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Nas raízes da tolerância

I G R E J A E MI S S Ã O
R E V I S T A M I S S I O N Á R I A D E C U L T U R A E A CT U A L I D A D E

Sumário

adelino ascenso
Editorial 275

Augusto ASCENSO pascoal


Nas raízes da tolerância 277

JOSÉ EDUARDO Borges DE PINHO


Desafios ao Ecumenismo, hoje 305

KAQUINDA DIAS
O Inconsciente – uma descoberta de Freud 335

PAULO BORGES
A pobreza em espírito
Para um encontro e diálogo cristão-budista
Comentário ao Sermão 52 de Mestre Eckhart 403

230 SETEMBRo - DEZEMBRO 2015 Ano 68


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Augusto Ascenso Pascoal

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Adelino Ascenso

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Aires A. Nascimento
Nuno Lima

SECRETÁRIO DA REDACÇÃO
Rui Ferreira
Tiago Tomás

PRÉ-IMPRESSÃO
José Lima

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(ou: Sociedade Missionária da Boa Nova)

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Extra-Europa - 62,3 €
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Depósito legal nº 3726/83 ISSN: 0251-3595

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Nas raízes da tolerância

Editorial

O recém-falecido Michael Paul Gallagher era um jesuíta irlandês,


importante teólogo no campo da relação da teologia com a literatura, com
o ateísmo e com a cultura em geral. Durante vários anos professor de
teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, Gallagher
leccionara, durante mais de duas décadas, a cadeira de literatura na Uni-
versidade de Dublin e também fora colaborador do Cardeal Paul Poupard
no Pontifício Conselho para a Cultura.
Michael Paul Gallagher escreveu dois artigos para a Igreja e Missão:
«The retrieval of Imagination in Theology» (Nº 214, 2010) e «Revisiting
the “New Atheism”» (Nº 220, 2012). No seu primeiro trabalho sobre a
recuperação da imaginação na teologia, o autor fazia uma síntese do que
tem sido nas últimas décadas a abordagem da imaginação como chave
mediadora da fé e recorria às palavras de Oscar Wilde para sublinhar a
importância da imaginação na teologia: “o lugar de Cristo é com os poe-
tas” (De Profundis). Por fim, apresentava um elenco de aplicações práticas
da imaginação no quotidiano, nos campos filosófico, cultural, teológico,
religioso, pastoral e pedagógico. Sintetizamos brevemente.
Campo filosófico – numerosos pensadores reconhecem a capacidade
cognitiva da imaginação – incluindo o seu papel na descoberta científica
–, sendo um lugar privilegiado da percepção e da transformação.
Campo cultural – a imaginação é um elemento chave para qualquer
tipo de pré-evangelização, isto é, a preparação da disposição receptiva

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Augusto Ascenso Pascoal

para a Palavra de Deus. O centro da fé é mais uma questão de transforma-


ção a partir da imaginação do que de ideias feitas.
Campo teológico – o «objecto» da fé permanece envolto em misté-
rio, uma vez que Deus não é um objecto directo dos nossos usuais modos
de percepção. Assim, necessitamos de reconhecer o papel da imaginação
como forma alternativa de conhecimento, um método mais receptivo do
que analítico.
Campo religioso – a nossa percepção do transcendente é, necessaria-
mente, imaginativa. É claramente reconhecido que as nossas imagens de
Deus nos podem providenciar uma visão positiva do evangelho ou, pelo
contrário, limitar a nossa aventura, prendendo-nos dentro de uma camisa-
-de-força.
Campo pastoral – os discursos poéticos e a forma narrativa são cru-
ciais para incarnar as tradições religiosas e para comunicar o núcleo de
toda a genuína religião. Pensemos nas parábolas de Jesus e no seu uso
como veículo de pregação.
Campo pedagógico – o ensino da teologia sofreu muito sob a in-
fluência de um pensamento excessivamente académico e sistemático ou
de um profissionalismo excessivo no que se refere ao ministério. Onde
é que – professores e alunos – podem fazer justiça à unicidade da visão
da revelação e ao poder do Espírito, se não se puderem mover no espaço
de exploração imaginativa? Sem criatividade a este respeito, os cursos de
teologia podem reduzir-se a meras informações históricas e estratégias
psicológicas de comunicação.
Gallagher terminava o seu artigo afirmando que, a partir de diversas
perspectivas, a atenção à imaginação é crucial para o ensino da teologia
nos nossos dias e que oferece um comprimento de onda privilegiado para
o encontro com o divino.
De facto, a imaginação expressa o dinamismo pré-religioso e reforça
a importância do «ainda não», o que Michael Paul Gallagher denominava
«antecâmaras da fé».

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Nas raízes da tolerância

Nas raízes da tolerância

Augusto Ascenso Pascoal

Introdução

Nos finais do século IX, o Papa João VIII, perante a ameaça dos sar-
racenos, que infestavam as costas do Mediterrâneo, convidava os príncipes
cristãos a uma aliança que fosse mais do que ocasional: seria necessário
que dessem coesão política e defensiva à unidade cultural que constituíam
já e à qual se dava pela primeira vez o nome de Europa.
Convém notar que nesta altura grande parte do continente, sobretudo
a Leste, ainda não tinha abraçado o cristianismo: é precisamente João VIII
que dá um impulso decisivo à evangelização dos eslavos, apoiando o tra-
balho dos irmãos Cirilo e Metódio.
Está, no entanto, claro que a matriz dessa unidade, constituída por
povos de raças e culturas diferentes e que o Papa designa por Europa, tem
a ver com uma visão peculiar do homem e dos valores que integram a sua
existência histórica, que se não era ainda comum, estava à beira de o ser.
Não vamos entrar agora na polémica sobre as raízes cristãs da Europa,
ainda que seja nossa convicção de que mais tarde ou mais cedo, ela terá de
ser retomada, se não quisermos perder definitivamente algumas das pistas
fundamentais para a definição do que será de facto um verdadeiro espírito
europeu.

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Porque não é de religião, mas de cultura que se trata.


Uma dessas pistas será a capacidade de síntese e integração, no campo
dos valores, que lhe vem do fundo cristão do seu pensamento: precisa-
mente o ecumenismo que se quis salvar omitindo, no Prólogo do Tratado
Constitucional da União, a referência às raízes cristãs da Europa.
Já agora, seja-nos permitido acrescentar que o que actualmente está a
acontecer com a tragédia dos povos que buscam a norte do Mediterrâneo um
espaço de sobrevivência, se pode considerar o fundo do abismo para o qual
nos empurraram os responsáveis por esse falso ecumenismo. Substituiu-
se o humanismo pelo poder financeiro, e o egoísmo das nações impede a
solidariedade cristã.
Retomando o fio à meada:
Apesar de todos os acidentes de percurso, avanços e recuos, dos des-
vios, alguns dos quais pareciam anunciar a perda do rumo inicial, o que se
passa no velho continente, de finais do século IX a meados do século XVII
– com o tratado de Vestefália a consumar a obra que quis evitar – é a gestação
de um espaço cultural que resiste aos nacionalismos mais exacerbados e
que tem como fio condutor, mesmo nos momentos de maior esquecimento
da transcendência, três frases do escrito mais antigo do Novo Testamento:
Não apagueis o Espírito. Não desprezeis as profecias: Examinai tudo,
guardai o que é bom (1Tess 5, 18-21).
É este examinar tudo e conservar o que é bom que permite às culturas
antigas – não apenas a greco-romana, mas também as que lhe servem de
substrato – entrar em fusão com uma visão radicalmente nova do destino
humano e dar corpo a um espaço cultural que não foi possível com nenhuma
outra antropologia.
Momentos altos desta gestação, que se tornam evidentes até pelas
crises que provocam, são as aparentes redescobertas da Antiguidade a que
se deu impropriamente o nome de renascimentos: afinal, o que se passa é a
exaltação de alguns aspectos dessa Antiguidade que, quando reencontram
o seu lugar no espaço já criado, por uma osmose que chamaríamos vital,

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provocam o surgir de formas de arte e estilos de vida que, sem deixarem de


ser novos, guardam, no entanto, as características essenciais da sua matriz.
Para nos não alongarmos demasiado e ficarmos dentro da língua e do
modo de ser português, poderíamos perguntar-nos se não seria oportuno
analisar nesta perspectiva, por exemplo, aquilo que, sem grande rigor de
critérios, se chamou de estilo manuelino.
E que diríamos d’Os Lusíadas, que Jorge de Sena, muito justamente
aponta como um repositório de dezasseis séculos de cultura?

1. Reforma e Contra-Reforma

Vem tudo isto a propósito de Aquiles Estaço, contemporâneo de


Camões, nascido, como ele, em pleno florescimento do manuelino, que
também se chama renascença portuguesa.
A crítica histórica terá de percorrer ainda um largo caminho para que
a historiografia se liberte de muitos lugares comuns e ideias preconcebidas,
que, sobretudo no que diz respeito ao que se escreve em Portugal, continuam
a condicionar, não apenas a linguagem, mas o próprio trabalho de pesquisa.
Teriam de se multiplicar os estudiosos que partissem para a investiga-
ção conduzidos pelo desejo de encontrar a verdade, mais do que pela ânsia
de confirmar uma verdade.
Por exemplo, entre nós, apesar das excepções que vão aparecendo por
aí, a historiografia continua dependente da imagem da Idade Média criada
pelos humanistas do século XIV, e quase se não conhece outro conceito de
Reforma senão o que foi divulgado pelos historiadores protestantes, que
criaram também o conceito de Contra-Reforma, ainda que já na segunda me-
tade do século XVIII e com um significado diferente do que se lhe dá hoje.
Toda a gente sabe que Lutero e os seus primeiros discípulos, pegando
na palavra Reformatio (al. die Reformation), retirada dos esquemas conci-
liares do século XV – De reformatione Ecclesiae in capite et in membris –
quiseram apenas dizer que procuravam levar por diante a reforma da Igreja
que todos pareciam desejar, mas que ninguém conseguia tornar efectiva.

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Ainda que contra a sua vontade inicial, o que o monge agostinho fez
foi uma autêntica revolução, não propriamente uma reforma da Igreja.
De facto, com Lutero, põem-se em questão aspectos essenciais do
cristianismo e altera-se por completo o mapa religioso da Europa.
No mais aceso da polémica, com interesses políticos a meterem-se
por todos os lados, extremam-se os campos, e a tão desejada reforma da
Igreja, só não se adia mais uma vez, porque reformar-se pertence à própria
dinâmica do cristianismo:
Movimentos de renovação cristã, na perspectiva do crente, surgem em
todas as épocas, como fruto da acção do Espírito Santo no coração dos fiéis.
São desse tipo movimentos como, por exemplo, as fundações levadas
a cabo por grandes carismáticos: Bento de Núrcia (e todos os reformado-
res da sua linha), Bernardo de Claraval, Francisco de Assis, Domingos de
Gusmão, etc.; e falamos apenas dos principais do ocidente europeu, entre
os séculos V e XIII.
Mas no contexto das presentes reflexões, estão a referir-se os mo-
vimentos de renovação cristã surgidos num ambiente peculiar da Igreja
ocidental, nos finais da Idade Média, quando o continente se transformava
em todos os sentidos, e as consciências mais esclarecidas se davam conta da
necessidade de um regresso às exigências do Evangelho; o que reclamava
também uma alteração das estruturas eclesiásticas, demasiado dependentes
da função política, então desempenhada por grande parte dos membros da
Hierarquia, sobretudo nas regiões do norte da Europa.
Ao apoderarem-se do termo Reformatio, que trazia já um significado
teológico-canónico muito específico, os discípulos de Lutero, querendo
afirmar simultaneamente a novidade do seu movimento e o radicalismo da
resposta que, segundo eles, dava aos anseios da Cristandade, talvez sem
pensarem nisso, provocaram o corte com os movimentos de renovação que
vinham surgindo na Igreja, desde finais do século XIV.
Isso vem criar um problema de dupla dimensão: do ponto de vista
sincrónico, os que mais haviam lutado, não apenas por uma reforma das
estruturas eclesiásticas, mas por uma autêntica renovação da vida cristã,

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cujas exigências iam muito para além daquela reforma, viram-se subita-
mente entre fogos cruzados, com os meios intelectuais divididos em duas
posições cada vez mais radicalizadas e, consequentemente, cada vez menos
conciliáveis.
O pior é que a agitação provocada pelo envolvimento político de Lutero
faz com que se esqueçam os reformadores moderados que havia em ambos
os campos em confronto, e a história deste período começa a ser marcada
de uma forma verdadeiramente maniqueia, com os historiadores a ver o
bem totalmente separado do mal e colocando-os frente a frente, segundo
as próprias simpatias.
É por isso que termos como Reforma e Contra-Reforma, sobretudo
quando com aquela se identificam as auto-designadas igrejas evangélicas,
e com esta a acção da Igreja Católica, em ordem à sua renovação interna,
estão na base de muitos erros de simplificação que, além do mais, levam a
graves injustiças contra pessoas e instituições.
Temos o exemplo de Aquiles Estaço, que poderíamos comparar com
Damião de Góis, já que são quase contemporâneos:
Sabemos que, a nível do pensamento europeu, sobretudo como filó-
logo, Estaço, cuja autoridade é invocada ainda no século XVII, foi mais
conhecido e apreciado do que Góis. E, quanto a abertura de espírito, não
parece que os contactos internacionais deste, que não foram mais vastos
nem mais variados que os daquele, documentem uma modernidade superior
à que se pode divisar em muitos aspectos da vida e dos escritos do autor
do De Reditibus ecclesiasticis et De Pensionibus .

2. Um espírito europeu?

Quando falamos de grandes sínteses culturais que definem de certo


modo o que designámos por “espírito europeu”, importa referir, antes de
mais, o que terá sido o grande projecto literário e teológico de Aquiles
Estaço, que chega a Roma provavelmente nos últimos anos da década de

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cinquenta, do século XVI, e aí morre em 1581. Isto é, passa na Cidade


Eterna acima de vinte anos, que incluem o terço mais produtivo da sua vida.
Querendo fazer uma referência, necessariamente muito superficial,
ao contributo de Aquiles Estaco para a formação de um espírito europeu,
podemos tomar, entre outras, duas pistas, ou, se quisermos, dois pontos de
partida: a criação poética, como projecto e como realização, por um lado,
e os comentários bíblicos, por outro.

3. Um grande projecto literário?

A um de Março de 1566, Aquiles Estaço dedicava a Jerónimo


Rusticucci, secretário particular do Papa Pio V, uma edição comentada dos
poemas eróticos de Catulo, com palavras a partir das quais ficamos a saber
duas coisas muito importantes:
A primeira é que ele, desde a sua juventude, concebera o projecto de
traduzir em verso latino os textos poéticos da Bíblia; projecto que em 1566,
quinze anos antes da sua morte, continuava vivo, ainda que adiado, pelos
muitos afazeres que pesavam sobre os ombros do humanista.
A segunda coisa que ficamos a saber é que ele, pelas exigências des-
se mesmo projecto e enquanto não podia concretizá-lo de outro modo, ia
aperfeiçoando os dotes que queria pôr ao seu serviço, estudando a poesia
clássica latina.
Desse estudo intercalar e dos exercícios que implicava, temos frutos
preciosos, para além da referida edição dos poemas eróticos de Catulo.
Também como reflexão intercalar, talvez possamos tirar algumas ila-
ções do facto de Aquiles Estaço fazer esta edição em pleno pontificado de
Pio V, que fora o responsável máximo da Inquisição Romana, no tempo do
seu antecessor, Paulo IV, e que os historiadores apresentam como uma das
figuras mais típicas daquilo que se convencionou chamar Contra-Reforma.
Mais: esta edição dos poemas de Catulo, profusamente anotada, com
explicações de todo o tipo, incluindo os termos mais escabrosos, relativos à
vida íntima do protagonista ou dos protagonistas desses poemas, é dedicada

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Nas raízes da tolerância

ao secretário particular do Papa; um homem da Cúria, que conhecia muito


bem o humanista português, que lhe devia especiais favores.
É bom notar que Estaço, prevendo o aparecimento de objecções ao
cuidado que pôs na edição de Catulo, se defende com um raciocínio muito
parecido com o que usa Bartolomeu Ferreira, no seu parecer para a edição
d’Os Lusíadas: Que a poesia deve ser apreciada como arte e não como
edificação.

4. Vestígio de um projecto grandioso?

4.1 A poesia religiosa da juventude

Não sabemos que tipo de poesia terá Aquiles Estaço cultivado no


período que antecede a sua partida para Paris e Lovaina, onde se dedica à
Teologia e aperfeiçoa os conhecimentos alcançados no convívio com os
melhores humanistas portugueses do tempo, entre os quais se contam André
de Resende e os intelectuais do seu círculo.
Do que foi publicado a partir de 1547, ano da edição de Syluulae duae,
podemos concluir com segurança que tentou a poesia em todas as áreas da
inspiração poética.
Para o tema que nos ocupa, merece especial referência a sua poesia
religiosa:
O que nos deixou neste campo, se o estudamos na perspectiva dos
seus planos de jovem estudante de Teologia, poderá considerar-se o esboço
de um plano grandioso:
De facto, escrever em verso latino tudo o que na Sagrada Escritura é
considerado texto poético – e não nos esqueçamos de que Aquiles Estaço
tinha um conhecimento suficiente do hebraico, para se dar conta da vastidão
da tarefa que se impunha – seria uma empresa realmente extraordinária.
A pensar nela, o nosso humanista realizou um trabalho insano, com-
pulsando manuscritos antigos, corrigindo textos, tirando notas...

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Augusto Ascenso Pascoal

Os resultados desse trabalho tiveram aplicações múltiplas, devido ao


carácter multifacetado da actividade que desenvolvia em Roma.
Mas o projecto da sua juventude ficaria por realizar; não sabemos se
por demasiado ambicioso, se por falta de tempo. Provavelmente por ambas
as razões, que acabam fundindo-se na vida que Aquiles Estaço é obrigado
a viver na cidade dos Papas: a vastidão do projecto exigiria uma disponibi-
lidade total que, na segunda metade do século XVI, já nenhum humanista
podia ter, sobretudo se empenhado, como era o caso do nosso compatriota,
num verdadeiro trabalho de renovação interna da Igreja.
Podemos assim afirmar que lhe faltou o tempo – na linha da sincronia
(tempo disponível) e na linha da diacronia (tempo vivido) – também pelo
carácter, digamos, excessivo do seu projecto.

4.2 Uma dedicatória programática

No ano de 1549, saía em Paris, dos prelos de Thomas Richard, o seu


segundo livro impresso.
Na dedicatória desta obra ao Infante D. Luís, filho de D. Manuel,
portanto, irmão do rei D. João III, há, entre outras coisas de interesse, o
passo seguinte:

Ac sunt hi quidem quos accipis princeps clarissime ocii mei fructus: non enim
haec scribo nisi vacuus, et a Theologiae studiis aliquantulum feriatus. Idque
facio, quo musas, quas olim puer magno studio colui, etiam nunc grandior,
et quidem Theologus, retineam.

Ou seja, em tradução livre:

O que estás a receber, príncipe ilustre, são apenas os frutos do meu ócio; pois
não escrevo tais coisas senão quando estou livre e um pouco aliviado dos meus
trabalhos de Teologia. E faço-o, para que eu, que tão intensamente cultivei as
musas, enquanto era jovem, também as conserve comigo agora, que sou mais
velho e, ainda por cima, Teólogo.

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Nas raízes da tolerância

As palavras do nosso humanista inspiram as seguintes observações:


Os trabalhos que integram este opúsculo são o fruto da ocupação dos
tempos que a sua actividade normal lhe deixava livres – ocii mei fructus –.
Tendo presente o significado clássico do termo ocium, e o que escreve
no período seguinte, é legítimo pensar que, na mente do seu autor, o con-
teúdo deste opúsculo correspondia a algo que tinha grande importância,
inclusive para o que estava no centro das suas preocupações, ou seja, a
teologia:

Idque facio, quo musas, quas olim puer magno studio colui, etiam nunc
grandior, et quidem Theologus retineam.

Aquiles Estaço era um estudante de Teologia aplicado; o que pode


explicar, tanto a segurança com que aborda muitos dos temas controverti-
dos, na sua época, como a riqueza de conteúdo das notas que escreveu nas
margens de alguns dos livros da sua biblioteca.
Cultivou a poesia quando era jovem e quer continuar a cultivá-la em
adulto e como teólogo.
Considera-se a si próprio teólogo. Este facto permite-nos, pelo menos,
suspeitar de que a Teologia foi uma preocupação de sempre na mente do
nosso humanista. E a partir dele podemos também duvidar da justeza da
afirmação que atribui à sua presença em Roma o interesse pela Teologia.
É, portanto, claro que Aquiles Estaço cultivou a poesia enquanto era
jovem e quer continuar a cultivá-la: porque gosta de poesia, mas também
porque, como fica dito, ela entra nos seus projectos de estudante de Teologia.
Quais sejam esses projectos, não o diz aqui, senão indirectamente, na
medida em que afirma querer continuar a cultivar a poesia enquanto teólogo.
Mas di-lo-á mais tarde, como vimos acima, precisamente quando,
decorridos dezassete anos, dedicar a outro amigo – agora da Cúria Romana
– os resultados de outros ócios, que eram, afinal, se virmos bem as coisas
e como o termo insinua, trabalhos relacionados com o grande projecto da
sua vida, aqui referido de forma indirecta.

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Augusto Ascenso Pascoal

Entretanto, não será extrapolar demasiado se, tendo em vista aquele


“et quidem theologus”, concluirmos que Aquiles Estaço pressentia, pelo
menos, a existência de uma especial relação entre a poesia e a Teologia:
o que certamente, além de se dever à intuição dos humanistas em geral,
para quem o estudo da retórica estava longe de corresponder a um intuito
meramente estético, se descobria no contacto com as fontes da Teologia,
sobretudo a Bíblia e uma parte dos Padres.
De facto, não será por acaso que uma grande parte dos escritos bíblicos
são, literariamente falando, obras poéticas e, mesmo os que pertencem a
outros géneros, contêm inúmeros textos poéticos.
Bem vistas as coisas, se guardamos um conceito suficientemente
amplo de poesia (poesis/poietikós), temos de admitir que, como, aliás
acontecia já com os filósofos da Antiguidade, o casamento, digamos assim,
da Teologia com a poesia se torna patente nos textos bíblicos, sobretudo
do Antigo Testamento, na proporção directa da sublimidade da mensagem
que transmitem.
É o que acontece com os escritos dos profetas e os Livros Sapienciais,
nos quais se inclui o Saltério.
No Novo Testamento, se deixamos de lado os hinos que São Paulo
incluiu nas suas cartas e alguns discursos de Jesus, nomeadamente as
parábolas, pode dizer-se que o texto mais poético é o quarto evangelho,
cuja sublimidade fez com que a primeira comunidade cristã desse a João
o título de «Teólogo».
Os Padres, principalmente de expressão grega, e são quase todos,
nos dois primeiros séculos da era cristã, não precisam sequer de inventar a
técnica, que lhes vinha dos grandes filósofos da Antiguidade e se mantinha
presente nas escolas, sobretudo devido à permanência do prestígio de Platão
e dos seus grandes mitos.
Será por isso que, pelo menos até ao século XII, no Ocidente, os temas
da fé mais abordados pela poesia são os que se relacionam com os grandes
mitos cosmológicos, como é o caso da criação e do significado teológico do
mundo: aqui há uma influência profunda do Timeu, talvez a obra de Platão
mais lida no Ocidente, ao longo de toda a Idade Média.

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Nas raízes da tolerância

A partir do século XII, por influência de São Bernardo, primeiro, e de


São Francisco, depois, a poesia invade todos os temas da vida cristã, mas
com um pendor mais místico, que se reflectirá na criação poética de Aquiles
Estaço, embora não possamos considerar a sua poesia como poesia mística.

5. Aquiles Estaço, poeta crente

Em face disto, já não será necessário insistir que os escritos espiri-


tuais de Aquiles Estaço, nomeadamente os que se relacionam com novas
versões dos textos sagrados, não pertencem a um projecto da velhice, de
um humanista que, como diria o Camões das redondilhas Babel e Sião,
cantasse a sua palinódia:
É claro que Aquiles Estaço não tem a envergadura poética de Camões,
nem a profundidade filosófica e a força mística de Pascal.
Mas as razões por que aqui se mencionam essas duas figuras, que
cunham, cada qual a seu modo, o espírito europeu, são outras.
A primeira está no facto de tanto Camões como Pascal documentarem
diferentes sortes do inacabado, do esboço que nunca passou disso: pois,
enquanto para o pensador francês, ele se transforma numa das fontes de
engrandecimento da sua imagem, pelo que, no esboço da Apologie de la
Réligion Chrétienne, fica da riqueza do seu pensamento, para o poeta lu-
síada, a dispersão dos seus poemas líricos constitui uma deficiência fatal,
que ameaça fechar para sempre aos seus leitores a grandeza da alma que
quis falar através dos seus poemas.
A segunda razão parte do facto de Camões ser perfeitamente con-
temporâneo de Aquiles Estaço, quer pelos anos, quer pelas ideias, que,
modeladas no que de melhor teve o Renascimento português, guiaram a
sua criatividade e perpassam os textos mais significativos de ambos.
E não seria descabido estudá-los na perspectiva do moderno pensa-
mento europeu, naquilo que tem de melhor e mais específico.
Claro, há entre eles uma diferença abissal, se reparamos no génio
poético de cada um, partindo do que nos resta da obra respectiva.

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Augusto Ascenso Pascoal

O autor de Os Lusíadas não sofre comparação com nenhum artista do


seu tempo, nem talvez com nenhum daqueles que, no mundo ocidental, se
seguiram ao seu mestre e modelo, Virgílio Nasão.
Aquiles Estaço, enquanto criador artístico, é sem dúvida, inferior a
Camões: se fosse preciso, bastaria, para nos convencermos disso, comparar
a paráfrase que ambos fazem do Salmo 136, ou 137, segundo a numeração
da bíblia hebraica, que é a que, neste caso, segue o nosso humanista.
Claro que, independentemente da maior ou menor genialidade, no
que se refere à inspiração poética, não podemos esquecer a diferença de
posições, perante o texto sagrado. Este, como sabem os especialistas dos
géneros literários da Bíblia, sem deixar de ser um texto humano, com todas
as características do género a que pertence, reflecte uma fé à qual procura ser
fiel, e, segundo a doutrina da inspiração sobrenatural, desenvolve-se dentro
de fronteiras especiais, que não existem para a criação puramente humana.
Ora, é evidente que, enquanto Camões podia pegar no salmo como sim-
ples fonte de inspiração, Aquiles Estaço, quer pela sua formação teológica,
quer pelo contexto em que insere a sua versão, sentir-se-ia necessariamente
mais limitado pelas fronteiras provenientes do carácter sagrado do texto.
Por outro lado, mesmo sem entrarmos na polémica Sérgio-Sena, sobre
o significado deste poema no conjunto da lírica de Camões, pode dizer-se
que o texto do nosso épico pertence, com todo o direito, à poesia mística
portuguesa do século XVI: o de Estaço será apenas um poema religioso.
Se, no campo da poesia religiosa, distinguirmos aquela que apenas
se inspira na religião e a que se ocupa das verdades da fé, podemos então
falar de poesia religiosa, no primeiro caso, e teológica, no segundo. Estaço
cultiva as duas.
Acontece, porém, que o nosso humanista era um incansável trabalhador
intelectual: a sua biblioteca, mais do que um armazém de objectos precio-
sos, recolhidos com interesse de coleccionador, era um imenso arsenal de
instrumentos de trabalho, ao serviço das tarefas que lhe confiavam, bem
como da sua curiosidade intelectual.
Do que lia e ouvia procurava anotar tudo quanto lhe merecesse uma
atenção especial: ou porque lhe apresentava alguma novidade, ou porque

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Nas raízes da tolerância

se tratava de doutrina a sublinhar, ou porque o texto devia ser corrigido,


ou ainda porque, fosse seu ou alheio, ele próprio se propunha reeditá-lo.
Deste último caso temos um exemplo indiscutível no exemplar da
edição de 1575 do De Reditibus Ecclesiasticis qui Beneficiis et Pensionibus
Continentur, que pertencia à sua biblioteca: este exemplar contém manus-
critas todas as alterações introduzidas na edição de 1581.
Mas podemos pensar que o humanista português tinha objectivos
semelhantes relativamente a outras obras:
Por exemplo, é muito difícil excluir essa hipótese, no caso do volume
das obras de Virgílio, editado em Paris, em 1551.
Quando folheamos esta preciosíssima espécie bibliográfica ficamos
assombrados com a vastidão do saber e a laboriosidade intelectual do seu
possuidor.
É perfeitamente legítimo pensar que Estaço verteu neste exemplar
das obras de Virgílio todo o seu saber literário e filológico, utilizando do-
cumentos hoje desaparecidos, com o intuito de fazer uma nova edição dos
poemas virgilianos.
Também o seu exemplar dos poemas de Catulo, por si editados, contém
notas manuscritas autógrafas que documentam a delicadeza do seu trabalho
e, digamos, a sua insatisfação, pois sempre quer melhorar alguma coisa
naquilo que lhe sai das mãos.
Nesta ordem de ideias, os organizadores da Biblioteca Vallicelliana,
ao colocarem entre os manuscritos de Aquiles Estaço o seu exemplar da
Bíblia do Cardeal Cisneros, indirectamente apoiam o seguinte raciocínio:
Para um humanista que, em relação aos estudos bíblicos, além do
interesse próprio dos humanistas, enfrentava as exigências das tarefas que
lhe eram confiadas na Cúria Pontifícia, um exemplar do Novo Testamento
assim recheado de notas denuncia necessariamente um trabalho sério de
um estudioso que está também habituado a editar textos antigos.
É, pois, muito provável que Aquiles Estaço tivesse intenção de publicar
uma nova edição da Bíblia Complutense. Assim, podemos considerar esta
espécie bibliográfica um autêntico inédito do humanista português.

289

2
Augusto Ascenso Pascoal

E, diga-se de passagem, um inédito que, tal como as obras de Virgílio


acima referidas, reclama que alguém com tempo e competência se debruce
sobre ele, o estude devidamente e o publique, em homenagem ao seu autor
e para fornecer aos estudiosos mais um instrumento de trabalho.
As notas manuscritas deste volume foram em parte transcritas por um
copista do século XVII. É uma transcrição que acusa já algumas dificul-
dades na interpretação da caligrafia de Aquiles Estaço, apesar da relativa
proximidade no tempo. Trata-se, no entanto, de um trabalho precioso, que
só é pena estar incompleto.
A hipótese de estarmos perante edições em projecto – no caso das
obras de Virgílio, parece tratar-se de mais do que um simples projecto –
não foi o que inspirou propriamente os organizadores da Vallicelliana. Pelo
menos, a explicação até agora dada para a inclusão dos referidos volumes
na série dos manuscritos autógrafos, insiste exclusivamente no facto de as
notas marginais, ou apostilas, serem em tão grande número. O que não será
razão suficiente, já que há outros volumes com igual ou mesmo superior
quantidade de notas, ainda que não propriamente de texto, e que não foram
incluídos nesta série.
Tratando-se da obra manuscrita de Aquiles Estaço, deveríamos dis-
tinguir entre manuscritos, em geral, e inéditos, em especial:
Estes seriam apenas os textos autógrafos, não publicados pelo nosso
humanista, mas que podemos, com grande margem de segurança, considerar
destinados à publicação, ou fazendo parte de obras em projecto.
É o caso dos poemas religiosos e profanos, bem como das pará-
frases aos salmos, uns e outras contidos no códice B 106, da Biblioteca
Vallicelliana, e publicados por Marina La Tella BARTOLI.
Pelas razões já apresentadas, deveriam também considerar-se inéditos
os códices E 60-II e A 1-II, ainda que, sobretudo no que se refere ao segun-
do, o trabalho do nosso humanista estivesse talvez ainda numa fase inicial:
mais de recolha de material útil a uma futura edição, que de preparação
próxima desta.
No que se refere a manuscritos autógrafos, tratando-se do que pode
elucidar-nos sobre o pensamento e a actividade intelectual de Aquiles

290
Nas raízes da tolerância

Estaço, adopta-se um conceito muito amplo, que tem a sua raiz na amplitude
da noção de apostila já adoptada pela autora de I Libri di Achille Stazio:
ou seja, tudo aquilo que são marcas pessoais de leitura. Nestas se incluem,
além das glosas, apostilas ou notas marginais – que correspondem a um
costume generalizado no século XVI – muitos outros elementos, que nos
permitem detectar, não só os interesses intelectuais do nosso humanista,
mas inclusivamente as linhas mestras do seu pensamento, sobretudo no
campo religioso.
Para classificar todo este espólio, entre muitos critérios possíveis,
pareceu funcional adoptar, em convergência, os dois seguintes:
Primeiro, o critério do continente, ou seja, partindo das peças e do
material em que se encontram tais manuscritos: cadernos, folhas soltas e
notas de leitura (que, como se disse acima, incluem, não apenas textos, mas
qualquer sinal capaz de denunciar uma reacção pessoal do leitor, aqui, no
caso, Aquiles Estaço).
O outro critério será o do conteúdo, que se procurará conjugar com o
precedente: de facto, ao determinarmos que tipo de notas deixou Aquiles
Estaço, precisamos de saber onde se encontram, tanto para as termos à mão,
como, pelo menos em certos casos, para lhe determinarmos o significado.
Também é legítimo que nos interroguemos acerca das intenções de
Aquiles Estaço ao recolher determinadas notas: no seu espólio encontramos
apontamentos que nos permitem ver a permanência do Estaço dos anos
quarenta ao longo de todo o tempo da sua estada em Roma, ou seja, até
aos anos oitenta: filólogo, poeta e teólogo.
Ou, dito de outro modo: a existência de cadernos e folhas soltas, sem
uma organização sistemática, mas com verdadeiro conteúdo doutrinal,
permite-nos afirmar que Aquiles Estaço é ainda, em 1581, o humanista de
1547. E, ao invés, o humanista de 1547 será já o teólogo de 1581.
De facto, nesses cadernos e nessas folhas soltas, recolhidas e arruma-
das, talvez nem sempre com bom critério, pelos primeiros responsáveis da
Vallicelliana, encontramos notas de tipo filológico, cópias de inscrições
antigas, que, no século XVI, eram ainda abundantes em Roma, citações e
comentários de autores clássicos.

291
Augusto Ascenso Pascoal

Finalmente, temos toda uma série de apontamentos de quem se in-


teressa pelo estudo dos Padres da Igreja, esboços de pregação e notas que
poderiam destinar-se ao alimento da sua vida espiritual.

Anotações, apostilas ou notas marginais (glosas)

Feita referência aos impressos e manuscritos inéditos sobre que in-


cidiu a pesquisa que está na base deste trabalho, resta agora falar do caso
especial das glosas ou apostilas, um hábito antigo dos mestres e leitores
privados; hábito do qual o nosso humanista, como outros contemporâneos
seus, faz largo uso.
Não pertence ao âmbito deste trabalho explicar o processo – onde
se pode dizer que a causa deu o nome ao efeito – ainda hoje utilizado em
textos jurídicos e a ter presente na crítica textual das edições da Bíblia.
De facto, as glosas mais antigas que se conhecem são as que foram
introduzidas pelos Rabinos nas suas tentativas de tornar acessíveis os
vocábulos e as expressões do texto sagrado que o tempo, com a evolução
cultural das pessoas, tornava obscuro para o leitor médio .
O uso das apostilas, no que se refere à Bíblia, foi também, durante
os anos em que as traduções eram mal vistas pela autoridade eclesiástica,
um processo bastante generalizado de explicação do texto, que, em certos
casos, acabava diluído na apostila. Por isso, sobretudo a partir de Paulo IV, o
processo começou a ser vítima da mesma suspeita que as edições em vulgar.
Relativamente a Aquiles Estaço, não se faz aqui menção das notas
que escreveu em muitos dos manuscritos que tinha na sua biblioteca e dos
quais fazia assíduo objecto de estudo, a fim de estar bem documentado,
principalmente como filólogo.
Aqui dá-se especial importância às apostilas com que enriqueceu as
obras impressas que lhe despertaram mais interesse.
Como bom humanista, normalmente escreve as suas notas na língua
do próprio livro: em latim nas obras latinas, em grego, nas obras gregas.
Há, porém, alguns casos, de facto raros, em que recorre ao espanhol
e, mais raramente ainda, ao italiano.

292
Nas raízes da tolerância

Não se conhece qualquer apostila em português.


Um estudo atento destas glosas poderia talvez ajudar-nos na questão
de saber se sim ou não Aquiles Estaço exerceu o magistério – em Roma
ou noutro lado – já que algumas delas, pelo menos, podem ter origem em
preocupações de ordem didáctica.
Esse seria, por exemplo, o caso das edições da Bíblia e dos livros de
espiritualidade.
É do conhecimento geral que, pela bula Misericordiae Vultus, de 11 de
Abril de 2015, o Papa Francisco proclamou o Jubileu da Misericórdia, que
decorrerá de 8 de Dezembro de 2015 (Solenidade da Imaculada Conceição)
a 22 de Novembro de 2016 (Solenidade de Cristo Rei do Universo).
Logo na abertura deste documento, diz o Papa:

Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece


encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível
e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. O Pai, «rico em misericórdia»
(Ef 2, 4), depois de ter revelado o seu nome a Moisés como «Deus miseri-
cordioso e clemente, lento na ira, cheio de bondade e fidelidade» (Ex 34, 6),
não cessou de dar a conhecer, de vários modos e em muitos momentos da
história, a sua natureza divina. Na «plenitude do tempo» (Gl 4, 4), quando
tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho,
nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor.
Quem O vê, vê o Pai (cf. Jo 14, 9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda
a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus. (Misericordiae
vultus, 1).

Não será de todo inoportuno recordar como este mistério da miseri-


córdia aparece nos escritos do nosso humanista teólogo.

293
Augusto Ascenso Pascoal

6. Ecumenismo e fé na misericórdia divina

6.1 Predestinacionismo e pelagianismo

Por estranho que pareça, sobretudo se tivermos em conta uma cer-


ta imagem criada nos últimos séculos relativamente ao humanismo da
Reforma, nem Lutero nem os seus discípulos imediatos favoreceram muito
o discurso sobre a misericórdia divina.
De facto, ao querer realçar o carácter absolutamente gratuito da salva-
ção, no que estava perfeitamente de acordo com a tradição teológica mais
genuína, não soube evitar o escolho em que o próprio Santo Agostinho
esteve à beira de soçobrar, quando polemizava com os pelagianos, dema-
siado confiantes nas capacidades da natureza humana.
Pode dizer-se que todas as controvérsias do século XVI sobre a jus-
tificação e a graça, após o Concílio de Trento, principalmente dentro da
Igreja Católica, onde nunca cessaram as tentativas de estabelecer pontes que
permitissem o diálogo com os teólogos da Reforma, se balanceiam entre
estes dois extremos: o que leva muitas vezes ao esquecimento do essencial,
definido na célebre sessão sexta daquele Concílio, mas que corresponde
aos aspectos mais importantes de tudo quanto, depois de São Paulo, se
ensinou sobre a radical novidade de Jesus Cristo, que nos veio revelar os
extremos do amor do Pai.

6.2 Cantar a misericórdia divina

Da poesia de Aquiles Estaço, tomamos apenas um exemplo:


O poema Cuius querellas gentis ante et flebile, inspirado na história
do Povo Hebreu, que Deus, mediante maravilhas de vária ordem, liberta da
escravatura do Egipto e depois conduz através do deserto, até à sua chegada
à Terra Prometida, ou seja ao vale do Jordão:
Deus escuta as queixas do Seu Povo (Ex 3, 7 sgs.), o mesmo que ma-
nifesta a sua alegria depois da libertação e da extraordinária travessia do

294
Nas raízes da tolerância

Mar Vermelho (Ex 14), as dificuldades da travessia do deserto e as obras


maravilhosas – mirabilia isto é, obras dignas de serem vistas e cantadas –
com que Deus acode aos Seus eleitos ( Ex 16-17).
Destas maravilhas, o poeta menciona expressamente:
A travessia do mar a pé enxuto (Ex 14, 15-30, vv 5-8).
Já no deserto, o alimento vindo do céu – o maná e as codornizes (Ex
16, vv 9-13).
Depois, ainda no deserto, a água que jorra da rocha, após as pancadas
ordenadas por Deus e executadas, aliás, numa atitude de pouca fé, por
Moisés (Ex 17, 1-7, vv 13-16).
Não se publica o texto latino para abreviar, ainda que formalmente
seja um bom exemplo dos dotes poéticos do nosso humanista.
É de notar, por exemplo, a riqueza emotiva que Aquiles Estaço conse-
gue incutir no seu poema pelo estilo pessoal que utiliza, pondo-se no lugar
do povo escravizado, até aos versos finais, onde com uma linguagem que
nos faz pensar em Virgílio (Aen. 1,94; 12, 155), felicita esse povo, por ser
regido, defendido e guiado por um Deus que afirma protegê-lo com a ter-
nura da galinha protegendo os pintainhos sob as suas asas; uma imagem de
profundas ressonâncias bíblicas; não a encontramos no Antigo Testamento,
mas ela leva-nos até lá, a partir de Jerusalém, sobre a qual Lucas constrói
essa outra imagem da misericórdia divina, que é Jesus chorando sobre o
destino trágico da Sua Pátria (Cf. Mt 23, 37; Lc 13, 34-35; 19, 41-44).
Do poema do humanista português propõe-se a seguinte tradução:

Do povo cujas lamentações, antes, em minha poesia, cantava, em canto


queixoso e triste,
Esqueço as penas e [canto] agora a admirável alegria, depois que deixou de
ser escravo.
Ovante percorreu, para a pátria, ínvios caminhos; e o fundo do mar a pé enxu-
to, enquanto do mar as águas param, aqui e ali, pisarei, conduzido por Deus.
Faltava àquele que deambula por caminhos ínvios alimento que debelasse
a fome?

295
Augusto Ascenso Pascoal

Caía do alto céu, como orvalho, a esperança de banquete mais lauto.


Recusava aquele solo árido o líquido com que se extinguisse a sede?
Eis que uma nascente brotava da rocha, e rios corriam entre as pedras.
Oh, três e quatro vezes bem-aventurado o povo que Deus governa, protege
e conduz!
E isso como a galinha, que de toda a parte congrega os seus pintainhos.

6.3 Do “Evangelho da misericórdia”

Ora, desta revelação do carinho e da misericórdia de Deus, em termos


de linguagem verbal, o discurso mais belo, até do ponto de vista literário,
encontra-se em Lucas, 15, 11-31.
É a parábola do Filho Pródigo, que Jesus contou, como é fácil de ver,
por todo o contexto deste capítulo, não para falar do filho, mas para revelar
a misericórdia do Pai.
Seria, portanto, mais lógico chamar-lhe parábola do pai misericordioso.
Aquiles Estaço deixou muitas apostilas no Evangelho de Lucas; porém,
quanto ao capítulo quinze, que contém as três parábolas da misericórdia
divina, debruçou-se de modo especial sobre a parte referente à terceira, a
única que apostilou.
Nas suas notas, manifesta-se a cada passo o filólogo, preocupado com
a autenticidade do texto, que procura comentar com a ajuda dos Padres da
Igreja e outros testemunhos da Tradição.
E este é o primeiro sinal de modernidade, importante, não por ser
original, mas por denunciar uma linha de Contra-Reforma que não costuma
referir-se, até porque não corresponde ao conteúdo semântico actual da
palavra Contra-Reforma.
Mas nas notas a esta parábola encontramos também algumas reflexões
pessoais sobre o pecado, a conversão e a misericórdia divina, que servem
para documentar, mais uma vez, a posição de Estaço, entre os fogos cruzados
dos controversistas do tempo.

296
Nas raízes da tolerância

São notas de grande importância teológica, às quais se pode dar uma


ordenação sistemática, seguindo muito de perto a estrutura narrativa de
Lucas 15, 11-32.
De forma muito sumária, essa estrutura pode desenhar-se assim:
O filho mais novo, uma vez recebida a parte que lhe cabia na herança,
parte para uma região longínqua (11-13).
Consequências do afastamento da casa paterna (14-16).
O filho tresmalhado, recorda-se da casa do pai, mede o estado em que
se encontra e decide regressar (17-19).
A festa do reencontro (20-24).
Reacção do mais velho e resposta do pai (25-32).
Como é fácil de ver, a cada troço narrativo corresponde um momento
importante daquilo que poderíamos designar por dinâmica do pecado e da
conversão, vista, tanto do lado do pecador, que ofende, como do lado de
Deus, que, sendo o ofendido, perdoa.
Como para o nosso intento interessa sobretudo o comentário de Estaço
aos últimos dois troços narrativos, passamos a eles imediatamente:
O clímax da parábola atinge-se no versículo 20, quando o pai, ao ver
o filho ainda longe, se lhe lança ao pescoço, cobrindo-o de beijos:

Cum autem adhuc longe esset, vidit illum pater ipsius et misericordia motus
est et accurrens cecidit supra collum eius et osculatus est illum.

A descoberta de Lucas como o evangelista da misericórdia divina,


mais preocupado em captar em Jesus os gestos e as palavras que revelam
essa misericórdia do que em descrever o percurso da conversão por parte
do pecador – como bom discípulo de São Paulo – esta descoberta é relati-
vamente recente, na exegese católica.
Isso explicará o facto de o nosso humanista não ter deixado qualquer
nota a este versículo, que, segundo tudo leva a crer, foi objecto de um cui-
dado especial por parte do redactor do texto evangélico.

297
Augusto Ascenso Pascoal

Aliás, ainda hoje, como o documenta o nome que se dá a esta parábola,


o texto é lido mais na perspectiva dos actos do pecador do que pensando
no amor misericordioso de Deus.
Aquiles Estaço escrevia na segunda metade do século XVI, após a
polémica com os reformadores, que negavam ao pecador toda a possibili-
dade de cooperar com Deus na sua conversão.
Contra eles se dirigiam de modo especial os cânones do Concílio de
Trento, que, sem negarem o facto de ser Deus a tomar a iniciativa, afirmavam
igualmente a capacidade de o homem colaborar com Ele.
Num ambiente de controvérsia, como era, a este respeito, o século
XVI, qualquer tendência a acentuar um dos aspectos poria de sobreaviso
os defensores do outro, que não hesitavam em classificar de hereges os que
não estavam claramente do seu lado.
Além disso, é normal que um humanista do século XVI, desejoso de
contribuir para a formação prática dos crentes, no sentido de realizarem
correctamente os actos correspondentes à doutrina fixada pelo Concílio,
fale da conversão, mais na perspectiva do pecador do que na de Deus.
E este era o caso do nosso humanista.
Assim, põe em realce a sinceridade do filho e a corajosa humildade
com que reconhece ter ofendido Deus e o pai: Pater, peccavi in caelum et
coram te.
Estaço lê a expressão peccavi in caelum, enquadrando-a na situação
concreta do guardador de porcos, conseguindo assim tirar dela um partido
especial: Peccavi in caelum, “quo nunquam oculos sustuli more porcorum
quos pavi”.(“Pequei contra o Céu, para o qual nunca levantei os olhos, à
imitação dos porcos que guardava”.)
Que se confessa indigno de ser considerado filho de tal pai, mas trata-o
como tal, na esperança de alcançar o perdão.
E quanto ao cum autem adhuc longe esset (quando ainda estava longe),
parecem interessar-lhe mais os aspectos canónicos da conversão e os seus
efeitos imediatos do que a iniciativa de Deus e a generosidade do Seu perdão:

298
Nas raízes da tolerância

assim, fala dos frutos da contrição, sem deixar de referir a necessidade da


confissão auricular, “si possit fieri” (se for possível).
No entanto, além das referências indirectas, contidas nas alusões à
conversão do pecador, Aquiles Estaço termina o seu comentário com um
epifonema semelhante a tantos outros que, a despeito da sua reserva, quanto
a exprimir emoções pessoais, lhe escapavam em determinados contextos:

Quanta Dei benignitas! Eum qui mercenarius esse volebat, filium recipit.

Como é grande a bondade de Deus!


Recebe como filho aquele que queria ser assalariado.

Vejamos o comentário do nosso humanista aos versículos 25 a 32, que


contêm a reacção do irmão mais velho e o seu diálogo com o pai.

Erat autem filius eius senior)


Peccata nonunquam prosunt cum paenitentes ad se redeunt et bonum ipsum
arctius complectuntur, quam qui in perpetua iustitia vixerunt.
Diligentibus enim Deum omnia cooperantur in bonum, «etiam peccata» ait
Augustinus (Cf. Rom 8, 28).

Tu semper mecum es)


Laudatur in bono perseverantia. Vos qui permansisti mecum in tribulatione
mea (Rom 22, 28 ).
Tu semper, inquit, mecum es, quia qui cum Deo non est, moritur. Addit enim:
Frater tuus hic mortuus erat; cum illo quidam fuerat pater.

Dir-se-ia que, neste comentário, com a preocupação de aproveitar o


tema da perseverança, que ele vê desenhada no filho mais velho, Aquiles
Estaço perde a direcção tomada no comentário à expressão erat autem filius
eius senior, naquela referência ao facto de o pecado, uma vez assumido
como tal, servir melhor, por vezes, o progresso espiritual do que a simples
permanência na graça.

299
Augusto Ascenso Pascoal

Fica assim a meio da pista indicada quatro séculos mais tarde por
João Paulo II:

Ao evocar, na figura do irmão mais velho, o egoísmo que divide os irmãos


entre si, ela (a parábola) torna-se também a história da família humana:
mostra a nossa situação e indica o caminho a percorrer. (Reconciliatio et
poenitentia, 6).

O texto de Aquiles Estaço, em tradução livre:

Havia, porém, o filho mais velho)


O pecado torna-se não raro frutuoso, quando os pecadores arrependidos
entram em si e abraçam a prática da virtude com mais afinco do que os que
sempre viveram em graça.
Para os que amam a Deus tudo contribui para o bem, «até o pecado», acres-
centa Agostinho.

Tu estás sempre comigo)


Louva-se a perseverança no bem. Vós que permanecestes a meu lado, nos
meus trabalhos.
Tu, diz, estás sempre comigo, porque quem não está com Deus morre. Pois
acrescenta: Este teu irmão estava morto; no entanto, com ele estivera o pai.

De facto, para a exegese contemporânea, o filho mais velho, que na


intenção de Lucas simbolizava os Escribas e Fariseus, é o protótipo da
auto-satisfação do crente sem aspirações, que, a certa altura, vê em Deus,
quando olha para Ele, mais um devedor do que um amigo.
Não era, até há pouco, um aspecto muito considerado, uma vez que
esta parábola, como já se disse, incorrectamente chamada de «Parábola do
Filho Pródigo», era, em geral, lida na perspectiva do filho que regressa à
casa paterna, realçando-se nela sobretudo a dinâmica da conversão, quase
sempre a partir do pecador.

300
Nas raízes da tolerância

Esta perspectiva, ainda que menos acentuada, encontra-se ainda no


texto seguinte do Catecismo da Igreja Católica, promulgado por João Paulo
II, a 11 de Outubro de 1992:

O dinamismo da conversão e da penitência foi maravilhosamente descrito por


Jesus na parábola do «filho pródigo», cujo centro é «o pai misericordioso»
(Lc 15, 11-24): o deslumbramento duma liberdade ilusória e o abandono da
casa paterna; a miséria extrema em que o filho se encontra depois de delapi-
dada a fortuna; a humilhação profunda de se ver obrigado a guardar porcos
e, pior ainda, de desejar alimentar-se das bolotas que os porcos comiam; a
reflexão sobre os bens perdidos; o arrependimento e a decisão de se declarar
culpado diante do pai; o caminho do regresso; o acolhimento generoso por
parte do pai; a alegria do pai; eis alguns dos aspectos próprios do processo
de conversão. O fato novo, o anel e o banquete festivo são símbolos desta
vida nova, pura, digna, cheia de alegria, que é a vida do homem que volta
para Deus e para o seio da família que é a Igreja. Só o coração de Cristo, que
conhece a profundidade do amor do seu Pai, pôde revelar-nos o abismo da sua
misericórdia, de um modo tão cheio de simplicidade e beleza (CIC, 1439).

Afinal, o que esta parábola procura mostrar-nos, não é tanto o itinerário


do pecado e da conversão, como sobretudo o amor misericordioso de Deus
revelado nos gestos e nas palavras de Jesus Cristo.
Aliás, isso mesmo é afirmado por João Paulo II: “A parábola do filho
pródigo é, antes de mais, a história inefável do grande amor de um Pai
– Deus – que oferece ao filho, que a Ele retorna, o dom da reconciliação
plena.” (Reconciliatio et poenitentia, 6).
De facto, reparando bem nos protagonistas da narrativa evangélica,
analisada no seu conjunto, descobrimos o princípio que seria enunciado
séculos mais tarde por J. Pieper, para o qual a justiça sem a misericórdia
é crueldade, enquanto a misericórdia sem a justiça seria pura debilidade:
Deus é infinitamente misericordioso porque infinitamente justo.
Como insinuado no episódio da Cananeia (cfr Mt 15, 21-28), a mise-
ricórdia, que dá primazia à pessoa, constitui a coroa da justiça.

301
Augusto Ascenso Pascoal

Talvez também não seja de todo inoportuno deixar aqui, como intro-
dução ao Ano da Misericórdia instituído pelo actual Papa, Francisco, parte
do belíssimo comentário de João Paulo II, inserido na já citada Exortação
Apostólica, Reconciliatio et poenitentia, 6:

A parábola do filho pródigo é, antes de mais, a história inefável do grande


amor de um Pai – Deus – que oferece ao filho, que a Ele retorna, o dom da
reconciliação plena.

E ao evocar, na figura do irmão mais velho, o egoísmo que divide os irmãos


entre si, ela torna-se também a história da família humana: mostra a nossa
situação e indica o caminho a percorrer.

O filho pródigo, com a sua ânsia de conversão, de regresso aos braços do pai
e de perdão, representa aqueles que pressentem no fundo da própria cons-
ciência a nostalgia de uma reconciliação a todos os níveis e sem reserva, e
têm a intuição, com íntima certeza, de que ela só será possível, se derivar
de uma primeira e fundamental reconciliação: aquela reconciliação que
leva o homem da distância à amizade filial com Deus, do qual reconhece a
misericórdia infinita.

Lida, porém, na perspectiva do outro filho, a parábola retrata a situação da


família humana dividida pelos egoísmos, põe em evidência a dificuldade em
secundar o desejo e a nostalgia de uma só família reconciliada e unida; e,
por conseguinte, apela para a necessidade de uma profunda transformação
dos corações, pela redescoberta da misericórdia do Pai e pela vitória sobre a
incompreensão e a hostilidade entre irmãos (João Paulo II: Reconciliatio et
poenitentia. 6 (02.12.1984))

O humanista Aquiles Estaço parece ter intuído a profundidade da reve-


lação contida no discurso de Jesus, que fala essencialmente da misericórdia
divina; mas não tira disso todas as consequências, em parte porque essa

302
Nas raízes da tolerância

temática andava demasiado envolvida em questões especulativas sobre a


justificação, a graça e a liberdade... quase como se tudo se passasse no co-
ração do homem, num relacionamento pouco mais que jurídico com Deus.
Em jeito de síntese, pode dizer-se que Aquiles Estaço, nos seus co-
mentários à parábola do «Filho Pródigo», não esconde uma certa emoção,
que se revela de modo especial quando procura tirar conclusões teológicas
e ascéticas do texto evangélico.
Isto é tanto mais digno de nota quanto é certo que a frieza caracteriza
grande parte das suas notas, sempre marcadas pela preocupação científica,
que as carrega de observações de ordem filológica e citações de textos
paralelos, da Escritura e dos Padres
Por outro lado, é necessário não esquecer que Estaço faz o seu comen-
tário já na segunda metade do século XVI, quando as tentativas de reconci-
liação entre católicos e protestantes pareciam fazer renascer as polémicas
dos séculos III e IV sobre o modo de acolher os cristãos que, na dureza das
perseguições, haviam apostatado e tentavam o regresso ao seio da Igreja.
Pode dizer-se que a emoção do humanista português nasce também da
intuição que o leva a ver na fala do pai com o filho mais velho pistas para
um verdadeiro diálogo ecuménico.
Relativamente à teologia do pecado, que, apesar de não ser o tema
directo da parábola, é o que Estaço desenvolve mais, aliás seguindo na
esteira dos comentadores que o precederam, pode dizer-se o seguinte:
Na segunda metade do século XVI, a reflexão teológica sobre as
relações da natureza humana com o pecado e a graça move-se entre dois
extremos:
De um lado, o pessimismo dos predestinacionistas da linha de Calvino:
Deus predestina para a salvação ou para condenação, independentemente
dos méritos da pessoa. A estes podiam juntar-se alguns discípulos de Lutero,
que, embora não fosse tão radical, ensinava que a natureza humana estava
irremediavelmente corrompida e que o pecado era a sua condição normal.
Daqui se partia para a negação de toda a capacidade do homem para o
mérito e a conversão, que acabava por se reduzir a uma mudança de atitude
de Deus, que não tinha qualquer efeito sobre o próprio pecador.

303
Augusto Ascenso Pascoal

Do outro lado, o optimismo naturalista de certos humanistas, cons-


ciente ou inconscientemente dependentes de Pelágio, que, esquecendo os
efeitos do pecado sobre a natureza humana, terminando em posições que,
na prática, negavam a Redenção e a necessidade da Graça.
Aquiles Estaço evita os dois extremos, além do mais, pela sua preocu-
pação de ortodoxia; o conteúdo das suas notas tem como fundo a doutrina
dos decretos tridentinos, onde, contra ambos os extremos, se consagra a
doutrina tradicional da Igreja, ao afirmar-se, com a necessidade da Graça,
a capacidade da natureza humana para colaborar com ela.
Mas a Graça é absolutamente necessária, inclusivamente para o início
da fé justificante, porque o homem já de si limitado, como criatura que é,
leva consigo o peso da «raça» pecadora a que pertence pela natureza, e dos
seus próprios pecados.
É neste sistemático situar-se entre os extremos, como rio que corre,
recebendo das margens tudo o que é compatível com a natureza das águas
e cabe no seu fluir contínuo, que vemos um dos aspectos fundamentais da
modernidade de Aquiles Estaço. Que é também, por este esforço de conci-
liar sem trair, um dos pioneiros do que decidimos designar por europeísmo
cultural.
Claro que se fala aqui daquela Europa com que sonhava o Papa João
VIII, em finais do século IX, e que esteve nos planos dos fundadores da
Comunidade Europeia, na qual procuraram um remédio para as ruínas
produzidas pela Guerra.

(O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

304
Nas raízes da tolerância

Desafios ao Ecumenismo, hoje

José Eduardo Borges de Pinho

Cinquenta anos depois do termo do Concílio Vaticano II, aconteci-


mento determinante para a nova consciência católica quanto ao problema
ecuménico, dois dados emergem a merecer reflexão: por um lado, é indis-
cutível que nestes 50 anos se deram passos extraordinários de aproximação
entre os cristãos (é legítimo dizer-se que se avançou mais em 50 anos do
que em 5 séculos!); por outro lado, há hoje a nítida sensação de que nos
encontramos num momento de alguma “estagnação” ou até de “impasse”.
De facto, já vivemos tempos mais estimulantes e inovadores no que respeita
ao ecumenismo1.
Sob este pano de fundo, a presente reflexão centra-se nalguns dos
principais desafios que se apresentam hoje à tarefa ecuménica. Naturalmente
que a amplitude e a complexidade dos problemas em questão exigiria
uma análise mais detalhada de alguns aspetos e a inclusão de vários ou-
tros motivos de reflexão, o que não é possível nos limites de um artigo.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Uso o termo “ecuménico” no sentido tradicional estrito, em referência aos aspectos


1

relativos à busca da unidade entre cristãos. Cf. J. E. B. de PINHO, Ecumenismo: Situação


e perspetivas, Lisboa 2011, 15-19; J. MARTÍN VELASCO, El Movimento Ecuménico en
el actual momento sócio-cultural y religioso, in Diálogo Ecuménico 48, nº 150 (2013) 160.

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Concentramo-nos assim em sete pontos, focados na perspetiva das prio-


ridades a que importa atender em ordem a superar possíveis impasses e a
abrir caminhos promissores de futuro.

1. A necessidade de aprofundar as razões da atual “estagnação”

Falar de “estagnação” no caminho de aproximação entre as Igrejas não


é dizer algo de absolutamente novo. Quem se lembra dos extraordinários
progressos do diálogo teológico verificados na primeira metade da década
de 70 do século passado, logo se recordará também de que esse sentimento
de “estagnação” veio a surgir pouco tempo depois, quando os resultados
esperados (ou “sonhados”) não apareceram e a realidade se mostrou em
toda a sua dureza. Mas algumas reflexões recentes justificam que se atente
de novo a este tipo de análise.
Num texto sobre o pensamento e a ação emergentes ao longo do
primeiro ano do ministério do Papa Francisco, o Cardeal Walter Kasper
expressou nestes termos a sua esperança relativa ao futuro ecuménico: “A
sua compreensão da Igreja como communio, como unidade na diversidade,
permite-lhe, na esteira do teólogo reformado Oscar Cullmann, percorrer o
caminho para uma diversidade reconciliada. Trata-se de uma aproximação
rica de esperança e muito discutida na teologia ecuménica, que se espera
possa conduzir para fora da actual estagnação ecuménica em relação seja
aos cristãos ortodoxos seja aos evangélicos” 2. Vinda de alguém cuja sensi-
bilidade ecuménica é inquestionável, a admissão de uma certa “estagnação”
não pode ser tida simplesmente como uma visão pessimista, mas exprime
um sentimento que não pode deixar de interpelar.
Outras vozes se têm pronunciado recentemente no mesmo sentido.
Na leitura de F. Bowen, pode-se dizer, sem exagero, “que um sentimento

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

W. KASPER, Una cesura historica. Le linee teologiche del pontificato di Francesco,


2

in Il Regno Attualità, 15.12.2014 – nº 22 (1179) 810. Cf. Evangelii Gaudium, nºs 244-246.

306
Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

geral de desilusão e de deceção pesa hoje sobre o clima ecuménico. As


razões são várias. Por um lado, confrontadas com os desafios contemporâ-
neos e experimentando um declínio considerável na prática dos fiéis, em
particular no mundo ocidental, numerosas Igrejas são tentadas a dobrar-se
sobre si mesmas num esforço crispado para redescobrir e reafirmar a sua
identidade. Por outro lado, certas Igrejas parecem satisfeitas com os pro-
gressos que têm sido realizados e dão a impressão de se contentarem em
viver sossegadamente umas ao lado das outras com as suas diferenças e as
suas divisões. Outras cessaram de se interessar pelo ecumenismo em razão
da ausência de verdadeiro progresso visível após tantos anos de esforços
intensos, outras ainda têm medo das mudanças profundas que eventuais
progressos ecuménicos lhes poderiam pedir” 3.
Do lado dos cristãos ortodoxos há leituras que apontam na mesma
direção. Um editorial da Revista Istina dá conta dessa leitura: “Os diálogos
teológicos são certamente também um lugar privilegiado para o restabele-
cimento da unidade da grande família cristã dividida. É verdade que eles
parecem patinar. Muitos partilhariam, sem dúvida, a verificação pessimista
do metropolita Crisóstomo de Messénia, que declarava, a 8 de Outubro,
diante do Santo Sínodo da Igreja ortodoxa da Grécia, ‘que as perspetivas
do diálogo teológico com os anglicanos se enfraqueceram, que a avaliação
do diálogo com os Vetero-católicos foi interrompida, que o diálogo com
as antigas Igrejas orientais anti-calcedonianas comporta uma avaliação
crítica em curso das questões pastorais e litúrgicas, que o diálogo com
os católico-romanos está ensombrado tanto pelo proselitismo dos uniatas
como pela dificuldade de compreensão relativamente ao funcionamento
e aplicação do primado no quadro do Sínodo e das estruturas eclesiais,
enquanto as perspetivas dos diálogos com os luteranos e os reformados

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

F. BOUWEN, L’oecuménisme aujourd’hui: - Les Églises orientales, in Proche-Orient


3

Chrétien 63 (2013) 100.

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recuaram em razão da ordenação de mulheres.’ (http:www.romfea.gr/epi-


kairotita/27199-2014-10-08-11-24-28 e orthodoxie.com)” 4.
Passando ao campo evangélico, também não faltam posicionamentos
críticos, considerando-se que a actual situação de estagnação exige uma
nova consciência nesta matéria: “O ecumenismo no sentido do diálogo inter-
-eclesial – escreve o teólogo luterano G. Siegwalt – chega a um ponto de
saturação, que não poderá ultrapassar senão abrindo-se ao campo aberto
dos diferentes aspetos do mundo contemporâneo, verdadeiro lugar da vo-
cação da Igreja. A constatação – a da estagnação do diálogo inter-eclesial,
onde, depois de cada novo acordo, nomeadamente sobre a Eucaristia mas
igualmente sobre a Justificação pela graça, alimentando a esperança da
comunhão das Igrejas, encontra novas, de facto sempre as mesmas an-
tigas razões (compreensão da sucessão apostólica, do e dos ministérios
particulares) para justificar a teologia da delimitação das Igrejas umas em
relação às outras – dá que pensar quanto à vivacidade da consciência que
as partes intervenientes neste diálogo têm da sua finalidade (‘que o mundo
creia que Tu Me enviaste’, Jo17). Dizendo isto, é preciso reconhecer de
imediato não só todo o contributo extraordinário, após séculos de divisão,
do movimento ecuménico no sentido do diálogo inter-eclesial, mas tam-
bém a absoluta necessidade e, portanto, legitimidade deste diálogo. Mas é
preciso ao mesmo tempo constatar o carácter redutor actual deste diálogo
intra-cristão, redutor na medida em que ele isola a Igreja cristã em relação
ao mundo contemporâneo e aos seus desafios, voltando a Igreja sobre si
própria e subtraindo-a assim ao vento do largo – pode-se também dizer: ao
Sopro do Espírito criador presente e atuante em todo o real” 5.
Finalmente, regressando a uma perspetiva católica, pode aduzir-se
ainda a leitura que Juan Martín Velasco faz da atual fase do movimento

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Quel chemin vers l’unité de la grande famille chrétienne?, in Istina 59 (2014) 337 s.
4

G. SIEGWALT, La vocation de l’Église dans le monde contemporain, in Revue des


5

sciences religieuses 89 (2015) 80 s.

308
Desafios
Nas raízes
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cumenismo , hoje
tolerância

ecuménico na época moderna, num mundo que se apresenta culturalmente


diferente e interpelativo em muitos âmbitos. Salientando que se privi-
legiou até agora “os aspetos doutrinais e institucionais do ecumenismo,
que permitiram superar mal-entendidos, aproximar posturas doutrinais e
institucionais entre as Igrejas e melhorar notavelmente as relações entre
elas”, J. Martín Velasco acrescenta: “Os seus resultados, certamente posi-
tivos, desembocaram, no entanto, nos últimos anos, na extensão entre os
seus agentes da impressão generalizada de ter chegado ao ponto maior de
convergência possível, sem chegar a tornar previsível a unidade completa
a que se aspirava. Este facto – sublinha –, que pode gerar e está gerando
desânimo e frustração, talvez nos esteja convidando a pôr o acento noutras
duas formas de ecumenismo, já presentes, mas menos desenvolvidas até
agora: o ecumenismo espiritual e o ecumenismo do testemunho e da ação” 6.
Deste sucinto panorama ressalta, com notória convergência, que o pri-
meiro grande desafio no atual momento ecuménico passa pela necessidade
de uma corajosa reflexão teológica e de um profundo exame de consciência
prático sobre as diversas causas – de ordem teológica, institucional, socio-
lógica, psicológica, etc. – que condicionam ou mesmo impedem decisivos
passos em frente. Está aqui uma interpelação e exigência que a todos – fiéis
e comunidades cristãs, teólogos e responsáveis eclesiais – interpela, na
consciência de que urgem opções decisivas, novas orientações de caminho.

2. O caminho percorrido como interpelação e exigência em ordem


a um futuro criativo

Sem menosprezar a consciência dos problemas presentes e das opções


que urgem, seria um erro não valorizar devidamente o já adquirido e não
atender às interpelações nele contidas. Uma avaliação adequada da atual
situação exige o reconhecimento dos enormes avanços conseguidos e sua
pertinência em ordem ao futuro.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

6
J. MARTÍN VELASCO, El Movimento Ecuménico, 140.

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Mesmo deixando de lado aquilo que constitui porventura, do ponto de


vista existencial, o mais importante – o clima que se vive nas mais diversas
partes do mundo, traduzido em inúmeros encontros e gestos quotidianos de
cristãos que aprenderam/reaprenderam a reconhecer-se como tais e a cola-
borarem uns com os outros –, merecem particular relevo os resultados do
diálogo teológico bilateral e multilateral concretizado nas últimas décadas.
Recordam-se alguns a título de exemplo, olhando apenas para aconteci-
mentos em que a Igreja católica tem estado envolvida. Destacam-se assim:

- os diversos documentos de diálogo a nível das Comissões Mistas


internacionais e nacionais, que praticamente já abordaram todos os temas
de controvérsia existentes entre cristãos 7;
- a Declaração Comum Católico-Luterana sobre a Justificação pela Fé,
assinada em 1999 pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade
dos Cristãos e pela Federação Luterana Mundial (o único texto de diálogo
ecuménico até agora aprovado oficialmente pela Igreja católica) 8;
- o documento da Comissão Fé e Constituição do Conselho Ecuménico
das Igrejas - CEI (Comissão em que a Igreja católica participa através de re-
presentantes – bispos e teólogos – oficialmente nomeados) sobre “Batismo,
Eucaristia e Ministério” (o chamado “Documento de Lima”, 1982) 9;

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

7
Cf. W. KASPER, Cosechar los frutos. Aspectos básicos de la fe Cristiana en el
diálogo ecuménico, Santander 2010; J. E. B. de PINHO, Ecumenismo, 67-89.
8
Cf. CONSEIL PONTIFICAL POUR LA PROMOTION DE L’UNITÉ DES
CHRÉTIENS – FÉDÉRATION LUTHÉRIENNE MONDIALE, Déclaration commune de
l’ Église catholique et de la Fédération luthérienne mondiale sur la doctrine de la justifica-
tion, in La Documentation Catholique 2187 (1997) 713-718; ID., Annexe à la Déclaration
commune catholique et luthérienne sur la doctrine de la justification. Communiqué commun
officiel de la Fédération luthérienne mondiale et de l’Église catholique, in La Documentation
Catholique 2209 (1999) 720-722.
9
CONSELHO PORTUGUÊS DAS IGREJAS CRISTÃS (ed.), Baptismo, Eucaristia,
Ministério. Convergência da Fé, Coimbra 1983.

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Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

- o documento “Para uma visão comum da Igreja” 10, elaborado também


pela Comissão Fé e Constituição (2013) e que neste momento se encontra em
processo de receção pelas Igrejas e Denominações Cristãs membros do CEI;
- a ampla cooperação através do Grupo Misto de Trabalho entre o CEI e
a Igreja Católica, que se tem traduzido, para além de diversas formas de tra-
balho conjunto, em textos de reflexão de significativo alcance ecuménico11;
- de novo a nível bilateral, o último documento da Comissão Mista
Católico-luterana, tendo como motivo o facto de, em 2017, passarem 500
anos sobre o início da reforma luterana12.
Pode concluir-se, pois, que, embora sem a espetacularidade de outros
tempos e sem os impulsos renovadores que muitos desejariam e conside-
ram possíveis, o caminho ecuménico das Igrejas cristãs tem prosseguido,
apesar de tudo.

Mas esta verificação dos importantes resultados conseguidos não pode


iludir também a presença de indicativos em sentido contrário ou até de
sinais contraditórios, alguns deles aliás já sugeridos. Em muitos lugares e
praticamente em todas as Confissões cristãs, há, em maior ou menor grau,
a reafirmação de atitudes confessionalistas. A receção dos documentos
ecuménicos por parte dos fiéis e dos primeiros responsáveis (ministros e
teólogos) das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais, inclusive da Igreja

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

10
The Church: Towards a Common Vision, 6 de Março de 2013 (Faith and Order
Paper nº 214), in https://www.oikoumene.org/en/resources/documents/commissions/
faith-and-order/i-unity-the-church-and-its-mission/the-church-towards-a-common-vision
(consulta a 5.6. 2015).
11
Destaco apenas dois textos: GROUPE MIXTE DE TRAVAIL ENTRE L’ÉGLISE
CATHOLIQUE ET LE CONSEIL OECUMÉNIQUE DES ÉGLISES, La notion de
«Hiérarchie des Vérités». Interprétation oecuménique, in Irénikon 53 (1990) 483-496 ;
ID., L’ Église: Locale et Universelle, in Irénikon 53 (1990) 497-522.
12
Du conflit à la communion. Commémoration luthéro-catholique commune de la
Réforme en 2017. Rapport de la commission internationale de dialogue luthéro-catholique
romaine, in Istina 58 (2013) 269-330.

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católica, está em grande parte por fazer. Os avanços conseguidos nalgumas


matérias doutrinais foram acompanhados pelo emergir de novas dificul-
dades (basta pensar na ordenação de mulheres ou em questões várias de
ordem ética). E se, por um lado, aumentaram as plataformas de encontro
e de diálogo ecuménico, por outro lado os caminhos do CEI tornaram-se
nos últimos anos mais frágeis e inseguros 13. Mais importante ainda: as
tradicionais Confissões cristãs provenientes da Reforma, para as quais a
questão da unidade se colocava em perspetivas doutrinais progressivamente
reconhecidas (dentro do movimento ecuménico, em geral, e do CEI, em
particular) já não constituem hoje a maioria do mundo cristão protestante:
essa é constituída por Igrejas de tradição livre, pentecostal ou “neoevan-
gélica” (“evangelical”), que não têm a mesma visão e preocupação pela
unidade da Igreja.

É precisamente na consciência deste complexo contexto, com todas


as suas interrogações, hesitações e dúvidas, que importa ter presente o
enorme valor do caminho percorrido e valorizar na sua irreversibilidade
os resultados alcançados nesse percurso, quer em termos de atitude glo-
bal dos cristãos e das Igrejas, quer em termos de conteúdos concretos de
divergências superadas ou, pelo menos, de convergências significativas
encontradas. Quando os diversos Papas do pós-Concílio assinalam a irre-
versibilidade da opção ecuménica estão a sublinhar que um novo estádio
foi adquirido, pelo que qualquer retorno ao passado seria “pecaminoso”.
O desafio consiste, pois, em saber valorizar e assumir o adquirido, tirando
daí todas as consequências: reconhecendo a necessidade de reorientações
de pensamento e de ação na busca de novos caminhos; renovando forças
para entrar verdadeiramente no núcleo duro das questões ecuménicas que
permanecem; colocando aberta e frontalmente todos os temas que têm
de ser refletidos, designadamente a questão sobre o próprio objetivo do
movimento ecuménico.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. TH. BARNAS, La X.e Assemblée du COE à Busan et ses enjeux pour le mou-
13

vement oecuménique, in Irénikon 86 (2013) 369-375.

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Nas raízes
Desafios ao Eda , hoje
tolerância
cumenismo

3. A questão fundamental do objetivo do movimento ecuménico:


que unidade da Igreja se deseja e é possível?

Há hoje consciência de que o problema fulcral da situação ecuménica


tem a ver com a clarificação do próprio objetivo final do movimento ecu-
ménico. Não só não há consenso relativamente ao que a unidade da Igreja
de Jesus, realizada nas circunstâncias da história, verdadeiramente significa
e exige dos cristãos e das respetivas Igrejas e Comunidades eclesiais, como
permanece em toda a sua acutilância, apesar de convergências e acordos
pontuais alcançados, o confronto de visões eclesiológicas diferentes. A
pergunta fundamental pela configuração concreta da unidade que Deus nos
pede e que somos chamados a construir na história não encontrou ainda
resposta suficientemente consensual, decisivamente impulsionadora do
caminhar ecuménico. “Com esta questão – escreveu o Cardeal Kurt Koch
– estamos no meio das discussões ecuménicas do presente, acerca das
quais tem de se afirmar que, quanto ao objetivo do movimento ecuménico
entre as diversas Igrejas e Comunidades eclesiais, ainda não se conseguiu
obter, até agora, nenhum acordo realmente produtivo e que, em parte, se
puseram novamente em causa anteriores consensos parciais relativamente
a este ponto. Assim, o objetivo do ecumenismo tornou-se, ao longo do
tempo, cada vez menos claro. É nesse aspeto que se tem de diagnosticar
o paradoxo deveras crucial da atual situação ecuménica: por um lado, foi
possível alcançar, nas diferentes fases do movimento ecuménico, amplos e
satisfatórios convergências e consensos sobre diversas questões de fé; mas,
por outro lado, todos os pontos de diferença ainda existentes continuam
a estar envolvidos numa compreensão com perfis diferenciados acerca da
unidade ecuménica” 14.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

K. KOCH, “Die einige und einzige Kirche”. Ökumenische Perspektiven der


14

Kircheneinheit, in Internationale Katholische Zeitschrift Communio 43 (2014) 114. Uma


tradução portuguesa deste artigo encontra-se em Communio 31 (2014) 317-332.

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É verdade que a consciência deste problema não é absolutamente


nova. Pelo contrário: a reflexão sobre a questão dos “modelos” da Igreja
una acompanhou o caminhar ecuménico no século passado e tem sido am-
plamente debatida no âmbito do diálogo teológico ecuménico 15. Também aí
houve avanços significativos, ainda que sobretudo só a nível de afirmações
de princípio. Merece realce, por exemplo e em comparação com tempos
passados, que se possa dar por substancialmente adquirida a convicção de
que se trata de uma unidade traduzida em elementos visíveis fundamen-
tais e que todos os modelos de unidade apontem no sentido de se procurar
conjugar o objetivo de uma verdadeira unidade na fé com uma diversidade
e diferenciação legítimas, mesmo necessárias, das formas da vida eclesial,
tendo em conta os aspetos positivos contidos nas heranças confessionais.
O progresso ecuménico realizado nas últimas décadas traduziu-se, de
facto, na consciência de que a unidade a realizar passa, necessariamente,
por uma unidade na profissão da mesma fé, no reconhecimento mútuo de
ministérios, na celebração comum da eucaristia, no serviço fraterno que
decorre das exigências do Evangelho. É uma unidade visível, que se tem
de expressar, pois, em elementos doutrinais e institucionais básicos reco-
nhecidos e vividos em comum.
No que respeita à Igreja católica, deixou-se de pensar na unidade da
Igreja como um mero “regresso a Roma” ou mesmo como uma simples
“adaptação” da atual realidade da Igreja católica. É de grande importância
o reconhecimento magisterial de que, na unidade querida por Deus para
a sua Igreja, se trata de uma “unidade na diversidade” (não uma unidade

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Para além de o tema ter sido aprofundado em todas as Assembleias Gerais do


15

Conselho Ecuménico das Igrejas desde 1948, importa sublinhar a reflexão explícita
sobre a questão feita no âmbito do diálogo bilateral católico-luterano: COMMISSION
INTERNATIONALE CATHOLIQUE-LUTHÉRIENNE, Voies vers la communion (1980),
in La Documentation Catholique 1800 (1981) 76-89; ID., L’unité qui est devant nous
(1984), in La Documentation Catholique 1936 (1987) 284-319. Cf. ainda J. E. B. de PINHO,
Ecumenismo, 109-118.

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monolítica, à imagem do que algumas mentalidades católicas praticaram


no passado ou exigem no presente) e da “unidade necessária e suficiente”
(não uma unidade que não admita diferenças significativas de interpretação
e prática, em razão da leitura diferente do testemunho bíblico, da história
vivida em comunidades eclesiais separadas ao longo de séculos, dos con-
dicionamentos de ordem cultural no passado e no presente, etc.) 16.
Mas, não obstante esses progressos, não se tem avançado muito quanto
à clarificação precisa e determinante dos elementos de unidade absoluta-
mente indispensáveis, irrenunciáveis, a acolher numa linha de exigência
de fidelidade ao Evangelho. E, simultaneamente, não há afirmações claras,
muito menos acordo, quanto à indicação das diversidades que podem ser
consideradas legítimas e daquelas que não são admissíveis, porque con-
tinuam a justificar a persistência de uma situação de divisão separadora.
Apesar de todas as afirmações de princípio, na realidade concreta continuam
a vigorar as conceções próprias da Igreja que cada Confissão – a católi-
ca, a luterana, a anglicana, etc. – tem. E cada uma das Confissões cristãs
reivindica para a sua visão e para a sua prática a pretensão da verdade, da
única atitude de fidelidade ao Evangelho. “Que, até agora, não se tenha
conseguido obter uma compreensão deveras satisfatória sobre o objetivo do
ecumenismo tem a sua causa essencial – salienta o Presidente do Conselho
Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos – no facto de que cada
Igreja e Comunidade eclesial tem e realiza o seu específico conceito con-
fessional da unidade da sua própria Igreja e, a partir daí, pretende transferir
esta conceção confessional também para o objetivo do ecumenismo, de
tal modo que, no fundo, há tantos objetivos finais ecuménicos quantas as
eclesiologias confessionais” 17. A ausência de acordo sobre o objetivo do
ecumenismo acaba por ter, pois, as suas causas mais profundas “na falta de
acordo acerca da essência da Igreja e da sua unidade”: “Este diagnóstico só

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

16
Cf. Ut Unum Sint, nºs 50, 54, 55, 56, 60, 61 e 78.
17
K. KOCH, “Die einige und einzige Kirche”, 116.

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pode significar que, para serem possíveis outros passos no caminho para
a unidade ecuménica, a clarificação ecuménica da compreensão da Igreja
e da unidade tem de figurar como o principal ponto da ordem de trabalhos
na presente e futura lista de questões ecuménicas a serem abordadas” 18. O
problema é nuclear porque toca no nervo de cada identidade confessional,
que tem uma dimensão doutrinal-teológica (aquilo que cada Igreja julga
dever defender em nome da verdade do Evangelho), mas também uma pro-
funda dimensão emocional-experiencial-subjetiva (aquilo que cada geração
de cristãos viveu ao longo dos tempos, os pressupostos que estruturam uma
determinada realidade confessional e são interiorizados por cada cristão).

4. A questão eclesiológica como interpelação à Igreja católica

Constituindo embora interpelação a todas as Igrejas e Comunidades


eclesiais e sem deixar de se reconhecer sinais positivos de evolução nesta
matéria – sublinho de novo o possível alcance do documento de conver-
gência “Para uma visão comum da Igreja” 19 –, a questão eclesiológica
apresenta-se para a Igreja católica como uma tarefa e uma responsabilidade
particulares, a exigir ser repensada dentro duma visão mais ampla tanto do
ponto de vista teológico como prático, e isto pelo menos por três motivos.
Por um lado, o peso específico, singular, que a Igreja católica tem no con-
texto ecuménico e na presença cristã no mundo confere-lhe essa especial
responsabilidade. Por outro lado, a Igreja católica sabe que os desenvol-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

K. KOCH, “Die einige und einzige Kirche”, 117.


18

Cf. T. F. ROSA, Editoriale – Una comprensione comune della Chiesa, in Studi


19

Ecumenici 32 (2014) 13 s. Entre os muitos comentários que vão surgindo cf.: W. HENN, The
Church: towards a common vision (2013). The new ecclesiological Text from the Faith and
Order Commission of the WCC, in Studi Ecumenici 32 (2014) 19-43; G. CERETI, Il nuovo
documento della Commissione Fede e Costituzione del CEC. La Chiesa: verso una vision
comune (Penang, giugno 2012), in Studi Ecumenici 32 (2014) 45-58; D. CARTER, Vers
une vision commune de l’Église. Commentaire et évaluation, in Irénikon 86 (2013) 312-337.

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vimentos do segundo milénio não podem ser absolutizados como únicas


expressões possíveis da Igreja de Jesus Cristo. Enfim, a sua convicção
(fundamentada) de que a Igreja de Jesus Cristo “subsiste” na Igreja católica,
ou seja, a convicção de que é nela que se realiza de forma plena, a nível
sacramental-institucional (não necessariamente a nível existencial-prático e
de fidelidade dos seus membros ao Evangelho de Jesus) a verdadeira Igreja
de Jesus Cristo exige-lhe, por razões de autenticidade e de credibilidade,
que seja sensível à realidade das outras Igrejas e aos valores de existência
cristã e de realização eclesial nelas contidos. Se o contributo católico passa
decisivamente pela afirmação da unidade da Igreja como dom e tarefa de que
não se pode desistir em razão da própria confissão de fé e da fidelidade ao
único Evangelho de Jesus, é-lhe pedida igualmente a especial responsabili-
dade, em termos de reflexão eclesiológica e de prática eclesial, de não cair
em maximalismos sem consciência histórica (obstaculizando a dimensão
processual que o movimento ecuménico tem de ter) e de não absolutizar
unilateralmente as suas próprias concretizações.
No debate essencial em termos de futuro sobre as diferenças de
compreensão e de estruturação eclesiais que importa clarificar, com base
em critérios que permitam distinguir legítima diversidade e divergências
inaceitáveis, a Igreja católica é desafiada a prosseguir e a desenvolver a
receção do Concílio. Nessa receção teológica e prática há questões que a
própria Igreja católica sabe que tem de aprofundar e repensar, reconhecendo
que ainda não encontrou respostas definitivas para todas elas 20. Enuncio
sucintamente cinco dessas questões.

a)Antes de mais, torna-se indispensável clarificar definitivamente que


a afirmação da “subsistência” da verdadeira Igreja de Jesus Cristo na Igreja
católica não assenta uma conceção eclesiológica que veja as outras Igrejas

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. as reflexões de M. FÉDOU, Le document luthéro-catholique. Du conflit à la


20

communion, in Istina 58 (2013) 227-244.

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e Comunidades Eclesiais apenas como possuindo “elementos de santifica-


ção e de verdade”, sem um reconhecimento inequívoco da eclesialidade
comunitária nelas vivida, com toda a substância e riqueza que tal significa.
Na leitura do Cardeal Kurt Koch, com a afirmação de LG, nº 8, não se está
a repristinar uma “anterior assim chamada ‘eclesiologia de elementos’”,
criticada já no tempo do Concílio. Nessa ordem de ideias, acentua que o
Vaticano II “não entende as Comunidades não-católicas como realidades
que conservaram um resíduo quantitativamente determinável de elemen-
tos da fé, mas no sentido da eclesiologia conciliar da Communio como
totalidades que vivem esses elementos no seio da sua compreensão global
eclesiológica. Pode até considerar-se com o Papa Bento XVI – acrescenta
– que por este caminho ’se criou espaço, juntamente com o singular, para
o plural Igrejas’” 21.
Apesar do teor positivo desta afirmação, estamos ainda longe de ter
encontrado, no campo católico e no que respeita à receção do “subsistit
in”, uma linguagem absolutamente linear, consequente e convincente, con-
tinuando a persistir interpretações teóricas e práticas de sentido diverso 22.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

K. KOCH, “Die einige und einzige Kirche”, 119. Cf. ainda B. DAHLKE, Elementa
21

ecclesiae. Theologiegeschichtliche Beobachtungen zu einem Konzept katholischer


Ekklesiologie, in Catholica 68 (2014) 302-314, part. 313.
22
Em termos oficiais, salientam-se as duas tomadas de posição da Congregação para
a Doutrina da Fé: CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração Dominus
Jesus sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, Cidade do
Vaticano 2000; CONGRÉGATION POUR LA DOCTRINE DE LA FOI, Réponses à des
questions concernant certains aspects de la doctrine sur l’Église, in La Documentation
Catholique 2385 (2007) 717-720. Para a interpretação do sentido da expressão conciliar e sua
adequada recepção cf., entre a imensa literatura existente, W. KASPER, Der ekklesiologische
Charakter der nichtkatholischen Kirchen, in Theologische Quartalschrift 145 (1965) 42-62;
H. LEGRAND, Dominus Jesus et l’œcuménisme, in Unité des Chrétiens 122 (2001) 10-16;
M. KEHl, Die eine Kirche und die vielen Kirchen, in Stimmen der Zeit 219 (2001) 3-16; J.
RIGAL, À propos de la Déclaration Dominus Jesus, in Nouvelle Revue Théologique 123
(2001) 192-203; P. RODRÍGUEZ - J. R. VILLAR, Las “Iglesias y Comunidades eclesiales”

318
Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

A interpretação de tendência unilateral, insistindo na distinção separadora


entre “Igrejas” e “Comunidades eclesiais” – fundamentada sobretudo na
consideração do defectus (“falta” ou “deficiência”?) do sacramento da
ordem (cf. UR, nº 22) e das consequentes limitações daí decorrentes para
a celebração da eucaristia e a plena sucessão apostólica – acaba por ter
consequências graves de bloqueio em diversos sentidos. Daqui resulta, para
além de todos os aspetos existenciais-afetivos problemáticos (que significa
para um luterano que um católico não deva falar de “Igreja luterana”?),
uma valoração deficiente, limitada, da qualidade de vida cristã que acontece
no seio dessas Comunidades eclesiais (não estamos simplesmente perante
indivíduos crentes aglomerados uns ao lado dos outros, mas de verdadeiras
realidades eclesiais, com autêntica consistência cristã, mesmo que com
limites ou deficiências tidas por estruturais). Por mais que se assevere o
contrário, esta análise valorativa parece mover-se, na prática, na lógica do
“tudo” ou “nada”, com repercussões sobretudo no modo como se considera
a celebração da Ceia ou as realidades ministeriais existentes.

b) Desde a Reforma e no centro da problemática ecuménica persiste a


questão de como se relacionam os elementos visíveis, institucionais, com
a realidade de graça, a dimensão de acontecimento de fé, esperança e cari-
dade que constitui o núcleo essencial da vida cristã e da realidade eclesial.
Neste contexto de relação do “visível” com o “invisível”, a compreensão
da Igreja como “sacramento”, um dos aspetos mais significativos da visão
eclesiológica conciliar, poderia ser – se bem entendida – um elemento
importante de aprofundamento desta questão em novo contexto.
Tal não tem acontecido de modo consequente e consensual, desde
logo porque há reservas do lado evangélico ao uso da palavra “sacra-
mento” em relação com a Igreja, reservas essas motivadas pelo receio de

separadas de la Sede Apostólica Romana, in Diálogo Ecuménico 39, nºs 124-125 (2004)
537-624; J. RAMÓN VILLAR, La Iglesia de Cristo subsistit in la Iglesia Católica (Lumen
Gentium 8), in Teocomunicação 42 (2012) 224-241.

319
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uma sacralização indevida da Igreja e seus elementos institucionais. Mas,


independentemente da linguagem utilizada ou a utilizar no futuro, é fun-
damental que a teologia e a compreensão católicas da Igreja clarifiquem,
sem margem para dúvidas, a dimensão de “relatividade” (em relação aos
dons de Deus, à ação do Espírito e seus frutos carismáticos, ao Reino de
Deus que está chamada a servir) que, no entendimento conciliar, a di-
mensão “sacramental” da Igreja (e seus sacramentos em sentido estrito)
estruturalmente contém e significa. Se a dimensão institucional não pode
ser relativizada como insignificante ou mero fruto das circunstâncias e mo-
dulações da história (tendência protestante na acentuação da invisibilidade
da Igreja no seu mistério), já que a Igreja é uma realidade “complexa” e o
Espírito Santo se serve da sua estrutura social (LG, nº 8), ela também não
pode ser absolutizada sem mais na configuração dos seus ministérios, na
ritualização dos acontecimentos celebrativos, nas formas de exercício da
autoridade doutrinal. “A Igreja – escreve B. J. Hilberath – anuncia a salvação
de Deus, para a qual ela aponta, a qual ela pode prometer aos homens e à
qual ela serve em martyria, diakonia e leiturgia. Falar da estrutura quase-
-sacramental da Igreja significa, pois, afirmar a sua dupla relatividade: a
Igreja não é a salvação, antes ela indica a salvação, que só Deus oferece, e
deixa-se utilizar por ele como instrumento” 23.

c) Um problema não independente deste, mas mais básico na sua


formulação e concretização, é a questão da relação ministério ordenado/
comum dos fiéis. Como é sabido, estamos aqui num dos pontos nevrálgicos
da Reforma do século XVI. Cinco séculos depois, persistem problemas,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

B. J. HILBERATH, Eine ökumenische Aufgabe und eine katholische


23

Herausforderung: Synodalität, in Theologische Quartalschrift 192 (2012) 146. Cf. ainda


R. VÁSQUEZ JIMÉNEZ, La Iglesia como “sacramento”. Categoría irrenunciable para la
elaboración de una eclesiología ecuménica, in Diálogo Ecuménico 47, n.ºs 148-149 (2012)
237-300.

320
Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

não totalmente surpreendentes se atendermos ao peso de séculos de história


nesta matéria, mas indiscutivelmente de urgente clarificação.
Assim, continuam a existir e às vezes a prevalecer no espaço católico,
e isso tanto a nível de posições oficiais correntes como sobretudo a nível
da compreensão teológica e da realidade prática, interpretações unilaterais
de LG, nº 10, onde se diz que o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio
ministerial ou hierárquico se diferenciam “essencialmente e não apenas em
grau”. A visão conciliar da Igreja como Povo de Deus – nas últimas décadas
desvalorizada em detrimento de uma visão algo abstrata-idealista da Igreja
como “comunhão” e agora de algum modo revalorizada no magistério do
Papa Francisco 24 – bem como a existência de vários fenómenos eclesiais
problemáticos (tais como uma certa tendência para a “ressacralização” do
clero, juntamente com a persistente ausência de verdadeira corresponsabi-
lidade laical) não podem deixar de levar a uma reconsideração teológica
e prático-estrutural do modo como se entende a relação entre sacerdócio
comum dos fiéis e ministério sacerdotal 25. Trata-se aqui de compreender,
teorica e praticamente, que há apenas “registos de dons” diferentes dentro
de uma participação comum no único sacerdócio de Cristo, sendo certo que
o ministério sacerdotal encontra a sua identidade específica ao serviço do

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. F. GRUBER, Kirchenbild und Kirchenreform von Franziskus, in Theologisch-


24

praktische Quartalschrift 163 (2015) 35 s.; R. DAUSNER, Das Volk Gottes als Topos des
Zweiten Vatikanischen Konzils. Perspektiven und Herausforderungen nach fünfzig Jahren,
in Stimmen der Zeit 233 (2015) 291-301.
25
Considerando que a “diferenciação ontológica” não é nenhuma solução, mas sim
uma “encobrimento do problema”, F. GRUBER acrescenta: “Trata-se, na verdade, não de
ontologia de essência, mas de uma teologia da representação de Cristo, trata-se de uma on-
tologia de relação. Como é que esta pode ser expressa no ministério sacramental para além
de ontologismo sacramental e de um funcionalismo numa lógica organizacional? Teologia
e magistério devem encontrar uma resposta para isso, se se quer resolver este problema”:
Kirchenbild, 39. Cf., no mesmo sentido, uma reflexão feita já nos anos setenta por Y.
CONGAR, Quelques remarques touchant les ministères, in Nouvelle Revue Théologique
93 (1971) 790.

321

4
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sacerdócio comum. Escreve B. Hilberath: “Os ordenados não são cristãos de


um grau mais elevado (isto vale mesmo quando acontece ser obscurecido de
vez em quando, na prática), não há qualquer elevação dentro do sacerdócio
comum de todos. A diferença de essência refere-se não à essência pessoal
do ministro ordenado, nem ao seu carácter humano nem a um superior
‘character indelebilis’ em termos de teologia da graça. O que se pretende
dizer é, antes, como o contexto o demonstra, que os ministros ordenados
têm uma essencialmente outra tarefa e que eles não fazem melhor, ‘de forma
superior’, aquilo que é confiado a todos os cristãos” 26. Trata-se, neste ponto,
de buscar uma maior fidelidade evangélica, o que contribuirá certamente
também para se poder avançar, em termos ecuménicos, no caminho de um
reconhecimento mútuo dos ministérios.

d) Nesta mesma ordem de ideias, pede-se à Igreja católica uma visão


mais abrangente da apostolicidade da Igreja e suas mediações estruturais e
existenciais. Isso quer dizer: sem se pôr em causa, como algo irrenunciável
que é, o sentido da sucessão apostólica no episcopado histórico, é de pri-
mordial importância a capacidade de reconhecer em toda a sua amplitude
e no seu significado para o testemunho cristão a apostolicidade de toda a
Igreja (a “apostolicidade de doutrina”) e de valorizar a dimensão positiva
de outras formas ministeriais existentes, pelas quais a apostolicidade da
Igreja também se exprime e se vive 27. Para isso é decisivo partir de uma
consciência histórica apurada e saber olhar para a historicidade das confi-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

26
B. J. HILBERATH, Eine ökumenische Aufgabe, 145. Cf. D. CARTER, Vers une
vision commune de l’Église, 319 e 324 ss; M. LIENHARD, Luther “notre maître commun”?
Regards sur le document: Du conflit à la communion (2013), in Istina 58 (2013) 254 s.
27
Cf. J. RAHNER, Die Apostolizität der Kirche. Anregungen, Impulse und
Herausforderungen des Studiendokuments der Lutherisch/Römisch-katholischen
Kommission für die Einheit – einige katholischen Thesen, in Catholica 68 (2014) 176-193.
Cf. ainda M. FARCI, Il Testo di convergenza La Chiesa, in Studi Ecumenici 32 (2014) 59-
78; CH. TIETZ, Das Studiendokument “Die Apostolizität der Kirche”. Anregungen und
Impulse für die lutherischen Kirchen, in Catholica 68 (2014) 167-175.

322
Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

gurações ministeriais da Igreja, designadamente no que respeita à relação


bispo/presbítero. Trata-se, mais profunda e amplamente ainda, de reconhecer
que todos os fiéis são sujeitos activos e portadores da verdade permanente
da fé (sensus fidei – consensus fidelium).

e) Finalmente, continua na ordem do dia no espaço católico o problema


fulcral e estrutural constituído pela relação Igreja inteira/Igrejas locais, pela
configuração organizativa institucional da relação entre o ministério do Papa
e o ministério dos bispos 28. Na questão do relacionamento entre primado
e colegialidade episcopal, no papel reconhecido às instâncias intermédias
(conferências episcopais continentais, regionais ou nacionais), no modo
como se entende e concretiza a sinodalidade no conjunto da vida da Igreja,
estamos diante de questões que não se situam apenas no âmbito da agenda
interna católica, mas de tarefas que, exigindo respostas específicas, claras
e abrangentes da Igreja católica, têm amplo significado ecuménico. Este é
o caso, particularmente, da necessidade de encontrar um relacionamento
e equilíbrio adequados entre primado e colegialidade: “Esta tarefa é tanto
mais urgente quanto representa uma das chaves, se não a chave para a
unidade ecuménica da Igreja” 29.

Não estamos diante de questões de fácil e rápida resolução. Só o


tempo ajudará a clarificar ideias e, sobretudo, a delinear configurações
práticas mais coerentes. Não estamos, de facto, tanto na Igreja católica
como nas outras Igrejas e Comunidades eclesiais, diante de um mero
problema teórico-doutrinal. Como ressalta no diálogo católico-ortodoxo

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. F. GRUBER, Kirchenbild, 38 s.


28

P. HENRICI, Conferências episcopais. Contributo promissor para a unidade


29

da Igreja, in Communio 31 (2014) 306. Cf. P. HÜNERMANN, Reflexionen zum Primat


des römischen Bischofs – aus katholischer Sicht im Hinblick auf ökumenische Fragen, in
Theologische Quartalschrift 194 (2004) 327-342; D. ARNAUDOV, L’ecclésiologie du
Document de Ravenne (2007) de la commission internationale de dialogue catholique-
-orthodoxe, in Istina 59 (2014) 339-366. Cf. ainda Evangelii Gaudium, nº 32.

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em curso, trata-se, em última análise, de saber até onde os cristãos e as


Igrejas estão disponíveis para caminhar em frente, superando os limites
e unilateralidades das próprias experiências e convicções confessionais e
encontrando expressões comuns na afirmação fundamental da mesma fé e
na concretização estrutural da vida eclesial.

5. A urgência de opções fundamentais de ordem hermenêutica:


da importância da hierarquia das verdades à indispensável atenção
ao sensus fidei.

As questões de ordem eclesiológica apresentadas – e outras que se


poderiam explicitar – sugerem como o futuro ecuménico exige capacidade
de decisão, audácia para ultrapassar tendências paralisantes, coragem para
inovar face a posicionamentos estabelecidos. Nesse sentido a abertura de
caminhos de futuro obriga a colocar algumas questões de ordem hermenêu-
tica em termos tanto teológicos como existenciais. Sem perder a noção de
que a tarefa ecuménica é, do ponto de vista dos seus pressupostos humanos,
uma tarefa de muito longo prazo (essa perceção é fundamental para não
cairmos em perspetivas profundamente irrealistas!) e mantendo sempre a
consciência de que os problemas da divisão dos cristãos não se resolvem
– nunca se resolverão! – apenas pela via pura e simples do diálogo teoló-
gico (os problemas doutrinais ou dogmáticos estão sempre envolvidos em
fatores de ordem histórica, sociológica, cultural, institucional, etc.), importa
colocar no primeiro plano da reflexão teológica e da consciência eclesial
a capacidade de rever pressupostos habitualmente tidos por imutáveis, a
possibilidade e necessidade de abertura a profundas transformações de
mentalidade e de prática 30. Nesse sentido enuncio três aspetos fulcrais de
ordem hermenêutica.
a) O princípio da “hierarquia das verdades”, explicitamente reconhe-
cido na sua relevância ecuménica no Vaticano II (Unitatis Redintegratio, nº
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. F. BOUWEN, Ermeneutica ecumenica o/e ermeneutica dell’ecumenismo, in


30

Studi Ecumenici 31 (2013) 290-305; J. E. B. de PINHO, Ecumenismo, 128-131.

324
Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

11) e retomado na sua importância para a vivência e o testemunho da fé pela


Evangelii Gaudium (nºs 36-39), tem de ser assumido no diálogo teológico
ecuménico e na consciência dos fiéis das diversas Igrejas e Comunidades
eclesiais como algo de absolutamente essencial em todas as dimensões do
viver crente, pessoal e eclesial. Importa sobretudo ter em conta que não
estamos apenas diante de um elemento de ordem teológica, mas de um cri-
tério com uma ampla dimensão existencial e espiritual, constituindo mesmo
uma questão de fidelidade cristã (evangélica). Só vivendo a “hierarquia das
verdades” é possível caminhar para uma Igreja una que saiba entender-se
e configurar-se como “unidade na diversidade” e que seja capaz de exigir
só a “unidade necessária e suficiente”, exigência essa traduzida no reco-
nhecimento concreto de diversidades legítimas, de caminhos provisórios
diferenciados, de experiências confessionais com o seu valor próprio.
O caminhar ecuménico exige, de facto, um grande sentido da his-
toricidade do caminhar na fé. Nessa linha importa saber distinguir entre
substância da fé e expressões culturais situadas no tempo, é indispensável
aprender a discernir no seu peso específico as verdades que se referem ao
fim salvífico (e proclamam a acção salvífica de Deus Pai em Jesus Cristo
pelo Espírito), as verdades que se referem aos meios de salvação (Igreja,
sacramentos, ministérios…) ou ainda as verdades paradigmáticas (aquelas
que expressam simbólica, exemplar e tipologicamente outras verdades,
como sucede com os dogmas marianos) 31. O que, no contexto eclesiológico,
significa desde logo a perceção de que a Igreja não está no centro (no fim
salvífico), mas entre os meios de salvação. Os seus elementos de realização
concreta – designadamente a nível sacramental e ministerial – não podem
ser assim tão absolutizados como às vezes sucede 32.
É sabido que, havendo embora um consenso básico sobre este ponto
de indispensável discernimento doutrinal, a questão da “hierarquia das
verdades” atravessa o próprio problema confessional, ou seja, as Confissões
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. W. KASPER, Introdução à fé, Porto 1973, 103 ss. Cf. J. E. B. de PINHO,
31

Ecumenismo, 131-134.
32
Cf. P. HÜNERMANN, Reflexionen zum Primat, 335 s.

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cristãs não têm exatamente a mesma “hierarquia das verdades”, o que é


particularmente visível nas questões de ordem eclesiológica. Mas, na cons-
ciência dos limites inevitáveis de toda a linguagem doutrinal e teológica 33
e das histórias confessionais próprias com suas consequências a nível de
compreensão e experiência da fé, o vivo sentido da “hierarquia das verda-
des” é um elemento heurístico e hermenêutico de importância crucial para
a discussão ecuménica e o testemunho cristão no mundo. Não há outro
caminho para se poder avançar na capacidade de distinguir entre a diferença
que é motivo de separação e aquela que pode não o ser, entre aquilo que
necessita ainda de uma clarificação obrigatória e aqueles aspetos que podem
ser deixados à continuação do diálogo da fé no futuro. Só um clarividente
sentido da “hierarquia das verdades” poderá ajudar a reavaliar o peso de
algumas questões em debate e ajudar a encontrar, na fidelidade à tradição
mais profunda e original, aquilo que é verdadeiramente irrenunciável como
acolhimento da Revelação de Deus dentro duma história de salvação.

b) A atenção aos pressupostos de uma receção activa e criativa

A deficiente receção do caminho percorrido pelas Igrejas no movimen-


to ecuménico (mormente nestes últimos cinquenta anos), tanto a nível de
gestos das Igrejas como no que respeita a documentos do diálogo bilateral
e multilateral, é justamente considerada um dos obstáculos maiores na
atual situação ecuménica. A tarefa que aqui se apresenta, gigantesca nas
suas proporções, condições e exigências, é mesmo crucial em termos de
esperança para o futuro 34.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. GROUPE MIXTE DE TRAVAIL ENTRE L’ÉGLISE CATHOLIQUE


33

ROMAINE ET LE CONSEIL OECUMÉNIQUE DES ÉGLISES, La notion de «Hiérarchie


des Vérités», nº 39, p. 495.
34
Cf. F. BOUWEN, Ermeneutica ecumenica, 285 ss; J. E. B. de PINHO, A recepção
como realidade eclesial e tarefa ecuménica, Lisboa 1994.

326
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Sem dúvida, seria bem diferente a situação atual se cada reflexão ou


tomada de posição oficial de uma Igreja incorporasse perspetivas ecumé-
nicas já adquiridas, incluísse referências explícitas à dimensão ecuménica
deste ou daquele tema. De um modo geral, as Igrejas continuam a funcionar
como se o ecumenismo fosse uma realidade paralela ao seu viver quotidiano
(os documentos oficiais são entendidos como internos). A receção, sendo
embora um acontecimento multifacetado, prolongado no tempo e passível
de ser concretizado em diversos registos, só pode acontecer na medida
em que o pensamento ecumenicamente elaborado seja conscientemente
inserido naquilo que as Igrejas dizem e fazem internamente, naquilo que as
Igrejas vivem quotidianamente. Por exemplo: um documento magisterial
católico sobre a eucaristia, o ministério ordenado, as Igrejas locais, Maria,
etc., não pode deixar de integrar aquilo que a nível ecuménico tem vindo
a ser adquirido.
Outra dimensão fundamental da receção é a necessidade de tomadas
de decisão sobre aspetos de convergência fundamental adquirida ou de
diversidade legítima reconhecida, para que não se prossiga com “declara-
ções” de acordo ou convergência sem quaisquer consequências práticas.
Mesmo quando se reconhece que as diferenças existentes não justificam já
determinados modos de falar ou de agir, permanece-se como se nada tivesse
acontecido 35. É, pois, justificada a pergunta se não faltará coragem – mais
radicalmente ainda, sentido de fidelidade evangélica – para a valorização
e concretização de “passos intermédios” na esperança de uma comunhão
mais ampla e definitiva a realizar no futuro.

c) A revitalização e tomada em consideração do sensus fidei

O movimento ecuménico dificilmente avançará se não for capaz de


atender à realidade vivida pelos cristãos, seus problemas e seus contributos
existenciais (pense-se, por exemplo, nas famílias mistas ou nas situações

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

35
Cf. F. BOUWEN, L’oecuménisme aujourd’hui, 90.

327
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de convivência diária de cristãos de Confissão diferente). A busca comum


da verdade a professar e a viver em Igreja, superando divergências de
compreensão e de prática, pressupõe o reconhecimento da importância do
sensus fidei dos fiéis como um dos princípios hermenêuticos de fundamental
significado em ordem aos processos de receção ecuménica, designadamente
no que respeita ao modo como a tarefa ecuménica é percebida e vivida na
sua urgência, nos seus limites, nas suas exigências.
Estamos, como é sabido, diante de uma grandeza de primeira ordem,
um dos “lugares teológicos” imprescindíveis 36. Trata-se – para a teologia e
para o magistério – de prestarem atenção aos sinais que a vida dos crentes
e seu sentir na fé dá: como interpelação à vida quotidiana eclesial; como
questionamento dos atos e omissões que acontecem em termos ecuménicos;
como manifestação de incompreensão, impaciência ou até provocação face
à lentidão do caminhar ecuménico; como relativização de “questiúnculas”
de linguagem ou de acentuações doutrinais face ao essencial e ao carácter
prioritário do testemunho do Evangelho no nosso mundo. Urge acolher a
interpelação contida no que os cristãos sentem e exprimem, no que eles
compreendem ou não conseguem entender, nas prioridades que colocam mas
também nas relativizações que fazem, nos gestos concretos que realizam
mas também nas atitudes de indiferença ou de desânimo em que, porventura,
caiam perante a realidade quotidiana que lhes é dado viver.
Será da perceção desta sensibilidade da fé dos cristãos das diversas
Confissões que há-de brotar uma das inspirações mais frutuosas para a
reflexão e o trabalho ecuménicos no futuro. Muito se avançaria na causa
ecuménica se, na verdade, confrontássemos as questões teológico-doutrinais
de divergência com os valores, os problemas e as perspetivas que decorrem
da vivência quotidiana da fé pelo comum dos cristãos, dentro da sua própria
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Evangelii Gaudium, nºs 119 ss.; COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL,


36

O sensus fidei na vida da Igreja, in http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/


cti_documents/ rc_cti_20140610_sensus-fidei_po.html (consulta a 4.6.2015). Cf. ainda J.
E. B. de PINHO, Ecumenismo, 134 ss.

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Confissão. É por aqui também que o ecumenismo como atitude prática de


vida e a teologia ecuménica como reflexão da fé se manifestam radicalmente
abertas à ação do Espírito, que nos torna capazes de pensar o presente sob
o horizonte do futuro da história de Deus connosco.

6. O desafio de assumir com coerência a prioridade e centralidade


do ecumenismo espiritual

As transformações de mentalidade e as atitudes criativas que são


exigidas para se progredir nas relações ecuménicas são de tal amplitude e
profundidade que passos em frente só são possíveis a partir de um enraiza-
mento numa verdadeira espiritualidade ecuménica. O movimento ecuménico
teve consciência disso desde o princípio, e a iniciativa, surgida mais tarde,
de lançar a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos – não obstante o
pouco enraizamento na consciência atual das nossas comunidades – é um
sinal indicativo disso mesmo. Aliás, o Concílio Vaticano II veio lembrar
que o ecumenismo espiritual é “a alma de todo o movimento ecuménico”
(UR, nº 8). Mas que significa, no momento presente, apelar de novo a que
os cristãos e as Igrejas assumam a centralidade do ecumenismo espiritual?
Sublinho quatro aspectos.

a)A acentuação do ecumenismo espiritual torna-nos conscientes de que


a unidade é, antes de mais e radicalmente, dom de Deus, “não é o resultado
dos nossos propósitos de unirmo-nos, nem dos meios que ponhamos em
prática para isso. A unidade da Igreja pertence à própria natureza da Igreja
e foi-lhe e está-lhe sendo permanentemente dada pelo Mistério de Deus Pai,
Filho e Espírito Santo que a congrega e a converte na assembleia que já é
una, e está chamada a sê-lo cada vez mais perfeitamente” 37. Certamente
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

J. MARTÍN VELASCO, El Movimento Ecuménico, 150. Cf. K. KOCH, “Die einige


37

und einzige Kirche”, 101; Zur Einheit berufen. Wort der deutschen Bischöfe zur Ökumene
aus Anlass des 50. Jahrestages der Verabschiedung des Ökumenismusdekretes “Unitatis
Redintegratio”, in Catholica 68 (2014) 245.

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que a consciência disto não elimina a responsabilidade duma tarefa que nos
pede fidelidade, coerência e determinação, mas coloca-nos na verdadeira
atitude de termos sempre presente que o tempo e o modo (a configuração)
da unidade da Igreja não está simplesmente na nossa vontade, nos nossos
planos e esforços, por mais que eles sejam também indispensáveis. O decisi-
vo passa pela ação do Espírito que possibilita e interpela a nossa fidelidade.

b) O ecumenismo espiritual desperta-nos, assim, para uma perceção


mais profunda e positiva da unidade que já existe, da comunhão já vivida
a partir da comum abertura ao mistério de Deus e seu amor para connosco.
“Reconhecida esta unidade radical, a nossa tarefa é tomar consciência do
Mistério que nos constitui e nos envolve e no qual vivemos como verda-
deiro meio divino da Igreja, e viver, de forma cada vez mais perfeita, da
comunhão que cria em nós”. Trata-se – acentua ainda J. Martin Velasco
– de desenvolver “esta dimensão de profundidade, verdadeiramente mís-
tica, do ecumenismo”, de modo a alcançar também “uma nova visão da
convergência desejada como resultado dos seus propósitos” 38. Saber reco-
nhecer o que a fé comum em Jesus Cristo já significa, não obstante todas
as dificuldades e separações que permanecem, abre o coração dos cristãos
para atitudes de fraternidade vivida, fomenta a oração em comum como
vivência profundamente crente, impulsiona no sentido de se distinguir
melhor o essencial do acessório, gera testemunhos apelativos de santidade
para além das fronteiras confessionais.

c) Ecumenismo espiritual aviva a consciência cristã para a convic-


ção de que ecumenismo e conversão andam a par: “Não há verdadeiro
ecumenismo sem conversão interior” (UR, nº 7). “Toda a renovação da
Igreja – lê-se noutro passo – consiste essencialmente numa maior fideli-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

J. MARTÍN VELASCO, El Movimento Ecuménico, 151. Cf., relativamente a todo


38

este ponto, 148-156. Cf. ainda F. BOUWEN, L’oecuménisme aujourd’hui, 103 e 110 s.

330
Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

dade à própria vocação. Esta é, sem dúvida, a razão do movimento para a


unidade. A Igreja peregrina é chamada por Cristo a essa reforma perene.
Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta
reforma” (UR, nº 6).
A conversão pedida pela tarefa da unidade é, pois, profunda, é uma
conversão do coração que vai até às raízes mais fundas da identidade cristã
vivida em Igreja, é uma conversão pessoal e estrutural. Se está em causa,
sempre e radicalmente, a conversão pessoal (no modo como se vê, julga e
age), de modo a sermos capazes de nos colocarmos no lugar do outro à luz
do olhar de Deus 39, o ecumenismo como tarefa global exige conversão das
Igrejas, processos comunitários de verdadeira mudança de mentalidades
e de atitudes. A tarefa ecuménica não é viável sem uma consciência da
necessidade de conversão das instituições (Igrejas) como tais 40. Se tudo
passa sempre pela dimensão pessoal – pelas inércias, falhas e pecados
pessoais –, a realidade atual da divisão dos cristãos está cristalizada em
verdadeiras “estruturas de pecado”, em “pecados estruturais” que pesam
sobre os primeiros responsáveis e os fiéis, sobre cada tempo e cada situa-
ção, aparecendo por vezes como obstáculos absolutamente intransponíveis
aos nossos olhos e para as nossas forças. Percebe-se assim melhor como é
gigantesca a tarefa ecuménica: estão aqui em causa profundas transforma-
ções na educação da fé, na formação das consciências, na capacitação para
viver responsável e adultamente a própria fé, na superação de alheamentos
perante responsabilidades comunitárias, na capacidade de coragem cívica
e cristã que as transformações exigem.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Nesse sentido, o ecumenismo não é “utopia”, mas “heterotopia”: cf. H.-J.


39

SANDER, Der Ort der Ökumene für die Katholizität der Kirche – von der unmöglichen
Utopie zur prekären Heteroropie, in P. HÜNERMANN – J. HILBERATH, J. (ed.), Herders
Theologischer Kommentar zum Zweiten Vatikanischen Konzil, Vol. 5, Freiburg-Basel-Wien
2009 (Sonderausgabe – Original: 2006), 186-200.
40
Cf. GROUPE DES DOMBES, Pour la conversion des Églises. Identité et change-
ment dans la dynamique de communion. Sixième Document du Groupe de Dombes, in La
Documentation Catholique 2033 (1991) 733-752 e 2034 (1991) 781-790.

331
JAosé
uguEsduardo
t o A s cBeorges
n s o Pde
a sP
cinho
oal

d) Acolher a centralidade do ecumenismo espiritual significa, enfim,


que as Igrejas e Comunidades eclesiais, numa irreversível opção ecumé-
nica, estão dispostas a percorrer em conjunto um caminho de abertura às
surpresas criativas da ação do Espírito e a configurações de vivência da
comunhão cristã que não podem ser determinadas de antemão. O caminho
do futuro não passa certamente pela configuração de uma Igreja una mais
ou menos unitária ou centralizada, de tendência uniformizadora, mas por
uma “unidade na diversidade” que seja verdadeira e completa expressão
da catolicidade da Igreja de Jesus Cristo, na diversidade de tempos e de
espaços, na multiplicidade de experiências diferentes, na riqueza comple-
mentar de dons ao serviço de todos 41. Mas esta “unidade na diversidade” só
pode ser fruto da fidelidade à ação do Espírito, da atenção aos seus sinais,
da resposta aos caminhos e opções que o mesmo Espírito, através do nosso
caminhar na história, nos sugere e suscita.

7. O ecumenismo sob o horizonte do serviço à humanização do


mundo

Por mais que a unidade da Igreja seja um dado fundamental da espe-


rança cristã na fidelidade a Jesus Cristo e seu Evangelho, a tarefa ecuménica
nunca foi nem pode ser um fim em si mesmo, porque a Igreja de Jesus Cristo
também não existe para si mesma: a sua identidade e missão é ser sinal e
instrumento da íntima comunhão com Deus e da unidade da humanidade
(cf. LG, nº 1). A Igreja está ao serviço do Reino de Deus e sua realização,
que, sendo embora sempre parcial e limitada nas circunstâncias da histó-
ria, passa por sinais e caminhos de verdade, justiça, liberdade, amor e paz,
traduz-se em processos e estruturas de humanização à luz do plano de Deus
para os seres humanos e sua convivência neste mundo. A busca da unidade
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Reside neste ponto, sem dúvida, a questão nevrálgica em termos de futuro: em


41

que medida e de que forma se pode conciliar unidade e pluralidade? Cf. W. HENN, The
Church, 37-43.

332
Desafios
Nas raízes
ao Eda
cumenismo , hoje
tolerância

da Igreja nunca pode perder de vista, pois, este horizonte simultaneamente


histórico e escatológico, sob pena de não encontrar o seu verdadeiro sentido.
Desde os seus inícios o movimento ecuménico teve consciência disso, e
perante as dificuldades sentidas em ordem a superar divergências doutrinais
confessionais houve (continua a haver), por vezes, a tentação de pôr de lado
o diálogo teológico-doutrinal a favor do testemunho comum ao serviço das
necessidades humanas (“a doutrina separa, o serviço une”) 42. Mas logo se
tomou nota também que se estava diante de um falso dilema: a comunhão
entre os cristãos na busca de acolhimento da mensagem evangélica, tradu-
zida em testemunho comum (a práxis cristã), por um lado, e a compreensão
que se tem dos fundamentos cristãos, expressos também na conceção da
Igreja e seus elementos sacramentais-institucionais indeclináveis, por outro,
não se podem separar como compartimentos estanques. Desde logo porque
o serviço e o posicionamento perante as tarefas de construção do mundo
também dividem ou podem dividir, e os velhos e novos problemas que os
cristãos são chamados a enfrentar no mundo de hoje e em termos de futuro
– pense-se, por exemplo, nas questões éticas relacionadas com a biologia
ou a sexualidade, nos desafios colocados pela pobreza a nível mundial, nos
conflitos de raiz económica, social, cultural e religiosa existentes um pouco
por todo o lado – mostram com toda a evidência que, sem a busca de um
contínuo enraizamento no mesmo e único Evangelho de Jesus, dificilmente
os cristãos conseguem contribuir de forma unida, significativa e crível para
a construção de um mundo mais humano.
Mas assente, sem qualquer hesitação intelectual e prática, que
“doutrina” e “serviço” não se podem separar numa qualquer dicotomia,
é fundamental que os cristãos e as Igrejas assumam hoje, de modo mais
consciente e coerente, um novo olhar sobre a situação do cristianismo no
mundo, colocando no centro de todo o seu labor – certamente também
como razão de ser para a busca da unidade – a pergunta pelo que nos

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

42
Cf. TH. BARNAS, La X.eAssemblée du COE, 348-352; T. F. ROSA, Editoriale, 15.

333
JAosé
ugE t o A s cBeorges
u sduardo nso P a sP
de cinho
oal

exige, à luz do plano salvífico de Deus, o serviço à construção humana e


humanizadora deste mundo. Perante os novos desafios de amplitude mun-
dial que se apresentam ao cristianismo e numa situação em que a fé cristã
deixou de ser para muitas pessoas uma evidência, tem de estar no centro
do diálogo e da preocupação ecuménicos a questão de saber como é que
as Igrejas podem corresponder hoje à sua tarefa fundamental de anunciar
crivelmente o Evangelho como serviço à plena humanidade do Homem.
A clarificação de questões teológico-doutrinais, por mais necessária que
seja, tem de ser inserida na consciência apurada e exigente de uma res-
ponsabilidade comum por todos os seres humanos, ou seja, o anúncio do
Evangelho ou “ecumenismo missionário” tem de encontrar continuidade no
“ecumenismo diacónico” 43. Não teria sentido um diálogo entre cristãos que
isolasse as Igrejas em relação ao mundo contemporâneo e aos seus desafios,
conduzindo as Igrejas a centrarem-se sobre si mesmas e a fecharem-se às
interpelações de Deus emergentes na realidade tal como ela é. A verificar-
-se, uma tal “incurvação da Igreja sobre si mesma constitui um verdadeiro
contratestemunho em relação à vocação da Igreja, que é uma vocação não
para ela própria mas no mundo contemporâneo e em referência a este, em
vista do Reino de Deus” 44.
Esta consciência terá de se repercutir, obviamente, no modo como os
problemas da divisão dos cristãos são analisados e reavaliados, na capa-
cidade de superar discussões estéreis e debilitadoras da vida das Igrejas,
nas prioridades que as Igrejas dão ao seu viver, na consciência mais aguda
sobre o modo como o problema ecuménico questiona a credibilidade e a
eficácia do seu testemunho. Percebida assim, a tarefa ecuménica torna-se
uma chamada de atenção e uma oportunidade para que cada Confissão
cristã redescubra a sua própria identidade e missão no seguimento de Jesus
e reencontre a sua mais profunda vocação à luz do Evangelho.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

43
Zur Einheit berufen, 244 s. Cf. J. MARTÍN VELASCO, El Movimento Ecuménico,
156 ss.
44
G. SIEGWALT, La vocation de l’Église, 81.

334
Nas raízes da tolerância

O Inconsciente – uma descoberta de Freud1

Kaquinda Dias

A experiência Psicanalítica reencontrou no homem o imperativo do verbo


como a lei que o formou à sua imagem. Ela manipula a função poética da
linguagem para dar a seu desejo sua mediação simbólica. Que ela os faça
compreender enfim que é no dom da fala que reside toda a realidade de seus
efeitos; pois é pela via desse dom que toda realidade veio ao homem e por
seu ato continuado ela a mantém.2

O inconsciente é definido por Freud como um sistema psíquico


composto por representações. O inconsciente, definido como sistema de
representações em constante associação, conduziu Freud a elaborar o modo
pelo qual elas se instituem, instituindo em ato o próprio inconsciente. Freud
propõe o recalque3 como o operador específico por meio do qual tem lugar
a inscrição das representações inconscientes.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1
Título do Terceiro Capítulo de “A Psicanálise Freudiana e o Equívoco da Psicologia
do Ego”, Dissertação de Mestrado em Psicanálise clínica defendida por Kaquinda Dias pela
FAES (Faculdade Avançada do Ensino Superior) – São Paulo, 2012.
2
Lacan, J. – Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos (pp.
101-187). São Paulo: Perspectiva, 1978.
3
O termo alemão Verdrängung foi traduzido pelo termo “repressão” nas edições
brasileiras da obra de Freud. Consideramos que o termo “repressão” e “recalque” possuem

335
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

O recalque é o operador responsável pelo fato de que existem repre-


sentações recalcadas que dão lugar à divisão psíquica e, portanto, que existe
inconsciente. O inconsciente freudiano se define inteiramente pelo recalque.
A elaboração freudiana de que o recalque é o operador específico que dá
origem às representações inconscientes se fazia tanto mais necessário, na
medida em que, como sabemos, existem também representações psíquicas
conscientes e pré-conscientes. O recalque é o que pode então conferir a uma
representação o seu status inconsciente. Embora nos artigos metapsicoló-
gicos o inconsciente e o recalque sejam tratados em dois artigos distintos,
eles não são de modo algum conceitos que possam ser pensados em se-
parado; eles são indissolúveis, na medida em que o inconsciente depende
do recalque como seu operador constitutivo. Inconsciente e recalque são
conceitos correlatos. Freud faz, pois, o inconsciente depender inteiramente
da operação do recalque. “A teoria da repressão é a pedra angular sobre a
qual repousa toda a estrutura da psicanálise”4.

conotações conceituais radicalmente diversas. Esclarecemos que em todas as ocasiões em


que utilizarmos o termo alemão Verdrängung o traduziremos por “recalque” ou “recalca-
mento”, exceto nos casos de citações literais de uma obra, como é, por exemplo, o caso da
obra de Freud. Assim procederemos para atermo-nos ao conceito a que se refere o termo
Verdrängung: mecanismo através do qual as representações são expulsas da consciência e
inscritas no inconsciente. O “recalque” é o mecanismo característico da neurose. O termo
“repressão” corresponde em alemão ao termo Unterdrückung. Unterdrückem = abafar,
Unterdrücker = opressor, tirano, Unterdrückung = repressão; opressão. A repressão cor-
responde à noção de uma força de ordem externa que exerce ação restritiva, coibitiva ou
restritora sobre um sujeito.
As diferenças conceptuais implicadas no termo “repressão” e “recalque” são para nós
tanto mais necessárias na medida em que no capítulo I desta pesquisa fizemos referência
às teorias de W. Reich. Esclarecemos que para esse autor trata-se de “repressão” e não de
“recalque”. Reich faz uso do termo “repressão” para referir-se às restrições e coerções que
a sociedade exerce sobre a capacidade sexual do indivíduo.
4
Freud, S. – História do movimento psicanalítico. In: Obras Completas, vol. XV. Rio
de Janeiro: Imago, 1980, 26.

336
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

O recalque é introduzido como causa da divisão psíquica (Spaltung) e


Freud aponta que o mesmo não consiste num processo por meio do qual uma
representação se tornaria débil, inócua ou inativa. O recalque não destrói a
ideia ao torná-la inconsciente; ao contrário, garante a sua indestrutibilidade
ao torná-la inacessível à consciência. “[...] a repressão não impede que o
representante instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda
mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações”5.
O recalque consiste essencialmente num processo de repulsão, ini-
cialmente denominado por Freud de defesa e posteriormente de recalque.
Para Freud “a essência da repressão consiste simplesmente em afastar
determinada coisa do consciente mantendo-a à distância”6. O recalque
impede o reconhecimento pela consciência daquilo que Freud denominou
de representações.
Ao elaborar a primeira tópica, Freud toma o cuidado de proceder à
distinção entre dois modos de conteúdos representacionais latentes: os
latentes de momento, capazes de consciência, e aquele outro grupo de
conteúdos latentes, em que o esforço deliberado em torná-los conscientes
se revela ineficaz e que deve, portanto, permanecer ao mesmo tempo laten-
te e inacessível à consciência de forma direta. Freud, neste ponto, revela
preocupação em demarcar a diferença entre o sentido descritivo e dinâmico
do termo inconsciente, razão pelo qual é levado a designar o inconsciente
no “sentido puramente descritivo”7 de pré-consciente, reservando exclusi-
vamente ao dinâmico o termo inconsciente. Esta é a distinção introduzida
no texto Uma Nota Sobre o Inconsciente na Psicanálise8 e que é retomada
por Freud em inúmeras passagens de sua obra.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Artigos sobre a metapsicologia. Repressão. In: Obras Completas, vol.


5

XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 172.


6
Freud, S. – Artigos sobre a metapsicologia. Repressão. In: Obras Completas, vol.
XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 170.
7
Freud, S. – Artigos sobre a técnica. A dinâmica da transferência. In: Obras Completas,
vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 330.
8
Freud, S. – Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise. In: Obras Completas, vol.
XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

337

5
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

Na conferência XIV das Conferências Introdutórias sobre a


Psicanálise9 Freud retoma esse tema, estabelecendo de modo claro essa
distinção entre o uso descritivo e dinâmico do termo inconsciente, dizendo
que “seria muito oportuno distinguir estas duas espécies de inconsciente por
meio de nomes diferentes [...]. As pessoas consideram um tanto fantástico
haver um só inconsciente. Que dirão quando confessarmos que temos que
nos haver com dois”10.
O “inconsciente de momento” (p. 139), temporariamente inconsciente,
deve ser distinguido do inconsciente propriamente dito, isto é, do incons-
ciente dinâmico estabelecido pela operação do recalque. Referindo-se ao
“inconsciente de momento”, Freud afirmava a possibilidade de torná-lo
todo consciente. Para que o pré-consciente se torne consciente é suficiente
um pequeno esforço de concentração por parte do sujeito, isto é, basta que
haja deliberação de sua parte. Contudo, o inconsciente propriamente dito
– o inconsciente dinâmico – jamais foi objeto da consciência e qualquer
esforço de atenção deliberada por parte do sujeito resulta inócuo em torná-
-lo consciente.
É no recalque que se encontra o elemento que opera a diferença entre
processos pré-conscientes e processos inconscientes. Destacamos esta dis-
tinção entre o sentido descritivo e o sentido dinâmico do termo inconsciente
pelo fato de que é lugar-comum pressupor que o inconsciente é constituído
por conteúdos que foram primeiramente conscientes, e que só posteriormen-
te se tornaram inconscientes. Segundo esta noção, o inconsciente foi sempre
primeiro consciente, podendo, portanto, voltar a tornar-se consciente.
Para a escola da Psicologia do Ego, para quem “o assunto da psicanálise
é o comportamento definido [...] como o produto de um curso epigenético,
regulado tanto por leis inerentes do organismo quanto por experiências
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Conferências introdutórias sobre a psicanálise – Conferência XIV. In:


9

Obras Completas, vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1980.


10
Freud, S. – Conferências introdutórias sobre a psicanálise – Conferência XIV.
Realização de desejo. In: Obras Completas, vol. XV. Rio de Janeiro: Imago1980, 271.

338
Nas raízes
O Inconsciente – uma tolerância de Freud
dadescoberta

acumuladas”11, o inconsciente, numa das facetas sob as quais figura para


esta escola, é o lugar onde se acumulam em depósito experiências passa-
das e fatos reais ocorridos num passado remoto e que sobrevivem ainda
na “não consciência.” Nas palavras de Rapaport “a observação de que sob
hipnose e no curso da livre associação, os pacientes se conscientizam de
experiências passadas, ou da relação entre experiências passadas e presentes,
levou à suposição da sobrevivência não-consciente de tais experiências e
da existência não-consciente de tais relações”12.
É no contexto de uma perspectiva fundada na assimilação de dois
princípios técnicos de ordem tão absolutamente oposta quanto distante no
tempo – a hipnose e a livre associação –, princípios fundados em premissas
teóricas radicalmente diversas e que demarcam os limites do que o próprio
Freud denominou de estágio preliminar da psicanálise, que se pôs em cena
na Psicologia do Ego a noção segundo a qual o inconsciente corresponde
ao não sabido, ao que não se conhece conscientemente; como o que subjaz
no limiar da consciência e que funciona como fator motivacional interno
do comportamento. São em noções referenciais teóricas e técnicas como
estas, frágeis e incompletas, que se sustenta a premissa técnica calcada
eminentemente no tornar consciente o inconsciente. Perspectiva tida como
ideal de final de análise no qual as partes componentes da personalidade
reunir-se-iam formando uma unidade coesa e harmónica. Freud, entretanto,
destacou as ilusões da consciência. Na Psicologia do Ego, o ego é eminen-
temente o órgão encarregado de proceder à síntese de todos os elementos
constituintes da personalidade.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Gill, M. – El estado actual de la teoria psicoanalitica, in: D. Rapaport (Org.).


11

Aportaciones a la Teoria y Técnica Psicoanalitica (pp. 23-40). Mexico: Editorial Pax-Mexico,


1962; Rapaport, D. A Estrutura da Teoria Psicanalítica - uma Tentativa de sistematização.
São Paulo: Perspectiva, 1982, 31.
12
Rapaport, D. – A Estrutura da Teoria Psicanalítica - uma Tentativa de sistematização.
São Paulo: Perspectiva, 1982, 61.

339
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

A noção de lembranças ou de experiências reais vividas, registradas


pela memória, corresponde ao que Freud denominou de “inconsciente
descritivo”, isto é, o pré-consciente. No que se refere ao pré-consciente,
Freud sublinha que embora as lembranças que o integrem não estejam o
tempo todo disponíveis à consciência, podem, entretanto, facilmente tornar-
-se conscientes, bastando para tal um certo grau de esforço e de atenção
deliberadamente dirigida. Retenhamos que o inconsciente não pode ser
identificado ou mesmo confundido com o pré-consciente. As representações
pré-conscientes não estão sujeitas à ação do recalque. Toda a técnica que
vise tornar consciente o inconsciente, pautando-se na premissa conceitual
que concebe o inconsciente como o conteúdo de um vaso que pode ser
todo transposto no vaso da consciência, esgotando assim o conteúdo do
inconsciente, está, em última instância, operando sobre a função intelectual
da memória, que não requer que entre em seu auxílio nenhuma técnica
específica para que se torne consciente, para que isto ocorra basta que o
sujeito interessado dedique sua capacidade de atenção, ou seja, que tenha
intenção de recordar-se.
A todos esses inconscientes mais ou menos afiliados a uma vontade
obscura considerados como primordial, a algo de antes da consciência,
o que Freud opõe é a revelação de que, ao nível do inconsciente, há algo
homólogo em todos os pontos ao que se passa ao nível do sujeito – isso
fala e funciona de modo tão elaborado quanto o nível da consciência que
perde assim o que parecia seu privilégio13.
Na conferência XII das Conferências Introdutórias da Psicanálise14,
Freud assinala que o termo inconsciente não deve ser utilizado para designar
o “inconsciente latente de momento”; esse se refere, como já assinalámos,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 29.
13

Freud, S. – Conferências introdutórias sobre a psicanálise – Conferência XII.


14

Os caminhos da formação dos sintomas. In: Obras Completas, vol. XVI. Rio de Janeiro:
Imago, 1980.

340
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

ao pré-consciente. O inconsciente constitui um domínio particular à parte da


consciência, com suas representações de desejo indestrutíveis e de origem
infantil, seus modos próprios de expressão e, sobremaneira, caracterizando-
-se por mecanismos de associação distintos daqueles mecanismos que
regem as associações conscientes e pré-conscientes. Freud, ao distinguir o
inconsciente do consciente e do pré-consciente, marca a distância e a dife-
rença que se estabelece entre uma concepção empirista sobre a associação
de uma teoria inconsciente sobre o mesmo tema.
A interpretação da Psicologia do Ego acerca da teoria freudiana da
associação foi marcada por uma concepção empirista, no sentido positivista,
sustentando que há correspondência, correlação entre a percepção e a coisa
percebida. Para o empirismo, a função da sensação e da percepção é a de
capturar os dados do mundo externo real, como tais, constituem-se em
fonte de conhecimento. Para o empirismo as ideias provêm das sensações
e das percepções. Para a Psicologia do Ego há ainda correspondência entre
a palavra e o referente, consolidando uma técnica de interpretação pautada
numa teoria de comunicação.

1. A revolução freudiana

Nos primórdios da elaboração de sua teoria sobre o inconsciente, no


período relativo aos Estudos sobre a Histeria, Freud falava metaforicamente
de uma “inteligência inconsciente”. Nos anos posteriores falará de “pensa-
mentos inconscientes”. A teoria da associação em Freud resulta no princípio
segundo o qual o inconsciente pensa. Efetivamente, se “[...] pensar é estabe-
lecer equivalência”15, estabelecer relações associativas, e isso é tarefa deste
trabalhador incansável que é o inconsciente, então o inconsciente pensa,
posto que associa. As representações recalcadas constituem a matéria-prima
com a qual o inconsciente trabalha, fornecendo como produto manufaturado

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

15
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 24.

341
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

os pensamentos, eles mesmos produto de associações. “Para a psicanálise,


o sujeito é também sujeito do pensamento – pensamento inconsciente.
Pois o que Freud descobriu é que o inconsciente é feito de pensamento”16.
A descoberta de que o inconsciente é o lugar onde o pensamento se
formula e se institui de forma elaborada é solidária com o método ana-
lítico da livre associação. Freud faz o método da psicanálise balizar-se
inteiramente no que é, de qualquer modo, o método de funcionamento do
inconsciente. Contudo, o inconsciente pensa regido por leis lógicas que
diferem daquelas que regem os processos de pensamentos conscientes. O
deslocamento e condensação são as leis propostas por Freud como leis que
regem o modo pelo qual as representações se associam no inconsciente.
Esta noção de representações ligadas umas com as outras, formando uma
verdadeira cadeia de acordo com leis que ordenam o modo de estabele-
cimento destas ligações, quer dizer, que elas não estão sujeitas ao acaso,
é a noção mesma de dinâmica inconsciente. “O pensamento inconsciente
se caracteriza, para Freud, justamente como abandonando o plano de re-
ferência ‘objetiva’: esse pensar funciona, não de acordo com o princípio
de realidade, que impõe ligações objetivas entre as representações, mas
segundo o princípio do prazer”17.
O inconsciente é definido como um sistema relacional, como lugar
referido a uma pura ordem de sintaxe; puro jogo combinatório entre repre-
sentações recalcadas. Sublinhamos que a ênfase recai sobre o modo pelo
qual as representações se combinam entre si de acordo com as leis que
operam no inconsciente, tratando-se, portanto, de compreender que o que
Freud denomina de conteúdo inconsciente diz exclusivamente respeito às
representações, e de que elas se submetem ao processo de sintaxe próprio
do inconsciente.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Quinet, A. – A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro:


16

Zahar, 2000, 12.


17
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 25.

342
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

A noção segundo a qual o inconsciente freudiano é um sistema ordena-


do e organizado de acordo com as leis do deslocamento e da condensação,
leis universais operando sobre representações singulares, conduziu Lacan a
propor que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” 18, ou seja,
no dizer de Lacan, o inconsciente freudiano é inteiramente constituído pela
articulação dos significantes entre si, formando as cadeias inconscientes.
Com a descoberta do inconsciente Freud opera uma revolução de-
nominada por Lacan (1985) de “copernicana” (p. 14). Ao afirmar que o
inconsciente pensa, Freud desaloja a consciência como o único lugar de
pensamentos organizados, alterando assim o privilégio concedido aos pen-
samentos conscientes, e, portanto, à noção presente no cogito “penso logo
sou” no qual Descartes assevera reflexão do ser no ato de pensar.
Descartes, partindo da premissa de que “[...] todos os erros procedem
dos sentidos” 19 e de que, portanto, todo conhecimento pautado nas percep-
ções é enganoso, e, como tal, passível de ser posto em dúvida, foi conduzido
a estabelecer que somente o pensamento racional pode oferecer uma base
segura e objetiva de conhecimento, estabelecendo deste modo os próprios
alicerces da ciência moderna. O estabelecimento da razão, definida como
atributo essencial próprio e característico do homem, conduziu Descartes
a estabelecer a distinção entre “natureza corpórea” e “natureza pensante”.
Sabemos que esta distinção dá lugar à separação entre mente (alma) e corpo.
Pelo método da “dúvida hiperbólica”, que consiste em pôr metodi-
camente em dúvida tudo o que os órgãos dos sentidos estabelecem como
verdade, e que, em realidade, não passam de “sonhos” e “quimeras”,
Descartes chegou a uma certeza: a de que se ele duvida, ele pensa. Esse é
o viés pelo qual Descartes chega à formulação da existência do ser no ato
de pensar, assim expressa: “Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 25.
18

Descartes, R. – Meditações; Objeções e respostas; Cartas. São Paulo: Nova Cultura,


19

1988, 13.

343
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

tempo? A saber, por todo o tempo em que penso. [...] Ora, eu sou uma
coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse:
uma coisa que pensa”20.
Com Descartes tem início a idade de ouro da razão e da certeza da
presença do ser no ato de pensar. A filosofia cartesiana contempla em suas
indagações a noção de sujeito da razão, de um sujeito que por pensar “[...]
é um espírito, um entendimento ou uma razão” (p. 26), inaugurando assim
a ideia, presente até nossos dias, de um sujeito que se reflete a si próprio na
superfície cristalina da consciência no momento em que pensa. A concepção
de que o pensar é eminentemente racional e de que através da atividade de
pensamento o eu apreende-se a si próprio, conduziu a rigorosa equivalência,
por um lado, do ser com o pensamento e, por outro, do pensamento com a
consciência. Contemporaneamente, para muitas concepções psicológicas,
se tornou consumado o fato de que ao nos referirmos à atividade de pen-
samento estamos, necessariamente, referindo-nos a uma atividade que só
pode ser efetuada no plano da consciência, e, portanto, no plano do eu, na
medida em que se formula “a equivalência do eu = consciência”21.
Vallejo & Magalhães22, analisando o cogito cartesiano, sublinham
que Descartes não propõe, por um lado, o ato de pensar, e, por outro, como
dedução lógica implícita deste pensar, a inferência do ser. No cogito carte-
siano tem-se, de acordo com esses autores, uma proposição que assevera a
presença eminente do ser no próprio ato do pensamento. Ser é pensar, pensar
é ser. Não se inferem mutuamente, não se justapõem, não se duplicam, se
equivalem (p. 13-19).
Lacan afirma que o cogito cartesiano é “absolutamente fundamental
no que diz respeito à nova subjetividade...”23. Descartes formulou, colo-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Descartes, R. – Meditações; Objeções e respostas; Cartas. São Paulo: Nova Cultura,


20

1988, 26.
21
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.
22
Vallejo, A. & Magalhães, L. C. – Lacan: operadores de leitura. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
23
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 13.

344
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

cando pela primeira vez no centro do debate das teorias do conhecimento,


a noção de ser definido como substância pensante, introduzindo a noção
de categoria racional dos pensamentos conscientes. Freud, diversamente,
introduz a ideia de uma ordem, de um sistema inconsciente perfeitamente
organizado, capaz de subsistir fora da consciência, fazendo desta mero
efeito de superfície.
Freud “está seguro de que um pensamento está lá, pensamento que é
inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente. É a esse lugar
que ele chama, uma vez que lida com outros, o eu penso pelo qual vai
revelar-se o sujeito.”24.
Descartes homologa o ser com o pensamento, postulando ainda que
ambos se situam no mesmo lugar. Neste sentido, podemos dizer que, com a
descoberta do inconsciente, Freud opera uma segunda revolução, na medida
em que postula que o ser e o pensar não se situam no mesmo lugar. O que
Freud descobre e Lacan formaliza é que há uma ruptura tópica do pensar com
o ser, assinalando assim a não convergência entre ambos. O sujeito não pode
refletir-se a si mesmo, não pode apreender-se a si próprio no momento em
que pensa, assim, “penso onde não existo, portanto existo onde não penso”25.
O inconsciente é puro pensamento. Os pensamentos inconscientes operam
sem intervenção da entidade egóica. Não há um sujeito agente que comande
os pensamentos inconscientes, “[...] o pensamento inconsciente se define
simplesmente por ser um pensamento sem sujeito”26. Para Lacan, Freud
designa pelo termo pensamento os elementos significantes postos em jogo
no inconsciente e os encadeamentos sucessivos de que eles são capazes27.
O inconsciente, compreendido como um sistema submetido à pura
dinâmica relacional posta em jogo no encadeamento entre representações

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 39.
24

Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 248.
25

26
Pommier, G. – Freud apolítico? Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, 41.
27
Lacan, J. – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos
(pp. 223-259). São Paulo: Perspectiva, 1978, 247.

345
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

recalcadas, não requer a presença de nenhum eu substância pensante. “[...]


O pensamento é possível sem que nenhum ‘eu penso’ intervenha...”28. A pri-
meira tópica freudiana consiste no estabelecimento da noção de um sujeito
definido pela ruptura, pelo estiramento, e, como tal, profundamente marcado
por uma cisão. Na primeira tópica freudiana, os sistemas inconsciente,
consciente e pré-consciente assinalam o lugar desta divisão (Spaltung). A
noção de sujeito fendido remete simplesmente a impossibilidade do sujeito
de definir-se a si próprio no momento em que pensa.
No inconsciente não há um sujeito agente que regule a combinatória
associativa das representações entre si. O sujeito é aprisionado por uma
cadeia significante que o determina. O sujeito é inteiramente determinado
a partir desta “outra cena” onde se localiza o desejo inconsciente. Ele é
assujeitado a um movimento de pura dinâmica articulatória que opera à
sua revelia, descentrando-o. O sujeito freudiano é marcado pela divisão e,
como tal, é o que está posto à margem de um centro ordenador central. É
este descentramento radical do sujeito, implicado no conceito de incons-
ciente freudiano, que faz obstáculo a qualquer forma de síntese integrativa
na consciência. A sintaxe inconsciente se contrapõe à síntese consciente.
O sujeito não comanda a sintaxe formadora das cadeias de pensamentos
inconscientes, é por elas comandado, na medida em que o inconsciente é
uma ordem autónoma em relação ao sistema consciente.
Estas elaborações freudianas a propósito do inconsciente conduziram
Lacan29 à afirmação de que com “Freud faz irrupção uma nova perspectiva
que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o
sujeito não se confunde com o indivíduo [...].
Freud nos diz – o sujeito não é a sua inteligência, não está no mesmo
eixo, é excêntrico. O sujeito como tal, funcionamento como sujeito, é algo
diferente de um organismo que se adapta. O sujeito está descentrado com
relação ao indivíduo” (p. 126).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

28
Safouan, M. – Estruturalismo e Psicanálise, São Paulo: Cultrix, 1995, 16.
29
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.

346
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

Na elaboração freudiana o eu (moi) não está referido à função de


conhecimento objetivo, não é sede de conhecimento imediato da realidade
do mundo exterior, tampouco pode refletir-se de modo imediato na consci-
ência. O eu é caracterizado por uma ignorância profunda. Nada sabe sobre
os processos de pensamentos que o agitam. Ignora tudo sobre o universo
simbólico do desejo que, por habitá-lo, o determina no menor de seus atos.
O eu é pensado quando pensa pensar. A psicanálise surge com a descoberta
do inconsciente e pela formalização conceptual específica que Freud lhe
confere, juntamente com os conceitos fundamentais que lhes são derivados
e correlatos. A descoberta do inconsciente constitui-se numa ferida narcí-
sica infligida ao homem30, colocando em pauta que embora a consciência
participe do psíquico não o totaliza e nem a ele se identifica. Freud desco-
bre a existência de processos psíquicos que não podem ser identificados à
consciência. A psicanálise vem, pois, colocar em pauta a existência de uma
ordem psíquica de estatuto inconsciente.
A descoberta da existência de pensamentos inconscientes efetuada
por Freud constitui-se numa ruptura com o modo tradicional de pensar a
subjetividade. Freud descobre que o eixo da subjetividade não se ordena em
torno da consciência e que se “[...] incorre em petição de principio asseverar
que ‘consciente’ é um termo idêntico a ‘psíquico’”31.

Observemos, portanto, em consequência, como esta inclinação de julgamento


pode, segundo Freud, manifestar-se entre os filósofos. De um lado, estes
imaginam o inconsciente como algo místico, inapreensível e inatingível, o
que torna obscura a relação ao psíquico; de outra, obstáculo epistemológico,
eles assimilam a priori, por hipótese de trabalho, o psíquico ao consciente, e
assim excluem dele, portanto, o inconsciente. Trata-se antes de um erro bem

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Inibições, sintomas e ansiedade. In: Obras Completas, vol. XX. Rio de
30

Janeiro: Imago, 1980, 274.


31
Freud, S. – Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise. In: Obras Completas,
vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 327.

347
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

conhecido de raciocínio denominado de ‘petição de princípio’, que consiste


em responder por antecipação a uma questão – o que poderia esclarecer o fato
de que, para alguns filósofos, a expressão ‘fenômenos psíquicos inconscientes’
lhes pareceria um absurdo e uma contradição nos termos.32

Descartes, aventurando-se na investigação dos processos de conheci-


mento, chegou à proposição do cogito “penso logo sou”, asseverando que o
pensamento é eminentemente racional e que reflete em ato o ser. Entretanto,
para Lacan, “mesmo que efetivamente seja verdade que a consciência é
transparente a si própria e que é apreendida como tal, fica patente que, nem
por isso o [eu] lhe é transparente”33.
Com Descartes firma-se a racionalidade dos processos de pensamento,
e a consciência se estabelece como lugar privilegiado de todo processo de
conhecimento. Tornou-se, deste modo, um princípio, aceito por muitos,
conceber-se o eu como uma entidade substancial que, por essência e de-
finição, se constitui como agente de todo conhecimento. Com Descartes
origina-se o discurso próprio do domínio da ciência moderna, como discurso
de cunho racionalista. A noção de que a consciência é sede de pensamentos
objetivos racionais conduziu, na contemporaneidade, à ideia da existência
de uma realidade objetiva que poderia ser apreendida como tal pela razão.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

32
No original em francês: “Remarquons dès lors comment cette inclinaison de
jugement peut, d’après Freud, se manifester chez les philosophes. D’une part, ceux-ci
imaginent l’inconscient comme quelque chose de mystique, insaisissable et intangible,
ce qui rend obscure la relation au psychique; de l’outre, obstacle épistémologique, ils
assimilent a priori par hypothèse de travail, le psychique au conscient, et ainsi en excluent
donc l’inconscient. Il s’agissait plutôt d’une erreur bien connue de raisonnement appelée
pétition de principe, qui consiste à s’accorder par avance ce qui est en question – ce qui
pourrait éclairer le fait que, pour certains philosophes, l’expression ‘phénomène psychique
inconscient’ pouvait leur paraître une absurdité et une contradiction dans les termes.”Aguiar,
F. – Wittgenstein,’disciple’ à contrecceur de Freud. Dissertatio, 10,5-44, 1999, 20.
33
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 13.

348
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

A consciência passa a ser concebida como o lugar onde se dá a apreensão


objetiva daquilo que se apresenta como realidade cognoscível. Temos,
portanto, na contemporaneidade, de um lado, a ideia de indivíduo con-
cebido como agente dos processos de pensamento, e, de outro, a ideia da
existência de uma realidade que se ofereceria como objeto passível de ser
apreendido pela consciência através do processo de pensamento racional.
Realidade e indivíduo são, portanto, compreendidos como duas entidades
substanciais com existência independente uma da outra, estabelecendo-se,
deste modo, de um lado, a ideia de uma correspondência perfeita e unívoca
entre os pensamentos racionais conscientes e a realidade. De outro, uma
correspondência entre o ser e o ato de pensamento. A consciência é firmada
como o lugar onde o mundo se apresenta como cognoscível ao ser.
O ideal que caracteriza a contemporaneidade, atravessada pelo saber
científico, põe em cena um ideal específico ao nosso tempo. O discurso
da ciência, enquanto discurso sem sujeito, impõe, como lógica intrínseca
a seu discurso, a ideia de apreensão plena da realidade, dita objetiva, de
forma imediata, isto é, sem a intervenção mediadora da instância simbó-
lica da linguagem. A ciência positivista só reconhece como saber válido
cientificamente aquele produzido diretamente sobre a realidade objetiva,
preconizando que a participação da subjetividade só poderia realizar sobre
a mesma uma cópia imperfeita que não passaria de mero simulacro, razão
pela qual na ciência o sujeito deve ser abolido.
O discurso da ciência contemporânea veicula a ilusão de possibilidade
de um saber puro, sem sujeito. No discurso da ciência o objeto é apresentado
como possuidor de existência e realidade concreta autónoma em relação
ao sujeito que percebe – sujeito e objeto constituindo-se em duas entidades
substanciais autónomas. Este é o ideal interno ao discurso da ciência, e
que se constitui na sua essência. A ciência pressupõe a existência de uma
realidade em si, e de que a mesma se apresenta ao ser do homem como
realidade passível de ser apreendida tal qual. A ciência sustenta a premissa
de um saber que emana do próprio real e que se reflete, através da atividade
do pensamento racional, na superfície da consciência. O saber científico

349
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

na contemporaneidade sustenta, portanto, a ilusão de um saber pleno que,


sendo sem fissura, “[...] é um saber sem desejo, isto é, sem falta”34.
A propósito do absoluto do saber J. Hipollite dirige-se a Lacan
colocando-lhe o seguinte questionamento: “[...] será que estamos a todo
momento no saber absoluto? Ou será que o saber absoluto é um momen-
to?”35. Essa questão resulta tanto mais interessante quando considerada à luz
do contexto no qual ela se articula, e que é aquele em que Lacan procede
à análise e argumentação do conceito freudiano de pulsão de morte e do
estatuto imaginário do eu (moi), num interessante e elucidativo diálogo
com as linhas de pensamento filosóficas que centram o debate relativo à
questão do psíquico centrando-o na consciência. Nesse contexto, Lacan
destaca a reviravolta de perspectiva colocada pela descoberta freudiana do
inconsciente, e que tem por efeito produzir um descentramento do sujeito
em relação à consciência. À revolução operada por Freud, Lacan denominou
de revolução copernicana.
Freud e Lacan procederam à distinção radical e vigorosa da psicanálise
para com as linhas de pensamento filosóficas, e para com as escolas psico-
lógicas que nela se apoiam, que sustentam a concepção de ego consciente.
Distinção que ganha ainda mais em força e vigor quando se coloca em pauta
que “o inconsciente escapa totalmente a este círculo de certezas na qual o
homem se reconhece como eu”36.
Diversamente da visão própria ao discurso da ciência positivista,
que pretende chegar a saber tudo sobre o real, na elaboração lacaniana da
psicanálise o real pertence ao registro do impossível, isto é, o real não é
passível de ser apreendido pelo simbólico como tal, ele pertence ao reduto
da pulsão de morte, ao limite do que as palavras podem nomear. Isso implica

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

34
Jerusalinsky, A. – Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. In: C. Calligaris et
alli Org.). Educa-se uma criança. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994, 3.
35
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 95.
36
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 15.

350
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

dizer que o objeto e o sujeito não se constituem em categorias autónomas


um para com o outro.
A ciência positivista consiste no projeto de um possível saber ple-
no sobre o real, como se o objeto portasse em si mesmo uma essência,
propriedades atributivas naturais e como se dele emanassem qualidades
apreensíveis que, lhes sendo imanentes, poderiam ser capturadas pelo
pensamento consciente. Deste modo, o objeto é colocado como possuidor
de uma existência autónoma e com atributos de significação independente
da cadeia relacional estabelecida com o desejo inconsciente.
É na medida da abolição do desejo que a ciência se constitui num
discurso cuja premissa básica é de poder abolir a presença do sujeito. No
ato mesmo de abolição do desejo, o discurso da ciência constitui-se, con-
temporaneamente, num discurso regido pela lógica segundo a qual não é o
desejo que cria seus objetos, mas sim que estes tem existência autónoma.
Com efeito, a ciência positivista preconiza a ideia de um conhecimento
racional e objetivo, postulando que o objeto é fonte de conhecimento e que
não padece das amarras relacionais que o desejo impõe, sustentando-se na
premissa de que “[...] há um saber encarnado no real”37.
A propriedade substantiva, suposta essência do real, é, entretanto, um
juízo atributivo conferido pelo desejo. Dizendo de outra forma, é primeiro
no olhar do observador, olhar escavado pelo vazio do desejo, que o real da
ciência parece ser portador de um saber sem falha. Para a psicanálise, contu-
do, é a força do desejo que injeta sobre a realidade um saber, tão provisório
quanto parcial. Para Freud, “nunca dominaremos completamente a natureza,
e o nosso organismo corporal, é ele mesmo parte dessa natureza...”38. Freud
faz desta parcela da natureza inconquistável uma fonte de sofrimento cons-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

37
Lajonquiére, L. – Epistemologia e psicanálise: o estatuto do sujeito. Percurso, 7
(13), 57-63, 1994, 62.
38
Freud, S. – O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, vol. XXI. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 85.

351
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

tante e não passível de resolução, a despeito de todos os avanços verificados


no campo da ciência ao longo da civilização. “O sentimento oceânico” de
um perfeito domínio sobre a realidade faz da ciência um discurso que se
constitui no ideal próprio à modernidade. O ideal contemporâneo, calcado
na ciência, repousa no projeto de controlo e domínio do real pelo homem,
consolidando a premissa de que “o real é racional e independente do sujeito
que conhece, e o sujeito é o ego substância que, à maneira de um espelho,
reflete o saber das coisas”39.
O indivíduo, entendido como substância pensante consciente, é um
produto da modernidade originada no cogito cartesiano. A partir do cogito
cartesiano se firmou e consolidou a premissa de acordo com a qual o eu,
por ser racional, é eminentemente consciente. Portanto, entre as teorias
psicológicas norteadas pelo cartesianismo e a psicanálise que as revolu-
ciona há, de fato, uma distância que não é meramente métrica “A noção de
sujeito enquanto sujeito cognoscente, agente do processo de conhecimento
e como tal referido a um objeto suposto e cognoscível, ou seja, apreensível
pelo conhecimento racional e pela atividade de investigação científica, é
um produto da modernidade. Seu protótipo pode ser representado pelo Ego
cartesiano”40. Desse modo, embora muitas teorias, e em particular a teoria
da Psicologia do Ego, afirmem encontrar em Freud os fundamentos que
as sustentam, a rigor elas se encontram mais próximas de uma concepção
psicológica sobre o indivíduo do que de uma concepção freudiana sobre
o sujeito. Isso é sobremaneira verdadeiro quando consideramos que con-
servam como central em suas teorias a antiga estrutura sujeito e objeto,
assim como também a noção de que os fenômenos conscientes constituem
a totalidade dos processos psíquicos em acordo e consonância hegemônica

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

39
Lajonquiére, L. – Epistemologia e psicanálise: o estatuto do sujeito. Percurso, 7
(13), 57-63, 1994, 62.
40
Marques Neto, A. R. – Sujeitos coletivos de direito: pose-se considera-los a partir
de uma referência à psicanálise? Palavração: Revista de Psicanálise, 2 (2), 149-166, 1994.
Aqui, 152.

352
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

com a realidade percebida, e em desacordo absoluto com o posicionamen-


to freudiano. Para Freud “as estrelas são, na verdade, magníficas, porém,
quanto à consciência, Deus executou um trabalho torto e negligente, pois
da consciência a maior parte dos homens recebeu apenas uma quantia
modesta, ou mal recebeu o suficiente para ser notado”41.

2. O encobrimento da descoberta freudiana

Inconsciente é o nome da ferida introduzida no narcisismo do homem.


É o nome dado ao sujeito, tal como formulado no campo psicanalítico origi-
nado em Freud. O inconsciente é o lugar onde o pensamento se formula e se
institui como pensamento organizado e organizador do mundo e da subjeti-
vidade. Entretanto, um desconhecimento completo da concepção freudiana
sobre o inconsciente conduziu a uma verdadeira “vulgarização”42 e, até
mesmo, a mais feroz e completa “deteriorização do discurso analítico”43”.
Lacan não transige quanto aos termos que evoca para designar aqueles que,
num repúdio ao dizer de Freud e ao que sua descoberta representa, vieram,
em nome de uma nova teoria, “escamotear”44 o campo fundado por Freud. A
Psicologia do Ego produziu um escamoteamento da importância conferida
por Freud aos processos inconscientes. O inconsciente foi desalojado em
favor de um reducionismo que tomou a forma de supremacia conferida
ao ego consciente. Os psicólogos do ego distanciaram-se do campo pro-
priamente psicanalítico, introduzindo versões sobre o inconsciente que de

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise - Conferência


41

XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 85.
42
Lacan, J. – Situação da psicanálise e formação do analista. In: Escritos (pp. 189-
222). São Paulo: Perspectiva, 1978, 192.
43
Lacan, J. – Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos (pp.
101-187). São Paulo: Perspectiva, 1978, 109.
44
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 23.

353

6
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

modo algum se encontram presentes no pensamento de Freud. O termo


inconsciente tem uma elaboração específica em Freud, que o diferencia
de outras formulações a respeito do mesmo tema. Os psicólogos do ego
apossaram-se dos termos técnicos psicanalíticos com a ilusão de estarem,
deste modo, convergindo, sendo rigorosos e coerentes conceitualmente
com os mesmos. Contudo, “[...] se a psicanálise não for os conceitos nos
quais ela se formula e se transmite, ela não é a psicanálise, é outra coisa,
mas então é preciso dizê-lo”45.
O distanciamento produzido com relação ao conceito freudiano de
inconsciente pelos teóricos da Psicologia do Ego redundou numa regressão
a definições envelhecidas sobre o mesmo. Paralela e consequentemente,
retrocederam a concepções pré-psicanalíticas sobre a subjetividade, aquelas
que faziam da consciência o eixo ordenador central da personalidade, e que
Freud veio justamente romper. De fato, a descoberta freudiana consistiu em
colocar-se à contramão em relação à ordem vigente que fazia da consciência
o centro totalizador do psíquico. A Psicologia do Ego apropriou-se da psi-
canálise tão somente para “[...] tornar a fusionar a psicanálise na psicologia
geral” (id). Com efeito, para Rapaport, “[...] no início da década de trinta,
a influência da psicanálise sob o novo prumo que lhe deu a Psicologia
Psicanalítica do Ego se expandiu para abranger toda a psicologia”46.
Por não poderem efetuar uma compreensão efetiva sobre o incons-
ciente freudiano os psicólogos do ego fizeram circular falsas noções. O
modo mais corrente (posto que não único) que tomou forma o inconscien-
te no interior das teses da Psicologia do Ego consistiu em assimilá-lo as
ditas tendências arcaicas primitivas. “[...] A ideia de que o inconsciente
não passa de sede dos instintos”47 os conduziu a enraizar o inconsciente
no real orgânico, assimilando-o às ditas tendências irracionais caóticas.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 23.


45

Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 21.


46

47
Lacan, J. – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos
(pp. 223-259). São Paulo: Perspectiva, 1978, 225.

354
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

Entreviram que em Freud o isso é uma instância inconsciente (e para eles


a sua totalidade), para logo em seguida reduzirem-no a tendências biológi-
cas primitivas. Para Hartmann, o inconsciente corresponde aos “impulsos
instintivos irracionais”48 não submetidos ainda ao processo de adaptação.
Ainda aqui devendo ser compreendido, segundo o sentido conferido ao Wo
es War, soll ich Werden freudiano por esta corrente psicológica, de um futuro
domínio que as funções egóicas de adaptação devem vir exercer sobre o
irracional. O isso, concebido como primitivo e sede dos impulsos irracio-
nais, no decurso do desenvolvimento deverá ser dominado pela fortaleza
egóica – tarefa adaptacionista. O ego deve desalojar o isso e ocupar O seu
lugar, transformando-se em senhor absoluto no reino do psíquico. Em Freud,
“onde estava o id, ali estará o eu é uma obra de cultura – não diferente da
drenagem do Zuidezee”49. Lacan, procedendo à crítica a estes adoradores
do ego sustentou que “[...] a teoria do ego não passa de um enorme contra-
-senso: o retorno ao que a própria psicologia intuitiva vomitou”50.
Para os teóricos do ego foi absolutamente inalcançável supor um
lugar de ordem e de organização diferente da consciência. Isto os condu-
ziu a lançar o inconsciente no abismo do real orgânico que, a nosso ver,
carece de predicação. O real orgânico, estando aquém do psíquico, nele só
ingressando por delegação, carece do atributo de ser, quer consciente, quer
inconsciente. Foi igualmente no marco de uma concepção biológica que a
função do pensar foi elaborada pela escola norte-americana de psicanálise.
Para Hartmann, o pensamento é uma função biológica51. Procederemos à

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Hartmann, H. – Ensayos sobre la Psicología del Yo. México: Fondo de Cultura


48

Econômica, 1969, 54.


49
Freud, S. – Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise - Conferência
XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 102.
50
Lacan, J. – Situação da psicanálise e formação do analista. In: Escritos (pp. 189-
222). São Paulo: Perspectiva, 1978, 203.
51
Hartmann, H. – Ensayos sobre la Psicología del Yo. México: Fondo de Cultura
Econômica,1969, 65.

355
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

elaboração de uma breve síntese sobre esse tema no intuito de apontar a


versão cognitivista que os psicólogos do ego imprimiram aos processos
de pensamento, permitindo ao leitor parâmetros para o estabelecimento da
distância conceptual que a mesma guarda em relação à psicanálise.
De acordo com Hartmann, “aprender a pensar e aprender em geral
são funções biológicas independentes que existem paralelas, e, em parte,
independentes dos impulsos instintivos e das defesas”52. A atividade inte-
ligente consciente é uma das funções mais precoces e mais necessárias ao
ego em sua tentativa de controlar as atividades “impulsivas instintivas”,
constituindo-se num componente indispensável ao processo de adaptação
do indivíduo. O pensamento é considerado por ele como uma atividade
intelectual, um fator de inteligência e uma função primária do ego, cuja
significação de utilidade biológica, no sentido de conservação do indivíduo,
é inegável. Razão pela qual há “[...] estreita relação da função do pensamento
mais elevado com as tarefas de adaptação, síntese e diferenciação” (p. 86).
O pensamento humano se especifica, para a referida escola, por ser
pensamento inteligente, constituindo-se num processo altamente especiali-
zado no estabelecimento de relações causais e “[...] no estabelecimento de
relações entre os meios e os fins” (p. 87). É esta bem equacionada proporção
entre os meios disponíveis e as metas a serem atingidas o que permitiria
às ações humanas o seu quinhão de ação racionalmente planejada. A ação,
planejada e dirigida, é uma especialidade do ego na sua tarefa de adaptação,
sendo no terreno da relação do pensamento com a ação que se esclarece “a
função biológica do pensamento” (p. 89).
Na medida em que pensar racionalmente “[...] significa logicamente
pensar de modo correto”53, e pensar de modo correto significa efetuar
corretamente o conhecimento do mundo externo real, o que por sua vez
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Hartmann, H. – La Psicología del Yo y el Problema de la Adaptación. México:


52

Editorial Pax-Mexico, 1962, 25.


53
Hartmann, H. – Ensayos sobre la Psicología del Yo. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1969, 55.

356
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

implica na possibilidade de seu controle, para Hartmann, o protótipo do


pensamento organizado é aquele que se produz no pensamento científico.
O pensamento científico racional, produto do conhecimento, é aquele que
se formula com base na apreensão da realidade54. Por um lado, a função
intelectual do pensamento é o recurso de que dispõe o homem, dotado po-
tencialmente de juízo, razão, compreensão e discernimento, para realizar o
conhecimento objetivo sobre o real. Por outro, e não de menor importância,
a função intelectual é o recurso que possibilita a transparência e a apreensão
espontânea do eu pela consciência. O pensamento reflete na consciência o
eu, de modo que para Hartmann “o objeto predominante do pensamento é
o sujeito mesmo”55. Fica assim firmado, com a Psicologia do Ego, que “a
psicologia do pensar é principalmente psicologia do ego”56, e que, portanto,
o homem pensa com seu eu. Entretanto, “Freud nos diz – o sujeito não é a
sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico”57.
Acreditamos que a diferença de posicionamento entre uma teoria
empirista da associação e a teoria freudiana salta aos olhos. Em Freud
a ênfase recai na estrutura simbólica que caracteriza o inconsciente e no
aspecto formal pelo qual seus elementos se combinam. No empirismo a
ênfase é posta no conhecimento contínuo e crescente que se produz com
base na experiência sensível.
O empirismo é uma teoria epistemológica que tem por princípio que
o conhecimento depende da experiência que o indivíduo tem com o mundo
exterior. Para os empiristas “o conhecimento é obtido por soma e asso-
ciação das sensações na percepção e tal soma e associação dependem da

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Hartmann, H. – La Psicología del Yo y el Problema de la Adaptación. México:


54

Editorial Pax-Mexico, 1962, 92.


55
Hartmann, H. – La Psicología del Yo y el Problema de la Adaptación. México:
Editorial Pax-Mexico, 1962, 91.
56
Rapaport, D. – Aportaciones a la teoria y técnica psicoannalitica. México: Editorial
Pax-Mexico, 1962, 97.
57
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 16.

357
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

frequência, da repetição e da sucessão dos estímulos externos e de nossos


hábitos.”58. Acreditamos também, de acordo com Lacan, que neste parti-
cular, como em outros tantos, “encontra-se aí a união onde a psicanálise
se dobra em direção a um behaviorismo cada vez mais dominante em suas
‘tendências atuais’”59. A diferença que vai de um a outro posicionamento
– a psicanálise e a Psicologia do Ego – é a de um que se fundamenta nos
pensamentos inconsciente, de outro, que se fundamenta nos pensamentos
conscientes. Como era de se esperar as alterações produzidas no campo
teórico da psicanálise pela Psicologia do Ego conduziram a que sua técnica
fosse profunda e gravemente alterada, uma vez que é verdade que teoria
e técnica são inseparáveis. Em Função e Campo da Fala e da Linguagem,
Lacan se propôs a “[...] tarefa de falar da fala”60. Seu objetivo era de (re)
assentar os princípios sob os quais Freud havia, desde sempre, ordenado
a experiência psicanalítica em torno da fala do sujeito, uma vez que “a
técnica da livre associação aponta ao fato de que a psicanálise só tem um
meio – a fala do paciente” (p. 112). Lacan avança a tese fundamental, e
que se constituirá no traço distintivo de sua obra, da importância da função
da palavra (dimensão subjetiva singular) e da linguagem em psicanálise
(determinação simbólica universal), apontando que o desvio praticado na
psicanálise, pela segunda e terceira geração de analistas, com relação ao
inconsciente conduziu ao desvio de sua prática, no que esta se ordena em
torno da função da fala e da linguagem.
A obra de Lacan consistiu no esforço em sistematizar e estabelecer
a íntima e estreita relação do inconsciente com a estrutura da linguagem,
demonstrando que em Freud não se trata de outra coisa no que concerne
ao inconsciente: linguagem pictórica do sonho, linguagem simbólica

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Chaui, M. – Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1996,120.


58

Lacan, J. – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos


59

(pp. 223-259). São Paulo: Perspectiva, 1978, 221.


60
Lacan, J. – Situação da psicanálise e formação do analista. In: Escritos (pp. 189-
222). São Paulo: Perspectiva, 1978, 102.

358
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

do sintoma. O sintoma é uma formação do inconsciente, produzida por


deslocamento e condensação, constituindo-se essencialmente em palavra
amordaçada pela ação do recalque e que conduz à conclusão de que “so-
mos doentes de palavras, partimos daí e não de afetos protopáticos. e eu
não posso deixar de lembrar [...] que o desafio da psicanálise é desfazer
pela palavra o que foi feito pela palavra”61. Afirmar que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem é afirmar que ele está submetido a de-
terminadas leis que ordenam sua estrutura e sua organização, e de que o
inconsciente forma, portanto, um texto lógico e coerente, do mesmo modo
que a linguagem. Razão pela qual Lacan pode chegar a dizer que as leis da
metáfora e da metonímia, presentes na linguagem, são homólogas às leis
do deslocamento e da condensação. O inconsciente tem, em sua estrutura
e modo de funcionamento, uma estrutura comparável à da linguagem. A
homologação do eu à consciência por toda uma geração de analistas que
sucedeu Freud foi o maior equívoco efetuado em relação à psicanálise,
convertendo-se numa rota de desvio cujos rumores se fazem ainda ouvir
em nossos dias através das correntes psicanalíticas derivadas da Psicologia
do Ego. Como consequência inevitável dessa homologação o conceito e
mesmo a menção do termo inconsciente foi, a pouco e pouco, sendo abo-
lido do arcabouço conceptual e técnico da Psicologia do Ego. Quando o
inconsciente é mencionado nessa teoria é para fazer referência aos processos
mentais ditos irracionais, opostos aos racionais da consciência. Esta virada
teórica praticada na psicanálise pela Psicologia do Ego veio refletir-se de
modo pontual no manejo técnico, posto a íntima relação que os une. A pro-
moção do ego como centro de controle de todo comportamento adaptado,
sua elevação a sistema central da personalidade, determinou uma técnica
centrada na função da consciência, objetivando o fortalecimento do ego
contra as forças “instintivas do id”, motivando assim as vias por onde a

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Czermak, M. – Paixões do objeto – estudo psicanalítico das psicoses. Porto Alegre:


61

Artes Médicas, 1996, 43.

359
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

psicanálise se rendeu às novas finalidades, as ortopédicas propriamente. No


dizer de Hartmann, “[..].a missão básica do homem é adaptar-se a estrutura
social e colaborar em sua construção [...]. A submissão social é uma forma
especial de obediência ao ambiente e implica no conceito de adaptação”62.
Lacan alertará que a direção da cura é coisa completamente diversa.
Na prática da psicanálise, eticamente orientada e pautada no inconsciente,
trata-se de outra coisa que de orientação de consciência, de outra coisa que
promoção de adaptação. Contrariamente ao que se postulou na Psicologia
do Ego, partimos do pressuposto de que no ponto de entificação egóica
do indivíduo jaz o que faz obstáculo à pegada da verdade do desejo in-
consciente, e que jamais foi realmente apreendida pelos psicólogos do
ego a ética freudiana no tratamento analítico, “[...] ainda que nesse plano
seja clara a intenção freudiana, que nunca é a de conformidade às normas
sociais ou morais, mas sempre a de confrontação do sujeito com a verdade
de seu desejo”63.
A função da fala e da linguagem em psicanálise foi abandonada. Na
Psicologia do Ego a linguagem converteu-se em sistema de sinais linguís-
ticos postos ao serviço da função de comunicação. Desconhecendo-se a
função da linguagem, esta foi transformada em sistema de comunicação
posta ao serviço dos interesses do ego. Negligenciou-se o valor da lingua-
gem como condição do inconsciente, em sua estrutura bem como em suas
manifestações.
Desprezou-se a primazia dada à palavra na técnica da psicanálise em
favor de um privilégio concedido a linguagem concebida como conjunto
de sinais dos quais o sujeito pode servir-se com a intenção de comunicar
ao receptor sua mensagem. Essa é a teoria clássica da comunicação que
assenta a escuta na cadeia cronológica linear dos enunciados. O eixo do

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Hartmann, H. – La Psicología del Yo y el Problema de la Adaptación. México:


62

Editorial Pax-Mexico, 1962, 47-48.


63
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 28.

360
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

enunciado é o eixo privilegiado no qual o desejo inconsciente, presente na


enunciação, permanecendo não reconhecido, aliena o sujeito de sua relação
e responsabilidade com a sua verdade. No enunciado, o sujeito é joguete de
sua fala vazia; é servo de sentidos postos, já dados e que funcionam como
álibi que lhe permite permanecer na mais fundamental ignorância do desejo
que, por habitá-lo, o move. Convém ao analista ser rigoroso na escolha do
eixo sobre o qual incide sua escuta.
A escuta do analista, endereçada ao sujeito da enunciação, estabelece
o sujeito que aí fala. “[...] o ouvinte, sua resposta, seu aval, sua interpreta-
ção decide do sentido do que é dito, e ainda mais, a própria identidade de
quem fala”64. O que, aliás, nos lembra, se preciso fosse, que o conceito de
inconsciente não pode ser separado da presença do analista65, nisto em que é
na e pela transferência que o inconsciente vem à luz enquanto “atualização
da realidade do inconsciente.” (p. 130).
No segundo Encontro de Psicanálise do Vale do Itajaí, a propósito da
função da fala na direção do tratamento psicanalítico, Norberto C. Irusta
evocava que “falar é já automaticamente submeter-se ao risco de ter que ser
compreendido. E aí onde estou arriscado a ser compreendido, compreen-
dido...mal! Por isso em psicanálise a questão não é de compreensão, senão
de escuta.” De fato, com compreensão e explicações razoáveis do porque
das condutas de um sujeito nós “[...] aumentamos o seu conhecimento, mas
nada mais alteramos nele”66.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Miller, J. A. – Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar Editor,


64

1988, 72.
65
Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 122-123.
66
Freud, S. – Análise terminável e interminável. In: Obras Completas, vol. XXIII.
Rio de Janeiro: Imago, 1980, 266.

361
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

3. Descobrindo o inconsciente

Introduzimos nas páginas precedentes formulações essenciais à


psicanálise. No tocante à teoria estabelecemos a relação do inconsciente
com o recalque. No tocante à técnica estabelecemos o seu ordenamento no
campo da palavra. Contudo, essas são formulações que têm longo percurso
histórico na psicanálise. Procederemos agora à abordagem do percurso
histórico que conduziu Freud à descoberta fundamental da psicanálise – o
inconsciente – abordando, na sequência, os desenvolvimentos a que esta
descoberta deu lugar.
No período histórico relativo aos Estudos Sobre a Histeria a técnica
presente na sugestão hipnótica consistia em tornar consciente o inconsciente.
Contudo, não levará muito tempo para que Freud perceba que a sugestão
hipnótica mais ocultava do que revelava o inconsciente. O objetivo técnico
de tornar consciente o inconsciente faz parte, portanto, do período histórico
da psicanálise.
Nos anos de 1893-1900, primórdios da psicanálise, o método da suges-
tão hipnótica, que objetivava a catarse através da ab-reação, “[...] consistia
em focalizar diretamente o momento em que o sintoma se formava [...]”67.
O manejo técnico, neste período, consistia em “[...] colocar em foco um
momento ou problema específico” (p. 193). O objetivo técnico consistia,
portanto, essencialmente em se descobrir a causa desencadeante dos sin-
tomas. Freud percebe, neste mesmo período, que havia uma resistência
no paciente que se opunha a que as ideias inconscientes se tornassem
conscientes, isto é, que havia uma resistência a ser superada e que tornava
necessário o recurso à sugestão hipnótica.
De fato, nestes anos iniciais, a técnica psicanalítica consistia em tor-
nar consciente o inconsciente, compreendido, neste mesmo período, como

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Artigos sobre a técnica. Recordar, repetir e elaborar. In: Obras Completas,
67

vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 193.

362
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

um estado de segunda consciência onde as lembranças não ab-reagidas se


alojavam. Sabemos que essa noção de inconsciente compreendido como
estado de dupla consciência ou estado de consciência dividida sofrerá,
posteriormente, da parte do próprio Freud severas críticas, ocorrendo o
mesmo com o método da sugestão hipnótica. Sublinhemos, portanto, que
o método da sugestão hipnótica utilizada na origem da história da psica-
nálise se apoiava nas elaborações teóricas produzidas naquele período,
e que tornar consciente o inconsciente significava, nestes tempos idos,
tornar manifesto, conhecido à consciência o fator traumático causal que se
encontrava subjacente aos sintomas histéricos. Neste período Freud relata
que “[...] cada sintoma histérico individual desaparecia imediatamente e
permanentemente quando conseguíamos evocar, nitidamente, a lembrança
do fato que o provocou e despertar a emoção que o acompanhava, e quan-
do o paciente havia descrito aquele fato com maiores detalhes possíveis e
traduzirá a emoção em palavras” 68.
Freud observava que os sintomas histéricos desapareciam quando ab-
-reagidos, isto é, que os sintomas desapareciam quando ocorria a descarga
das emoções que estavam ligadas aos acontecimentos traumáticos através
do recurso à palavra. Os acontecimentos traumáticos deveriam receber
expressão verbal por parte do sujeito, meio através do qual haveria uma
catarse. Lacan, no Seminário Livro 7, assinala que na antiga Grécia, com
Hipócrates, o termo catarse traduzia-se habitualmente como “purgação” e
estava relacionado à noção de eliminação das tensões, aludindo também a
ideia de uma “purificação”69. No ponto de elaboração teórica em que nos
encontramos hoje sabemos que a ab-reação consistia essencialmente em dar
nome, simbolizar, pelo recurso à linguagem, um real vivido não integrado
ao sistema simbólico do sujeito.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – As neuropsicoses de defesa. In: Obras Completas, vol. III. Rio de


68

Janeiro: Imago, 1980, 47.


69
Lacan, J. – O Seminário. Livro 7. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1991, 297.

363
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

No período em que Freud utilizava-se do método da sugestão hipnótica


o objetivo da psicoterapia era o de percorrer os caminhos que haviam con-
duzido à formação dos sintomas, isto é, partia-se dos sintomas manifestos
até chegar-se à localização das causas que o haviam determinado. Encontrar
a causa que estava na origem dos sintomas era de capital importância neste
período, posto que a lembrança do trauma que não havia sido ab-reagido
permanecia no aparelho psíquico funcionando como um “corpo estranho”.
Nesta época Freud relatou ficar deveras impressionado com o fato de que
a lembrança do trauma permanecia, muito tempo após a sua ocorrência,
eficaz, vivo enquanto agente etiológico dos sintomas atuais do sujeito.
Freud observava ainda que havia uma desproporção no tempo entre o
surgimento dos sintomas e o evento traumático desencadeante, constatando
que, por um lado, o sintoma não aparecia logo após a ocorrência do fator
traumático e que, por outro, este permanecia presente no psíquico como
se fosse uma força atual e em constante atividade. Devemos ainda acres-
centar que, neste mesmo período, Freud elabora que uma cena só se torna
traumática quando transformada em lembrança a partir de sua evocação por
meio da repetição de uma cena análoga. “Neste sentido, o caso Katharina
é típico. Em todo caso de análise de histeria baseada em traumas sexuais,
verificamos que as impressões do período pré-sexual que não produziram
nenhum efeito na criança atingem seu poder traumático num dado posterior
como lembrança”70.
Alguns pontos de elaboração efetuados por Freud no período de
1893 a 1900 são dignos de nota e merecem, portanto, destaque, posto
constituírem-se nos gérmenes da futura teoria do inconsciente e do método
da livre associação a ele intimamente relacionado. Neste mesmo período
Freud destacava, como fato marcante, que nas neuroses traumáticas não
havia um trauma principal isolado, mas, sim, uma série de traumas parciais

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,


70

vol.II. Rio de Janeiro : Imago, 1980, 182.

364
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

agrupados, formando um grupo de causas desencadeantes. Freud observou


que a conexão entre esses grupos causais e os sintomas dele decorrente
obedecia, no mais das vezes, a uma conexão causal de ordem simbólica e
não cronológica ou factual. A conexão simbólica determinava que o evento
traumático, ou grupos de eventos traumáticos, que despertavam uma emoção
penosa, do tipo náusea moral, poderia manifestar-se sob a forma de um
sintoma histérico de vômito, por exemplo. Freud observou, portanto, que
se estabelecia uma associação por laços de semelhança simbólica entre o
sintoma e o que funciona como sua causa precipitante71. A noção de cone-
xão simbólica elaborada por Freud neste período evoca a noção lacaniana
da metáfora, elaborada com base na lei de condensação, como mecanismo
constitutivo dos sintomas neuróticos.
Evocamos a noção de relações causais simbólicas estabelecendo sua
relação com a metáfora no intuito de apontarmos o quanto estava presente,
nos primórdios da psicanálise e no espírito de Freud que a originou – ainda
que de forma incipiente e embora haja toda uma distância de ordem con-
ceptual e cronológica a ser percorrida –, a noção de relações analógicas
de cunho simbólico e de como esta noção, ao longo da obra freudiana e
lacaniana, foi ganhando em vigor conceptual.
Freud destaca, portanto, a possibilidade de relações causais de ordem
simbólica na etiologia dos sintomas. Outro ponto destacado por Freud, e
de não menor importância, refere-se ao fato de que havia, por parte do pa-
ciente, uma perda de memória no que concerne a estas relações simbólicas.
A lembrança do evento traumático permanecia engrampada no psíquico,
mas, quanto à sua ação eficaz na produção dos sintomas, o paciente nada
relacionava. É a este propósito que Freud chega à conclusão de que “os
histéricos sofrem principalmente de reminiscências.” (p. 48). Sabemos hoje

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Estudos sobre a histeria. Sobre o mecanismo psíquico dos fenómenos


71

histéricos. Comunicação preliminar In: Obras Completas, vol. II. Rio de Janeiro: Imago,
1980, 45.

365
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

o quanto devemos a essa elaboração o conceito, elaborado posteriormente,


de fantasma.
Freud observava que os eventos traumáticos, que não haviam sido
ab-reagidos no momento oportuno, despertavam emoções penosas que
permaneciam vinculadas à lembrança traumática. A cura requeria uma
liberação da emoção “estrangulada” por meio da fala, na medida em que,
para Freud “[...] a linguagem serve de substituto para a ação” (p. 49). “Cura
pela palavra”, assim denominou Ana O, a mais famosa das histéricas, o
tratamento pela psicanálise Verificamos, guardadas as devidas proporções,
e que de fato não são poucas, de ordem tanto teóricas quanto técnicas, que a
catarse em Freud consistia numa purificação pela via libertadora da palavra.
De acordo com o que se elaborava neste período, tornar algo consciente
consistia precisamente em restabelecer as conexões causais simbólicas
perdidas, fato que se torna tão mais marcante quando lembramos que em
A Psicoterapia da Histeria72 o pressuposto teórico de estados de dupla
consciência cede lugar à teoria da defesa implicada no mecanismo do re-
calque. Como vemos, o conceito de recalque, conceito chave da teoria do
inconsciente, tem longo percurso histórico na psicanálise.
Com a introdução da teoria da defesa, Freud não estava recusando a
teoria dos “estados hipnoides” presentes na histeria, mas, sim, afirmando-
-os como estados adquiridos por meio da defesa, e já não mais, portanto,
como o resultado de uma pré-disposição constitucional herdada. Freud não
recusava, neste período, a existência de “estados hipnoides”, mas afirmava
que os mesmos dependiam inteiramente do mecanismo psíquico da defesa
compreendido como “fator primário”. Freud desejava sustentar um achado:
o mecanismo psíquico da defesa posta em jogo no recalque. O recalque
foi definido neste período como o processo através do qual determinados
grupos de ideias eram dissociados da cadeia consciente, vindo formar

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

72
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro : Imago, 1980.

366
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

uma cadeia inconsciente. A “histeria hipnoide”, juntamente com a teoria


que a sustentava, cedeu terreno à nova designação clínica – “a histeria da
defesa”. Fato que, aliado a uma série de outros, fez com que Freud já não
se mostrasse mais tão otimista quanto aos alcances terapêuticos obtidos
através da utilização da técnica da sugestão hipnótica. De todos os modos,
a prática da sugestão hipnótica, e a experiência obtida através da mesma
por Freud, constituiu-se num valioso subsídio para a posterior elaboração
do fenômeno da sugestão implicado na transferência, de tal forma que, em
Freud, o manejo da transferência constitui-se no fundamento ético73 da

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

73
Podemos dar como definição geral que a ética consiste no conjunto de princípios
que regem as ações humanas. Neste sentido, pode-se afirmar que a ética encontra-se presente
num vasto número de campos teóricos, epistemológicos e de práticas. Entretanto, pode-se
afirmar também que a questão relativa à ética tem na psicanálise uma abordagem especí-
fica. Na psicanálise encontramos uma concepção particular sobre a ética que ligaremos à
especificidade de sua concepção de sujeito. A “ética tradicional” (Lacan, J. – A direção do
tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998, p.
776) se fundamenta e se dirige ao ser, preconizando uma série de princípios e de leis que,
ao serem colocadas como referências para as ações humanas, fazem com que esta se dirija
ao bem. Para a psicanálise, contudo, a ética não se endereça ao ser, mas a falta a ser fundada
no desejo e na castração A obra freudiana inaugura uma ética própria da psicanálise e que se
encontra intimamente ligada à noção de sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente é
determinado e, como tal, assujeitado à lei do desejo inconsciente. Tal concepção de sujeito
coloca-se nas antípodas de uma concepção que defende a autonomia do indivíduo. Com
efeito, a “[...] a marca do significante sobre o falante” (Dicionário de Psicanálise Larousse,
s.d, 1993, p. 42) faz dele um sujeito submetido às determinações do desejo inconsciente e a
castração a qual ele dá lugar. Deste modo, no percurso de uma análise o sujeito é conduzido
a confrontar-se com a lei do desejo e com a castração que ele porta. De acordo com Birman
(1955), “[...] a análise é a possibilidade de produção de um estilo que se calca na lei da
proibição do incesto e na experiência de castração...” (p. 29). Para a psicanálise freudiana
não se trata, tal como na Psicologia do Ego, de harmonizar o sujeito com as leis morais
sociais, mas, sim de ordenar o sujeito na lei do desejo. Goldemberg (1944), aponta que “[...]
a moral seria relativa aos ideais que constituem o eu, enquanto que a ética diria respeito às
relações do sujeito com seu desejo inconsciente” (p. 11).

367
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

prática psicanalítica.
Desenvolvíamos acima que a noção de fios de associações lógicas
simbólicas, cuja relação fora esquecida pelo paciente, foi ganhando vulto
em relação à noção de eventos traumáticos isolados como causa desenca-
deante de sintomas. Nesta mesma ocasião, Freud elabora que não havia
uma única lembrança, uma única ideia patogênica, mas uma sucessão
de “traumas parciais”, formando uma verdadeira concatenação de ideias
patogênicas múltiplas.
O material psíquico patogênico, de acordo com Freud, encontrava-se
organizado sob a forma de uma estrutura relacional estratificada segundo
três ordens diversas. Dito de outra maneira, havia um certo número de
lembranças ou de “sequência de pensamentos”74 que se dispunha a partir
de um núcleo traumático até sua manifestação nos sintomas, onde o núcleo
traumático culminava. Em torno deste núcleo, como que envelopando-o,
encontrava-se um abundante material disposto de acordo com três ordens
de organização.

Por outro lado, a ética da psicanálise, no que tange ao analista, consiste em dar voz
e escuta ao sujeito do inconsciente. Os princípios técnicos postos em curso na direção do
tratamento são princípios éticos que “[...] visam dar lugar à palavra do sujeito do incons-
ciente e, como não há inconsciente fora do laço transferencial, o manejo da transferência
situa-se no âmbito da ética, visando a livre associação” Baratto, G.: “A ética na psicanálise”.
Dynamis: Revista de psicologia tecno-científica, 9 (37), 50-56, 2001, 2001, p. 52). Deste
modo, a ética do psicanalista consiste em implicar, pelo recurso à palavra, o sujeito com
seu desejo, fazendo tombar a ilusão de autonomia do eu. Há, portanto, “[..] uma ética da
psicanálise, no sentido de uma ética profissional [..]. Esta abordagem diz respeito à proteção
dos ‘clientes’ submetidos ao tratamento psicanalítico contra eventuais abusos cometidos
pelos analistas em sua posição privilegiada em função do amor de transferência” Kehl, M.
R. – Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 7), e há uma ética
que se deriva do percurso de uma análise por parte do analisando. A sustentação de uma
posição ética, fundada no desejo, tanto por parte do analista quanto por parte do analisando
passa, por seu turno, pelas vicissitudes particulares de uma análise.
74
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 345.

368
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

Havia, em primeiro lugar, uma disposição cronológica sequencial,


um ordenamento linear do material mnêmico; uma espécie de arquivo bem
ordenado de lembranças dispostas segundo uma ordem cronológica inver-
tida, onde as lembranças mais recentes eram as que surgiam em primeiro
lugar, e, no fina, encontrava-se a lembrança traumática em torno da qual as
demais lembranças se encontravam ligadas. Havia, portanto, um arquivo
mnêmico que conduzia dos sintomas manifestos até o núcleo traumático Em
segundo lugar, havia um arranjo temático, já não mais cronológico. Neste,
uma série de temas encontravam-se ligados entre si e ordenados em torno
do tema principal numa ordem de estratificação temática na qual em cada
estrato encontrava-se uma resistência que aumentava a medida em que se
aproximava do núcleo patogênico.
Por fim, a terceira e mais importante forma de organização do ma-
terial psíquico, uma forma de arranjo que não obedecia à cronologia e
nem à semelhança temática. A terceira forma de organização do material
psíquico ordenava-se de acordo com o “conteúdo do pensamento”, no qual
a concatenação das ideias ocorre de acordo com certos fios lógicos que
as ligavam entre si. Essa forma de organização, diversamente da ordem
temática, não era concêntrica, mas sim em forma de “ziguezague”. Uma
forma de associação segundo uma certa ordem lógica que evoca a imagem
de uma ramificação arbórea.
Essas formas de estratificações do material psíquico conduziram
Freud a conclusão de que “[...] é notável como muitas vezes um sintoma é
determinado de várias maneiras, é ‘superdeterminado’” (p. 347).
Na Psicologia do Ego o conceito de sobredeterminação foi compreen-
dido como constituindo a multiplicidade de fatores implicados no processo
de maturação e de desenvolvimento dos comportamentos rumo à adaptação.
A sobredeterminação, nesta teoria, refere-se ao fato de que cada conduta
levada a cabo pelo ego é “multideterminada”, isto é, ao fato de que são
vários os fatores determinantes que participam das ações efetuadas pelo
ego, de modo que o comportamento humano pode ser explicado à luz de
seus fatores de determinações múltiplas: a determinação dos instintos, o

369

7
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

papel do meio ambiente físico e social; as leis que determinam os proces-


sos de funcionamento básico do organismo, o papel desempenhado pelas
“experiências acumuladas”75.
Hartmann, referindo-se ao fato de que a experiência analítica demons-
trou que a conduta humana é superdeterminada, foi levado a identificar
o conceito de sobredeterminação freudiana ao conceito de “princípio de
função múltipla”76. Com o princípio de função múltipla, Hartmann desen-
volve a teoria de que cada função ativada no ego é o resultado de complexos
processos desenvolvidos em diferentes estratos da personalidade e que
fornecem como resultado final uma variedade de tipos de ações levadas a
efeito pelo ego.
Dizendo de outro modo, de acordo com Hartmann, a diversidade
de ações de que é capaz o ego deve-se ao princípio de função múltipla.
Para Hartmann, toda ação é conduzida e dirigida voluntariamente pelo
ego consciente, isto é, toda ação obedece ao comando do ego, contudo,
as características imprimidas às ações são co-determinadas por fatores
que se desenvolvem no id, no superego, na realidade externa, assim como
também pelo número de funções mobilizadas pelo ego em cada ação. Esta
multiplicidade de fatores envolvidos em cada ação levada a efeito pelo ego
é responsável pela diversidade das condutas.
Para Lacan, a sobredeterminação concerne às múltiplas determinações
simbólicas aos quais o sujeito está, enquanto sujeito do inconsciente, refe-
rido. A sobredeterminação responde, pois, em Lacan, ao princípio segundo
o qual o sujeito é um efeito do significante e de que este é regido pelas leis
da lógica combinatória da metonímia e da metáfora.
Retomemos o que vínhamos desenvolvendo a propósito da teoria da
defesa elaborada por Freud no período dos Estudos Sobre a Histeria. Neste
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Rapaport, D. – A Estrutura da Teoria Psicanalítica - uma Tentativa de sistematização.


75

São Paulo: Perspectiva, 1982, 31.


76
Hartmann, H. – Ensayos sobre la Psicología del Yo. México: Fondo de Cultura
Econômica,1969, 48.

370
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

período, ao qual já fizemos referência, Freud não se encontrava muito en-


tusiasmado com o método da sugestão hipnótica, passando a fazer uso de
uma técnica denominada de “método coercitivo”. Esse método consistia
em fazer pressão com as mãos sobre a cabeça do paciente, insistindo para
que ele rememorasse os fatos traumáticos. Através deste método, Freud
constata que com insistência surgia uma lembrança, e que, reforçando-se
a insistência, surgia uma nova lembrança em estreita conexão com a pri-
meira, e assim sucessivamente. Freud constatava ainda que o surgimento
das lembranças dependia de uma certa quantidade de esforço terapêutico,
constatando, deste modo, que havia uma força que se opunha à rememo-
ração, Freud a denominou de resistência. A resistência era a força que se
opunha aos esforços do tratamento, sendo a mesma força que de início se
havia oposto à penetração da ideia patogênica na consciência, ou seja, que
se encontrava na base do recalque e que, portanto, “devia ser a mesma força
psíquica que desempenhava um papel na geração da histeria e que impedia
na ocasião que a ideia patogênica se tornasse consciente”77.
O trabalho clínico com pacientes neuróticos conduziu Freud a de-
senvolver a teoria da divisão psíquica, descrita sob a forma de um conflito
psíquico determinado pelo antagonismo do eu (moi) em relação ao grupo
de ideias a ele “antitéticas”. As ideias “irreconciliáveis” com o eu, são, pelo
processo de recalque, expulsas de seu campo, vindo a formar um grupo
de ideias em relação as quais o eu experimenta estranhamento, razão pela
qual ele defende-se contra as mesmas, recusando-se a assumi-las como lhe
pertencendo. Freud constata que havia uma “aversão”, “repulsão” por parte
do eu em relação às ideias contrárias a sua precária consistência imaginária.
A incompatibilidade do eu em relação a tais ideias provoca uma força que
se colocava contra a sua penetração na consciência. “O ego do paciente
fora abordado por uma ideia que se mostrou incompatível, que provocou

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

77
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 325.

371
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

por parte do ego uma força de repulsão com a finalidade de defender-se da


ideia incompatível”78.
O processo por meio do qual o eu se divorcia das ideias incompatíveis,
expulsando-as de seu campo, conduz ao processo de divisão psíquica. As
ideias de caráter aflitivo ao eu passam, desde então, a formar um grupo
associativo separado da consciência. O material patogênico expulso passa
a organizar-se segundo uma lógica associativa de coerência diversa da
organização do eu, e dele independente. Com efeito, por meio do recalque
“a ideia não é aniquilada por tal repúdio, mas simplesmente reprimida
para o inconsciente. [...] o que se desejava era eliminar uma ideia, como
se jamais ela tivesse surgido, mas tudo o que se conseguia fazer é isola-la
psiquicamente”79.
O abandono do método hipnótico conduziu à importante descoberta de
forças resistenciais atuantes no paciente. A hipnose ocultava as resistências
do eu, razão pela qual Freud se torna ainda mais cético quanto à eficácia
terapêutica da sugestão hipnótica. Vemos, neste período inicial da psica-
nálise, a presença de muitas e de importantes ideias que se constituíram
em ponto de partida para as futuras linhas de desenvolvimento da teoria
do inconsciente e do método da livre associação. Encontramo-nos, neste
período, diante de um momento incipiente do desenvolvimento da futura
teoria do inconsciente, tal como se encontra elaborada na primeira tópica
freudiana. Passo a passo, a noção de fatos reais traumáticos, como causa
subjacente aos sintomas, cede lugar à teoria do fantasma inconsciente,
permitindo a Freud elaborar que as associações que unem as representa-
ções inconscientes entre si ocorrem à revelia da vontade do eu e que as
articulações estabelecidas pelo inconsciente não se perdem pela ação do

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

78
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 325.
79
Freud, S. – Um caso de cura pelo hipnotismo. In: Obras Completas, vol. I. Rio de
Janeiro: Imago, 171.

372
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

recalcamento. Essas noções conceptuais são atuais e se encontram presentes


em germe neste período histórico dos Estudos sobre a Histeria. Sabemos
hoje, pautados pelos desenvolvimentos teóricos posteriores, o que a noção
de lembranças traumáticas deve à noção de representações fantasmáticas.
Dizendo de outro modo, sabemos hoje sobre o caráter fantasmático destas
lembranças. Sabemos também que a noção de um trauma insuportável, a
presença de um núcleo traumático primário, causa originária dos sintomas,
responde à noção de pulsão e de sua inscrição no registro psíquico, isto é,
à noção de “[...] ‘recalque primário’ da primeira tópica, ‘isso’ freudiano da
segunda, ‘Real’ lacaniano”80, o que nos conduz, por seu turno, à noção de
uma causa primária vazia como núcleo no qual se enraíza toda manifestação
sintomática. O que é irreconciliável, traumático ao “ego coerente”, e contra
o qual ele se defende, é o desejo indeterminado do Outro e a montagem
fantasmática que dele se deriva e que serve ao propósito de encobri-lo.

No inconsciente, onde está a causa? Sabemos onde ela está: um e outro pen-
samento não fazem senão aproximá-lo marcando seu caráter inatingível. A
causa no inconsciente é o que é aproximado e falho. O que é que faz causar
o inconsciente? É o que Freud chamava de seu famoso umbigo do sonho:
isso quer dizer que é possível sempre tentar chegar ao âmago da análise de
um sonho, mas jamais se chegará ao âmago, quaisquer que sejam as inter-
pretações tremendamente notáveis que se faça.81

É verdade que num período imediatamente anterior à elaboração


da teoria da defesa as noções teóricas avançadas a propósito da divisão
psíquica eram colocadas em termos de “estados de cisão da consciên-
cia”, postulando-se que havia uma “consciência normal” e uma“segunda
consciência”, onde se encontravam as lembranças de caráter penoso. É

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Pommier, G. – Desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Zahar Editor,1990, 25.


80

Melman, C. – Novos estudos sobre o inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas,


81

1994, 31.

373
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

verdade também que a técnica consistia em torná-las conscientes, ou seja,


integrá-las à cadeia de associações conscientes, daí o recurso à hipnose ou
ao método coercitivo. De fato, isto conduz à noção de que o inconsciente,
aqui entendido como um estado de cisão da própria consciência, deveria
ser integrado à “consciência normal”. Entretanto, a noção de que a cons-
ciência poderia dividir-se a si própria, gerando como consequência dois
estados de consciência, na qual uma consciência nada poderia saber sobre
a outra, é de fato uma concepção filosófica à qual Freud não apenas não
se detém por muito tempo, mas em relação a qual lançará severas críticas
posteriormente. Assim é que, já em 1892-1893, no texto Um Caso de Cura
Pelo Hipnotismo Freud propõe como modelo da divisão psíquica a noção
de “vontade e contra-vontade”, apontando que para além da vontade cons-
ciente manifestada pelo paciente existe algo que não apenas se contrapõe a
mesma mas que, de forma mais determinante, se apresenta como soberana
sobre a vontade. A contra-vontade é, neste período, concebida por Freud
como soberana no psíquico, impondo-se sob a forma de manifestações
sintomáticas. Contra-vontade é o nome dado por Freud, em 1892, ao desejo
inconsciente, tal como o compreendemos hoje. Logo em seguida ao mode-
lo da divisão psíquica sob a forma de “vontade e contra-vontade”, Freud
elabora e propõe um novo modelo sobre o processo de divisão psíquica:
o modelo da incompatibilidade do eu com certas ideias de caráter penoso,
ou seja, o modelo da dissociação psíquica presente entre o eu e um grupo
de ideais incompatíveis e inaceitáveis por este eu.
Vimos como imediatamente após estas elaborações conceituais, ou
mesmo a elas paralelas, tem lugar a noção de associações regidas por laços
de coerência lógica simbólicos. O material esquecido vai sendo relacio-
nado, de forma cada vez mais sistemática, à concepção de que o que de
fato o paciente esquecia não eram os eventos penosos, mas, sim os fios de
concatenação lógica que se estabeleciam entre os sintomas manifestos e o
núcleo traumático, e que formavam uma verdadeira cadeia associativa de
pensamentos.
Portanto, não se trata de rememoração de lembranças inconscientes
por parte do analisando, mas sim deste abandonar-se, deixando-se conduzir

374
Nas raízes
O Inconsciente – uma tolerância de Freud
dadescoberta

por estes fios lógicos que ligam as representações inconscientes entre si. É
do inconsciente concebido como um processo dinâmico articulatório que o
método da livre associação se sustenta. A noção de cadeias de representações
de desejo inconsciente retira o inconsciente freudiano do marco de uma
concepção psicológica substancialista que conduz a identificá-lo a conteúdos
afetivos, emoções e sentimentos. Retira igualmente o inconsciente da noção
biológica de “tendências instintuais primitivas”82 que, permanecendo à
margem do processo de desenvolvimento, amadurecimento e aprendizagem,
manifestar-se-iam como tendências antisociais que escapam ao processo
de socialização, ajuste e adaptação do eu. Este foi o modo pelo qual o
inconsciente, para os teóricos do ego, ficou identificado ao isso e este, por
sua vez, identificado ao irracional desadaptado, e sobre o qual convém pôr
as rédeas da via corretora do princípio da realidade.
Mas o que vem a ser o princípio da realidade para os psicólogos do
ego? “Trata-se da realidade cotidiana, imediata, social? Do conformismo às
categorias estabelecidas, aos costumes admitidos? Da realidade descoberta
pela ciência?”83. Na Psicologia do Ego todas estas questões convergem,
recebendo formulação positiva. O princípio de realidade, definido como
princípio de adaptação, deve ser aceito pelo indivíduo uma vez que se
traduz como guia para todo bom comportamento. Quanto a nós, partícipes
do ponto de vista freudiano, acreditamos que a vida em grupo, uma das
fontes de mal-estar assinalada por Freud, pode cobrar ao sujeito um tributo
alto demais: o de render-se aos “ideais de multidão”84. Os ideais sociais
coletivos impõem-se ao homem como um conjunto de valores, crenças
e ordenamentos morais que, ao se apresentarem como portadores de um
saber sobre a verdade, são colocados na posição de servir de guias para

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Hartmann, H. – Psicoanálisis y Sociología. In: J. Ernest y otros. (Orgs.). Sociedade,


82

Cultura y Psicoanálisi de Hoy. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1964, 45.


83
Lacan, J. – O Seminário. Livro 7. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1991, 32.
84
Freud, S. – O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, vol. XXI. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 81.

375
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

a vida, comandando, deste modo, processos e fenômenos específicos de


alienação ao imaginário social dominante. O fascínio que estes ideais co-
letivos exercem sobre cada sujeito que a ele se submete deriva-se do fato
de que “[...] sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de
elaborar uma neurose pessoal”85, preço que o neurótico, pela sua “servidão
mental”, parece nunca achar alto demais, na medida em que lhe permite
permanecer no desconhecimento de seu próprio desejo, Ao nosso ver, para
a Psicologia do Ego, uma ação é tida como adaptada na medida em que o
sujeito abre mão de seu desejo inconsciente, em nome do guia de adaptação
suposto presente no princípio de realidade, definido, pela referida escola,
como princípio de adaptação. Contudo, onde o indivíduo encontra o modelo
para conduzir-se adequadamente em relação à realidade? Onde encontra a
certeza de que está processando a leitura correta da realidade circundante?
De acordo com os teóricos do ego encontra-o no modelo identificatório
presente na figura do analista, talhado como medida padrão de todo bom
ajuste. Ao nosso ver, cabe aqui a advertência de Freud de que “por mais
que um analista possa ficar tentado a transformar-se num professor, modelo
e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua própria imagem e seme-
lhança, não deve esquecer que esta não é a sua tarefa no relacionamento
analítico e que, na verdade, será desleal a essa tarefa se permitir ser levado
por suas inclinações”86.
A questão: existe uma realidade idêntica para todos? recebe na
Psicologia do Ego formulação afirmativa, conduzindo à conclusão de que
a lei a qual convém seguir e pautar-se, tomando-a como guia mestre, são
as leis das normas e regras morais sociais convencionais e não a Lei do
desejo inconsciente. O que não deixa de eximir, na ocasião, o sujeito da dor

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – O futuro de uma ilusão. In: Obras Completas, vol. XXI. Rio de Janeiro:
85

Imago, 1980, 58.


86
Freud, S. – Esboço de psicanálise. O trabalho prático. A técnica da psicanálise. In:
Obras Completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 202.

376
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

de existir, ainda que ao preço de abrir mão daquilo que, por habitá-lo, se
encontra no fundamento que o sustenta enquanto sujeito – o desejo incons-
ciente. Foi justamente a sugestão, concebida como fenômeno amoroso que
dispõe o analisando a uma posição de servidão a um lugar suposto saber,
passível de vir encarnar-se na pessoa do analista, que Freud apontou os
riscos implicados em todo tratamento que se paute no recurso à sugestão,
definida como técnica de convencimento. Ocasião propícia para lembrarmos
que a ideia, o conceito que um analista faz do que seja o inconsciente, a
direção do tratamento, a ética no qual ele deve pautar-se e, por fim, o que
ele entende por finitude de uma análise, dirigirá seus atos analíticos.
Já nos referimos anteriormente à problemática de tornar consciente o
inconsciente. Que devemos entender por tornar consciente o inconsciente?
Quais são os limites e os alcances que podemos depreender desta expres-
são frequente na obra freudiana? Tratar-se-ia de fazer uma compreensão
psicológica da mesma, e que consistiria em tornar sabido à consciência
o saber-insabido do inconsciente? Seria o caso de supor como possível,
viável e até mesmo desejável um progressivo apossamento, e consequente
conhecimento, pela consciência do que é inconsciente?
A questão de como algo inconsciente se torna consciente não nos
parece de modo algum banal, não somente devido ao fato de que está
sujeita a equívocos e mal entendidos, mas, sobretudo, porque no texto
metapsicológico O Inconsciente (1915a), texto canônico sobre o tema do
inconsciente, o próprio Freud dedica uma particular atenção a este tema.
A questão levantada por Freud nesse texto é quanto ao modo em que se dá
a transposição, isto é, a passagem das ideias do sistema inconsciente para
o sistema consciente. Questão levantada a propósito de razões de ordem
tópica. Nesta ocasião Freud aventa três hipóteses.
A primeira hipótese, dita tópica, aventa sobre a possibilidade de um
duplo registro dos materiais mnêmicos inconscientes. Essa hipótese é
proposta nos seguintes termos por Freud: quando uma ideia (no sentido
de uma representação) passa de um registro inconsciente para um registro
consciente, com a mudança de localização tópica aí operada, a ideia passa

377
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

a existir em dois lugares diversos, isto é, a ideia continua a ter existência


psíquica inconsciente, acrescida agora de uma existência paralela no sistema
consciente?. Com relação a esta hipótese Freud levanta a objeção de que
quando comunicamos ao paciente o conteúdo de um material submetido
ao processo de recalcamento podemos dizer que este material passa a ter
existência em dois lugares psíquicos diversos. Contudo, o que se constata
clinicamente é que com este procedimento não produzimos qualquer espécie
de alteração psíquica, não removemos o recalque e nem anulamos os seus
efeitos. A este propósito Freud assevera que

Se o conhecimento acerca do inconsciente fosse tão importante para o pa-


ciente, como as pessoas sem experiência de psicanálise imaginam, ouvir
conferências ou ler livros seria suficiente para curá-los. Tais medidas, porém,
têm tanta influência sobre os sintomas da doença nervosa, como a distribuição
de cardápios numa época de escassez de víveres tem sobre a fome. A analogia
vai mesmo além de sua aplicação imediata; pois, informar ao paciente sobre
seu inconsciente redunda, em regra, numa intensificação do conflito nele e
numa exacerbação de seus distúrbios”87.

Estamos devidamente advertidos do fato de que revelar ao paciente


sobre o seu inconsciente recalcado resulta, no melhor dos casos, numa
medida inócua, no pior e no mais frequente, no fortalecimento da barreira
levantada pela resistência. Tornar consciente o inconsciente, por meio de
uma técnica que consista em comunicar o recalcado, tornando-o conhecido à
consciência, não faz parte pois do manejo técnico psicanalítico, que conduz
ao cumprimento da regra fundamental da livre associação. Sabemos, pelo
legado de ensinamentos que Freud deixou, que um manejo técnico assim
conduzido não é senão manifestação de “uma ambição terapêutica”88 por
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Cinco lições de psicanálise. Quinta lição. In: Obras Completas, vol. XI.
87

Rio de Janeiro: Imago. 164, 211.


88
Freud, S. – Artigos sobre a técnica. Recomendações aos médicos que exercem a
psicanálise. In: Obras Completas, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 153.

378
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

parte do analista, e que Freud não vacila em considerar como o “[...] sen-
timento mais perigoso para um psicanalista” (p. 153). Ao proceder deste
modo, o analista não estará fazendo nada mais do que inculcar no paciente
as suas próprias aspirações e desejos, fazendo um uso abusivo do laço
transferencial e colocando-o ao serviço da sugestão. A via técnica de tornar
consciente o inconsciente, pautando-se no pressuposto da transmissão de um
conhecimento está, por razões de eficácia técnica e de ordem ética, fechada.
A segunda hipótese, denominada por Freud de funcional, aventa a
possibilidade de que a passagem de uma ideia inconsciente para o consciente
implicaria numa mudança de estado da mesma. Essa hipótese é abandona
por Freud que a considerou a mais grosseira das três. A terceira hipótese
formulada por Freud põe um ponto de basta em torno das celeumas travadas
em torno da questão de como algo inconsciente se faz consciente. Ela con-
siste, primeiramente, numa recusa das duas hipóteses anteriores. A passagem
do inconsciente para o consciente não se dá por meio de uma mudança de
registro, tampouco por diferenças produzidas no estado funcional. A terceira
hipótese formulada por Freud introduz a distinção entre “representação de
coisa” (Sachvorstellung) e “representação de palavra” (Wortvorstellung).
Hipótese segundo a qual no inconsciente subsistem as “representações de
coisa” sem a “representação de palavra” que lhe corresponde. Doravante,
ligar a “representação de coisa” a uma “representação de palavra” não é
garantia, mas, possibilidade de que o inconsciente alcance à consciência.
“Como uma coisa se torna consciente? Seria assim mais vantajosamente
enunciada: Como uma coisa se torna pré-consciente? E a resposta seria:
Vinculando-se às representações verbais que lhe são correspondentes”89.
No Seminário livro 7 (1991), Lacan adianta que a oposição
Wortvorstellung e Sachvorstellung responde em Freud às dificuldades e
impasses por ele encontradas no tocante ao estado da linguística de sua

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – O ego e o id. In: Obras Completas, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago,
89

1980, 33.

379
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

época, e de que esta oposição, introduzida por Freud, mostra admiravel-


mente o quanto ele compreendeu bem a distinção entre a linguagem como
função, isto é, do papel que a linguagem cumpre no nível do pré-consciente,
da linguagem enquanto estrutura. Lacan sublinha ainda que Freud fala de
Sachvorstellung e não de Dingvorstellung e de que, portanto não é em vão
que “[...] as Sachvorstellung estejam ligadas a Wortvorstellung, mostrando-
-nos assim que há uma relação entre coisa e palavra”90.
A tradução em palavras é o recurso onde repousa a possibilidade de
tornar o inconsciente acessível à consciência. Freud, quando distingue no
inconsciente a representação de coisa e de palavra, está nos assinalando uma
dimensão da representação inconsciente - a de coisa - que jamais chega à
consciência, a não ser pelo seu enlace a uma representação de palavra. Se
quiséssemos precisar de modo rigoroso o que está contido no inconsciente
diríamos então: as representações simbólicas de coisas (Sachvorstellung)
produzidas no campo da palavra. E, se quiséssemos, também de modo ri-
goroso, definir em que consiste tornar consciente o inconsciente, diríamos,
de acordo com Kehl, que “a passagem do inconsciente à consciência só é
possível por intermédio das palavras, podemos deduzir que nessa passagem
algo se perde, algo da verdade das representações de coisa as ‘primeiras e
verdadeiras cargas de objeto’”91. “[...] estamos em condições de declarar
precisamente o que é que a repressão nega à apresentação rejeitada nas
neuroses de transferência: o que ela nega à apresentação é a tradução em
palavras que permanece ligada ao objeto”92. De acordo com elaborações
efetuadas por Freud, tornar consciente o inconsciente consiste num ato
de reconhecimento e elaboração do material submetido ao processo de
recalcamento, e de que isso ocorre através do ato da fala. Falando o sujeito
encontra recursos na palavra para elaborar o material psíquico incons-
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lacan, J. – O Seminário. Livro 7. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1991, 60.


90

Kehl, M. R. – Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia da Letras, 2002, 123.
91

92
Freud, S. – Artigos sobre a metapsicologia. O inconsciente In: Obras Completas,
vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 230.

380
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

ciente, integrando-o ao seu sistema simbólico. Cremos ter respondido a


questão de como se faz possível o inconsciente tornar-se consciente: pelo
recurso à tradução em palavras. As palavras, e somente elas, permitem a
simbolização de um real vivido, causa permanente de angústia. Daí que o
desejo eticamente legítimo do analista é de que o analisante fale. De que
ele associe livremente. Mas, poderíamos perguntar, livre de quê? “Livre
da pregnância imaginária do excesso de sentido. Livre do subjugamento
do sujeito ao saber imaginário, dos excessos de certeza nos quais o sujeito
se sustenta como ser e que o fazem adoecer”93.

4. O Retorno do Recalcado: Os derivados do inconsciente

Abordámos acima a problemática questão de como se faz consciente


o inconsciente. Propomos agora outra questão intimamente a ela relacio-
nada. Quais são os efeitos produzidos na consciência quando da irrupção
do inconsciente? A resposta é que a consciência, em relação à emergência
do inconsciente, só pode experimentar angústia. A manifestação do incons-
ciente é causa de estranhamento para o eu (moi). Tudo se passa como se o
que emergisse do inconsciente pertencesse a outrem e não a si próprio. O
eu não se reconhece nas produções de seu inconsciente, experimentando
em relação às mesmas um estranhamento que o impede de integrá-las e
reconhecê-las como próprias. O eu se vê duramente atingido, abalado nas
suas certezas e na sua pretensa ilusão de autonomia. O eu é surpreendido
por algo que, em sua própria morada, faz invasão como um convidado
indesejável. Um derivado substituto do inconsciente atinge a consciência,
produz pontos de fratura e depois retorna diretamente ao esquecimento
ativo do inconsciente. Tornar consciente o inconsciente toma, para nós,
o sentido de, na crosta da consciência, produzir-se pontos de fratura que
tenham o efeito de suspensão dos sentidos cristalizados.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Baratto, G. – A pulsão na clínica psicanalítica. Perfil: Revista de psicologia, 11,


93

71-80, 1998, 77.

381
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A s c e n sDoiasP a s c o a l

A irrupção do processo primário, que caracteriza o modo de fun-


cionamento do inconsciente, produz, não um conhecimento ampliado da
consciência, mas desconhecimento radical, como tal, é causa de angústia
para o eu. A emergência na consciência do saber insabido do inconsciente
é produtora de fendas, cortes, rupturas nos sentidos postos. Contrariamente
à visão comumente aceita – segundo a qual o inconsciente seria sede de
conteúdos que, revelados à consciência por um passe de mágica, ver-se-ia
costurada a cisão psíquica; contrariamente à ideia segundo a qual o incons-
ciente seria ainda o profundo a ser trazido à superfície, formando por meio
da junção de planos uma grande consciência – o inconsciente freudiano,
lugar da determinação simbólica do sujeito, não pode ser harmonizado com
as representações imaginárias da consciência. O imaginário egóico é rachado
o tempo todo pela irrupção do inconsciente. Na relação entre os sistemas
tudo se passa como se nunca estivéssemos mais conscientes do que na justa
e estrita medida de que nada reconheçamos de nosso desejo inconsciente.
E, não é justamente a ignorância uma de nossas mais fortes paixões? E não
é também em seu nome que o recalque se produz e se mantém? De fato é
assim. Se o inconsciente revela algo, e o faz sempre de forma dolorosa, é
a cisão a qual estamos, enquanto sujeitos, irremediavelmente submetidos.
Retenhamos que uma formação do inconsciente – sonho, lapso, ato
falho, sintoma, dito espirituoso – é sempre uma emergência pontual, enig-
mática e de caráter imprevisto, e jamais uma manifestação que se daria
por obra de um esforço deliberado de um dos pares envolvidos no trabalho
analítico. Ao contrário, o anseio em apreender o inconsciente não faz senão
com que ele nos escape entre os dedos. É neste sentido que Lacan acentua
“[...] a função de algum modo pulsativa do inconsciente, a necessidade de
desvanecimento que lhe parece ser de algum modo inerente – tudo que,
por um instante, aparece em sua fenda, parecendo ser destinado, por uma
espécie de preempção, a se cicatrizar, como o próprio Freud empregou a
metáfora, a escapulir, a desaparecer”94.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

94
Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 46.

382
Nas raízes
O Inconsciente – uma tolerância de Freud
dadescoberta

O que desejamos sublinhar é o modo de expressão significante que


tem o inconsciente de dizer de sua presença, isto é, sua característica de
apresentar-se sempre de forma enigmática. O inconsciente se manifesta
sempre ao modo de um significante S1, significante de abertura, de corte,
como tal, não porta sentido algum. O sentido se encontra ao nível do S2,
significante de fechamento, de sutura da fenda que o primeiro introduz95.
Estamos nos referindo ao fato do inconsciente, compreendido como dinâ-
mica articulatória, não se constituir num saber já pronto e acabado a ser
encontrado. O saber, como vimos, é o que se produz no a posteriori. O
inconsciente, enquanto saber insabido, saber que se produz no só depois,
não é nunca uma substância sensível perceptível. Não há dúvida, ele é
sensível, porém não visível.
Juranville coloca algumas chaves de leitura acerca da problemática
relativa à existência do inconsciente ao sinalizar que “[...] à primeira vista,
a existência de uma coisa como o ‘inconsciente’ não é evidente. Para come-
çar, o inconsciente não existe como o sol ou como um gato e não pode ser
objeto de uma certeza sensível [...] O inconsciente não é uma coisa. [...] O
in-consciente, no sentido pleno do termo, acha-se numa relação de distan-
ciamento essencial com o fenômeno da consciência, e esse distanciamento
deve ser marcado no nível da subjetividade”96. O inconsciente não pode de
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

95
Alertamos nosso leitor que maiores elaborações sobre a teoria do significante em
Lacan serão efetuadas logo adiante. Contudo, esclarecemos que a teoria do significante
é central nas teses de Lacan. O significante tem efeitos estruturantes sobre o sujeito,
determinando-o como sujeito do inconsciente. Através da teoria do significante, Lacan pôde
demonstrar a absoluta solidariedade da estrutura do inconsciente com a estrutura da lingua-
gem. O significante deve ser compreendido como autônomo para com o significado. Um
significante não remete a um objeto ou sentido determinados, mas sim a outro significante.
Um significante S1 só tem sentido pela sua articulação a outro significante S2. A proposição
S1􀃆S2, remete à noção de cadeia. Assim, fora da cadeia um significante não porta sentido
algum. O sentido de um significante depende, pois, do contexto no qual se encontra inserido.
O próprio do significante é de andar aos pares, isto é, articulado em cadeia.
96
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 21.

383
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

modo algum ser objeto de observação direta como supõem os teóricos da


Psicologia do Ego. Sabemos da existência do inconsciente somente pelos
efeitos que se produzem no âmbito dos discursos efetivamente pronuncia-
dos por um sujeito. Deste modo concluímos, junto com Garcia-Rosa, que
“a verificação direta do inconsciente jamais será feita, sua impossibilidade
empírica não se deve à falta de instrumentos, mas à sua própria natureza.
Uma fenomenologia do inconsciente é uma tarefa impossível. Ele poderá,
quando muito, ser inferido a partir de seus efeitos na consciência, ou, melhor
ainda, a partir de seus efeitos no discurso manifesto, mas jamais ser objeto
de observação direta”97.
O inconsciente Jamais se dá a ver diretamente, ao vivo. Freud subli-
nha que jamais temos acesso ao inconsciente, mas tão-somente acesso ao
seu produto: “não é de modo algum impossível ao produto da atividade
inconsciente penetrar na consciência”98. O inconsciente não é factível de
tornar-se objeto de conhecimento, mas sim de reconhecimento, o que não
é de modo algum a mesma coisa. O inconsciente exige ser reconhecido
nos efeitos de cisão que produz. Não somente não se dá ao conhecimento
consciente sob a forma de um saldo de ganho de saber, mas, de modo mais
radical, é suposto no a posteriori de uma formação significante adventícia.
O inconsciente não é o que não se conhece. Esse posicionamento condu-
ziria a uma concepção dogmática que assimilaria o inconsciente ao lugar
do mistério, e a prática analítica a uma empresa de produzir conhecimento
no lugar onde ele parece falho e incompleto.
A prática da psicanálise tampouco é uma prática de adequação do
sujeito a uma suposta realidade dita objetiva. Isto seria “[...] confundirmos,
por pouco que seja, a noção de realidade com a de objetividade[...]”99. Lacan

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Garcia-Rosa, L. A. – Introdução à metapsicologia freudiana 3. Rio de Janeiro:


97

Zahar Editor, 1995, 11.


98
Freud, S. – Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise. In: Obras Completas,
vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 331.
99
Lacan, J. – O Seminário. Livro 3. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 218.

384
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

adverte que a prática analítica não é exercida com vistas à adaptação do


sujeito à realidade social circundante; não se trata de adaptá-lo a esta mas,
justamente, de mostrar-lhe que está adaptado demais a ela100.
Sob o nome de psicanálise aloja-se um punhado de teorias e de práticas
que nada tem a ver com o sentido e com a experiência conferida por Freud
ao termo inconsciente. Sob a denominação de psicanálise os mentores da
Psicologia do Ego alinharam uma prática de sentido efetivamente anti-
-freudiana. A Psicologia do Ego se propôs a “[...] ultrapassar aquilo que
aliás ignora, guardando da doutrina de Freud apenas o suficiente para sentir
o quanto lhe é dissonante o que ela acabou de enunciar de sua experiên-
cia”101. Em nome de progressos efetuados à psicanálise, a Psicologia do
Ego ordenou uma técnica de adaptação voltada a conformação do sujeito
à realidade ambiental física e social. Para a psicanálise, ao contrário, o su-
jeito está submetido à estrutura de hiância radical que o constitui, enquanto
sujeito referido ao desejo inconsciente.
A Psicologia do Ego veiculou a ideologia e a promessa da possibilidade
de uma perfeita adequação e harmonia do homem ao mundo circundante,
através de uma adaptação que seria bem sucedida, elevando a primeiro plano
uma técnica com fins “educativos correcionais” das ditas experiências emo-
cionais irracionais do isso. Mas, é possível ou mesmo desejável uma prática
terapêutica do desejo inconsciente? Sobre esta questão Freud advertiu para
o fato de que “o desejo inconsciente escapa a qualquer influência [...]” e
de que a extirpação radical dos desejos infantis não é absolutamente o fim
ideal”102. O caráter pulsátil do inconsciente remete à ideia de um instante
fugaz de abertura e de fechamento. O inconsciente não é nunca algo da or-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lacan, J. – A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio


100

de Janeiro: Zahar Editor, 1998, 602.


101
Lacan, J. – A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Zahar Editor, 592.
102
Freud, S. – Cinco lições de psicanálise. Quinta lição. In: Obras Completas, vol.
XI. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 49.

385

8
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

dem de um conteúdo substancial que poderia ficar a disposição permanente


da consciência, quer essa substância seja compreendida como o emotivo,
o afetivo, quer substância de outra ordem qualquer. O inconsciente escapa
sempre ao controle da consciência. E nem poderia ser de outro modo, se
com Freud aprendemos a considerar a consciência como uma espécie de
balcão de recepção no qual o que vem de dentro e o que vem de fora por
ela passa, sem nela se deter e sem deixar vestígios.
Diga-se de passagem que uma das ilusões da consciência é justamente
a de supor que o fora e o dentro se constituem em territórios firmemente
delimitados e claramente perceptíveis. A consciência é simplesmente o
lugar onde as representações passam, circulam, sem jamais fornecer a
totalidade das informações. É um equívoco, e dos mais grosseiros, supor
que o estado de consciência seja uma condição permanente. O equívoco de
supor a consciência como um estado totalizador permanente é tão somente
suplantado por aquele que, ao fazer da consciência o centro da subjetividade,
a homologa à tópica do eu. O maior equívoco produzido pela Psicologia do
Ego consistiu em, pura e simplesmente identificar o eu à consciência. Para
Freud, contudo, o eu não é uma unidade. Não se identifica à consciência.
O sujeito não é, tampouco, o indivíduo.
A crítica que Freud endereçou a Adler nos parece tão pertinente
quanto atual também a respeito das teorias da Psicologia do Ego. Para
Freud a Individual Psychology, desenvolvida na América do Norte por
Adler, representa uma linha de pensamento teórico pouco compatível com
a teoria psicanalítica. Embora seja regularmente mencionada ao lado da
psicanálise “na realidade, a psicologia do indivíduo muito pouco tem a ver
com a psicanálise, mas, como decorrência de determinadas circunstâncias
históricas, leva, em relação a esta e às suas custas, uma espécie de exis-
tência parasita”103.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise - Conferência


103

XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 172.

386
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

Referimo-nos acima à consciência como mero lugar de passagem,


lugar de transição. Uma ideia que está agora na consciência já não está
mais no momento subsequente. Na consciência, tudo se passa como se
não houvesse lugar para mais do que uma ideia de cada vez. A consciência
é um mero “[...] órgão para o recebimento dos estímulos”104 proveniente
das fontes interiores e exteriores. Para Freud, os processos que ocorrem
no aparelho psíquico deixam no sistema inconsciente poderosos traços de
“memória” permanentes. Julga, contudo, que tais formas de permanência
e de indestrutibilidade de registro de representações dificilmente podem
ser deixadas no sistema perceptivo consciente.
Se tais traços “mnêmicos” fossem deixados permanentemente na
consciência, “[...] muito cedo estabeleceriam limites à aptidão do sistema
para o recebimento de novas excitações” (p. 40). Estabelecer-se-ia algo da
ordem do: Não temos mais vagas! Vagas lotadas! Em uma palavra, “[...]
tornar-se consciente e deixar atrás de si um traço de memória, são proces-
sos incompatíveis um com o outro dentro do mesmo sistema” (p. 40-41).
É no sistema inconsciente que os traços de memória se fixam e perpetuam,
razão pela qual ele é também a sede onde o pensamento se formula. É no
inconsciente que se encontram os elementos que podem, pela sua lógica
combinatória, traduzir-se em pensamentos. Freud é levado a concluir que
o fenômeno de consciência se esgota no próprio ato da consciência.
A noção de derivados do inconsciente, o caráter eruptivo, a perma-
nente atividade e manifestação do inconsciente apontam para o fato de que
consciente e inconsciente não são duas ordens completamente separadas e
firmemente demarcadas. A divisão entre os sistemas não é estanque, abrupta,
elaboração que é, aliás, muito antiga no pensamento de Freud. Nos anos
relativos aos Estudos Sobre a Histeria ele já esboçava esta noção de uma
intrusão do inconsciente no eu. Em suas próprias palavras:

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Além do princípio do prazer. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de
104

Janeiro: Imago, 1980, 41.

387
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

Nosso grupo psíquico patogênico, por outro lado, não admite ser radicalmente
extirpado do ego. Suas camadas externas passam em todas as direções para
partes do ego normal; e, na realidade, pertencem a este do mesmo modo que à
organização patogênica. Na análise, o limite entre os dois é fixado de maneira
puramente convencional, ora num único ponto, ora em outro, sendo que em
alguns lugares não pode ser estabelecido absolutamente.105

As elaborações teóricas de Freud neste período o conduzem a constatar


que o eu se constituía numa força de resistência que se opõe à rememoração
das lembranças inconscientes, e de que essas lembranças se constituem num
grupo de ideias patogênicas que formam um corpo estranho “infiltrado”
no próprio eu. Nesta mesma ocasião, consoante ao que será desenvolvido
posteriormente no texto Além do Princípio do Prazer, referindo-se a consci-
ência, Freud assevera que “somente uma lembrança de cada vez pode entrar
na consciência do ego”106. O que mais uma vez nos lembra a incoerência
de uma perspectiva técnica com vistas a tornar consciente o inconsciente,
no presuposto de que com isso houvesse um alargamento das fronteiras da
consciência.
Em 1915, no texto O Inconsciente, Freud dedicará todo o capítulo VI
ao tema da “comunicação entre os dois sistemas”. Não será esta a primeira
vez, nem tampouco a última, que Freud insistirá a propósito de dois pontos
fundamentais descobertos pela psicanálise. O primeiro ponto se refere à im-
portância comumente concedida aos processos mentais conscientes. Sobre
isto Freud insiste que devemos “emanciparmo-nos” do princípio segundo o
qual há estrita correlação entre psíquico e consciente. A consciência pertence
ao psíquico, sem contudo totalizá-lo. Os domínios do psíquico ultrapassam
em muito os domínios da consciência. “Enquanto, que para a maioria das

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

105
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 347.
106
Freud, S. – Além do princípio do prazer. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 348.

388
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

pessoas, ‘consciente’ e ‘psíquico’ são a mesma coisa, fomos obrigados a


ampliar o conceito de ‘psíquico’ e reconhecer como ‘psíquico’ algo que
não é ‘consciente’”107. Do mesmo modo, a psicanálise não homologa e nem
identifica a sexualidade com a genitalidade, postulado a existência de algo
sexual que não é genital, que não tem nenhuma relação com a reprodução.
Freud convoca a que nos libertemos da concepção que identifica o
psíquico à consciência, juntamente com a concepção que lhe é correlata:
a de que as mais elevadas organizações dos processos da vida psíquica
e dos processos de pensamentos organizados ocorram, necessariamente,
na região psíquica consciente. Tal concepção remete, inequivocamente,
à ideia corrente segundo o qual o inconsciente corresponderia ao caos, à
desordem, ao inorganizado, ao domínio das paixões sem lei, ao inadaptado,
ao irracional, enfim.
Pensamento ao qual todos os afiliados da a escola da Psicologia do
Ego deram lastro, ao concluírem que a vida psíquica é constituída de duas
porções firmemente separadas e regionalmente delimitadas: de um lado, os
componentes irracionais da personalidade, de outro, os racionais.
O segundo ponto fundamental sobre o qual Freud insiste no texto O
Inconsciente108 é aquele que versa sobre a comunicação permanente entre os
sistemas, e que conduz precisamente a noção de uma não delimitação clara
e precisa entre o sistema consciente e inconsciente. Como se processa esta
comunicação entre os sistemas e no que ela implica? Implica em muitas ela-
borações conceituais paralelas e intimamente relacionadas. Primeiramente,
que o sistema inconsciente jamais permanece em repouso. Que ele consiste
não em ideias tornadas fracas pelo processo de recalcamento, mas sim,
que o inconsciente é constituído de ideias simultaneamente inconscientes
e ativas. Melhor dizendo, ativas porquanto inconsciente. A atividade do
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Além do princípio do prazer. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de
107

Janeiro: Imago, 1980, 376.


108
Freud, S. – Artigos sobre a metapsicologia. O inconsciente In: Obras Completas,
vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

389
A u g u s tKoaquinda
A s c e n sDoiasP a s c o a l

inconsciente põe-se em manifesto no menor dos atos da vida cotidiana de


um sujeito. Determinado pelo seu inconsciente, o sujeito vê-se constrangido,
compelido, como que por uma “força demoníaca”, a fazer e a dizer mais do
que pretendia intencionalmente, sem que esteja, em toda e qualquer ocasião,
em condições de reconhecer nisso a presença de seu desejo.
Para Freud, “o estudo dos derivados do inconsciente desapontará in-
teiramente nossas expectativas quanto a uma distinção esquematicamente
nítida entre os dois sistemas psíquicos”109. Em 1933, no texto A Dissecção da
Personalidade Psíquica, em pleno período da segunda tópica, Freud proporá,
a respeito das três províncias mentais – isso, eu e supereu – e das relações
dinâmicas e mútuas que entre elas têm lugar, a metáfora das três regiões
geográficas: montanhas, planície e regiões dos lagos. Poderia, diz Freud,
ser idealmente o caso, para fins de arranjo hegemônico perfeito, que cada
região fosse ocupada por uma determinada e única raça, que por sua vez,
se dedicasse a uma única e exclusiva atividade. Nas planícies se cultivaria
o solo, nos lagos se praticaria à pesca e nas montanhas a atividade pastoril.
Entretanto, um tal arranjo geográfico em realidade não ocorre. Nas regiões
das montanhas e dos lagos encontram-se terras cultiváveis, nas quais se
pratica o plantio. Nas planícies também há atividades pecuárias. Nas três
províncias do aparelho mental estamos diante do mesmo estado de coisas.
“Ao pensar nessa divisão da personalidade em um ego, um super ego e um
id, naturalmente, os senhores não terão imaginado fronteiras nítidas como
as fronteiras artificiais delineadas na geografia política”110.
Embora as representações inconscientes sejam unverträglich, in-
compatíveis com aquelas presentes na consciência, razão pela qual são
condenadas ao recalque, isto não impede que elas avancem e rompam a

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Artigos sobre a metapsicologia. O inconsciente In: Obras Completas,


109

vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 218.


110
Freud, S. – Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise - Conferência
XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 101.

390
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta

barreira que o recalque lhes impôs. O retorno do recalcado aponta para


o fato de que o que se encontra na consciência é inteiramente autorizado
pelo inconsciente, e que, quanto a isto, ela nada pode fazer. O inconsciente
não é o sem governo, o desgovernado, é o governante. A consciência, en-
quanto sede de representações imaginárias, é mais desconhecimento que
conhecimento. Em todo caso, conhecimento imaginário que permite ao
sujeito manter-se na ignorância do desejo inconsciente que o determina. A
consciência é uma espécie de véu, de névoa que, ao encobrir a verdade do
sujeito, separa-o das determinações simbólicas de seu desejo inconsciente.
O estudo dos derivados do inconsciente nos remete à constatação
de que as representações submetidas ao regime de funcionamento do
inconsciente não cumprem com a ideia de uma vigorosa fronteira traçada
separando os dois sistemas. As representações submetidas à ação do golpe
do recalcamento, e que se encontram regidas pelas leis do inconsciente, não
obedecem a barra do recalque. A barreira do recalque rompe-se o tempo
todo. Ela é porosa aos rebentos psíquicos provenientes do inconsciente.
A divisão rigorosa e sistemática do psíquico sob a forma de planos,
em que uns seriam conscientes e outros inconscientes, não se sustêm à luz
das elaborações freudianas, sobretudo quanto concebido à luz do conceito
de “compulsão à repetição”. Freud rompe com a noção de uma delimitação
precisa entre os sistemas, deixando estabelecido que o recalcado repelido
não permanece encerrado e inativo no sistema inconsciente. As represen-
tações inconscientes não cumprem jamais a ordem de permanecer como
tais, isto é, expulsas da consciência. O inconsciente encontra meios de dizer
de sua presença sobre a forma de uma “insistência particularíssima”111,
denunciada nos sonhos, nos atos falhos, no dito espirituoso e, igualmente,
nos sintomas, apontando, deste modo, que “[...] o ato inicial da repressão
é acompanhado por uma sequência tediosa ou interminável no qual a luta
contra o impulso instintual se prolonga até a luta contra o sintoma”112.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 82.


111

Freud, S. – Inibições, sintomas e ansiedade. In: Obras Completas, vol. XX. Rio
112

de Janeiro: Imago, 1980, 120.

391
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

Para Lacan, consoante Freud, o sintoma, enquanto retorno do recal-


cado, deve ser concebido à luz da noção da cadeia de significantes recal-
cados e jamais como focal. Isto quer dizer que o sintoma em psicanálise
não obedece à lógica segundo a qual a todo efeito corresponde uma causa
determinada. O sintoma só pode ser pensado à luz da cadeia de representa-
ções inconscientes, no interior da qual ele tem lugar, constituindo-se num
dos elos que a compõe.
Em O Recalcamento113, Freud elabora que o recalque é uma operação
fadada ao fracasso posto deixar atrás de si formações em substitutos. O
recalcado retorna porque é uma operação devotada, desde o princípio, ao
fracasso. É necessário, portanto, conceber o recalque como constituído por
três tempos: o recalque primário, o recalque propriamente dito e o retorno
do recalcado. Isso permitiu a Lacan afirmar que “o recalque começa depois
de ter constituído o seu primeiro núcleo. Há agora um ponto central em
torno do qual poderão se organizar, em seguida, os sintomas, os recalques
sucessivos, e ao mesmo tempo – porque o recalque e a volta do recalcado,
são a mesma coisa – a volta do recalque”114. É esse último tempo do recalque
– o retorno do recalcado –, por seu turno, que permitiu a Freud postular a
existência do inconsciente, encontrando ali a certeza da presença de pensa-
mentos que operam no sujeito, sem que este possa, entretanto, reconhecê-
-los como próprios. O eu (moi) experimenta em relação ao inconsciente
um sinistro alheamento, como se pertencesse a outro. Aliás, via de regra, é
deste modo que o sujeito entra em contato com seus próprios pensamentos
inconscientes: atribuindo-os a outrem, ocasião na qual eles lhe retornam de
forma alienada e invertida. É ainda com o retorno do recalcado que se opera
o trabalho analítico. É ele que, constituindo-se no porta voz privilegiado do
inconsciente, permite a via de acesso ao que, de outro modo, permaneceria

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Artigos sobre a metapsicologia. Repressão. In: Obras Completas, vol.


113

XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980.


114
Lacan, J. – O Seminário. Livro l. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1979, 222.

392
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

inacessível. O inconsciente recalcado é suposto a partir de seus sucessivos


retornos, sem este retorno nada saberíamos da existência do inconsciente.
A respeito da temática da postulação da existência do inconsciente, Freud
assim se expressa:

Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos


obrigados a supor – devido a algum motivo tal que o inferimos a partir de
seus efeitos - mas do qual nada sabemos. Neste caso, temos para tal processo
a mesma relação que temos com um processo psíquico de outra pessoa, exceto
que, de fato, se trata de um processo nosso, mesmo. Se quisermos ser ainda
mais corretos, modificaremos nossa assertiva dizendo que denominamos
inconsciente um processo que somos obrigados a supor que ele está sendo
ativado no momento, embora no momento não saibamos nada a seu respeito.115

É deste modo que o sujeito tem acesso às suas determinações in-


conscientes, como um saber insabido que se impõe, e a respeito do qual
tudo ignora. Na relação transferencial que se estabelece em análise o in-
consciente surge, sem que com isso possamos dizer que se tenha tornado
consciente e nele se tenha integrado. Era a isto que aludíamos nas páginas
anteriores quando fazíamos referência ao modo de expressão significante
do inconsciente, e cujos efeitos são ressentidos como fraturas na cadeia dos
enunciados. A irrupção do inconsciente, que não podemos rigorosamente
qualificar como desconhecida, melhor seria defini-la como não reconhecida,
é uma manifestação enigmática, e é nestas condições que é porta aberta à
livre associação. Num processo de análise o objetivo não é a de que por seu
intermédio o sujeito chegue a poder se conhecer um pouso mais e melhor.
Uma análise só pode, em verdade, fazer com que o sujeito se desconheça,
a cada vez, um pouco mais.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise - Conferência


115

XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 90.

393
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

Para Freud o retorno do recalcado mantém com as representações que


permanecem recalcadas os mais estreitos laços de relações lógicas. Contudo,
o material recalcado, ele mesmo, requer, numa análise, um trabalho de
construção. O recalcado, permanecendo inacessível, escapando a apreensão
de forma direta, se constitui em ponto de partida para retornos vindouros
incessantes. Esse é o modo que encontramos de apontar que em análise só
temos acesso às formações do inconsciente, e de que a verdade toda não é,
para o humano, uma possibilidade. O todo pertence ao domínio do real que
é, por definição, o impossível e, “[...] a impossibilidade da verdade total é
inseparável da ideia de desejo inconsciente...”116.
Laplanche, referindo-se à problemática da delimitação entre os sis-
temas, coloca que esta trata de uma “sobreposição parcial dos sistemas”,
em que se pode afirmar que “tudo que pertence ao sistema inconsciente,
na medida em que precisamente obedece as leis do processo primário, não
é necessariamente não-consciente, subtraído à consciência”117, avançando
a metáfora de que “sistema inconsciente seria algo semelhante àqueles
desenhos em que as cores e as formas não coincidem, em que as cores não
preenchem exatamente as delimitações do traçado, mas pelo contrário, as
sobrepõem”118. A descoberta de uma ordem de relações de contiguidade
entre os sistemas, e, de modo análogo, entre as instâncias da segunda tópi-
ca, assim como também a noção de cadeias de pensamentos articuladas e
regidas segundo as leis do deslocamento e da condensação, é o que Freud
denominou de inconsciente, numa completa e radical rejeição do termo
subconsciente.
Como pensamos ter demonstrado, a noção de comunicação perma-
nente entre os sistemas aponta para algo completamente diverso da noção
embutida na expressão subconsciente. O inconsciente não é o profundo (o

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

116
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 18.
117
Laplanche, J. – O inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes, 1992, 129.
118
Laplanche, J. – O inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes, 1992, 127.

394
Nas raízes
O Inconsciente – uma tolerância de Freud
dadescoberta

que estaria por baixo) encoberto pela consciência. Tampouco é uma segun-
da consciência. O inconsciente é, com Freud e Lacan, o que no sujeito se
manifesta em ato ou em palavras. É porque o material recalcado retorna
em substitutos que temos notícias dele. O inconsciente não tem outro meio
de se fazer lembrar senão apelando para substitutos metafóricos. O incons-
ciente, sob a pena de Freud, não é o que está numa região sub, abaixo e que
necessitaria de uma técnica de escavação para encontrá-lo.
Não é, nem por isso, factível de ser empírica e positivamente observá-
vel. Não se confunde, tampouco, com os arquétipos coletivos junguianos,
isto é, com o “material psíquico que subjaz ao limiar da consciência”119.
Jung, ao defender a teoria da existência de um “inconsciente coletivo”,
defende a noção de conteúdos inconscientes como produtos residuais das
experiências da raça humana com o mundo. Para Jung “[...] as camadas
mais profundas do inconsciente” (p.31) estão inteiramente constituídas
sob a base de “imagens primordiais” – os arquétipos – constitutivos do
“inconsciente coletivo”. De acordo com Jung “aproximar-nos-emos mais
da verdade se pensarmos que nossa psique consciente e pessoal repousa
sob a ampla base de uma disposição psíquica herdada e universal, cuja
natureza é inconsciente” (p. 21). Jung elaborou a concepção da existência
de um inconsciente coletivo a partir de uma dada interpretação conferida
ao inconsciente freudiano. Jung concebeu a existência de um inconsciente
coletivo, situado além e mais profundamente do inconsciente individual,
pelo fato de que considerou que no inconsciente individual os conteúdos
adquiridos durante a existência do indivíduo são limitados, e de que, por-
tanto, se só existisse o inconsciente individual seria possível “esgotar o
inconsciente mediante a análise e inventário exaustivo do inconsciente” (p.
4). O inconsciente coletivo, em Jung, é também o produto das experiências
adquiridas durante a existência, só que, desta vez, das experiências já não
mais individuais, mas das experiências da raça com o mundo. “O incons-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

119
Jung. C. G. – O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987, 3.

395
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

ciente coletivo é uma imagem histórica que se propagou universalmente


e irrompe de novo na existência através da uma função psíquica natural”
(p. 13).
Não temos, ao aludirmos sobre os rumos que sob a pena de Jung tomou
o inconsciente, a intenção de homologar suas elaborações com aquelas que
se produziram no interior da Psicologia do Ego. Desejamos apenas destacar
que sob o termo inconsciente abrigam-se proposições teóricas que tomam
as mais variadas direções, o que nos obriga a nomear a qual inconsciente
estamos, em cada ocasião, nos referindo. Embora haja realmente muitas
concepções sobre o inconsciente, nosso posicionamento é o de que sob o
termo psicanálise abriga-se uma só proposição sobre o inconsciente – a
freudiana.
As elaborações formuladas na Psicologia do Ego sobre o inconsciente
fundamentaram-se num plano que conduziu ao abandono da descoberta
freudiana, em favor de uma concepção biológica, inata, herdada e primi-
tiva sobre o inconsciente. A opção efetuada pelos teóricos do ego foi sair
do terreno movediço que concebe o inconsciente como o lugar referido
ao mistério ou o profundo arquetipal, para uma mais ao gosto das teses
científicas positivistas. Optando ainda por abrigar sob o termo inconscien-
te os sentimentos, os afetos e as emoções. Contudo, “[...] o inconsciente
nunca se refere às necessidades, ou mesmo a uma frustração da satisfação
delas”120. Tampouco se refere às emoções, ainda que contemporaneamente
convivamos no nosso dia a dia com a concepção psicológica de “problemas
emocionais”.

5. Conclusão

De acordo com o que foi exposto aqui, pode-se concluir que o incons-
ciente dá fundamento à psicanálise, tanto no concernente à sua teoria quanto

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

120
Melman, C. – Novos estudos sobre a histeria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985, 52.

396
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

à sua técnica. A história do inconsciente confunde-se com a própria história


da psicanálise, na medida em que sua descoberta se encontra na origem da
mesma. Sobre a descoberta do inconsciente, e a teoria a qual ele dá lugar,
pode-se afirmar que o inconsciente se constitui num divisor de águas no que
concerne à concepção de sujeito. Efetivamente, o inconsciente faz função
de linha divisória, demarcando a fronteira entre uma teoria sobre sujeito de
uma teoria sobre o indivíduo, ou seja, entre a psicanálise e a psicologia. A
especificidade da teoria psicanalítica, e do sujeito que no seu interior tem
lugar, ordena-se em torno do conceito de inconsciente.
Dizendo de outro modo, o inconsciente ordena as diferenças que se
estabelecem entre o discurso psicológico de unidade e autonomia do indi-
víduo e o discurso de sujeito cindido em psicanálise.
É secular na história do pensamento da humanidade, sobretudo em
algumas escolas filosóficas, noções mais ou menos vagas a respeito da
existência de processos psíquicos que se desenrolam à margem da consci-
ência. Algumas concepções filosóficas relativas a certos estados psíquicos,
em que a própria consciência poderia estar submetida a um processo de
divisão, deu lastro, difundindo, a ideia segundo a qual importantes parcelas
de atividades psíquicas poderiam se furtar ao controle da consciência, vindo
constituir-se na face obscura das paixões da alma. A noção de uma consci-
ência que poderia ser dividida em duas partes simetricamente opostas, deu
lugar à noção de uma possível integralização da vida psíquica através da
reunião das metades separadas, processo que por si só é suposto conduzir
à unicidade do indivíduo.
A concepção de uma “consciência inconsciente”121 porta em seu bojo
a ideia de que a característica da atividade psíquica normal é a de funcionar
de forma integrada, isto é, formando uma unidade sintética harmônica, e
de que todo processo de fratura psíquica aponta a presença de um estado

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Freud, S. – Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise. In: Obras Completas,


121

vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 330.

397
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

de doença mórbida. Sem muitos entraves, tornou-se ideia aceita por muitos
teóricos que o próprio da atividade psíquica consciente é apreender-se a si
mesma, refletindo neste ato o eu. Por esta via solidarizou-se a proposição
de uma interdependência, e até mesmo homologação, dos termos: consci-
ência = ego. O sujeito psicológico (indivíduo) é o sujeito do conhecimento,
hipostasiado na função de consciência do ego.
A teoria do inconsciente em Freud nada deve às teorias filosóficas que
pressupõem estados de dupla consciência. Freud postula a universalidade
dos processos inconscientes, e não sua contingência patológica. Identificar
o inconsciente ao patológico, assim como supor a existência de técnicas
que poderiam torná-lo acessível e cristalino à consciência, constitui-se um
ato de recusa do inconsciente freudiano.
Freud postula a presença de processos de pensamentos que ao se
produzirem fora da consciência obedecem à outra ordem de leis e de ló-
gica diferentes daquelas que regem os pensamentos da consciência. Em
continuidade direta com a proposição de que o inconsciente é sede de
pensamentos e de que, portanto, ele pensa, Freud afirma que o inconscien-
te é também sede de representações investidas libidinalmente, isto é, de
representações que veiculam o desejo inconsciente de um sujeito. Freud
estabelece a concepção de um sujeito submetido a uma divisão psíquica
irremediável. O sujeito freudiano não é, e nem poderá jamais formar, uma
unidade organizada em torno da consciência. Freud descobre muito cedo em
sua experiência clínica que o sujeito é habitado por pensamentos e desejos
que operam à revelia de qualquer controle racional consciente, constando
que o inconsciente se apresenta como um Outro estranho ao próprio sujeito,
que pensa e deseja em seu lugar, e que nada pode fazê-lo calar. Freud decide
então escutar a insistente mensagem inconsciente cifrada sob a forma de
símbolos mnêmicos.
O que é um símbolo para Freud e qual a lógica de sua produção? No
período dos Estudos Sobre a Histeria Freud elabora que um símbolo é um
substituto, algo que está no lugar de uma outra coisa ausente, e que tem
a missão de representá-la, desenvolvendo que a força que entra em jogo

398
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

no processo de produção de símbolos é o mecanismo do recalque e da


resistência do eu. No processo de recalque uma ideia, “B,” por exemplo,
incompatível com o eu e, portanto, de caráter desprazeroso, é afastada de seu
campo, surgindo em seu lugar uma ideia substituta – “A” – produzida por
deslocamento. A ideia “B” permanece recalcada, logo inconsciente; a ideia
“A” representa e ao mesmo tempo impede que “B” surja na consciência.
Conclui-se assim que o recalcamento ocorre através da formação de
um símbolo e, consequentemente, que o deslocamento, a condensação e o
recalque são simultâneos, partes integrantes de um mesmo processo.
A questão levantada neste capítulo de como algo inconsciente se faz
consciente tem aqui mais uma vez lugar de resposta: por meio do retorno
do recalcado em símbolos. O Inconsciente, embora insistente, não tem
outro meio de lembrar sua presença senão recorrendo a representantes
simbólicos. Tornar consciente o inconsciente, que no pensamento freudiano
implica, por um lado, reconhecer e assumir como próprios os pensamentos
e desejos inconscientes e, por outro, um ato ético de responsabilização do
sujeito pelos mesmos, significa, na Psicologia Psicanalítica do Ego, ampliar
o cabedal de conhecimento egóico com o objetivo de lhe permitir melhor
exercer seu poder de governo na esfera psíquica.
Sabemos que as elaborações freudianas acerca do recalque sofreram,
ao longo da história da psicanálise, transformações conceptuais. O conceito
de recalque tem, em psicanálise, longa história, coincidindo mesmo com
sua origem. O percurso histórico desse conceito vai do período ligado à
cura pela hipnose ao período que o próprio Freud chegou a denominar de
surgimento da psicanálise propriamente dita, período ligado justamente
ao abandono do recurso à hipnose, com todas as elaborações conceituais
específicas próprias a ele ligadas, sobremaneira, ao que concerne ao con-
ceito de inconsciente e de resistência então vigentes e, ainda, ao próprio
processo de recalcamento.
O recalque sempre suscitou questões a Freud e que permanecem atuais:
o que sofre a ação do recalque? Isto é, sobre o que incide o recalque? Quais
são os operadores por ele postos em ação? Quais as forças que entram em

399
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

ação no processo de recalcamento? Quem recalca? Quais as consequências


psíquicas do recalque? As indagações e elaborações teóricas de Freud nem
sempre tiveram o mesmo curso e resposta, o que, no nosso entender, pode
ser situado como uma causa possível para que muitos equívocos e confusões
se dessem em torno da psicanálise e para que, eventualmente, surgissem
tantas escolas ordenadas em torno do apego a determinados pontos do de-
senvolvimento do pensamento freudiano. Isto, como sabemos, gerou muitos
mal entendidos em torno da psicanálise. Num ponto, porém, como vimos,
nunca houve vacilação no pensamento freudiano: o recalque incide sobre os
representantes da representação – Vorstellungsrepräsentanz – tornando-as
inconscientes e determinado a divisão psíquica do sujeito.
Analisamos neste capítulo, entre outros temas, a especificidade do
conceito de recalque em Freud. Abordaremos agora, de modo sucinto e à
guisa de conclusão, a leitura que a Psicologia do Ego efetuou sobre o mesmo
e que não nos parece de modo algum rigorosa com aquilo que efetivamente
Freud elaborou.
A escola norte-americana compreendeu que o recalque obedece às
forças sociais, concebidas como tão imperiosas quanto necessárias. Na
Psicologia do Ego o recalque não é concebido como constitutivo do sujeito
do inconsciente e, portanto, constitutivo da própria subjetividade, conceito
que aliás, e não por acaso, lhes escapa completamente. Na Psicologia do
Ego o recalque é concebido como um puro mecanismo funcional defensivo
do ego voltado contra os “impulsos instintivos irracionais”122, objetivando
pôr em marcha as tendências adaptativas do ego. O recalque é posto em
ação contra as tendências irracionais que entram em choque com a realidade
social, e, logo, com o seu suposto representante representativo interno – o
super ego.
A Psicologia do Ego partiu da premissa fundamental, central e nu-
clear de suas elaborações teóricas e técnicas, de que o que sofre a ação do

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Hartmann, H. – Ensayos sobre la Psicología del Yo. México: Fondo de Cultura


122

Econômica, 1969, 54.

400
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta

recalque são as “tendências instintivas primitivas” e de que a força que o


promove são as normas e as regras das convenções sociais. O recalque é o
resultado da relação do indivíduo com o meio social imediato no interior
do qual está inserido, constituindo-se num fator, ainda que precário, de
adaptação do indivíduo ao meio. O recalque é, portanto, como podemos
perceber, por um lado, um mecanismo defensivo posto em curso pelo ego
em obediência ao princípio da realidade, isto é, segundo a versão a este
conceito conferida pela Psicologia do Ego, em obediência às normas de
comportamento padronizadas socialmente. Por outro lado, o recalque, tal
como conceituado por esta escola, nada tem a ver com o conceito freudiano
de Verdrängung. No início deste capítulo esclarecemos a diferença concep-
tual entre repressão e recalque. A escola da Psicologia do Ego confundiu
repressão com recalque, como se entre um e outro não houvesse a menor
diferença. Esclarecemos, portanto, que na Psicologia do Ego trata-se do
conceito repressão e não de recalque, e que, contrariamente a concepção de
Reich, a repressão é considerada um fator necessário de adaptação social.
À questão sobre a qual é a relação que o indivíduo estabelece com a
sociedade a escola norte-americana responde: uma relação, em princípio,
de choque, de antagonismo entre “tendências instintuais” presentes no
organismo desde o início da vida e as tendências sociais adaptativas. Na
sequência, tratou-se de preparar o caminho redentor para o estabelecimento
resolutivo do conflito assim firmado, e que se encontra colocado em termos
de uma conciliação dos impulsos com o meio social, o que, por seu turno, é
pressuposto conduzir ao pleno equilíbrio e harmonia das tendências - tarefa
educacional. As “tendências impulsivas” devem, no processo de desen-
volvimento do indivíduo, marcando o grau mesmo deste desenvolvimento
rumo à vida adulta e a maturidade, submeter-se ao controle educativo das
tendências sociais.
O recalque (melhor dizendo, como vimos, a repressão) constitui-se,
para a Psicologia do Ego, num mecanismo de defesa colocado contra as
“tendências primitivas” na tarefa da progressiva adaptação, controle e ajus-
tamento do indivíduo ao meio. A tarefa do meio, através da educação, é a de

401

9
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda

domesticação progressiva dos instintos. Deste modo, depreende-se que, para


a Psicologia do Ego, o indivíduo está bem desenvolvido e amadurecido na
medida de uma bem fundada e calcada alienação aos mandamentos e impe-
rativos ideológicos do imaginário social. Isto é, o indivíduo é considerado
saudável na justa e estrita medida em que abdica seu de desejo inconsciente.
Abdicação esta efetuada em nome de uma identificação imaginária com
os valores e prescrições morais sociais. Claro! Trata-se de uma teoria do
indivíduo e não do sujeito, de uma teoria da adaptação e não do desejo, de
uma teoria que versa sobre universais e não sobre singulares!
A escola norte-americana pôs em pauta uma proposta de prescrição
profilática que colocou na ordem do dia a entrada em cena de um recalque
que seria bem sucedido, na medida em que nada mais restasse do incons-
ciente e de suas formações, na medida em que, portanto, nada sobrevivesse
do desejo inconsciente que pudesse lembrar nossa irremediável cisão. O
recalque é considerado como bem sucedido na medida em que a boca da
hiância do inconsciente fosse por fim bem costurada e que nenhuma fenda
mais afetasse o ser (do)ente, na medida de sua integralização na função de
síntese da consciência.
Lacan, no Seminário livro 1 (1979), abordando a questão do que seria
um recalque bem sucedido diz que se trataria de um recalque “sem volta
do recalcado”123. Devemos com isto concluir que o recalque bem sucedido
equivaleria a uma abolição, a uma recusa do que de simbólico nos constitui
enquanto sujeitos, de um esquecimento do próprio esquecimento, onde
bem sucedido seria o que haveria de mais fracassado. Dito de outro modo,
o recalque bem sucedido consistiria pura e simplesmente numa afirmação
do ser, do ser que se firmaria numa totalidade da consciência egóica, numa
supremacia e autonomia do indivíduo.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

123
Lacan, J. – O Seminário. Livro l. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1979, 222.

402
Nas raízes da tolerância

A pobreza em espírito
Para um encontro e diálogo cristão-budista
Comentário ao Sermão 52 de Mestre Eckhart 1

Paulo Borges

Quiçás o paradoxo mais radical do diálogo inter-religioso seja ter que


se ir despojados da pretensão de absoluto do Absoluto que se proclama.
Se não for assim, cada grupo chega como idólatra, havendo confundido
a Ultimidade com a imagem que nos fazemos dela, à qual não queremos,
não podemos ou não sabemos renunciar. O diálogo inter-religioso põe a
manifesto o absoluto de querer apossar-se do Fundo que funda o real. Se
não se chega despojado ao diálogo, apenas se é portador de si mesmo:
das próprias seguranças e ideologia ou, simplesmente, dos próprios hábi-
tos, costumes ou obsessões.
(Javier Melloni)

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

O presente texto nasceu de um muito estimulante encontro entre mim e o Padre


1

José Tolentino de Mendonça, no Anfiteatro III da Faculdade de Letras da Universidade de


Lisboa, em 5 de Maio de 2105, subordinado ao tema A pobreza em espírito, em que comentei
o sermão 52 de Mestre Eckhart e o Padre Tolentino o trecho de Lin-tsi onde se diz “Tudo
o que encontrardes, fora e (mesmo) dentro de vós mesmos, matai-o. Se encontrardes um
Buda, matai o Buda!”.

403
A u g u s tP A s cB
oaulo en so Pascoal
orges

Ó deslumbrada pobreza são estes os teus suspiros os teus nomes


(António Ramos Rosa)

Aprende a renunciar
a tudo
até mesmo ao silêncio
(José Tolentino de Mendonça)

O sermão 52 de Mestre Eckhart, sobre a primeira das bem-aventu-


ranças, a pobreza em espírito, sempre nos impressionou e tocou profunda-
mente pela libertadora radicalidade da experiência e da visão, pela ousadia
iconoclasta com que desconstrói e transgride alguns dos pressupostos e
representações aparentemente mais veneráveis da sua própria tradição
cristã – a começar pelo de Deus – e pelo espaço de encontro, convergência
e diálogo que por isso mesmo abre em relação a outras experiências radicais
noutras tradições, com destaque para a experiência da vacuidade na tradição
budista, igualmente subversiva, e com a mesma contundência, de algumas
das supostamente mais veneráveis representações desta tradição, a começar
pela do próprio Buda. Para além de uma espiritualidade que se emancipa da
religião e do dogma ou doutrina oficial, não por sua ignorância, desconsi-
deração ou rejeição, mas por seu aprofundamento na experiência directa do
inefável que se designa como Deus, abrindo nisso o horizonte do encontro
e diálogo inter-religiosos e sobretudo trans-religiosos, interessa-nos aqui
a vivência de um despojamento e libertação espirituais totais pelos quais,
como veremos, ser pobre é não haver e não ser menos que o Infinito2.
Com efeito, Eckhart é porventura no Ocidente cristão o mais estreme
protagonista da busca de emancipação e descentramento espirituais que

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

2
Cf. Paulo BORGES, “Ser ateu graças a Deus ou de como ser pobre é não haver
menos que o Infinito – a-teísmo, a-teologia e an-arquia mística no sermão “Beati pauperes
spiritu...”, de Mestre Eckhart”, in Philosophica, 15 (Lisboa, 2000), pp.61-77.

404
NAaspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

internamente move a radicalidade apofática – esse des-dizer tudo o que


se pode dizer e pensar, transcendendo todas as referências na abertura à
experiência imediata e silenciosa, por isso mística (do verbo grego muō,
que indica o acto de fechar a boca e os olhos3), do que há aquém e além de
todo o pensamento e linguagem4. É por essa radicalidade apofática que a
kénosis – o esvaziamento – que São Paulo, na Carta aos Filipenses, atribui
a Cristo, pelo desapego da condição divina e incarnação humana até à cru-
cifixão (2, 6-8), se estende a Deus, que segundo Eckhart jamais “busca o
seu” (o que lhe é próprio, a eigenschaft), sendo assim “vazio e livre (ledig
und frei)” em todas as suas obras, tal como é “vazio e livre” o ser humano a
ele “unido”5. Esta vacuidade do ser humano, que no contexto deste sermão
começa por ser um esvaziamento de todo o interesse próprio no agir – de
modo a que o templo do espírito permaneça vazio de qualquer comércio,
na leitura alegórica ou já anagógica da expulsão por Cristo dos vendilhões
do templo (Mateus, 21, 12) –, é na verdade, mais profundamente, uma de-
criação, pois o ser humano deve “permanecer tão livre / solto (ungebunden)
como o nada é livre / solto, que não está aqui nem ali”6. Este é um tema
frequente em Eckhart, que reencontraremos no sermão 52 e que aponta para
a experiência abissal da divindade, não como o Ser supremo da ontoteologia,
mas como o evento ou experiência7 indizível que culmina o movimento
da “alma” que reflui da determinação e finitude inerentes à existência e à

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

3
Cf. Juan Martín VELASCO, El fenómeno místico. Estudio comparado, Madrid,
Editorial Trotta, 2003, p.19; Raimon PANIKKAR, La Experiencia de la Vida. La Mística,
in I. Mística y espiritualidade. 1. Mística, plenitude de Vida, edição de Milena Carrara
Pavan, coordenação da edição em castelhano de Laia Villegas Torras, Barcelona, Herder,
2015, p. 215.
4
Cf. Michael A. SELLS, Mystical Languages of Unsaying, Chicago / Londres, The
University of Chicago Press, 1994, pp.1-13.
5
Mestre ECKHART, Predigten, 1, Werke I, textos e versões de Josef Quint, editados
e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, pp.13 e 15.
6
Cf. Ibid., p.15

405
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal

criação, ao “seu alguma coisa de criado (ihr geschaffenes Etwas)”, para


o estado incriado que eternamente a precede e simultaneamente reside
no seu íntimo, onde a “alma”, ousando aniquilar-se, penetrando “no seu
próprio nada” e esvaziando o templo que é de todos os “obstáculos”, frui
a plenitude incriada. Esses “obstáculos” são “propriedade (eigenschaft)”,
que Josef Quint verte em alemão moderno como “ligação ao/fixação no
eu (Ich-Bindung)” e “ignorância (Unwissenheit)”8. Sublinhe-se que a ex-
periência de auto-aniquilamento no “nada (Nichts)” não é propriamente
negativa ou niilista, pois não consiste senão na cessação do centramento
no que é próprio (eigen) ou no eu (Ich), ou seja, no que é limitado e finito.
O N-ichts é o não-Ich, o não-eu, como o No-thing é a não-coisa e o né-ant
e o ni-ente o não-ente. A aparente negação não é senão uma negação da
negação ou da determinação (“determinatio est negatio”, como cita Hegel
a afirmação de Espinosa9) que são o eu, a coisa e o ente e, a esta luz, um
desvelamento ou libertação do ilimitado ou infinito que lhes subjaz como
a sua própria condição de possibilidade.
Na verdade o aniquilamento eckhartiano é antes, no seu reverso po-
sitivo, a assunção da mais nobre “potência” que há no espírito, a “pequena
centelha (Fünklein)” que, sendo “alguma coisa”, todavia “não é isto nem
aquilo”, sendo “livre de todo o nome e despida de toda a forma, totalmente
vazia e livre, como Deus é em si mesmo vazio e livre”. Essa “pequena cente-
lha” é tão “una e simples” quanto Deus e tão acima de toda a determinação,
modalidades e potências que transcende mesmo todos os “nomes divinos”
e “propriedades” trinitárias da divindade enquanto Pai, Filho e Espírito

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Michael A. SELLS, Mystical Languages of Unsaying, pp.9-10.


7

Mestre ECKHART, Predigten, 1, Werke I, pp.17 e 19.


8

9
Espinosa escreve na carta 50 a Jarig Jelles que “determinatio negatio est” (“a
determinação é negação”), o que Hegel cita como “Determinatio est negatio” – HEGEL,
Science de la Logique, Premier Tome, Premier Livre, L’Être (edição de 1812), 76, tradu-
ção, apresentação e notas por Pierre-Jean Labarrière e Gwendoline Jarczyk, Paris, Aubier
– Montaigne, 1972, p.111.

406
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

Santo, sendo afim à divindade nesse paradoxal ser “alguma coisa que não é
nem isto nem aquilo”10. Na verdade, o adjectivo que aqui traduzimos, com
Alain de Libera, entre outros, como “vazio”, e que se aplica igualmente a
Deus e à alma, é o antigo alemão ledic, o actual ledig, que veio a significar
livre, solteiro, mas que em neerlandês ainda conserva o sentido de “sem
conteúdo”, “vazio”, e em sueco de “não ocupado”. Converge assim com
o vazio português, do vacīvus latino, “vazio, vago, desocupado”, do verbo
vacāre, com os significados de “estar vazio”, “estar livre”, “estar desocu-
pado” e “ter tempo / vagar para”. Também vácuo, em português, procede
do vacŭus latino que, além de sentidos afins, significa “livre de embaraços,
calmo, tranquilo, pacífico” e “livre, aberto”. Divisa-se assim que a comum
vacuidade de Deus e da alma – onde como veremos não há separação ou
mesmo distinção entre o que se designa como “Deus” e “alma”, pela simples
e mais funda razão de não haver aí nem “Deus” nem “alma”, de não haver
aí qualquer determinação – refere uma experiência de liberdade, infinidade,
desocupação e abertura sem contornos que simultaneamente se afigura como
uma serenidade primordial e uma potencialidade ilimitada, inerente a um
Nada que vimos designar um estado sem prisão ou fixação em si, livre de
propriedade, egoidade ou ipseidade. Um estado desasido, para retomar a
linguagem de São João da Cruz11 e da mística ibérica, isto é, livre de todo
o asir, o agarrar, o segurar (pela asa), o lançar mão de alguém ou algo (afim
ao saisir francês) e que tem o seu equivalente no upādāna budista, o se-
gurar ou agarrar, a apropriação, o nono elo da originação interdependente
que retém a consciência no samsāra, enquanto a sua cessação é o nirvāna.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Mestre ECKHART, Predigten, 2, Werke I, pp.33 e 35.


10

Cf., entre outros lugares: “Y así grandemente se estorba una alma para venir a
11

este alto estado de unión con Dios cuando se ase a algún entender, o sentir, o imaginar,
o parecer, o voluntad, o modo suyo, o cualquiera otra cosa o obra propria, no sabiéndose
desasir y desnudar de todo ello” - São João da CRUZ, Subida del Monte Carmelo, livro
2, cap. 4, in Obras Completas, edição crítica preparada por Lucinio Ruano de la Iglesia,
Madrid, BAC, 2002, p.299.

407
A u g u s tP A s cB
oaulo en so Pascoal
orges

Note-se que o Nada de Deus e da alma sugere a experiência da au-


sência de tudo o que se implica na etimologia de conceito, procedente do
concipere latino, com o significado de “apanhar, abranger, incluir”, do verbo
capĕre, derivado do Proto-Indo-Europeu kap-, “agarrar”. O mesmo sentido
se desvela no germânico Begriff e no verbo begreifen que ecoam o sentido
de captar e capturar do verbo greifen: “segurar, agarrar, apanhar, capturar”.
Este verbo vem do Alto-Alemão Médio grifen, do Alto-Alemão Antigo
grīfan, do Proto-Germânico grīpanq e do proto-Indo-European ghreyb-
(“apoderar-se, conquistar, agarrar”). O Nada de Deus e da alma sugere
menos um ser ou realidade substanciais mas inefáveis do que a experiência
da total ausência de referências ou apoios, como a de um princípio ou fun-
damento primeiro, numa an-arquia primordial (já Parménides designou o
Ser como ánarchon12 e Escoto Eriúgena Deus como ánarchos13, antecipando
a desconstrução da sua representação como um princípio hegemónico14).
A mística do Nada e do vazio é a experiência do despojamento e abertura
totais, livres de toda a reificação e cristalização ontoteológica, livres de todo
o imaginário do poder, livres da insegurança inerente ao desejo de possuir
e à vontade de poder intelectual, livres de toda a apropriação, de todo o ser
para si inerentes ao processo auto-reflexivo e auto-possessivo constitutivo
de uma subjectividade e do regime comum da consciência discursiva. O
Nada (não negativo e antes transcendente de toda a afirmação e negação,
ou seja, de toda a posição15) e o vazio indicam, como veremos, o fundo
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

12
Cf. PARMÉNIDES, Le Poème, VIII, 27, texto, tradução e ensaio crítico por Denis
O’Brien em colaboração com Jean Frére, Études sur Parménide, I, publicados sob a direcção
de Pierre Aubenque, Paris, J. Vrin, 1987, p.38.
13
Cf. João Escoto ERIÚGENA, Periphyseon (De Divisione Naturae), Liber Tertius,
editado por I. P. Sheldon-Williams com a colaboração de Ludwig Bieler (edição bilíngue),
Dublin, The Dublin Institute for Advanced Studies, 1981, p.184.
14
Cf. Reiner Schürmann, Des Hégémonies Brisées, Mauvezin, Trans-Europe-
Repress, 1996.
15
Sobre o conceito de Nada na tradição ocidental, cf. Sergio GIVONE, Historia
de la nada, tradução de Alejo González e Demian Orosz, Buenos Aires, Adriana Hidalgo
editora, 2009.

408
NAaspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

comum de todas as coisas, mas enquanto fundo sem fundo primordial,


abissal e sempre instante – Grund, Urgrund, Ungrund, Abgrund –, alheio
a todas as distinções, como a de Deus, da alma e do mundo, a tríade da
metafísica tradicional.
Na verdade, um Deus que o não é para si mesmo, um Deus que surge,
como escreveu Teixeira de Pascoaes, como “o único ateu perfeito”16, é já
a inefável verdade última e o supremo Bem da vertente neoplatónica do
pensamento ocidental. Plotino reconhece que o alvo supremo do desejo
unitivo da alma, embora designado como Uno e Bem17, “não é nada para
si mesmo” e que “em realidade nenhum nome lhe convém”, sendo apenas
“para os outros” e em função da necessidade de nomear que como tal surge e
se designa18. O que culmina na radicalidade dialéctico-mística de Damáscio,
ao afirmar que mesmo a expressão-limite de um “nada” (oυdεn) “melhor
do que o uno”19 deve, por fidelidade a isso mesmo que se busca expressar,
superar-se numa recusa a designá-lo seja de que forma for, exigindo-se “nem
o proclamar, nem o conceber, nem o conjecturar”20. O mesmo se verifica no
neoplatonismo cristão, pese o maior esforço de conciliar com o absoluto a
estrutura da sua trinitária diferenciação interna, desde a interpretação pelo
pseudo-Dionísio da experiência de Moisés como união perfeita com o que
transcende o “tudo” e o “nada”, a mesmidade e a alteridade, “conhecendo
além do espírito graças ao acto de nada conhecer”21, sendo o próprio eros

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

16
Cf. Teixeira de PASCOAES, Santo Agostinho (comentários), Porto, Livraria
Civilização, 1945, pp.275-276.
17
Cf. Paulo BORGES, “O desejo e a experiência do Uno em Plotino”, in Philosophica,
nº 26 (Lisboa, 2005), pp.175-214.
18
Cf. PLOTINO, Enéadas, VI ², 7, 41, texto estabelecido e traduzido por Émile
Bréhier, Paris, Belles Lettres, 1989, p.117; 9, 5, p. 178; 9, 6, p.180.
19
Cf. DAMÁSCIO, Traité des Premiers Principes. De l’Ineffable et de l’Un, I, texto
estabelecido por Leendert Gerrit Westerink e traduzido por Joseph Combès, Paris, Les
Belles Lettres, 1986, pp.7-8.
20
Cf. Ibid., p.4.
21
Pseudo-Dionísio AREOPAGITA, Teologia Mística, edição bilingue, versão do grego

409

10
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal

divino que inspira e move a suplicante busca de união com isso que, “li-
berto de tudo”, é inacessível a toda a afirmação e negação, transcendendo
todas as categorias, pois nem é nem não é, não “é um nem unidade, não é
divindade ou bondade”22. Isto confirma-se, para ficarmos apenas na vertente
ocidental do neoplatonismo cristão, em João Escoto Erígena, ao emancipar
Deus ou o Bem do ser que dele procede, considerando-o como um supra-
-ser (superesse), um não-ser por excesso ou um nada por eminência ou
“por infinidade”, que ignora, por excesso, toda a quididade, pois “não é
um quid objectivado”, permanecendo assim “incognoscível em simultâneo
para Ele-mesmo e para toda a inteligência”23. A “glória” reside, todavia, no
seu “conhecimento por experiência directa”24, além de toda a palavra e de
todo o entendimento, além de toda a dicotomia, dualidade e categorização25.
Não é senão a isso que exorta Mestre Eckhart, de modo mais radical
no sermão sobre a pobreza em espírito, que na sua dimensão interior con-
siste no despojamento ou liberdade total: nada querer, nada saber, nada ter.
No que respeita ao primeiro destes três aspectos de uma mesma liberdade
plena, ao libertar-se de toda a “vontade criada” – incluindo a de “realizar
a vontade de Deus” -, bem como do “desejo” ou “saudade” (Verlangen)
“da eternidade” e “de Deus”, o ser humano devém “como era, quando
<ainda> não era”, quando não tinha “nenhum Deus” e era “causa primei-
ra” de si mesmo, fruindo da “verdade” numa pura coincidência entre ser
e querer, “livre de Deus e de todas as coisas”. Foi apenas quando, “por
livre determinação da vontade” (aus freiem Willensentschluβ), saiu dessa

e estudo complementar de Mário Santiago de Carvalho, Mediaevalia. Textos e Estudos, nº


10 (1996), I, 3, p.15; cf. também II, p.17.
22
Cf. Ibid., V, p.25.
23
Cf. João Escoto ERIÚGENA, De la division de la Nature. Periphyseon, I e II,
introdução, tradução e notas de Francis Bertin, Paris, PUF, 1995, I, 482 a-b, pp.126-127,
II, 589 b-c, pp.375-376, 590 c-d, p.378, III, 680 d-681 a, pp.170-171.
24
Cf. Ibid., I, 451 c, p.80.
25
Cf. Id., Homélie sur le Prologue de Jean, edição de E. Jeauneau, Paris, Cerf, 1969,
283 b-c, pp.203-207.

410
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

primordial e pura imanência recebendo o ser criado, que passou a ter “um
Deus”, pois antes de haver “criaturas” Deus não era “Deus”, mas apenas
“o que (...) era”, sendo somente pela constituição das “criaturas” que Deus
deixa de ser em si mesmo, sem determinação, para passar a ser nelas, como
“Deus”. A determinação de Deus como tal é assim relativa à determinação
das criaturas como tais, num mesmo movimento de transformação de uma
comum natureza ou fundo primordial, pois “a mais ínfima criatura”, na
medida em que é “em Deus”, tem a mesma “categoria de ser” que ele, o
que faz com que Deus, enquanto apenas o é para a criatura, não possa ser
o seu “fim supremo”. Na verdade, se uma “mosca” possuísse “intelecto” e
fosse capaz de “buscar intelectualmente o abismo eterno do ser divino de
onde saiu”, o mero “Deus” que o é para a criatura não a poderia satisfazer.
É por esse motivo, diz o pregador, que “nós rogamos a Deus ser livres de
Deus” (Darum bitten wir Gott, daβ wir Gottes ledig werden), fruindo eter-
namente a verdade “aí onde os anjos mais elevados, a mosca e a alma são
iguais”, essa mesma imanência abissal e primordial onde se residia antes
da livre decisão criadora, quando se queria o que se era e se era o que se
queria, nada querendo portanto, na original “pobreza” do estado incriado
e pré-criatural26.
A mesma liberdade radical expressa-se no nada saber, num esvazia-
mento de todo o conhecimento de modo a que o ser humano não saiba
nem sinta que Deus “vive nele”, pois quando ainda residia “no ser eterno
de Deus” nada aí vivia senão ele mesmo, porém no pré e supra-existencial
estado primordial livre de toda a alteridade (e da distinção sujeito-objecto
inerente a todo o conhecimento). Libertando-se de todo o conhecimento, o
ser humano recupera esse estado primordial, anterior a ser algo ou alguém,
anterior à determinação da existência e da criatura, o que o pregador vê como

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Mestre ECKHART, Predigten, 52, in Werke I, textos e versões de Josef Quint,
26

editados e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt, Deutscher Klassiker Verlag, 2008,
pp. 553 e 555.

411
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal

um deixar Deus operar o que quiser e permanecer livre de saber algo acerca
disso27. Na verdade, na nova visão eckhartiana, equidistante dos termos da
disputa tradicional, a beatitude não reside nem no conhecimento nem no
amor, mas em “algo (Etwas) na alma, de onde emanam conhecimento e
amor” e que “não conhece e não ama”, “não tem antes nem depois”, nada
espera e “não pode nem ganhar nem perder”. Isso não sabe ser Deus que
em si opera, sendo pura auto-fruição divina, e é também neste sentido que
o ser humano deve permanecer “quite e livre”, sem nada saber acerca do
operar divino em si, pois Deus, ao contrário da doutrina tradicional dos
“mestres”, “não é Ser nem intelectual” , consistindo antes num estar livre
“de todas as coisas”, razão pela qual “é (...) todas as coisas”. O nada saber,
“nem de Deus, nem da criatura, nem de si mesmo”28, é a “pobreza” de nada
retirar nem acrescentar a esta divina liberdade, riqueza e plenitude.
O terceiro e para Eckhart mais claro aspecto desta pobreza ou liber-
dade radical é o nada ter, no sentido mais profundo de não possuir um ser
diferenciado, pois trata-se de nem sequer haver no ser humano um lugar
distinto onde Deus possa operar, de modo a que Deus, ao operar na “alma”,
não opere senão em si mesmo. “O homem padece assim Deus em si”, tão
“livre de todas as criaturas e de Deus e de si mesmo” que não mantenha
qualquer “lugar” ou “distinção” própria, reencontrando “o ser eterno que
foi, que é agora e que permanecerá para sempre”29.
É neste contexto que Eckhart volta a rogar a Deus que o livre de Deus,
pois o seu “ser essencial (wesentliches Sein) está acima de Deus enquanto
o concebemos como origem das criaturas”. Na verdade, como reitera, é
nisso que em Deus está “acima de todo o ser e acima de toda a diferença”
que ele próprio residia (e reside), na imanência primordial onde é eterna
causa de si mesmo. Aí é “não-nascido” (ungeboren) e como tal não pode

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

27
Cf. Ibid., pp.555 e 557.
28
Cf. Ibid., pp.557 e 559.
29
Cf. Ibid., pp.559 e 561.

412
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

morrer, sendo eternamente, agora e para sempre. Noutra perspectiva, é


nesse seu “nascimento (eterno)” que tudo nasce, é nesse advir atemporal
que é causa de si e de todas as coisas, incluindo do Deus que é Deus (nas
e para as criaturas), o que lhe permite afirmar que, caso o quisesse, nada
seria, nem ele, nem Deus, nem todas as coisas30. Eckhart assume simulta-
neamente ser incriado e eternamente criador de si, de Deus e de todas as
coisas, o que vemos, para além do ousado iconoclasmo, como decorrente
da experiência directa de não haver distinção entre o fundo sem fundo de si
e essa incriada fecundidade do sem nome que a sua tradição designa como
Deus e a ontoteologia concebe como o Ente supremo.
Segundo um “grande mestre” que não identifica, a “abertura” ou
“trespasse” (Durchbrechen) é todavia “mais nobre” do que o “sair” ou
“emanar” (Ausflieβen), pois este é o devir criatura que, ao instituir o hu-
mano, co-institui Deus e o mundo como seus correlatos, ao passo que o
primeiro – esse “romper através”, Durch-brechen – é uma libertação radical
de todos os conceitos e determinações, pela qual não se é “nem Deus nem
criatura” e se reassume a plena, primordial e atemporal indeterminação
ou infinidade. O Durchbrechen é uma “elevação” ou “des-envolvimento”
(Aufschwung) pelo qual se recupera uma “riqueza” superior a Deus e todas
as suas obras e que não é outra senão a unicidade com Deus: “eu e Deus
somos um (ich und Gott eins sind)”. Isso é o que sempre se é, sem aumento
nem diminuição, “uma causa imóvel, que faz mover todas as coisas”. E essa
é a “suma pobreza”31, a de não haver/ser menos que o Infinito.
Eckhart conclui exortando a que não se aflija quem não compreender
“este discurso”, pois expressa uma “verdade desencoberta (unverhüllte
Wahrheit) vinda directamente / sem mediação (unmittelbar) do coração
de Deus”, que só pode ser compreendida quando o ser humano se igualar
a tal verdade32.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

30
Cf. Ibid., pp.561 e 563.
31
Cf. Ibid., p.563.
32
Cf. Ibid.

413
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal

Eckhart fala com a autoridade de uma experiência directa de (coin-


cidência com) Deus, que a seu ver só pode ser autêntica se for imediata e
imediada, pois, como escreve no tratado Sobre o homem nobre, “Toda a
mediação é estranha a Deus”. No mesmo tratado acrescenta que a distinção
lhe é igualmente alheia enquanto Uno e, como tal, só pode ser encontrado
na unicidade33. É por isso que a nobreza espiritual consiste em abandonar
tudo o que está a mais, incluindo a si mesmo e a todas as “imagens” ou re-
presentações, para repousar na nudez da indistinção original entre si e Deus
(o que Eckhart por vezes expressa como o nascimento de Deus na alma e o
nascimento da alma em Deus, pelo qual ela acolhe o Filho e se torna o Filho
no coração do Pai34, experiência pela qual toda a alma se pode descobrir
como o próprio Cristo, o mesmo “Filho único” “eternamente gerado”35). O
abandono de tudo o que está a mais deve ser em última instância o abandono
do que mais se venera em função do autocentramento da consciência, ou
seja, o si mesmo e um Deus pensado como o fundamento transcendente e
extrínseco de si e do mundo, com toda a aparente dualidade entre os dois
sujeitos ou entre sujeito e objecto. Daí que a aspiração eckhartiana a que
Deus o livre de Deus possa ser vista como a versão cristã do célebre ico-
noclasmo do mestre Lin-tsi do budismo Ch’an: “Tudo o que encontrardes,
fora e (mesmo) dentro de vós mesmos, matai-o. Se encontrardes um Buda,
matai o Buda!”36. Raimon Panikkar viu a versão cristã disto no Evangelho
segundo São João37 e na comunhão eucarística, que teria um implícito “se
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

33
Cf. Id., “De l’Homme Noble”, in Traités et Sermons, tradução, introdução, notas e
index de Alain de Libera, Paris, Flammarion, 1995, 3ª edição, p.178.
34
Cf. Ibid.
35
Cf. Id., Predigten, 22, in Werke I, p.259.
36
LIN-TSI, Instructions Collectives, 20 b, in Entretiens de Lin-tsi, traduzidos do chinês
e comentados por Paul Demiéville, Paris, Fayard, 2010, p.117. Cf. Paulo BORGES, “”Se
vires o Buda, mata-o!”. Ensaio sobre a essência do budismo”, in Descobrir Buda. Estudos
e ensaios sobre a via do Despertar, Lisboa, Âncora Editora, 2010, pp.79-101.
37
“Se não comerdes a carne do Filho do Homem / e não beberdes o seu sangue, / não
tereis a vida em vós” – Evangelho segundo São João, 6, 53; cf. também 51-58.

414
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

encontras Cristo, come-o!”38. Na verdade, ver ou deixar Deus ou Buda fora


de si, como um ob-jecto (do latim ob-jectum, lançado contra), seria a esta
luz permanecer na menoridade da ignorância espiritual e interditar-se a ex-
periência da unção/ressurreição crística ou do despertar búdico. Daí, ainda
segundo Panikkar, Cristo afirmar, no mesmo Evangelho, ser do interesse
dos discípulos que ele parta, pois de outro modo o Paracleto, “o Espírito
da Verdade”, não adviria neles39. É essa aliás a visão de Mestre Eckhart,
que interpreta este ensinamento de Cristo como alusivo à necessidade dos
discípulos transcenderem a excessiva gratificação com a sua “aparição pre-
sente”, que os impede de participar da “perfeita alegria do Espírito Santo”.
Importa assim que se separem da “aparição visível” e se unam ao “Ser sem
forma”40. Também o Buda anuncia que se não partir e entrar no nirvāna, os
discípulos tornar-se-ão preguiçosos e não seguirão o caminho41.
A pobreza em espírito converge com o “desprendimento (abgeschie-
denheit)” que Eckhart considera como a “virtude” suprema pela qual o ser
humano se pode unir a Deus, o que na verdade é redescobrir a sua pré-exis-
tência divina, sem diferença, anterior à criação. O “perfeito desprendimento”
está “vazio” de tudo, “repousa no nada absoluto” e, em última instância,
é “o próprio Deus”42. Um Deus livre de o ser, cuja distinção consiste na
indistinção43, cuja irredutível transcendência é a mais funda e universal

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

38
Raimon PANIKKAR, El silencio del Buddha. Una introducción al ateísmo religioso,
Madrid, Ediciones Siruela, 1996, p.262.
39
Cf. Evangelho segundo São João, 15, 26, 16, 7 e 16, 12-13.
40
Cf. Mestre ECKHART, Von Abgeschiedenheit, in Predigten. Traktate, Werke II,
textos e versões de Ernst Benz, Karl christ, Bruno Decker, Heribert Fischer, Bernhard Geyer,
Josef Koch, Josef Quint, Konrad Weiβ e Albert Zimmermann, editados e comentados por
Niklaus Largier, Frankfurt, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p. 457.
41
Cf. Saddharma Pundarīka Sūtra, XV, 268-272.
42
Cf. Mestre ECKHART, Von Abgeschiedenheit, in Predigten. Traktate, Werke II,
pp.435, 451, 453 e 459.
43
“(...) pois a divindade de Deus reside em ele não estar separado de todas as coisas”
– Mestre ECKHART, Predigten, 77, in Werke I, p.143. Falando de Eckhart, diz um dos seus

415
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o aulo so Pascoal

imanência, é um a-Deus, a pura ateidade vislumbrada por Pascoaes e que


Fernando Pessoa designa como um além-Deus44 à luz do qual, no Tratado
da Negação, assinado por Raphael Baldaya, ousa escrever: “Deus existe
com efeito para si-próprio; mas Deus está enganado”45. O que Eckhart
descobre é ser ele próprio e todo o sujeito que, ao transitar do “fundo”,
do “fluxo” e da “fonte” da “divindade (Gottheit)” – a não-determinação
onde tudo é um porque nada é isto ou aquilo – para se constituir como um
ente aparentemente distinto, faz com que simultaneamente surjam na sua
representação todas as criaturas e o “Deus (Gott)” que apenas é nelas, por
elas e para elas, ao passo que, ao abandonar todas as representações, toda
a aparente constituição de si, de “Deus (Gott)” e do mundo se desfaz num
regresso de tudo ao fundo sem fundo primordial, do qual na verdade nada
jamais efectivamente se ausentou. Referindo-se a este “Deus (Gott)”, que
afinal é a ideia de Deus, construída e desconstruída pelo intelecto, diz:
“Deus também devém e passa”46.
Encontramos nesta transcensão de Deus, por reassunção do “abismo
eterno” alheio ao conceito de haver Deus, humanidade e mundo, “a grande
Vacância, essa Liberdade “além” mesmo de Deus”47 que é o programa da
mística da (supra-)essência que diversamente se estende do movimento das

comentadores: “Indistinction is God’s distinguishing characteristic” – Bernard McGINN,


The Harvest of Mysticism in Medieval Germany, Nova Iorque, The Crossroad Publishing
Company, 2005, p.89.
44
Cf. Paulo BORGES, “Além-Deus e além-ser: Incriado e Saudade em Fernando
Pessoa”, in O Jogo do Mundo. Ensaios sobre Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa,
Lisboa, Portugália Editora, 2008, pp.73-89; “”Deus existe, com efeito, para si próprio; mas
Deus está enganado”: Além-Deus e ilusão de Deus em Fernando Pessoa”, in O Teatro da
Vacuidade ou a impossibilidade de ser eu. Estudos e ensaios pessoanos, Lisboa, Verbo,
2011, pp.45-111.
45
Cf. Fernando PESSOA, “O DESCONHECIDO”, in Textos e Ensaios Filosóficos, I,
estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho, Lisboa, Edições Ática, 1993, p.44.
46
Mestre ECKHART, “De la sortie de l’esprit et de son retour chez lui”, in Oeuvres,
tradução de Paul Petit, prefácio de Jean-Pierre Lombard, Paris, Gallimard, 1987, p.118.
47
Cf. Jean-Yves LELOUP, De Nietzsche à Maître Eckhart, Paris, Éditions Almora,

416
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

beguinas e dos Irmãos do Livre-Espírito, destaque-se Marguerite Porete48,


a Eckhart e a Angelus Silesius49. E encontramos neste a-teísmo místico,
neste “ser ateu graças a Deus” – afirmação de Luís Buñuel, cuja leitura
dominante não capta o sentido místico de um Deus que o não é para si
mesmo -, uma mais radical “morte de Deus” que permite repensar a sua
proclamação por Nietzsche surpreendendo porventura o impensado do seu
sentido e implicações mais profundos.
Tal como o cínico Diógenes no passado procurou um homem, o “lou-
co” nietzschiano corre pela praça pública com uma lanterna acesa em pleno
dia procurando Deus e anunciando a sua morte às mãos da humanidade50.
Nietzsche dramatiza neste episódio o soçobro da fé na representação cristã
de Deus, que teria sido “despojada da sua plausibilidade”, como “o maior
dos acontecimentos recentes”51. Isto suscita um sentimento ambíguo: por um

2014, p.91. Comentando a súplica eckhartiana de ser livre de Deus, Leloup escreve que “o
homem livre é sem ideias, sem ideal, sem ídolo, sem Deus” – Ibid., p.98.
48
Cf. Paulo BORGES, “Do Bem de nada ser. Supra-existência, aniquilamento e deifi-
cação em Margarida Porete”, in AAVV, Razão e Liberdade. Homenagem a Manuel José do
Carmo Ferreira, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa / Departamento de Filosofia
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010, pp.349-371.
49
Veja-se de Silesius o poema com o título “Deve-se ir ainda além de Deus”: “Onde
é a minha morada? Onde eu e tu não estamos. / Onde é o meu fim último, para o qual devo
ir? / Aí onde nenhum se encontra. Para onde irei então? / Devo ir ainda além de Deus, para
um deserto” (“Man muβ noch über Gott – Wo ist mein Aufenthalt? Wo ich und du nicht
stehen. / Wo ist mein letztes End, in welches ich soll gehen? / Da, wo man keines findt. Wo
soll ich denn nun hin? / Ich muβ noch über Gott in eine Wüste ziehn”) – Angelus Silesius,
Cherubinischer Wandersmann, I, 289, in Sämtliche Poetische Werke, III, pp.7-8 e 219. Numa
nota ao último verso esclarece que se trata de ir “além de tudo o que se conhece de Deus ou
dele se pode pensar / segundo a via negativa”, acrescentando: “acerca de tal, procurar nos
Místicos”. Cf. Paulo BORGES, “Transcender Deus: de Eckhart a Silesius”, Philosophica,
34 (Lisboa, 2009), pp.439-457.
50
Cf. Friedrich NIETZSCHE, A Gaia Ciência, tradução de Alfredo Margarido, Lisboa,
Guimarães Editores, 1977, 2ª edição, p.143.
51
Cf. Ibid., p.230.

417
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal

lado, traz aos “filósofos” e “livres espíritos” um sentimento de iluminação


“como por uma nova aurora”, que reabre um horizonte marítimo vasto e
livre onde se pode viajar sem limites pré-estabelecidos ao conhecimento e
à experiência52; por outro, mal se adivinha ainda tudo o que se vai afundar
como consequência desse fim da fé no Deus cristão, a “longa sequência”
e “abundância de demolições, de destruições, de ruínas e de subversões”,
entre as quais a de “toda a moral europeia”53; por outro ainda, apesar de
Deus haver morrido, Nietzsche adverte que os humanos são tais que a “sua
sombra” perdurará ainda “durante milénios”, sendo necessário que a vençam
aqueles mesmos que já vêem e anunciam a sua morte54.
Na verdade, o “louco” que proclama a morte de Deus espanta-se
perante ter sido possível “esvaziar o mar”, “apagar o horizonte inteiro” e
desprender a “terra” do “Sol”: são imagens de dissolução das anteriores
referências, negativas mas libertadoras, que dão lugar ao imaginário positivo
e esperançoso de um novo e promissor horizonte marítimo aberto e livre.
Não deixa todavia de ser ambígua a caracterização que o profeta da morte
divina faz do presente momento da consciência humana, imediatamente
emergente do seu descrédito no fundamento divino de tudo:
Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra
ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe
de todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para
trás, para o lado, para os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não
estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o
sopro do vazio?55
Interrogamo-nos se não assistimos aqui à experiência involuntária e sú-
bita do mesmo que Eckhart assume, voluntária e programaticamente, como
o libertar-se de Deus, ou seja, de todas as ideias a seu respeito, incluindo
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

52
Cf. Ibid., pp.231-232.
53
Cf. Ibid., pp.230-231.
54
Cf. Ibid., p.129.
55
Cf. Ibid., pp.143-144.

418
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

a de Deus ser criador e ser “Deus”, libertando-se assim simultaneamente


da condição de criatura e regressando nisso à abissalidade da infinidade e
indeterminação primordial e eterna. Não há neste sentimento de ausência
de fins, orientação, coordenadas, referências e apoios, nesta sensação de
“cair” em todas as direcções e para “todos os lados” ao mesmo tempo, nesta
errância “através de um vazio infinito”, a experiência daquela “pobreza em
espírito” inerente ao nada querer, nada saber e nada ter (nem sequer a si
mesmo) que é simultaneamente a transcensão do ser criado e a reintegração
no abismo eterno de um fundo sem fundo – Abgrund – que na linguagem
eckhartiana não deixa de convocar as imagens do “deserto”56, do “nada”57
e do “vazio”58? Não há nesta morte de Deus – que é primeiro que tudo uma
morte do sujeito que o pensa como criador de si e do mundo – uma abertura
à experiência plena de Deus tal como é, o puro infinito, livre de ser “Deus”
para o ser humano e o mundo, ou seja, livre das inevitáveis distorções,
perspectivismo e relatividade de todas as representações antropocêntricas,
das metafísicas às morais? Não há nesta morte de Deus um ser Deus como

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

56
O “fundo simples” (“einfaltigen Grund”) é simultaneamente o “deserto silencioso
onde jamais a distinção lançou um olhar, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo” (“die
stille Wüste, in die nie Unterschiedenheit hineinlugte, weder Vater noch Sohn noch Heiliger
Geist”) – Mestre ECKHART, Predigten, 48, Werke I, p. 509.
57
Veja-se entre outros o sermão onde Eckhart comenta o passo dos Actos dos Apóstolos,
9, 3-9, que narra a aparição de Jesus ao futuro São Paulo, subitamente envolvido por “uma
luz vinda do céu” que o faz cair por terra. Quando se ergue, diz o texto que, “embora tivesse
os olhos abertos, não via nada”. Eckhart encontra aqui quatro sentidos: “Um desses sentidos
é: quando se levantou da terra, de olhos abertos nada viu e esse nada era Deus; pois, ao ver
Deus, chama-o um nada. O segundo sentido: quando se levantou, nada viu senão Deus.
O terceiro: em todas as coisas, nada viu senão Deus. O quarto: ao ver Deus, viu todas as
coisas como um nada” - Mestre ECKHART, Predigten, Traktate, Werke II, 71, p.65. Cf.
Paulo BORGES, “Mestre Eckhart e Longchenpa: do fundo sem fundo primordial como
nada e vacuidade”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I, coordenação
de Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, pp.567-579.
58
Mestre ECKHART, Predigten, 1, Werke I, pp.13 e 15.

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o aulo so Pascoal

nada-tudo ser, nessa imanência e liberdade radical e primordial alheia a


toda a determinação e autoreferência intelectual, nessa superabundante
pobreza do vazio pleno de todos os possíveis? Não há nesta morte de Deus
a experiência mística da coincidência com o fundo sem fundo de tudo, com
a desnuda infinidade, sem predicados, atributos ou características, com a
liberdade radical isenta das categorias e modalidades do divino, do humano
e do cósmico, além-aquém de todas as orientações, caminhos, vias, senti-
dos e finalidades, numa perdição que é encontro e salvação? Não será isto
conforme ao ensinamento evangélico de só se salvarem os que por amor da
experiência de Cristo (“Eu e o Pai somos um”59) se perderem60? Não será
isto conforme ao ensinamento eckhartiano de se abandonar todo o “modo”
(Weise) de buscar Deus, pois assim se tomam os “modos” e se perde Deus,
que neles fica “oculto”, apenas sendo experimentado por quem o busca
“sem modos”, convertendo-se assim no próprio Filho/Cristo e na “própria
vida”, “sem porquê”61 ? Ou conforme ainda ao ensinamento de São João
da Cruz de se chegar à mesma experiência de Deus perdendo-se de todos
os “caminhos” e “formas” criaturais de o procurar62?
O “louco” nietzschiano vislumbra que a morte de Deus é a acção mais
grandiosa da humanidade e da história, dividindo esta num antes e num
depois que faz deste “uma história mais elevada do que, até aqui, nunca o
foi qualquer história!”. Mas constata que tal grandeza é excessiva para a
humanidade, de onde resulta a interrogação a nosso ver crucial: “Não será
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

59
João, 10, 30.
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.
60

Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa
de mim, vai encontrá-la” – Mateus, 16, 24-25.
61
Cf. Meister ECKHART, Predigten, 5B, Werke I, pp.71 e 73.
62
“[…] cuando una alma en el camino espiritual a llegado a tanto que se ha perdido a
todos los caminos y vías naturales de proceder en el trato com Dios, que ya no le busca por
consideraciones ni formas ni sentimientos ni otros modos algunos de criaturas ni sentido,
[…]” – São João da CRUZ, “Cantico Espiritual (B)”, Canção 29, 11, in Obras Completas,
edição crítica, notas e apêndices de Lucinio Ruano de la Iglesia, Madrid, BAC, 2002, p.858.

420
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, pare-
cermos dignos dela?”63. O que significa isto? Encontramos duas grandes
possibilidades de interpretação. A primeira, mais fácil e predominante, é a
que se converteu no programa do humanismo ateu e antropocêntrico, mesmo
sem consciência disso ou negando-o: substituir o lugar vazio do “Deus”
cristão pela humanidade autodivinizada, que se auto-institui como o novo
centro do mundo, que doravante não ofereceria mais limites ao domínio do
humano, tal como este se representa e celebra na civilização tecnocientífica
de matriz europeia-ocidental hoje globalizada. Reconhecendo a representa-
ção teológica do divino como projecção psicológica humana (Feuerbach), a
consciência humana, individual e/ou colectiva, preencheria consigo mesma
o vazio aberto pela morte de Deus. Já a segunda leitura – bem mais exi-
gente, em termos teóricos e práticos, espirituais, intelectuais e éticos, e por
isso mesmo minoritária – é a que entende a necessidade de se tornar deus
para ser digno da morte de Deus como a exigência de uma plena e infinita
transcensão do próprio humano, que se deve esvaziar radicalmente de todas
as determinações, referências e apoios, a começar pelo autocentramento,
para ser capaz de habitar o vazio, ou antes, ser o vazio aberto pelo Deus que
nele deixou de colocar (na leitura eckhartiana, ser o puro infinito que Deus
é, livre da ideia de Deus, ou seja, da sua divinização pela humanidade). A
“grandeza” do deicídio64 seria assim inseparável dessa suma “grandeza”
humana que Nietzsche, no Assim Falava Zaratustra, proclama consistir em
o humano “ser uma ponte e não uma meta”, residindo precisamente o que
nele há de amável em ser “transição e perdição” e “uma corda estendida
entre o animal e o Super-Homem – uma corda sobre um abismo”: “Amo
os que só sabem viver com a condição de perecer, porque perecendo se
superam”65. Esta grandeza seria a da superação do humanismo, quer na sua
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Friedrich NIETZSCHE, A Gaia Ciência, p.144.


63

Cf. Ibid.
64

65
Cf. Id., Assim Falava Zaratustra, tradução de Alfredo Margarido, Lisboa, Guimarães
Editores, 1964, p.15.

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A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal

anterior versão teocêntrica, quer na sua moderna versão antropocêntrica,


para esse coalescer com o vazio abissal na assunção da plenitude em acto
de todo o possível que nos parece ser o programa intemporal da mística
mais radical, porventura obscuramente vislumbrado por Nietzsche na
figura equívoca do Supra-homem. É esta superação do humanismo e do
próprio humano que Eudoro de Sousa lucidamente viu como o impensado
imperativo do “Homem” que quiser ocupar o esvaziado lugar da divindade:
“O Homem sofrerá pior destino se quiser ocupar o lugar que Deus deixou
vazio: terá de morrer vezes sem conta, excedendo-se de cada vez que
morre, porque Deus é Excessividade caótica, o Excesso que vem subindo
do abismo sem fundo”66.
Seja como for, é porventura para ambas as interpretações e conse-
quências da morte de Deus que o “louco” reconhece haver chegado “cedo
demais”, pois o que ele vislumbra já consumado ainda vem a caminho da
consciência da maioria dos humanos, embora tenham sido eles os seus
agentes67.

Concluímos sem concluir, como cumpre num discurso que celebra e


exorta às virtudes da mística. A “pobreza em espírito”, a da renúncia vo-
luntária a todo o querer, saber e ter/ser é a suma riqueza, pois é a que deixa
o que é/não é tal qual é/não é (a Gelassenheit eckhartiana, a serenidade do
abrir mão que deixa ser, libertando-se de toda a apropriação), permitindo
a experiência de se coincidir, aqui e agora, com o fundo sem fundo de
tudo. E isso vive-se precisamente como um nada que é tudo, um vazio que
permite todas as possibilidades de consciência e experiência, luminoso,
fecundo e superabundante, vivendo a Vida plena que nele e dele a cada
instante primaverilmente emerge, a Vida sem porquê (“ohne Warum”)68, que
gostamos de dizer sem quem nem quê, sem porquê nem para quê. O nada,
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Eudoro de SOUSA, Mitologia, in Mitologia / História e Mito, apresentação


66

de Constança Marcondes César, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, p.52.
67
Cf. Friedrich NIETZSCHE, A Gaia Ciência, pp.144-145.
68
Cf. Mestre ECKHART, Predigten, 5b, Werke I, 5b, p.71.

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NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito

não-eu (Nichts), não-coisa (nothing), não-ente (néant, niente) é o abismo


cuja superabundante ebulição (ebullitio)69 é toda a infinita riqueza do real70.
Também śūnyatā, do adjectivo sânscrito śūnya (zero, nada, vazio),
traduzido dos textos budistas como “vacuidade”, vem da raiz svi, que sig-
nifica “oco”, mas que deriva do Proto-Indo-Europeu k̑eu, com o sentido de
“inchar” e também “crescer”. A sugestão é a de um zero, um nada, um vazio
fértil e fecundo, fonte de toda a manifestação. O mesmo acontece com tong,
tradução tibetana de śūnya, que sugestivamente significa simultaneamente
“vazio” e “mil”, como metáfora de todas as possibilidades71. É a mesma
indicação que se colhe do capítulo 40 do Tao Te King, de Lao Tse, onde se
diz que “O que há/existe (yu) nasce do que não há/não existe (wu)”, sendo
este wu (que também significa “vazio”) expresso por um pictograma que
antigamente representava um dançarino, sugerindo-se que do vazio brota
a dança das “dez mil coisas”72, metáfora taoista de toda a manifestação.
Talvez Nietzsche possa afinal acreditar mesmo em Deus, pois parece
que ele sabe mesmo dançar73 e talvez essa dança não seja senão essa Vida
sem porquê nem para quê – como a rosa de Silesius que floresce porque sim74

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

69
Cf. Bernard McGINN, The Harvest of Mysticism in Medieval Germany, pp.125-129.
70
Realidade vem do latino res (coisa) e este, segundo alguns, do proto-itálico reis,
por sua vez procedente do proto-indo-europeu reh, ís, com o significado de “riqueza, bens”,
afim ao antigo persa rāy- (paraíso, riqueza), ao avéstico rāy-, com o mesmo sentido (paraíso,
riqueza), e ao sânscrito rayí (propriedade, bens).
71
Cf. Paulo BORGES, “Mestre Eckhart e Longchenpa: do fundo sem fundo primor-
dial como nada e vacuidade”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I,
coordenação de maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, p.577.
72
Cf. Lao TSE, Tao Te King. Livro do Caminho e do Bom Caminhar, 40, tradução
e comentários de António Miguel de Campos, Lisboa, Relógio d’Água, 2010, pp. 26-27.
73
“Eu só podia acreditar num Deus que soubesse dançar” – Friedrich NIETZSCHE,
Assim Falava Zaratustra, p.46.
74
“A rosa é sem porquê; floresce porque floresce, / não se considera a si própria, não
pergunta se é vista” – Angelus SILESIUS, Cherubinischer Wandersmann, I, 289, in Werke,
III, Munique, Carl Hanser-Verlag, 1949, p.39.

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o aulo so Pascoal

– que a cada instante e sempre nova brota do Abismo eterno na visão/expe-


riência de Eckhart. E talvez esta convergência que, salvaguardadas todas as
diferenças, reconhecemos hoje entre espiritualidade cristã e espiritualidade
budista e extremo-oriental possa estar antecipada nos ensinamentos dos
assim chamados Sutras de Jesus, descobertos no final do século XIX por
um sacerdote taoista numa gruta perto da cidade chinesa de Dunhuang. Com
efeito, num deles, o Sutra do Regresso à Vossa Natureza Original, datado
de 780-790, da autoria de Jingjing, um monge cristão chinês, Cristo ensina
“a não querer e a fazer sem fazer” de modo a que se possa transcender a
“ansiedade”, “encontrar o Repouso e a Satisfação” e “penetrar na fonte do
ser puro e vazio”, a “porta da iluminação”75.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. JINGJING, Sutra do Regresso à Vossa Natureza Original, in Martin PALMER,


75

Les Évangiles de la route de la soie, traduzido por Laurent Strim, Vannes, Sully, 2004, p. 226.

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