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Ontologias do ver na atualidade:

que pode um olhar precário


Kleber Jean Matos LopesH
Elen Naiara Batista MadeiroHH
Jameson Thiago Farias SilvaHHH
Resumo

Esse trabalho problematiza os modos de olhar na atualidade e analisa políticas de


constituição do ver através das noções de olhar precário e olhar total; dispostos como
lógicas de produção de sentidos. Os modos de ver são apresentados genealogicamente
e relacionados aos modos de produção e expressão do pensamento, às biopolíticas
na atualidade e ao fazer do cinema contemporâneo. Discute duas experiências de
cinema através dos filmes O escafandro e a borboleta e A professora de piano, para
pensar movimentos de produção da individualidade ou modos de subjetivação que
possibilitam exercícios de autonomia e fabricação de coletivos.
Palavras-chave: políticas da imagem; modos de subjetivação; cinema; olhar
precário.

Ontologies of sight in present days:


what can a precarious view
Abstract
This paper discusses the ways of view in present days and analyzes policies
constitution of the look, through the notions of the precarious view and total look;
disposed as logical for the production of the senses. The ways of view are
genealogical presented and related to the modes of production and expression of
thought, to the biopolitical in the present time and to the make of the contemporary
cinema. Discusses two cinema experiences through the movies Le scaphandre et le
papillon and La pianist, to think movements of individuality production or modes of
subjectivity that allow exercises of autonomy and fabrication of collective.
Keywords: politics of image; modes of subjectivity; cinema; precarious view

H
 Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Professor
permanente do Programa de Pós-graduação em psicologia Social da UFS. Endereço: Cidade
Universitária Professor José Aloísio de Campos. São Cristóvão - Sergipe. CEP: 49.100-000
E-mail: klebermatos@uol.com.br
HH
 Graduada em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisadora e bolsista do PIBIC
2009/2010.
E-mail: elen.naiara@yahoo.com.br
HHH
 Estudante de Psicologia na Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador e bolsista do PIBIC
2009/2010.
E-mail: anciao_eldar@hotmail.com
Kleber Jean Matos Lopes; Elen Naiara Batista Madeiro; Jameson Thiago Farias Silva

Introdução
Máquinas de ver multiplicam seus usos e funções acionando modos de vida
na contemporaneidade. A sensação de registro das ações humanas parece já ter
sido incorporada ao movimento das pessoas nas grandes cidades, tanto em am-
bientes privados como em situações de convívio público. Câmeras digitalizam os
acontecimentos e se fazem testemunhas privilegiadas daquilo que difere e daquilo
que se repete na produção do dia-a-dia na vida das pessoas. Já há um tempo, pais
podem verificar a vida dos filhos em creches e escolas, como também em casa
através de um terminal de computador ligado a câmeras ordenadas nesses lugares.
Grandes ou pequenos estabelecimentos comerciais fazem o mesmo em relação a
seus funcionários e clientes. Terminais “24 horas” de bancos fazem a captura da
imagem dos seus usuários. Ônibus de transporte coletivo também mantém um
registro eletrônico do que acontece em seu interior. A idéia de materialização da
máxima vigilância através desses modos de registro digital de imagens se efetiva
em processos de decisão variados, marcados por interesses diversos, mas esses
processos guardam em comum uma política preventiva e de checagem, que lhes
configuram como um dispositivo otimizado do controle do que se fez, para assim,
sendo necessário, intervir no que se passou ou naquilo que se está a fazer.
O controle do presente é o sentido fundamental dessa política imagética,
que mantém dispositivos de vigilância, que, se não garantem a manutenção de
práticas regulares para os comportamentos, denunciam e ocasionalmente punem
os desvios do que está estabelecido como conduta. Olhares das câmeras espa-
lhados pelo recantos do planeta convergem para uma política do ver que atua
na gerência das populações, tomando assim uma massa por conjunto, ativando
também um modo de experiência individual de resguardo. Um modo de o sujeito
cuidar de si, para que sua distinção no conjunto ao qual pertença esteja pré-esta-
belecida nos limites de possibilidade do mesmo. Daí o olhar absoluto e objetivo
das câmeras para o vivo se alia a cada olhar humano, num movimento em busca
de dizer de si por aquilo que conserva o ser vivo, imerso em coisas que lhe são
próprias, mas sempre disposto numa ordem biopolítica (FOUCAULT, 1999). O
olhar do controle apresenta as suas credenciais e ensina como se deve olhar pra
si, ver o que está dado e daí regular os próprios movimentos. Tomar decisões.
Inquietante, entretanto, notar como essa biopolítica do ver e de produção
das imagens e seus consequentes modos de consumo instauram um ideal de ni-
tidez a ser perseguido. O olhar deixa de ser tomado como algo que possa ser
pensado, passando a funcionar como algo a ser medido. Uma materialização se
objetiva na cena e no que ela contém enquanto imagem, como se a cena fosse
apenas o que se movimenta naquilo que a câmera flagra, como se não houvesse
vida no antes ou no pós-foco. Aquilo que destoa é subtraído do plano de verifica-
ção e fica à margem, sendo enquadrado em clichês como equivoco, erro, achismo
ou algo pessoal. O olhar objetivo e absoluto condena o que se mostra precário e
parcial no que tange aos modos de ver num mundo que investe no controle, como
política de regulação para as experiências do viver.

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Entretanto, os avanços tecnológicos de viés eletrônico, aliados aos mo-


dos de gestão dos vivos, são instituições recentes na historiografia do humano.
Remontam há pouco mais do que dois séculos, daí, talvez nesse momento, onde
evoluem políticas para extinguir o precário e o parcial nos modos de ver, alguma
importância exista em problematizar o que seriam os modos de olhar, quando não
tinham a seu serviço os dispositivos imagéticos da atualidade. Pensar a biopolíti-
ca dos modos de ver contemporâneos aponta para discussões que possibilitem a
não naturalização do vivo enquanto espécie humana e é para isso que essas linhas
se voltam buscando articular a uma história da visão que percorra processos da
inserção das biopolíticas nos modos de viver, problematizando-os através da aná-
lise dos filmes A Professora de Piano e O Escafandro e a Borboleta.

Pensando a condição do olhar precário em tempos biopolíticos


Ao olhar total das biopolíticas do ver contrapõe-se o olhar parcial, como
uma força capaz de participar dos modos de produção de sentido. Esse olhar par-
cial designado aqui por olhar precário trabalha no registro da insuficiência, o que
lhe carrega em forças para possibilidades de encontro. Qualquer olhar precário
possui essa sina de não se bastar e com ela pode encontrar aquilo que seja capaz
de potencializar ainda mais a parcialidade do seu alcance visual. O incremento
da sua insuficiência lhe possibilita a invenção das imagens que mira e não apenas
uma decodificação. Aponta-se assim para uma condição dos modos de ver e lidar
com o que se faz ou se quer verdadeiro.
Um olhar insuficiente e ciente de sua condição é um olhar que busca um
outro para fazer em par um encontro e produzir algum sentido. Ele observa como
quem não sabe, mas quer saber, não sobre o seu ponto de vista, já que é precário,
mas naquilo que se faz nesse encontro com um outro. Ele não é tragado pelo
quadro que se compõe a sua frente e também não resume esse quadro à sua per-
cepção. A insuficiência que aprimorou traduz uma habilidade em adentrar nas
margens dos sentidos imediatos, de deixar a primeira cena, sair da cena.
O olhar precário é quase nada sem parcerias e encontros. Sua política é es-
tar quase sempre em desencontro, mas ativo em querer encontrar algo ou alguém.
Trata-se de uma filosofia dos modos de percepção e, em se tratando de filosofia,
imagens da produção nietzschiana em tempos de semi-árido no pensamento são
como nuvens acinzentadas no céu, que permitem imaginar o cheiro da terra mo-
lhada, na chuva que se avizinha.
Diz Nietzsche (2000, p. 270): “Por mais que o homem se estenda em seu
conhecimento, por mais objetivo que pareça a si mesmo: enfim nada tirará disso,
a não ser sua própria biografia”. O filósofo desencana o homem do si-mesmo,
alerta para os riscos do olhar absoluto, objetivo, genérico e totalizante. Nesse
breve e intenso fragmento, acentua a necessidade do não pertencimento das coi-
sas, das experiências, dos saberes a um plano exclusivo de codificação. É como
se dissesse que ver de menos pode ser mais interessante que ver demais. Como se
gritasse que a insuficiência do ver não permite ao ser se bastar.

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Em A Esperança de Pandora, Bruno Latour (2001) apresenta movimentos


que problematizam a produção do saber, que se estendem da denúncia ao acordo
moderno para a produção da verdade na história do ocidente até a possibilidade
de fabricação do conhecimento por coletivos, através do que ele toma por uma
relação em par, composta por humanos e não-humanos. Uma construção híbrida,
impura e parcial é o conhecimento para Latour. Um produto-saber disposto a
novos encontros. Para ele, o ato de produzir saber não está no mérito do sujeito
conhecedor, nem na imposição à realidade da conhecida. A produção de saber é
como um organismo vivo que conta com um sistema circulatório labiríntico, onde
em suas veias e artérias circulam humanos e não-humanos que alimentam esse
organismo com a energia que é produzida nas colisões de uns com outros. O olhar
que corre nas vias desse coletivo vivo somente produz a partir dos encontros, por-
tanto é precário ou insuficiente em relação ao pensar de Latour (2001).
Em Gilles Deleuze, a precariedade do olhar ressoa como condição para
uma política por intercessores. O sentido nesse texto valoriza antes a interfe-
rência que a possibilidade de um registro insípido, incolor e inodoro de alguma
plausibilidade. Deleuze (1992) mira a interferência como condição para o ato de
pensar, um trabalho para a criação. Reverbera em seu dizer a necessidade de fa-
bular como um movimento capaz de inventar modos de estar no mundo.
Pegar as pessoas em flagrante delito de fabular é captar o
movimento de constituição de um povo. Os povos não
preexistem. De certa maneira, o povo é o que falta, como
dizia Paul Klee. Será que existia um povo palestino? Israel diz
que não. Sem dúvida existia um, mas isso não é o essencial.
Pois, a partir do momento em que os palestinos são expulsos
de seu território, na medida em que resistem, eles entram
num processo de constituição de um povo. Isso corresponde
exatamente ao que Perrault chama de flagrante delito de
fabular. Não existe povo que não se constitua assim. Então,
às ficções pré-estabelecidas que remetem sempre ao discurso
do colonizador, trata-se de opor o discurso de minoria, que se
faz com os intercessores (DELEUZE, 1992, p. 157).

É bela a imagem deleuziana do modo de fabular e do modo de se fazer


minoria. São dois processos aí envolvidos. Fabular para o mundo e para si ao
mesmo tempo e nesse tempo encontrar a ressonância que permite a invenção, que
incorpora a diferença que a fábula traz e com ela constitui uma realidade parti-
lhada, uma coletividade. O olhar precário potencialmente ativa a condição de en-
contro e partilha. O olhar precário é força que intui a fabulação e nessa atividade
opõe-se aos processos de captura e colonização. Desse modo, o olhar precário é
um olhar intuitivo e parcial. Daí sua necessidade de fazer em par. Com Deleuze,
o olhar aponta para um modo de precarização criativo, fabulante e parceiro nos
modos de composição do mundo. Um olhar que se opõe aos pré-estabelecidos e
às formas colonizadoras.

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A idéia de colonização em geral supõe uma hierarquia entre colonizador e


colonizado, buscando justificar o próprio processo de colonização. O colonizado
é tomado por inferior, menor, insuficiente e incapaz. O colonizador como aquele
que instituí uma gramática particular para instaurar a verdade e a metodologia de
seu uso. Essa reflexão em torno da noção de olhar precário e de problematização
das biopolíticas do ver recusa essa dicotomia como referência para pensar essas
questões. Entretanto a toma como uma modo de condução das experiências da
vida e, ante ela, assume-se como uma contra-conduta (FOUCAULT, 2008). Na
política do encontro há que se privilegiar a novidade, a produção criativa que
trabalha na fabricação de outros modos de estar vivendo. Assim não é o olhar pre-
cário um produto da resistência a um olhar totalizador, posto que sua genealogia
apresenta uma duração mais extensa. Novamente Nietzsche (1976, p. 78):
A má consciência é para mim o estado mórbido em que devia
ter caído o homem quando sofreu a transformação mais
radical que nunca houve, a que ele se produziu quando se viu
acorrentado à argola da sociedade e da paz. À maneira dos
peixes obrigados a adaptarem-se a viver em terra, esses semi-
animais, acostumados à vida selvagem, à guerra, às correrias
e aventuras, viram-se obrigados de repente a renunciar a
todos os seus nobres instintos.

A fabulação nietzschiana anuncia um mundo onde pairava a precarização


do olhar e a vida se fazia num modo de viver aguerrido, apaixonado e incerto. Daí
segue outra fábula, essa que supõe em um dia qualquer desse tempo remoto, um
olho se dispôs sobre outro. Isso sem saber o que estava fazendo, já que o olhar
precário não sabe bem o que faz ao certo. Deu-se aí, depois dessa disposição um
efeito qualquer que envolveu o olhar numa busca de repetição, que lhe conduziu
a um processo de aprimoramento e se desdobrou num modo de relação consigo
e com o mundo onde a guerra, a paixão e a incerteza se dispuseram enquanto
entraves e não mais modos de vida.
Esse efeito, absolutamente não datável, estabelece um percurso visual. A
parcialidade se traduz por limitação. É uma outra política sendo acionada. Não
mais a da fabulação intercessora, parcial e criativa. Agora o parcial demanda
instrumentos para se afirmar sobre os parciais desinstrumentalizados. A guerra
continuada por outros modos, como diria Foucault (1999), quando o que está em
luta é a defesa de bandeiras.
O que se precisava dizer então é que antes da emergência de uma vida
instrumental, havia a vida, em qualquer tempo. É essa a condição. E a vida não
se bastando, se qualifica e desses modos de qualificação, se expande, se reifica,
se contraria, se inventa. Isso é uma outra história. Nesse momento, a história é
anterior. É construir uma imagem que permita em texto sustentar a idéia de que
a vida normativa é quem resiste ao olhar precário, em estratégias de extermínio
de uma política autopoiética (MATURANA; VARELA, 1995), que esse difundia
em seu fazer. É desse modo que emerge uma outra proposição do olhar total,
que seria um olhar que busca através de processos de instrumentalização do seu

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foco, ultrapassar a condição de precariedade dos campos imagéticos. Um olhar


que busca se dispor como o olhar, subvertendo a sua singularidade perceptiva
por um modo de identificação persecutório. Um olhar com razões que buscam se
estabelecer antes da experiência do ver, para que o ver seja aqui o que se permite
enxergar, aquilo que vai se dar às vistas. Jogos do verdadeiro.
Ressoa nesse modo de encaminhar a questão o pensamento do dromólogo
Paul Virilio, como também do filósofo Michel Foucault. Em Virilio (2002a), na
sua discussão sobre a genealogia do olhar, evidenciam-se os efeitos da vida ins-
tantânea sobre os antigos modos de assimilação, retenção e recuperação das men-
sagens mentais que, para esses, foram devastadores. Sobre o olhar se envolveram
procedimentos de mecanização, processos que não ocorrem sem uma considerá-
vel perda de autonomia. Ou seja, o que vem se afirmando e está cada vez mais
forte no campo da política do olhar é o que Virilio chama de Máquina de Visão,
resultado de um processo que teve o olho humano como objeto de cobiça, mas
que para alcançar o desejado, primeiro retirou o que havia de humano no olhar,
no caso a sua precariedade e vontade de encontro, para depois transpor esse novo
olhar desumanizado para a máquina, que nesse ponto, também já desumanizada,
efetiva sua sobreposição ao olhar humano.
Uma história que acentua um investimento na objetivação que o desenvol-
vimento tecnológico enseja e, mais que isso, uma política de sobreposição desse
desenvolvimento nos processos de subjetivação modernos e contemporâneos.
Nesse sentido, a discussão proposta por Paul Virilio encontra-se aqui com a aná-
lise foucaultiana sobre a produção e expansão dos modos da experiência discipli-
nar e das biopolíticas que, ao longo dos últimos três séculos, marcam modos de
ser e estar no mundo. Michel Foucault (1995) primeiro reconhece na genealogia
da vida moderna uma maneira de exercício de força marcado por minúcias que
produziram um modo-indivíduo capaz de adequação às normas e a um projeto de
vida liberal que estava em ascensão pela Europa do século XIX. Um ser dociliza-
do que é absorvido pela cronologia que organiza os espaços de produção e con-
vivência, submetido a um registro permanente de suas ações, que podem se dar
por uma hierarquia circunstancial, mas que se efetivam principalmente através de
um modo de ver a si-mesmo, todo o tempo. Um olhar da interioridade que está
sendo edificado; um olhar panóptico. A esses procedimentos, Michel Foucault
denominou poder disciplinar.
Importante apontar para um paradoxo que se estabelece com uma idéia de
totalidade que guarda o registro de uma singularidade privada, aqui tomada por
individualidade. O grande olhar, o pan-óptico, alimenta-se com as diligências
que se voltam para um si-ensimesmado. É preciso saber desse si que se configura
numa forma-eu, dos seus limites e medos, das suas capacidades e competências
que configuram o desempenho das experimentações cotidianas. Em Franz Kafka
(1986), o personagem Gregor Sansa é a denúncia desse modo de configuração do
si. Como um eu-sujeito-moderno, Sansa seria um modo de si que não conseguiu
ensimesmar-se. Um sujeito que, posto nas malhas da individualização, desperta
para o que construía, já não podendo atender as demandas que se impusera em
suas conexões com o mundo. Do drama burguês inaugura uma breve tragédia
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quando sua vida não mais comporta o seu corpo. A metamorfose se dava no tem-
po de Sansa, mas o tempo da conveniência panóptica resistia aos seus horizontes.
Vê assim sumir os fragmentos que compunham uma verdade que supunha pos-
suir: perde o emprego, se vê abandonado pela família, desencontra-se com a vida
cotidiana de sua época, pois os modos formais daquela circunstância social e as
instâncias morais vigentes não o acolhem.
O personagem Gregor Sansa vê sumir seu chão e esse parece ser um alerta
da intempestiva literatura de Franz Kafka; uma denúncia de que uma hora ou ou-
tra o chão pode sumir para as criaturas que se fazem humanas e cultuam o próprio
sentimento como modo de ocupação afetiva. Após a morte de Gregor Sansa, seus
pais e irmã, por Kafka, encaminham assim seus destinos:
Depois os três deixaram juntos o apartamento, coisa que não
faziam há meses e foram de bonde elétrico para o ar livre
do subúrbio da cidade. O bonde em que ficaram sentados
sozinhos estava totalmente iluminado pelo sol cálido.
Recostados com conforto nos seus bancos, conversaram sobre
as perspectivas do futuro, descobrindo que, examinadas de
perto, elas não eram de modo algum más, pois os três tinham
empregos muito vantajosos e particularmente promissores
– sobre os quais, na verdade, nunca tinham feito perguntas
pormenorizadas um ao outro. É claro que a grande melhora
imediata da situação viria, facilmente, da mudança de casa;
eles agora queriam um apartamento menor e mais barato, mas
mais bem situado e sobretudo mais prático do que o atual, que
tinha sido escolhido por Gregor (KAFKA, 1986, p. 87).

Em A metamorfose de Franz Kafka (1986), a família de Sansa toma nas mãos o


seu destino após a morte daquele que fora seu provedor durante muito tempo.
Essa decisão, carregada de boas perspectivas, efetiva o desapego com a condição
de memória implicada com o moribundo-Gregor ou mesmo o provedor-Gregor.
Não seria absurdo apontar aí uma decisão disciplinar – panóptica – de quem ne-
cessita e quer outro modo de relação consigo e com o mundo, nessa sequência,
para garantir acesso às boas novidades da vida moderna, que se anunciavam, já
no começo do século XX.
Importante estabelecer a relação dessa condição disciplinar que deman-
da um olhar que se debruça sobre o si-mesmo e desse modo efetua uma possi-
bilidade de aprimoramento do olhar precário com outro processo histórico que
vai produzir um olhar abrangente e totalizador dos modos existenciais, ao longo
do que se toma por modernidade: o olhar do biopoder (FOUCAULT, 1999). Ao
mesmo tempo em que se desenvolvia essa anátomo-política para os corpos en-
quanto indivíduos, entendida por constituição da economia disciplinar, Foucault
vê funcionar, na mesma Europa, modos de tomar esses corpos por conjunto, no
sentido de dispô-los e organiza-los num território, ativando através desses pro-
cedimentos meios de garantias para a vida da espécie. Toma-os assim como um
corpo-conjunto denominado população. Essa conversa aparece em várias cenas

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da vida europeia desde o século XVII, mas a sua emergência como política pú-
blica genérica se faz primeiro no reordenamento do estado alemão. Ali Michel
Foucault (1993) vê surgir procedimentos biopolíticos, como a emergência de uma
medicina social, que funciona como um dispositivo que marca a produção de
registros e normas voltados para a preservação do biológico como foco inicial da
formalização dos modos de conduta.
Decisões sobre processos regulamentares e de normalizações das condutas
são atributos do Estado e se vê nesse momento o cruzamento da dimensão panóp-
tica-individual das existências com os processos de adequação das mesmas aos
modos de racionalização governamental, que incidiam nas experiências que eram
atravessadas por questões sanitárias, como a higiene, a natalidade, a longevidade,
etc. Inventa-se o tempo das biopolíticas, marcado inicialmente por essa genera-
lização que se inicia pela configuração moderna do Estado alemão, mas que daí
estabelece um percurso de especialização do seu fazer, que vai se incorporar aos
modos de gestão dos espaços urbanos, para em seguida dar conta das condições
do trabalho nas fábricas, ocupando progressivamente os processos de expressão
da vida, desde uma dimensão geral até uma experiência marcada por particula-
ridades, mantendo sempre a lógica de produzir o viver, deixando que morram
aqueles que não se conformarem às biopolíticas (FOUCAULT, 1993, 1999).
Efeitos da política do fazer viver e deixar que morra propaga-se pelo pla-
neta ao longo do século XX, e apontam para investimentos intensivos e massivos
sobre a produção de olhares marcados por uma potência para o absoluto. No oca-
so desse século, Gilles Deleuze (1992) anuncia uma nova inscrição subjetiva que
emergia nas experiências do viver. Em texto breve e pretensioso diz Deleuze que,
enquanto sociedade, já não temos mais a marca da arquitetura disciplinar. Denun-
cia a falência do espaço que se organizou para a administração dos vivos. É disso
que ele fala. Não fala do fim da disciplina ou mesmo dos modos da extinção da
lógica de subjetivação disciplinar. Fala que uma configuração que se quis morada
dessa lógica ruiu, apontando para o término do espaço demarcado para atividades
específicas que ordenavam um modo de fazer também particular. Deleuze diz do
fim das fronteiras e do fim do gestor unitário como vetor diferenciado que incide
sobre os modos de vida. Anuncia pelos ditos e não-ditos daquele texto, que ao
corpo-individual cabe agora outras modalidades de efetivação para que sobrevi-
vam a essa nova disposição biopolítica, que ele batiza por sociedade de controle.
O racismo moderno, fundado por concepções biológicas para o humano (FOU-
CAULT, 1999), atinge assim seu almejado platô de ser efetivo em cada corpo dis-
posto às flutuações do modo de vida, marcado por processos informacionais e de
consumo incondicional. Uma ordem flutuante experimenta o capitalismo já des-
manchado no ar, mas ainda capitalismo. Uma nova ordem mundial que expurga
da vida as experiências do fora, da diferença, da parcialidade e do intempestivo.
Eis a sociedade mundial de controle.
A marcação dessa intensidade se faz pela busca da destituição de qualquer
fora possível (HARDT, 2000; NEVES, 2004). Valores e experiências quaisquer
devem tender à incorporação por essa nova ordenação, onde o eu é substancia-
lizado por algo que já traz uma marca de significação. Esse mundo sem fora,
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devorador das potencias para o diferente, almeja sempre a garantia do seu signi-
ficado, agindo como se o tempo presente pudesse ser reduzido a um conjunto de
sensações individuais, passíveis de alguma representação, mesmo que imprecisa
e efêmera. Como se cada instante fosse por si a sua totalidade.
É em meio a essa conversa que nos cabe a problematização entre as for-
ças dos instituídos-instituintes dos biopoderes contemporâneos que pontuam a
condição de uma totalidade finita e arbitrária para as experiências do ver, o que
definimos como olhar total, e uma outra condição que prima pela autonomia da
imprecisão do ver e que aponta para produção de alternativas ao que está dado,
que tomamos por olhar precário. Como campo para essa problematização deci-
dimos pelo cinema e as experiências estético-políticas que apertam o coração e
aquelas que retiram o chão.

Dois filmes, quantos mundos?


Ao pensar a aceleração que se impõe aos processos perceptivos, Paul Virilio
(2002b[1996]) revela formas de poder que atuam cada vez mais rápidas e que não
necessitam de espaços fechados para seu exercício. Ele faz reflexões sobre uma
crise instalada nos modos de representação analisando o que chama de logística
da percepção. Essa logística desconsidera antigos modos de produção de ima-
gens mentais em nome da instantaneidade e efemeridade perceptiva que evolui na
construção de imagens mentais. A consolidação de imagens à moda antiga estava
diretamente ligada aos usos que se fazia do aparelho óptico fisiológico. De outro
modo, com as tecnologias informacionais comprimindo as dimensões do univer-
so, produz-se uma potência disposta ao olhar que não mais lhe pertence. No caso,
ver além do seu alcance. Virilio (2002a) qualifica essa relação como um processo
que subjuga a aptidão fisiológica do olhar, o que impõe uma negativização da sua
precariedade, tomando-o agora como obsoleto, falível e que demanda próteses
que lhe ampliem a dimensão visual, como uso de lentes macro, microscópica,
telescópica e em seguida imagens produzidas por ressonâncias eletromagnéticas.
Essa relação é marcada por uma politica que visa o controle, já que os artefatos
tecnológicos não estão disponíveis às massas, no que tange seu consumo ampliado
e público, muito menos o conhecimento que lhe garante produção e funcionamen-
to. Uma relação de captura violenta, marcada por uma dinâmica que pontua o que
deve ser e o que não deve ser importante, válido e verdadeiro.
Daí, chegamos ao cinema como um campo de discussão dessas condições
de exercício do olhar precário. O cinema como máquina que reforça ou acusa
essa condição de controle. O cinema como um entretenimento que ativa uma
experiência sensório-motora ou o cinema que se propõe uma dimensão estético-
política que acione possibilidades de diferença em busca de outra dimensão tem-
poral que não o aqui-agora, demandando assim a criação de novas realidades.
Diz Deleuze (1992, p. 223) que “[...] é fácil fazer corresponder a cada so-
ciedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes,
mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhe darem nascimento e
utilizá-las”. As máquinas funcionam como dispositivos que produzem e agregam

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às experiências que realizam seus esforços por manutenção de um certo estado de


coisas ou por uma postura contra essa política, em busca de uma outra dimensão
estética, para que suas ações desencaminhem o que está posto e realizem um ou-
tro evento (CONDE, 2005).
Esse jogo que busca a produção de permanências ou de descaminhos, aqui
nomearemos de experiências que apertam o coração, ou que retiram o chão daque-
les que com ela compõem. As forças que trabalham por uma captura sentimental,
o fazem atuando como máquinas de repetição. A sua linguagem qualifica-se pela
capacidade de síntese que uma experiência estética possa produzir. Daí o cinema-
que-aperta-o-coração assume uma dimensão industrial no seu fazer, fabricando
experiências áudio-visuais voltadas para demandas sensório-motoras (DELEU-
ZE, 1992 apud VASCONCELLOS, 2006), que funcionam ao mesmo tempo de
modo genérico, quando tomando seu público por conjunto, e também particular,
quando viabiliza uma sensação de intimidade com o indivíduo, que se permitira
uma absorção sentimental com aquilo que passa na tela.
Esse jogo que generaliza e particulariza a relação do humano com um cer-
to modo de produção e disposição de imagens áudio-visuais funciona como um
dispositivo biopolítico produtor de subjetividades normalizadas, marcadas por
processos de consumo que atendem a uma condição imediata dos sujeitos. Há
uma emoção a ser perseguida e o enredo da película o faz através de situações
que moralizam o sentido desse modo de cinema, pois seu alvo se reflete no que
se toma pela interioridade de cada sujeito que o assiste. É como se esse cinema
estivesse a comprovar essa condição de interioridade, que demanda cuidados,
aprimoramento e contra-partida.
O outro modo de cinema que tratamos aqui é o cinema-que-retira-o-chão.
Esse cinema atua noutra dimensão estético-política, se posto em comparação com
o cinema-que-aperta-o-coração. Retirar o chão é como que demandar desterrito-
rializações (GUATTARI; ROLNIK, 1996). É denunciar uma zona de conforto
existencial e anunciar um convite a outras possíveis territorializações. É investir
num tempo não disposto no instante, mas marcado por uma política do futuro do
pretérito (CONDE, 2005), onde o que estamos a fazer de nós é uma condição de
pensamento que inventa o vivo na vida. Marcas de um sujeito que rompe com a
condição de um si-ensimesmado e inaugura uma outra possibilidade estética.
Para uma única pessoa, a realidade do mundo seria sem
verossimilhança. Porém, para duas pessoas, ela se torna
verossímil. Com efeito, a outra pessoa é uma ilusão
de nós, totalmente nossa “vontade”, totalmente nossa
“representação”: e nós somos nela. Todavia, como sabemos
que ela necessariamente se engana a nosso respeito e que
somos uma realidade apesar do fantasma que ela faz de nós
em sua cabeça, concluímos que ela também é uma realidade,
apesar da ilusão que temos a seu respeito: em poucas palavras,
que há realidades fora de nós. (NIETZSCHE, 2005, p. 83)

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Ontologias do ver na atualidade: que pode um olhar precário

Essa possibilidade de realização fora da condição em que se encontra o su-


jeito, mesmo como efeito da ação de um olhar que se engana, de um olhar precário,
inventa um modo de enunciação coletivo, onde um vai se dizendo no outro e assim
em sucessão. Produz uma ética esse cinema que retira o chão, quando da sua ro-
teirização e produção, carregando essa marca para a experiência áudio-visual que
enseja. Ele é o encontro num espaço que se dá fora da tela, fora do si-ensimesmado
e fora, ainda, do espaço material e objetivo desse encontro, no caso o espaço de
projeção. A realização do fora se dá num tempo-espaço a ser inventado.
Para exemplificar esses dois modos de cinema, trazemos aqui os filmes A
Professora de Piano (HANEKE, 2001) e O Escafandro e a Borboleta (SCHNA-
BEL, 2007) que funcionam nos dois registros da discussão política, ética e estética
que apresentamos. Em O Escafandro e a Borboleta temos a história de superação
de um acidente vascular cerebral em Jean-Dominique Bauby, que o deixa imo-
bilizado, tendo apenas o olho esquerdo sob seu controle. Diagnosticado como
portador da “Síndrome do encarceramento”, Jean-Dominique tem preservada as
funções do cérebro, estando impossibilitado entretanto que os seus comandos
cheguem às partes do corpo. Vê, ouve, raciocina, emociona-se e compreende o
mundo da mesma forma que antes, mas tem agora apenas o olho esquerdo para
fazer contato com o mundo.
Dominique se encontra então num hospital, que serve de cenário princi-
pal para o filme, e vê confluírem para sua pessoa esforços clínicos da medicina,
fonoaudiologia, fisioterapia, enfermagem dentre outros, como um propósito ali-
mentado por uma esperança de recuperação. Dominique, entretanto, se mostra
indiferente, em princípio, questionando se aquilo que lhe acomete poderia ser
tomado por vida. O enredo de O Escafandro e a Borboleta (SCHNABEL, 2007)
revela então um tom de moralidade que diz ser a vida uma necessidade de vi-
ver, enquanto se está respirando. Vários personagens no filme vêm até Domini-
que para lhe dizer que resista, que finque trincheira e lute por algum avanço em
conjunto com as terapêuticas que lhe são endereçadas. Os esforços técnicos dos
profissionais do hospital e de Dominique vão assumindo a cada cena um ar de
comoção, como se o chão que Dominique perdera encontrasse solo fértil em cada
coração que a sua narrativa possa vir a tocar.
Dominique é mais um caso que uma narrativa. Dominique é mais um
exemplo que uma experiência posta a encontros. Dominique é uma realização
através de seu olho esquerdo que aprende um modo de escrita para contar a sua
própria história que, como história do indivíduo, pode ser a história de cada hu-
mano. Um acerto de contas. Entretanto, O Escafandro e a Borboleta (SCHNA-
BEL, 2007) é um cinema de grande qualidade técnica e de fotografia inventiva.
Faz do olho vivo de Dominique uma câmera privilegiada que captura o que se
passa ao seu redor. Uma câmera precária que vê mal, que não foca bem e está
sem referentes para entender o que se passa. Um médico lhe explica a situação.
Parece pouco para Bauby, até que num breve passeio pela varanda do hospital
o olho-câmera vê seu próprio corpo refletido numa parede espelhada. Daí a
contra-partida em Dominique, que enxerga pela primeira vez e de maneira so-
litária, aquilo em que se transformou; um moribundo. É necessário cuidar do
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moribundo e é preciso que esse moribundo busque a superação da sua condição


psico-fisiológica. É imperioso que Dominique se esforce para voltar à condição
de conjunto, de ente de uma população produtiva.
Em O Escafandro e a Borboleta (SCHNABEL, 2007) as cenas se enca-
minham para avanços terapêuticos na vida de Dominique e, embalado pela bela
trilha sonora de Charles Trenet - La Mer - Jean-Dominique Bauby vê a esperança
fazendo-se chama para a sua existência. Sua tragédia ganha a circunstância do
drama. O belo filme, a bela música e a inusitada condição de Dominique que
entre o escafandro e a borboleta decide pela segunda, são ingredientes que des-
pertam lágrimas silenciosas de muitos que o assistem, quando os créditos no fim
da película começam a passar pela tela. A impressionante força de Bauby, quando
disposta no modo-cinema, agrega pelo aperto ao coração, já que o chão de cada
humano que o assiste, se renova com a esperança que Dominique não pode des-
frutar. Morre de pneumonia logo após o lançamento de seu livro.
Em A Professora de Piano (HANEKE, 2001) a proposta segue outra dire-
ção. As cenas que atravessam a vida de Érika – personagem principal do filme –
encaminham mais desmanchamentos que edificações existenciais. As suas perdas
não se configuram em danos. Érika é perfeccionista e não permite que paixões atra-
vessem a sua atividade de intérprete e professora de piano. Disciplina, treinamento
e apuro técnico orquestram-se naquilo que parece ser significado fundamental da
existência de Érika. Mas a dedicação de Érika à música não é o tom exclusivo
da sua vida. Érika experimenta passionalidades incomuns. Mora com a mãe e,
numa cena, logo ao começo do filme, discute com ela e a agride fisicamente. Em
seguida, as duas estão abraçadas, chorando e se desculpado. A rigidez disciplinar
fracassa quando os afetos permitem um passeio à flor da pele (DOMINGUES,
2010). O fracasso da regularidade é ainda mais intenso quando Érika conhece um
rapaz num recital, que tem grande talento para interpretações ao piano, mas que se
nega a aprimorar esse talento através do esforço e da disciplina técnica. Entretanto,
o rapaz apaixona-se por Érika e busca ter aulas com ela.
Um dia, numa audição de estudantes de piano, percebe que Érika enche de
cacos de vidro os bolsos do casaco de uma aluna, que não quer ver apresentar-se.
Covardemente inviabiliza a apresentação da garota e quando vai ao banheiro para
se recompor é seguida pelo rapaz que, com indignação, lhe cospe a cara, para em
seguida beijar-lhe a boca. Érika corresponde e vê ali seu chão de aparências sumir.
Quer agora do rapaz esse amor dissonante, que mistura violência e gozo. Diz ao
rapaz que quer o mesmo que ele, mas ele entende ser essa uma relação doentia e a
abandona. Entretanto, não consegue se livrar de Érika e retorna a sua casa em bus-
ca de um encontro de termos, mas seu script não se realiza e ele estupra e espanca
Érika. O imaginado subjaz ao inusitado. O filme se encaminha na tela e o final que
seria marcado por um concerto tendo Érika como atração, se dá ainda no saguão
do teatro quando ela encontra com um grupo de pessoas e dentre elas está o rapaz.
Érika retira uma faca da bolsa e crava-a a altura da sua própria clavícula.

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Ontologias do ver na atualidade: que pode um olhar precário

Afasta-se das pessoas com a faca no corpo, saí do teatro e caminha pela
noite. Assim encerra o filme A Professora de Piano (HANEKE, 2001). Érika é
uma experiência em desacordo com as normas de convivência social. Érica é
uma paixão que não consegue calar e não se permite domar, mesmo quando sub-
jugada. Érika é o desterro voluntário da representação disciplinar. Antes perder o
chão que aprisiona a perder a vida. Como quem inaugura um vôo com as pernas
que possui. Estar em chão desconhecido é como que estar voando. A professora
de piano é busca, é vontade, é invenção de vida, é a política de querer o mesmo
que todo outro poderia querer, fazendo da própria existência uma obra de arte
(FOUCAULT, 2004, 2000).
Os dois filmes não ensejam apenas dois mundos. Jean-Dominique Bauby
em O Escafandro e a Borboleta (SCHNABEL, 2007) mira o mundo do íntimo,
que se alimenta de esperança por renovações. Um mundo com lugares previstos
e, quando muito, posto em reforma, para que o estranho, no íntimo de cada ser,
não estranhe. A professora de piano pouco ensina além do rigor para o aprimora-
mento técnico do instrumento. Sua vida estranha a quem lhe assiste, porque se faz
estranha a Érika. Há disposição em Érika e com isso os mundos vão se criando
para além das teclas e sonoridades do seu piano.
Bauby instala um desconforto para em seguida confortar os corações apie-
dados. Érika retira o chão que pisa e apresenta mais perguntas que respostas. Esca-
fandros e pianos. Professoras e borboletas. Películas que apertam o coração e que
retiram o chão. Não se trata, aqui, de exercícios de análise dos filmes, mas sim uma
consequente aproximação de um campo de estudos que investe em dispor sobre
um modo outro de produzir olhares, tendo por princípio a política de intercessores
proposta por Deleuze (1992). Desse modo se atenta para uma lógica filosófica
problematizante em busca de encontros entre os precários vivos e inventivos.

Referências

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Kennedy e Jon Kilik. Roteiro: Ronald Harwood, baseado em livro de Jean-
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Roteiro: Michael Haneke, baseado em livro de Elfriede Jelinek. França: Canal+;
Les Films Alain Sarde; arte France Cinéma; MK2 Productions; Centre National de la
Cinématographie; Eurimages; Áustria: Wega Film; Bayerischer Rundfunk; P.P. Film
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Recebido em: 16 de julho de 2010
Aceito em: 13 de junho de 2011

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