é subtraído do plano de verifica-
ção e fica à margem, sendo enquadrado em clichês como equivoco, erro, achismo
ou algo pessoal. O olhar objetivo e absoluto condena o que se mostra precário e
parcial no que tange aos modos de ver num mundo que investe no controle, como
política de regulação para as experiências do viver.
quando sua vida não mais comporta o seu corpo. A metamorfose se dava no tem-
po de Sansa, mas o tempo da conveniência panóptica resistia aos seus horizontes.
Vê assim sumir os fragmentos que compunham uma verdade que supunha pos-
suir: perde o emprego, se vê abandonado pela família, desencontra-se com a vida
cotidiana de sua época, pois os modos formais daquela circunstância social e as
instâncias morais vigentes não o acolhem.
O personagem Gregor Sansa vê sumir seu chão e esse parece ser um alerta
da intempestiva literatura de Franz Kafka; uma denúncia de que uma hora ou ou-
tra o chão pode sumir para as criaturas que se fazem humanas e cultuam o próprio
sentimento como modo de ocupação afetiva. Após a morte de Gregor Sansa, seus
pais e irmã, por Kafka, encaminham assim seus destinos:
Depois os três deixaram juntos o apartamento, coisa que não
faziam há meses e foram de bonde elétrico para o ar livre
do subúrbio da cidade. O bonde em que ficaram sentados
sozinhos estava totalmente iluminado pelo sol cálido.
Recostados com conforto nos seus bancos, conversaram sobre
as perspectivas do futuro, descobrindo que, examinadas de
perto, elas não eram de modo algum más, pois os três tinham
empregos muito vantajosos e particularmente promissores
– sobre os quais, na verdade, nunca tinham feito perguntas
pormenorizadas um ao outro. É claro que a grande melhora
imediata da situação viria, facilmente, da mudança de casa;
eles agora queriam um apartamento menor e mais barato, mas
mais bem situado e sobretudo mais prático do que o atual, que
tinha sido escolhido por Gregor (KAFKA, 1986, p. 87).
da vida europeia desde o século XVII, mas a sua emergência como política pú-
blica genérica se faz primeiro no reordenamento do estado alemão. Ali Michel
Foucault (1993) vê surgir procedimentos biopolíticos, como a emergência de uma
medicina social, que funciona como um dispositivo que marca a produção de
registros e normas voltados para a preservação do biológico como foco inicial da
formalização dos modos de conduta.
Decisões sobre processos regulamentares e de normalizações das condutas
são atributos do Estado e se vê nesse momento o cruzamento da dimensão panóp-
tica-individual das existências com os processos de adequação das mesmas aos
modos de racionalização governamental, que incidiam nas experiências que eram
atravessadas por questões sanitárias, como a higiene, a natalidade, a longevidade,
etc. Inventa-se o tempo das biopolíticas, marcado inicialmente por essa genera-
lização que se inicia pela configuração moderna do Estado alemão, mas que daí
estabelece um percurso de especialização do seu fazer, que vai se incorporar aos
modos de gestão dos espaços urbanos, para em seguida dar conta das condições
do trabalho nas fábricas, ocupando progressivamente os processos de expressão
da vida, desde uma dimensão geral até uma experiência marcada por particula-
ridades, mantendo sempre a lógica de produzir o viver, deixando que morram
aqueles que não se conformarem às biopolíticas (FOUCAULT, 1993, 1999).
Efeitos da política do fazer viver e deixar que morra propaga-se pelo pla-
neta ao longo do século XX, e apontam para investimentos intensivos e massivos
sobre a produção de olhares marcados por uma potência para o absoluto. No oca-
so desse século, Gilles Deleuze (1992) anuncia uma nova inscrição subjetiva que
emergia nas experiências do viver. Em texto breve e pretensioso diz Deleuze que,
enquanto sociedade, já não temos mais a marca da arquitetura disciplinar. Denun-
cia a falência do espaço que se organizou para a administração dos vivos. É disso
que ele fala. Não fala do fim da disciplina ou mesmo dos modos da extinção da
lógica de subjetivação disciplinar. Fala que uma configuração que se quis morada
dessa lógica ruiu, apontando para o término do espaço demarcado para atividades
específicas que ordenavam um modo de fazer também particular. Deleuze diz do
fim das fronteiras e do fim do gestor unitário como vetor diferenciado que incide
sobre os modos de vida. Anuncia pelos ditos e não-ditos daquele texto, que ao
corpo-individual cabe agora outras modalidades de efetivação para que sobrevi-
vam a essa nova disposição biopolítica, que ele batiza por sociedade de controle.
O racismo moderno, fundado por concepções biológicas para o humano (FOU-
CAULT, 1999), atinge assim seu almejado platô de ser efetivo em cada corpo dis-
posto às flutuações do modo de vida, marcado por processos informacionais e de
consumo incondicional. Uma ordem flutuante experimenta o capitalismo já des-
manchado no ar, mas ainda capitalismo. Uma nova ordem mundial que expurga
da vida as experiências do fora, da diferença, da parcialidade e do intempestivo.
Eis a sociedade mundial de controle.
A marcação dessa intensidade se faz pela busca da destituição de qualquer
fora possível (HARDT, 2000; NEVES, 2004). Valores e experiências quaisquer
devem tender à incorporação por essa nova ordenação, onde o eu é substancia-
lizado por algo que já traz uma marca de significação. Esse mundo sem fora,
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Ontologias do ver na atualidade: que pode um olhar precário
devorador das potencias para o diferente, almeja sempre a garantia do seu signi-
ficado, agindo como se o tempo presente pudesse ser reduzido a um conjunto de
sensações individuais, passíveis de alguma representação, mesmo que imprecisa
e efêmera. Como se cada instante fosse por si a sua totalidade.
É em meio a essa conversa que nos cabe a problematização entre as for-
ças dos instituídos-instituintes dos biopoderes contemporâneos que pontuam a
condição de uma totalidade finita e arbitrária para as experiências do ver, o que
definimos como olhar total, e uma outra condição que prima pela autonomia da
imprecisão do ver e que aponta para produção de alternativas ao que está dado,
que tomamos por olhar precário. Como campo para essa problematização deci-
dimos pelo cinema e as experiências estético-políticas que apertam o coração e
aquelas que retiram o chão.
Afasta-se das pessoas com a faca no corpo, saí do teatro e caminha pela
noite. Assim encerra o filme A Professora de Piano (HANEKE, 2001). Érika é
uma experiência em desacordo com as normas de convivência social. Érica é
uma paixão que não consegue calar e não se permite domar, mesmo quando sub-
jugada. Érika é o desterro voluntário da representação disciplinar. Antes perder o
chão que aprisiona a perder a vida. Como quem inaugura um vôo com as pernas
que possui. Estar em chão desconhecido é como que estar voando. A professora
de piano é busca, é vontade, é invenção de vida, é a política de querer o mesmo
que todo outro poderia querer, fazendo da própria existência uma obra de arte
(FOUCAULT, 2004, 2000).
Os dois filmes não ensejam apenas dois mundos. Jean-Dominique Bauby
em O Escafandro e a Borboleta (SCHNABEL, 2007) mira o mundo do íntimo,
que se alimenta de esperança por renovações. Um mundo com lugares previstos
e, quando muito, posto em reforma, para que o estranho, no íntimo de cada ser,
não estranhe. A professora de piano pouco ensina além do rigor para o aprimora-
mento técnico do instrumento. Sua vida estranha a quem lhe assiste, porque se faz
estranha a Érika. Há disposição em Érika e com isso os mundos vão se criando
para além das teclas e sonoridades do seu piano.
Bauby instala um desconforto para em seguida confortar os corações apie-
dados. Érika retira o chão que pisa e apresenta mais perguntas que respostas. Esca-
fandros e pianos. Professoras e borboletas. Películas que apertam o coração e que
retiram o chão. Não se trata, aqui, de exercícios de análise dos filmes, mas sim uma
consequente aproximação de um campo de estudos que investe em dispor sobre
um modo outro de produzir olhares, tendo por princípio a política de intercessores
proposta por Deleuze (1992). Desse modo se atenta para uma lógica filosófica
problematizante em busca de encontros entre os precários vivos e inventivos.
Referências