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I G R E J A E MI S S Ã O
R E V I S T A M I S S I O N Á R I A D E C U L T U R A E A CT U A L I D A D E
Sumário
adelino ascenso
Editorial 275
KAQUINDA DIAS
O Inconsciente – uma descoberta de Freud 335
PAULO BORGES
A pobreza em espírito
Para um encontro e diálogo cristão-budista
Comentário ao Sermão 52 de Mestre Eckhart 403
DIRECTOR
Adelino Ascenso
CONSELHO DE REDACÇÃO
Aires A. Nascimento
Nuno Lima
SECRETÁRIO DA REDACÇÃO
Rui Ferreira
Tiago Tomás
PRÉ-IMPRESSÃO
José Lima
EDITOR E PROPRIETÁRIO
Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas
(ou: Sociedade Missionária da Boa Nova)
IMPRESSÃO
Escola Tipográfica das Missões - Cucujães
TIRAGEM 400 exemplares Publicação quadrimestral
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Nas raízes da tolerância
Editorial
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Augusto Ascenso Pascoal
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Nas raízes da tolerância
Introdução
Nos finais do século IX, o Papa João VIII, perante a ameaça dos sar-
racenos, que infestavam as costas do Mediterrâneo, convidava os príncipes
cristãos a uma aliança que fosse mais do que ocasional: seria necessário
que dessem coesão política e defensiva à unidade cultural que constituíam
já e à qual se dava pela primeira vez o nome de Europa.
Convém notar que nesta altura grande parte do continente, sobretudo
a Leste, ainda não tinha abraçado o cristianismo: é precisamente João VIII
que dá um impulso decisivo à evangelização dos eslavos, apoiando o tra-
balho dos irmãos Cirilo e Metódio.
Está, no entanto, claro que a matriz dessa unidade, constituída por
povos de raças e culturas diferentes e que o Papa designa por Europa, tem
a ver com uma visão peculiar do homem e dos valores que integram a sua
existência histórica, que se não era ainda comum, estava à beira de o ser.
Não vamos entrar agora na polémica sobre as raízes cristãs da Europa,
ainda que seja nossa convicção de que mais tarde ou mais cedo, ela terá de
ser retomada, se não quisermos perder definitivamente algumas das pistas
fundamentais para a definição do que será de facto um verdadeiro espírito
europeu.
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1. Reforma e Contra-Reforma
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Ainda que contra a sua vontade inicial, o que o monge agostinho fez
foi uma autêntica revolução, não propriamente uma reforma da Igreja.
De facto, com Lutero, põem-se em questão aspectos essenciais do
cristianismo e altera-se por completo o mapa religioso da Europa.
No mais aceso da polémica, com interesses políticos a meterem-se
por todos os lados, extremam-se os campos, e a tão desejada reforma da
Igreja, só não se adia mais uma vez, porque reformar-se pertence à própria
dinâmica do cristianismo:
Movimentos de renovação cristã, na perspectiva do crente, surgem em
todas as épocas, como fruto da acção do Espírito Santo no coração dos fiéis.
São desse tipo movimentos como, por exemplo, as fundações levadas
a cabo por grandes carismáticos: Bento de Núrcia (e todos os reformado-
res da sua linha), Bernardo de Claraval, Francisco de Assis, Domingos de
Gusmão, etc.; e falamos apenas dos principais do ocidente europeu, entre
os séculos V e XIII.
Mas no contexto das presentes reflexões, estão a referir-se os mo-
vimentos de renovação cristã surgidos num ambiente peculiar da Igreja
ocidental, nos finais da Idade Média, quando o continente se transformava
em todos os sentidos, e as consciências mais esclarecidas se davam conta da
necessidade de um regresso às exigências do Evangelho; o que reclamava
também uma alteração das estruturas eclesiásticas, demasiado dependentes
da função política, então desempenhada por grande parte dos membros da
Hierarquia, sobretudo nas regiões do norte da Europa.
Ao apoderarem-se do termo Reformatio, que trazia já um significado
teológico-canónico muito específico, os discípulos de Lutero, querendo
afirmar simultaneamente a novidade do seu movimento e o radicalismo da
resposta que, segundo eles, dava aos anseios da Cristandade, talvez sem
pensarem nisso, provocaram o corte com os movimentos de renovação que
vinham surgindo na Igreja, desde finais do século XIV.
Isso vem criar um problema de dupla dimensão: do ponto de vista
sincrónico, os que mais haviam lutado, não apenas por uma reforma das
estruturas eclesiásticas, mas por uma autêntica renovação da vida cristã,
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cujas exigências iam muito para além daquela reforma, viram-se subita-
mente entre fogos cruzados, com os meios intelectuais divididos em duas
posições cada vez mais radicalizadas e, consequentemente, cada vez menos
conciliáveis.
O pior é que a agitação provocada pelo envolvimento político de Lutero
faz com que se esqueçam os reformadores moderados que havia em ambos
os campos em confronto, e a história deste período começa a ser marcada
de uma forma verdadeiramente maniqueia, com os historiadores a ver o
bem totalmente separado do mal e colocando-os frente a frente, segundo
as próprias simpatias.
É por isso que termos como Reforma e Contra-Reforma, sobretudo
quando com aquela se identificam as auto-designadas igrejas evangélicas,
e com esta a acção da Igreja Católica, em ordem à sua renovação interna,
estão na base de muitos erros de simplificação que, além do mais, levam a
graves injustiças contra pessoas e instituições.
Temos o exemplo de Aquiles Estaço, que poderíamos comparar com
Damião de Góis, já que são quase contemporâneos:
Sabemos que, a nível do pensamento europeu, sobretudo como filó-
logo, Estaço, cuja autoridade é invocada ainda no século XVII, foi mais
conhecido e apreciado do que Góis. E, quanto a abertura de espírito, não
parece que os contactos internacionais deste, que não foram mais vastos
nem mais variados que os daquele, documentem uma modernidade superior
à que se pode divisar em muitos aspectos da vida e dos escritos do autor
do De Reditibus ecclesiasticis et De Pensionibus .
2. Um espírito europeu?
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Ac sunt hi quidem quos accipis princeps clarissime ocii mei fructus: non enim
haec scribo nisi vacuus, et a Theologiae studiis aliquantulum feriatus. Idque
facio, quo musas, quas olim puer magno studio colui, etiam nunc grandior,
et quidem Theologus, retineam.
O que estás a receber, príncipe ilustre, são apenas os frutos do meu ócio; pois
não escrevo tais coisas senão quando estou livre e um pouco aliviado dos meus
trabalhos de Teologia. E faço-o, para que eu, que tão intensamente cultivei as
musas, enquanto era jovem, também as conserve comigo agora, que sou mais
velho e, ainda por cima, Teólogo.
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Idque facio, quo musas, quas olim puer magno studio colui, etiam nunc
grandior, et quidem Theologus retineam.
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Estaço, adopta-se um conceito muito amplo, que tem a sua raiz na amplitude
da noção de apostila já adoptada pela autora de I Libri di Achille Stazio:
ou seja, tudo aquilo que são marcas pessoais de leitura. Nestas se incluem,
além das glosas, apostilas ou notas marginais – que correspondem a um
costume generalizado no século XVI – muitos outros elementos, que nos
permitem detectar, não só os interesses intelectuais do nosso humanista,
mas inclusivamente as linhas mestras do seu pensamento, sobretudo no
campo religioso.
Para classificar todo este espólio, entre muitos critérios possíveis,
pareceu funcional adoptar, em convergência, os dois seguintes:
Primeiro, o critério do continente, ou seja, partindo das peças e do
material em que se encontram tais manuscritos: cadernos, folhas soltas e
notas de leitura (que, como se disse acima, incluem, não apenas textos, mas
qualquer sinal capaz de denunciar uma reacção pessoal do leitor, aqui, no
caso, Aquiles Estaço).
O outro critério será o do conteúdo, que se procurará conjugar com o
precedente: de facto, ao determinarmos que tipo de notas deixou Aquiles
Estaço, precisamos de saber onde se encontram, tanto para as termos à mão,
como, pelo menos em certos casos, para lhe determinarmos o significado.
Também é legítimo que nos interroguemos acerca das intenções de
Aquiles Estaço ao recolher determinadas notas: no seu espólio encontramos
apontamentos que nos permitem ver a permanência do Estaço dos anos
quarenta ao longo de todo o tempo da sua estada em Roma, ou seja, até
aos anos oitenta: filólogo, poeta e teólogo.
Ou, dito de outro modo: a existência de cadernos e folhas soltas, sem
uma organização sistemática, mas com verdadeiro conteúdo doutrinal,
permite-nos afirmar que Aquiles Estaço é ainda, em 1581, o humanista de
1547. E, ao invés, o humanista de 1547 será já o teólogo de 1581.
De facto, nesses cadernos e nessas folhas soltas, recolhidas e arruma-
das, talvez nem sempre com bom critério, pelos primeiros responsáveis da
Vallicelliana, encontramos notas de tipo filológico, cópias de inscrições
antigas, que, no século XVI, eram ainda abundantes em Roma, citações e
comentários de autores clássicos.
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Cum autem adhuc longe esset, vidit illum pater ipsius et misericordia motus
est et accurrens cecidit supra collum eius et osculatus est illum.
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Quanta Dei benignitas! Eum qui mercenarius esse volebat, filium recipit.
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Fica assim a meio da pista indicada quatro séculos mais tarde por
João Paulo II:
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Talvez também não seja de todo inoportuno deixar aqui, como intro-
dução ao Ano da Misericórdia instituído pelo actual Papa, Francisco, parte
do belíssimo comentário de João Paulo II, inserido na já citada Exortação
Apostólica, Reconciliatio et poenitentia, 6:
O filho pródigo, com a sua ânsia de conversão, de regresso aos braços do pai
e de perdão, representa aqueles que pressentem no fundo da própria cons-
ciência a nostalgia de uma reconciliação a todos os níveis e sem reserva, e
têm a intuição, com íntima certeza, de que ela só será possível, se derivar
de uma primeira e fundamental reconciliação: aquela reconciliação que
leva o homem da distância à amizade filial com Deus, do qual reconhece a
misericórdia infinita.
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in Il Regno Attualità, 15.12.2014 – nº 22 (1179) 810. Cf. Evangelii Gaudium, nºs 244-246.
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Quel chemin vers l’unité de la grande famille chrétienne?, in Istina 59 (2014) 337 s.
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6
J. MARTÍN VELASCO, El Movimento Ecuménico, 140.
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Cf. W. KASPER, Cosechar los frutos. Aspectos básicos de la fe Cristiana en el
diálogo ecuménico, Santander 2010; J. E. B. de PINHO, Ecumenismo, 67-89.
8
Cf. CONSEIL PONTIFICAL POUR LA PROMOTION DE L’UNITÉ DES
CHRÉTIENS – FÉDÉRATION LUTHÉRIENNE MONDIALE, Déclaration commune de
l’ Église catholique et de la Fédération luthérienne mondiale sur la doctrine de la justifica-
tion, in La Documentation Catholique 2187 (1997) 713-718; ID., Annexe à la Déclaration
commune catholique et luthérienne sur la doctrine de la justification. Communiqué commun
officiel de la Fédération luthérienne mondiale et de l’Église catholique, in La Documentation
Catholique 2209 (1999) 720-722.
9
CONSELHO PORTUGUÊS DAS IGREJAS CRISTÃS (ed.), Baptismo, Eucaristia,
Ministério. Convergência da Fé, Coimbra 1983.
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10
The Church: Towards a Common Vision, 6 de Março de 2013 (Faith and Order
Paper nº 214), in https://www.oikoumene.org/en/resources/documents/commissions/
faith-and-order/i-unity-the-church-and-its-mission/the-church-towards-a-common-vision
(consulta a 5.6. 2015).
11
Destaco apenas dois textos: GROUPE MIXTE DE TRAVAIL ENTRE L’ÉGLISE
CATHOLIQUE ET LE CONSEIL OECUMÉNIQUE DES ÉGLISES, La notion de
«Hiérarchie des Vérités». Interprétation oecuménique, in Irénikon 53 (1990) 483-496 ;
ID., L’ Église: Locale et Universelle, in Irénikon 53 (1990) 497-522.
12
Du conflit à la communion. Commémoration luthéro-catholique commune de la
Réforme en 2017. Rapport de la commission internationale de dialogue luthéro-catholique
romaine, in Istina 58 (2013) 269-330.
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Cf. TH. BARNAS, La X.e Assemblée du COE à Busan et ses enjeux pour le mou-
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Conselho Ecuménico das Igrejas desde 1948, importa sublinhar a reflexão explícita
sobre a questão feita no âmbito do diálogo bilateral católico-luterano: COMMISSION
INTERNATIONALE CATHOLIQUE-LUTHÉRIENNE, Voies vers la communion (1980),
in La Documentation Catholique 1800 (1981) 76-89; ID., L’unité qui est devant nous
(1984), in La Documentation Catholique 1936 (1987) 284-319. Cf. ainda J. E. B. de PINHO,
Ecumenismo, 109-118.
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Cf. Ut Unum Sint, nºs 50, 54, 55, 56, 60, 61 e 78.
17
K. KOCH, “Die einige und einzige Kirche”, 116.
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pode significar que, para serem possíveis outros passos no caminho para
a unidade ecuménica, a clarificação ecuménica da compreensão da Igreja
e da unidade tem de figurar como o principal ponto da ordem de trabalhos
na presente e futura lista de questões ecuménicas a serem abordadas” 18. O
problema é nuclear porque toca no nervo de cada identidade confessional,
que tem uma dimensão doutrinal-teológica (aquilo que cada Igreja julga
dever defender em nome da verdade do Evangelho), mas também uma pro-
funda dimensão emocional-experiencial-subjetiva (aquilo que cada geração
de cristãos viveu ao longo dos tempos, os pressupostos que estruturam uma
determinada realidade confessional e são interiorizados por cada cristão).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Ecumenici 32 (2014) 13 s. Entre os muitos comentários que vão surgindo cf.: W. HENN, The
Church: towards a common vision (2013). The new ecclesiological Text from the Faith and
Order Commission of the WCC, in Studi Ecumenici 32 (2014) 19-43; G. CERETI, Il nuovo
documento della Commissione Fede e Costituzione del CEC. La Chiesa: verso una vision
comune (Penang, giugno 2012), in Studi Ecumenici 32 (2014) 45-58; D. CARTER, Vers
une vision commune de l’Église. Commentaire et évaluation, in Irénikon 86 (2013) 312-337.
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K. KOCH, “Die einige und einzige Kirche”, 119. Cf. ainda B. DAHLKE, Elementa
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separadas de la Sede Apostólica Romana, in Diálogo Ecuménico 39, nºs 124-125 (2004)
537-624; J. RAMÓN VILLAR, La Iglesia de Cristo subsistit in la Iglesia Católica (Lumen
Gentium 8), in Teocomunicação 42 (2012) 224-241.
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praktische Quartalschrift 163 (2015) 35 s.; R. DAUSNER, Das Volk Gottes als Topos des
Zweiten Vatikanischen Konzils. Perspektiven und Herausforderungen nach fünfzig Jahren,
in Stimmen der Zeit 233 (2015) 291-301.
25
Considerando que a “diferenciação ontológica” não é nenhuma solução, mas sim
uma “encobrimento do problema”, F. GRUBER acrescenta: “Trata-se, na verdade, não de
ontologia de essência, mas de uma teologia da representação de Cristo, trata-se de uma on-
tologia de relação. Como é que esta pode ser expressa no ministério sacramental para além
de ontologismo sacramental e de um funcionalismo numa lógica organizacional? Teologia
e magistério devem encontrar uma resposta para isso, se se quer resolver este problema”:
Kirchenbild, 39. Cf., no mesmo sentido, uma reflexão feita já nos anos setenta por Y.
CONGAR, Quelques remarques touchant les ministères, in Nouvelle Revue Théologique
93 (1971) 790.
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B. J. HILBERATH, Eine ökumenische Aufgabe, 145. Cf. D. CARTER, Vers une
vision commune de l’Église, 319 e 324 ss; M. LIENHARD, Luther “notre maître commun”?
Regards sur le document: Du conflit à la communion (2013), in Istina 58 (2013) 254 s.
27
Cf. J. RAHNER, Die Apostolizität der Kirche. Anregungen, Impulse und
Herausforderungen des Studiendokuments der Lutherisch/Römisch-katholischen
Kommission für die Einheit – einige katholischen Thesen, in Catholica 68 (2014) 176-193.
Cf. ainda M. FARCI, Il Testo di convergenza La Chiesa, in Studi Ecumenici 32 (2014) 59-
78; CH. TIETZ, Das Studiendokument “Die Apostolizität der Kirche”. Anregungen und
Impulse für die lutherischen Kirchen, in Catholica 68 (2014) 167-175.
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Cf. W. KASPER, Introdução à fé, Porto 1973, 103 ss. Cf. J. E. B. de PINHO,
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Ecumenismo, 131-134.
32
Cf. P. HÜNERMANN, Reflexionen zum Primat, 335 s.
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Cf. F. BOUWEN, L’oecuménisme aujourd’hui, 90.
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und einzige Kirche”, 101; Zur Einheit berufen. Wort der deutschen Bischöfe zur Ökumene
aus Anlass des 50. Jahrestages der Verabschiedung des Ökumenismusdekretes “Unitatis
Redintegratio”, in Catholica 68 (2014) 245.
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que a consciência disto não elimina a responsabilidade duma tarefa que nos
pede fidelidade, coerência e determinação, mas coloca-nos na verdadeira
atitude de termos sempre presente que o tempo e o modo (a configuração)
da unidade da Igreja não está simplesmente na nossa vontade, nos nossos
planos e esforços, por mais que eles sejam também indispensáveis. O decisi-
vo passa pela ação do Espírito que possibilita e interpela a nossa fidelidade.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
este ponto, 148-156. Cf. ainda F. BOUWEN, L’oecuménisme aujourd’hui, 103 e 110 s.
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SANDER, Der Ort der Ökumene für die Katholizität der Kirche – von der unmöglichen
Utopie zur prekären Heteroropie, in P. HÜNERMANN – J. HILBERATH, J. (ed.), Herders
Theologischer Kommentar zum Zweiten Vatikanischen Konzil, Vol. 5, Freiburg-Basel-Wien
2009 (Sonderausgabe – Original: 2006), 186-200.
40
Cf. GROUPE DES DOMBES, Pour la conversion des Églises. Identité et change-
ment dans la dynamique de communion. Sixième Document du Groupe de Dombes, in La
Documentation Catholique 2033 (1991) 733-752 e 2034 (1991) 781-790.
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que medida e de que forma se pode conciliar unidade e pluralidade? Cf. W. HENN, The
Church, 37-43.
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Cf. TH. BARNAS, La X.eAssemblée du COE, 348-352; T. F. ROSA, Editoriale, 15.
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Zur Einheit berufen, 244 s. Cf. J. MARTÍN VELASCO, El Movimento Ecuménico,
156 ss.
44
G. SIEGWALT, La vocation de l’Église, 81.
334
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Kaquinda Dias
1
Título do Terceiro Capítulo de “A Psicanálise Freudiana e o Equívoco da Psicologia
do Ego”, Dissertação de Mestrado em Psicanálise clínica defendida por Kaquinda Dias pela
FAES (Faculdade Avançada do Ensino Superior) – São Paulo, 2012.
2
Lacan, J. – Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos (pp.
101-187). São Paulo: Perspectiva, 1978.
3
O termo alemão Verdrängung foi traduzido pelo termo “repressão” nas edições
brasileiras da obra de Freud. Consideramos que o termo “repressão” e “recalque” possuem
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O Inconsciente
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Nas raízes
O Inconsciente – uma tolerância de Freud
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Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 29.
13
Os caminhos da formação dos sintomas. In: Obras Completas, vol. XVI. Rio de Janeiro:
Imago, 1980.
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O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
dadescoberta
1. A revolução freudiana
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
15
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 24.
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O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta
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Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 25.
18
1988, 13.
343
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oaquinda
tempo? A saber, por todo o tempo em que penso. [...] Ora, eu sou uma
coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse:
uma coisa que pensa”20.
Com Descartes tem início a idade de ouro da razão e da certeza da
presença do ser no ato de pensar. A filosofia cartesiana contempla em suas
indagações a noção de sujeito da razão, de um sujeito que por pensar “[...]
é um espírito, um entendimento ou uma razão” (p. 26), inaugurando assim
a ideia, presente até nossos dias, de um sujeito que se reflete a si próprio na
superfície cristalina da consciência no momento em que pensa. A concepção
de que o pensar é eminentemente racional e de que através da atividade de
pensamento o eu apreende-se a si próprio, conduziu a rigorosa equivalência,
por um lado, do ser com o pensamento e, por outro, do pensamento com a
consciência. Contemporaneamente, para muitas concepções psicológicas,
se tornou consumado o fato de que ao nos referirmos à atividade de pen-
samento estamos, necessariamente, referindo-nos a uma atividade que só
pode ser efetuada no plano da consciência, e, portanto, no plano do eu, na
medida em que se formula “a equivalência do eu = consciência”21.
Vallejo & Magalhães22, analisando o cogito cartesiano, sublinham
que Descartes não propõe, por um lado, o ato de pensar, e, por outro, como
dedução lógica implícita deste pensar, a inferência do ser. No cogito carte-
siano tem-se, de acordo com esses autores, uma proposição que assevera a
presença eminente do ser no próprio ato do pensamento. Ser é pensar, pensar
é ser. Não se inferem mutuamente, não se justapõem, não se duplicam, se
equivalem (p. 13-19).
Lacan afirma que o cogito cartesiano é “absolutamente fundamental
no que diz respeito à nova subjetividade...”23. Descartes formulou, colo-
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
1988, 26.
21
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.
22
Vallejo, A. & Magalhães, L. C. – Lacan: operadores de leitura. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
23
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 13.
344
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– uma tolerância de Freud
dadescoberta
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 39.
24
Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 248.
25
26
Pommier, G. – Freud apolítico? Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, 41.
27
Lacan, J. – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos
(pp. 223-259). São Paulo: Perspectiva, 1978, 247.
345
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oaquinda
28
Safouan, M. – Estruturalismo e Psicanálise, São Paulo: Cultrix, 1995, 16.
29
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985.
346
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Freud, S. – Inibições, sintomas e ansiedade. In: Obras Completas, vol. XX. Rio de
30
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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
32
No original em francês: “Remarquons dès lors comment cette inclinaison de
jugement peut, d’après Freud, se manifester chez les philosophes. D’une part, ceux-ci
imaginent l’inconscient comme quelque chose de mystique, insaisissable et intangible,
ce qui rend obscure la relation au psychique; de l’outre, obstacle épistémologique, ils
assimilent a priori par hypothèse de travail, le psychique au conscient, et ainsi en excluent
donc l’inconscient. Il s’agissait plutôt d’une erreur bien connue de raisonnement appelée
pétition de principe, qui consiste à s’accorder par avance ce qui est en question – ce qui
pourrait éclairer le fait que, pour certains philosophes, l’expression ‘phénomène psychique
inconscient’ pouvait leur paraître une absurdité et une contradiction dans les termes.”Aguiar,
F. – Wittgenstein,’disciple’ à contrecceur de Freud. Dissertatio, 10,5-44, 1999, 20.
33
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 13.
348
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– uma tolerânciade Freud
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349
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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
34
Jerusalinsky, A. – Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. In: C. Calligaris et
alli Org.). Educa-se uma criança. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994, 3.
35
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 95.
36
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 15.
350
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
37
Lajonquiére, L. – Epistemologia e psicanálise: o estatuto do sujeito. Percurso, 7
(13), 57-63, 1994, 62.
38
Freud, S. – O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, vol. XXI. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 85.
351
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oaquinda
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
39
Lajonquiére, L. – Epistemologia e psicanálise: o estatuto do sujeito. Percurso, 7
(13), 57-63, 1994, 62.
40
Marques Neto, A. R. – Sujeitos coletivos de direito: pose-se considera-los a partir
de uma referência à psicanálise? Palavração: Revista de Psicanálise, 2 (2), 149-166, 1994.
Aqui, 152.
352
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– uma tolerância de Freud
dadescoberta
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 85.
42
Lacan, J. – Situação da psicanálise e formação do analista. In: Escritos (pp. 189-
222). São Paulo: Perspectiva, 1978, 192.
43
Lacan, J. – Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos (pp.
101-187). São Paulo: Perspectiva, 1978, 109.
44
Lacan, J. – O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, 23.
353
6
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47
Lacan, J. – A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos
(pp. 223-259). São Paulo: Perspectiva, 1978, 225.
354
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1988, 72.
65
Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 122-123.
66
Freud, S. – Análise terminável e interminável. In: Obras Completas, vol. XXIII.
Rio de Janeiro: Imago, 1980, 266.
361
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3. Descobrindo o inconsciente
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Freud, S. – Artigos sobre a técnica. Recordar, repetir e elaborar. In: Obras Completas,
67
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histéricos. Comunicação preliminar In: Obras Completas, vol. II. Rio de Janeiro: Imago,
1980, 45.
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72
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro : Imago, 1980.
366
O Inconsciente
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– uma tolerânciade Freud
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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
73
Podemos dar como definição geral que a ética consiste no conjunto de princípios
que regem as ações humanas. Neste sentido, pode-se afirmar que a ética encontra-se presente
num vasto número de campos teóricos, epistemológicos e de práticas. Entretanto, pode-se
afirmar também que a questão relativa à ética tem na psicanálise uma abordagem especí-
fica. Na psicanálise encontramos uma concepção particular sobre a ética que ligaremos à
especificidade de sua concepção de sujeito. A “ética tradicional” (Lacan, J. – A direção do
tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998, p.
776) se fundamenta e se dirige ao ser, preconizando uma série de princípios e de leis que,
ao serem colocadas como referências para as ações humanas, fazem com que esta se dirija
ao bem. Para a psicanálise, contudo, a ética não se endereça ao ser, mas a falta a ser fundada
no desejo e na castração A obra freudiana inaugura uma ética própria da psicanálise e que se
encontra intimamente ligada à noção de sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente é
determinado e, como tal, assujeitado à lei do desejo inconsciente. Tal concepção de sujeito
coloca-se nas antípodas de uma concepção que defende a autonomia do indivíduo. Com
efeito, a “[...] a marca do significante sobre o falante” (Dicionário de Psicanálise Larousse,
s.d, 1993, p. 42) faz dele um sujeito submetido às determinações do desejo inconsciente e a
castração a qual ele dá lugar. Deste modo, no percurso de uma análise o sujeito é conduzido
a confrontar-se com a lei do desejo e com a castração que ele porta. De acordo com Birman
(1955), “[...] a análise é a possibilidade de produção de um estilo que se calca na lei da
proibição do incesto e na experiência de castração...” (p. 29). Para a psicanálise freudiana
não se trata, tal como na Psicologia do Ego, de harmonizar o sujeito com as leis morais
sociais, mas, sim de ordenar o sujeito na lei do desejo. Goldemberg (1944), aponta que “[...]
a moral seria relativa aos ideais que constituem o eu, enquanto que a ética diria respeito às
relações do sujeito com seu desejo inconsciente” (p. 11).
367
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A s c e n sDoiasP a s c o a l
prática psicanalítica.
Desenvolvíamos acima que a noção de fios de associações lógicas
simbólicas, cuja relação fora esquecida pelo paciente, foi ganhando vulto
em relação à noção de eventos traumáticos isolados como causa desenca-
deante de sintomas. Nesta mesma ocasião, Freud elabora que não havia
uma única lembrança, uma única ideia patogênica, mas uma sucessão
de “traumas parciais”, formando uma verdadeira concatenação de ideias
patogênicas múltiplas.
O material psíquico patogênico, de acordo com Freud, encontrava-se
organizado sob a forma de uma estrutura relacional estratificada segundo
três ordens diversas. Dito de outra maneira, havia um certo número de
lembranças ou de “sequência de pensamentos”74 que se dispunha a partir
de um núcleo traumático até sua manifestação nos sintomas, onde o núcleo
traumático culminava. Em torno deste núcleo, como que envelopando-o,
encontrava-se um abundante material disposto de acordo com três ordens
de organização.
Por outro lado, a ética da psicanálise, no que tange ao analista, consiste em dar voz
e escuta ao sujeito do inconsciente. Os princípios técnicos postos em curso na direção do
tratamento são princípios éticos que “[...] visam dar lugar à palavra do sujeito do incons-
ciente e, como não há inconsciente fora do laço transferencial, o manejo da transferência
situa-se no âmbito da ética, visando a livre associação” Baratto, G.: “A ética na psicanálise”.
Dynamis: Revista de psicologia tecno-científica, 9 (37), 50-56, 2001, 2001, p. 52). Deste
modo, a ética do psicanalista consiste em implicar, pelo recurso à palavra, o sujeito com
seu desejo, fazendo tombar a ilusão de autonomia do eu. Há, portanto, “[..] uma ética da
psicanálise, no sentido de uma ética profissional [..]. Esta abordagem diz respeito à proteção
dos ‘clientes’ submetidos ao tratamento psicanalítico contra eventuais abusos cometidos
pelos analistas em sua posição privilegiada em função do amor de transferência” Kehl, M.
R. – Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 7), e há uma ética
que se deriva do percurso de uma análise por parte do analisando. A sustentação de uma
posição ética, fundada no desejo, tanto por parte do analista quanto por parte do analisando
passa, por seu turno, pelas vicissitudes particulares de uma análise.
74
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 345.
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77
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 325.
371
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78
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 325.
79
Freud, S. – Um caso de cura pelo hipnotismo. In: Obras Completas, vol. I. Rio de
Janeiro: Imago, 171.
372
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Nas raízes
– uma tolerânciade Freud
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No inconsciente, onde está a causa? Sabemos onde ela está: um e outro pen-
samento não fazem senão aproximá-lo marcando seu caráter inatingível. A
causa no inconsciente é o que é aproximado e falho. O que é que faz causar
o inconsciente? É o que Freud chamava de seu famoso umbigo do sonho:
isso quer dizer que é possível sempre tentar chegar ao âmago da análise de
um sonho, mas jamais se chegará ao âmago, quaisquer que sejam as inter-
pretações tremendamente notáveis que se faça.81
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
1994, 31.
373
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Nas raízes
O Inconsciente – uma tolerância de Freud
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por estes fios lógicos que ligam as representações inconscientes entre si. É
do inconsciente concebido como um processo dinâmico articulatório que o
método da livre associação se sustenta. A noção de cadeias de representações
de desejo inconsciente retira o inconsciente freudiano do marco de uma
concepção psicológica substancialista que conduz a identificá-lo a conteúdos
afetivos, emoções e sentimentos. Retira igualmente o inconsciente da noção
biológica de “tendências instintuais primitivas”82 que, permanecendo à
margem do processo de desenvolvimento, amadurecimento e aprendizagem,
manifestar-se-iam como tendências antisociais que escapam ao processo
de socialização, ajuste e adaptação do eu. Este foi o modo pelo qual o
inconsciente, para os teóricos do ego, ficou identificado ao isso e este, por
sua vez, identificado ao irracional desadaptado, e sobre o qual convém pôr
as rédeas da via corretora do princípio da realidade.
Mas o que vem a ser o princípio da realidade para os psicólogos do
ego? “Trata-se da realidade cotidiana, imediata, social? Do conformismo às
categorias estabelecidas, aos costumes admitidos? Da realidade descoberta
pela ciência?”83. Na Psicologia do Ego todas estas questões convergem,
recebendo formulação positiva. O princípio de realidade, definido como
princípio de adaptação, deve ser aceito pelo indivíduo uma vez que se
traduz como guia para todo bom comportamento. Quanto a nós, partícipes
do ponto de vista freudiano, acreditamos que a vida em grupo, uma das
fontes de mal-estar assinalada por Freud, pode cobrar ao sujeito um tributo
alto demais: o de render-se aos “ideais de multidão”84. Os ideais sociais
coletivos impõem-se ao homem como um conjunto de valores, crenças
e ordenamentos morais que, ao se apresentarem como portadores de um
saber sobre a verdade, são colocados na posição de servir de guias para
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Freud, S. – O futuro de uma ilusão. In: Obras Completas, vol. XXI. Rio de Janeiro:
85
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O Inconsciente
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– uma tolerânciade Freud
dadescoberta
de existir, ainda que ao preço de abrir mão daquilo que, por habitá-lo, se
encontra no fundamento que o sustenta enquanto sujeito – o desejo incons-
ciente. Foi justamente a sugestão, concebida como fenômeno amoroso que
dispõe o analisando a uma posição de servidão a um lugar suposto saber,
passível de vir encarnar-se na pessoa do analista, que Freud apontou os
riscos implicados em todo tratamento que se paute no recurso à sugestão,
definida como técnica de convencimento. Ocasião propícia para lembrarmos
que a ideia, o conceito que um analista faz do que seja o inconsciente, a
direção do tratamento, a ética no qual ele deve pautar-se e, por fim, o que
ele entende por finitude de uma análise, dirigirá seus atos analíticos.
Já nos referimos anteriormente à problemática de tornar consciente o
inconsciente. Que devemos entender por tornar consciente o inconsciente?
Quais são os limites e os alcances que podemos depreender desta expres-
são frequente na obra freudiana? Tratar-se-ia de fazer uma compreensão
psicológica da mesma, e que consistiria em tornar sabido à consciência
o saber-insabido do inconsciente? Seria o caso de supor como possível,
viável e até mesmo desejável um progressivo apossamento, e consequente
conhecimento, pela consciência do que é inconsciente?
A questão de como algo inconsciente se torna consciente não nos
parece de modo algum banal, não somente devido ao fato de que está
sujeita a equívocos e mal entendidos, mas, sobretudo, porque no texto
metapsicológico O Inconsciente (1915a), texto canônico sobre o tema do
inconsciente, o próprio Freud dedica uma particular atenção a este tema.
A questão levantada por Freud nesse texto é quanto ao modo em que se dá
a transposição, isto é, a passagem das ideias do sistema inconsciente para
o sistema consciente. Questão levantada a propósito de razões de ordem
tópica. Nesta ocasião Freud aventa três hipóteses.
A primeira hipótese, dita tópica, aventa sobre a possibilidade de um
duplo registro dos materiais mnêmicos inconscientes. Essa hipótese é
proposta nos seguintes termos por Freud: quando uma ideia (no sentido
de uma representação) passa de um registro inconsciente para um registro
consciente, com a mudança de localização tópica aí operada, a ideia passa
377
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Freud, S. – Cinco lições de psicanálise. Quinta lição. In: Obras Completas, vol. XI.
87
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– uma tolerânciade Freud
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parte do analista, e que Freud não vacila em considerar como o “[...] sen-
timento mais perigoso para um psicanalista” (p. 153). Ao proceder deste
modo, o analista não estará fazendo nada mais do que inculcar no paciente
as suas próprias aspirações e desejos, fazendo um uso abusivo do laço
transferencial e colocando-o ao serviço da sugestão. A via técnica de tornar
consciente o inconsciente, pautando-se no pressuposto da transmissão de um
conhecimento está, por razões de eficácia técnica e de ordem ética, fechada.
A segunda hipótese, denominada por Freud de funcional, aventa a
possibilidade de que a passagem de uma ideia inconsciente para o consciente
implicaria numa mudança de estado da mesma. Essa hipótese é abandona
por Freud que a considerou a mais grosseira das três. A terceira hipótese
formulada por Freud põe um ponto de basta em torno das celeumas travadas
em torno da questão de como algo inconsciente se faz consciente. Ela con-
siste, primeiramente, numa recusa das duas hipóteses anteriores. A passagem
do inconsciente para o consciente não se dá por meio de uma mudança de
registro, tampouco por diferenças produzidas no estado funcional. A terceira
hipótese formulada por Freud introduz a distinção entre “representação de
coisa” (Sachvorstellung) e “representação de palavra” (Wortvorstellung).
Hipótese segundo a qual no inconsciente subsistem as “representações de
coisa” sem a “representação de palavra” que lhe corresponde. Doravante,
ligar a “representação de coisa” a uma “representação de palavra” não é
garantia, mas, possibilidade de que o inconsciente alcance à consciência.
“Como uma coisa se torna consciente? Seria assim mais vantajosamente
enunciada: Como uma coisa se torna pré-consciente? E a resposta seria:
Vinculando-se às representações verbais que lhe são correspondentes”89.
No Seminário livro 7 (1991), Lacan adianta que a oposição
Wortvorstellung e Sachvorstellung responde em Freud às dificuldades e
impasses por ele encontradas no tocante ao estado da linguística de sua
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Freud, S. – O ego e o id. In: Obras Completas, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago,
89
1980, 33.
379
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oaquinda
Kehl, M. R. – Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia da Letras, 2002, 123.
91
92
Freud, S. – Artigos sobre a metapsicologia. O inconsciente In: Obras Completas,
vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 230.
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– uma tolerância de Freud
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94
Lacan, J. – O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1988, 46.
382
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95
Alertamos nosso leitor que maiores elaborações sobre a teoria do significante em
Lacan serão efetuadas logo adiante. Contudo, esclarecemos que a teoria do significante
é central nas teses de Lacan. O significante tem efeitos estruturantes sobre o sujeito,
determinando-o como sujeito do inconsciente. Através da teoria do significante, Lacan pôde
demonstrar a absoluta solidariedade da estrutura do inconsciente com a estrutura da lingua-
gem. O significante deve ser compreendido como autônomo para com o significado. Um
significante não remete a um objeto ou sentido determinados, mas sim a outro significante.
Um significante S1 só tem sentido pela sua articulação a outro significante S2. A proposição
S1S2, remete à noção de cadeia. Assim, fora da cadeia um significante não porta sentido
algum. O sentido de um significante depende, pois, do contexto no qual se encontra inserido.
O próprio do significante é de andar aos pares, isto é, articulado em cadeia.
96
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 21.
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XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 172.
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Freud, S. – Além do princípio do prazer. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de
104
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Nosso grupo psíquico patogênico, por outro lado, não admite ser radicalmente
extirpado do ego. Suas camadas externas passam em todas as direções para
partes do ego normal; e, na realidade, pertencem a este do mesmo modo que à
organização patogênica. Na análise, o limite entre os dois é fixado de maneira
puramente convencional, ora num único ponto, ora em outro, sendo que em
alguns lugares não pode ser estabelecido absolutamente.105
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
105
Freud, S. – Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In: Obras Completas,
vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 1980, 347.
106
Freud, S. – Além do princípio do prazer. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 348.
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Freud, S. – Além do princípio do prazer. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de
107
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Freud, S. – Inibições, sintomas e ansiedade. In: Obras Completas, vol. XX. Rio
112
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XXXI. A dissecção da personalidade psíquica. In: Obras Completas, vol. XXII. Rio de
Janeiro: Imago, 1980, 90.
393
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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
116
Juranville, A. – Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1987, 18.
117
Laplanche, J. – O inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes, 1992, 129.
118
Laplanche, J. – O inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes, 1992, 127.
394
Nas raízes
O Inconsciente – uma tolerância de Freud
dadescoberta
que estaria por baixo) encoberto pela consciência. Tampouco é uma segun-
da consciência. O inconsciente é, com Freud e Lacan, o que no sujeito se
manifesta em ato ou em palavras. É porque o material recalcado retorna
em substitutos que temos notícias dele. O inconsciente não tem outro meio
de se fazer lembrar senão apelando para substitutos metafóricos. O incons-
ciente, sob a pena de Freud, não é o que está numa região sub, abaixo e que
necessitaria de uma técnica de escavação para encontrá-lo.
Não é, nem por isso, factível de ser empírica e positivamente observá-
vel. Não se confunde, tampouco, com os arquétipos coletivos junguianos,
isto é, com o “material psíquico que subjaz ao limiar da consciência”119.
Jung, ao defender a teoria da existência de um “inconsciente coletivo”,
defende a noção de conteúdos inconscientes como produtos residuais das
experiências da raça humana com o mundo. Para Jung “[...] as camadas
mais profundas do inconsciente” (p.31) estão inteiramente constituídas
sob a base de “imagens primordiais” – os arquétipos – constitutivos do
“inconsciente coletivo”. De acordo com Jung “aproximar-nos-emos mais
da verdade se pensarmos que nossa psique consciente e pessoal repousa
sob a ampla base de uma disposição psíquica herdada e universal, cuja
natureza é inconsciente” (p. 21). Jung elaborou a concepção da existência
de um inconsciente coletivo a partir de uma dada interpretação conferida
ao inconsciente freudiano. Jung concebeu a existência de um inconsciente
coletivo, situado além e mais profundamente do inconsciente individual,
pelo fato de que considerou que no inconsciente individual os conteúdos
adquiridos durante a existência do indivíduo são limitados, e de que, por-
tanto, se só existisse o inconsciente individual seria possível “esgotar o
inconsciente mediante a análise e inventário exaustivo do inconsciente” (p.
4). O inconsciente coletivo, em Jung, é também o produto das experiências
adquiridas durante a existência, só que, desta vez, das experiências já não
mais individuais, mas das experiências da raça com o mundo. “O incons-
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
119
Jung. C. G. – O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987, 3.
395
A u g u s tK A s c e n sDoiasP a s c o a l
oaquinda
5. Conclusão
De acordo com o que foi exposto aqui, pode-se concluir que o incons-
ciente dá fundamento à psicanálise, tanto no concernente à sua teoria quanto
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
120
Melman, C. – Novos estudos sobre a histeria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985, 52.
396
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
397
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oaquinda
de doença mórbida. Sem muitos entraves, tornou-se ideia aceita por muitos
teóricos que o próprio da atividade psíquica consciente é apreender-se a si
mesma, refletindo neste ato o eu. Por esta via solidarizou-se a proposição
de uma interdependência, e até mesmo homologação, dos termos: consci-
ência = ego. O sujeito psicológico (indivíduo) é o sujeito do conhecimento,
hipostasiado na função de consciência do ego.
A teoria do inconsciente em Freud nada deve às teorias filosóficas que
pressupõem estados de dupla consciência. Freud postula a universalidade
dos processos inconscientes, e não sua contingência patológica. Identificar
o inconsciente ao patológico, assim como supor a existência de técnicas
que poderiam torná-lo acessível e cristalino à consciência, constitui-se um
ato de recusa do inconsciente freudiano.
Freud postula a presença de processos de pensamentos que ao se
produzirem fora da consciência obedecem à outra ordem de leis e de ló-
gica diferentes daquelas que regem os pensamentos da consciência. Em
continuidade direta com a proposição de que o inconsciente é sede de
pensamentos e de que, portanto, ele pensa, Freud afirma que o inconscien-
te é também sede de representações investidas libidinalmente, isto é, de
representações que veiculam o desejo inconsciente de um sujeito. Freud
estabelece a concepção de um sujeito submetido a uma divisão psíquica
irremediável. O sujeito freudiano não é, e nem poderá jamais formar, uma
unidade organizada em torno da consciência. Freud descobre muito cedo em
sua experiência clínica que o sujeito é habitado por pensamentos e desejos
que operam à revelia de qualquer controle racional consciente, constando
que o inconsciente se apresenta como um Outro estranho ao próprio sujeito,
que pensa e deseja em seu lugar, e que nada pode fazê-lo calar. Freud decide
então escutar a insistente mensagem inconsciente cifrada sob a forma de
símbolos mnêmicos.
O que é um símbolo para Freud e qual a lógica de sua produção? No
período dos Estudos Sobre a Histeria Freud elabora que um símbolo é um
substituto, algo que está no lugar de uma outra coisa ausente, e que tem
a missão de representá-la, desenvolvendo que a força que entra em jogo
398
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta
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oaquinda
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
400
O Inconsciente
Nas raízes
– uma tolerância de Freud
dadescoberta
401
9
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oaquinda
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
123
Lacan, J. – O Seminário. Livro l. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1979, 222.
402
Nas raízes da tolerância
A pobreza em espírito
Para um encontro e diálogo cristão-budista
Comentário ao Sermão 52 de Mestre Eckhart 1
Paulo Borges
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
403
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oaulo en so Pascoal
orges
Aprende a renunciar
a tudo
até mesmo ao silêncio
(José Tolentino de Mendonça)
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
2
Cf. Paulo BORGES, “Ser ateu graças a Deus ou de como ser pobre é não haver
menos que o Infinito – a-teísmo, a-teologia e an-arquia mística no sermão “Beati pauperes
spiritu...”, de Mestre Eckhart”, in Philosophica, 15 (Lisboa, 2000), pp.61-77.
404
NAaspobreza
raízes da
emtolerância
espírito
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
3
Cf. Juan Martín VELASCO, El fenómeno místico. Estudio comparado, Madrid,
Editorial Trotta, 2003, p.19; Raimon PANIKKAR, La Experiencia de la Vida. La Mística,
in I. Mística y espiritualidade. 1. Mística, plenitude de Vida, edição de Milena Carrara
Pavan, coordenação da edição em castelhano de Laia Villegas Torras, Barcelona, Herder,
2015, p. 215.
4
Cf. Michael A. SELLS, Mystical Languages of Unsaying, Chicago / Londres, The
University of Chicago Press, 1994, pp.1-13.
5
Mestre ECKHART, Predigten, 1, Werke I, textos e versões de Josef Quint, editados
e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, pp.13 e 15.
6
Cf. Ibid., p.15
405
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
9
Espinosa escreve na carta 50 a Jarig Jelles que “determinatio negatio est” (“a
determinação é negação”), o que Hegel cita como “Determinatio est negatio” – HEGEL,
Science de la Logique, Premier Tome, Premier Livre, L’Être (edição de 1812), 76, tradu-
ção, apresentação e notas por Pierre-Jean Labarrière e Gwendoline Jarczyk, Paris, Aubier
– Montaigne, 1972, p.111.
406
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito
Santo, sendo afim à divindade nesse paradoxal ser “alguma coisa que não é
nem isto nem aquilo”10. Na verdade, o adjectivo que aqui traduzimos, com
Alain de Libera, entre outros, como “vazio”, e que se aplica igualmente a
Deus e à alma, é o antigo alemão ledic, o actual ledig, que veio a significar
livre, solteiro, mas que em neerlandês ainda conserva o sentido de “sem
conteúdo”, “vazio”, e em sueco de “não ocupado”. Converge assim com
o vazio português, do vacīvus latino, “vazio, vago, desocupado”, do verbo
vacāre, com os significados de “estar vazio”, “estar livre”, “estar desocu-
pado” e “ter tempo / vagar para”. Também vácuo, em português, procede
do vacŭus latino que, além de sentidos afins, significa “livre de embaraços,
calmo, tranquilo, pacífico” e “livre, aberto”. Divisa-se assim que a comum
vacuidade de Deus e da alma – onde como veremos não há separação ou
mesmo distinção entre o que se designa como “Deus” e “alma”, pela simples
e mais funda razão de não haver aí nem “Deus” nem “alma”, de não haver
aí qualquer determinação – refere uma experiência de liberdade, infinidade,
desocupação e abertura sem contornos que simultaneamente se afigura como
uma serenidade primordial e uma potencialidade ilimitada, inerente a um
Nada que vimos designar um estado sem prisão ou fixação em si, livre de
propriedade, egoidade ou ipseidade. Um estado desasido, para retomar a
linguagem de São João da Cruz11 e da mística ibérica, isto é, livre de todo
o asir, o agarrar, o segurar (pela asa), o lançar mão de alguém ou algo (afim
ao saisir francês) e que tem o seu equivalente no upādāna budista, o se-
gurar ou agarrar, a apropriação, o nono elo da originação interdependente
que retém a consciência no samsāra, enquanto a sua cessação é o nirvāna.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Cf., entre outros lugares: “Y así grandemente se estorba una alma para venir a
11
este alto estado de unión con Dios cuando se ase a algún entender, o sentir, o imaginar,
o parecer, o voluntad, o modo suyo, o cualquiera otra cosa o obra propria, no sabiéndose
desasir y desnudar de todo ello” - São João da CRUZ, Subida del Monte Carmelo, livro
2, cap. 4, in Obras Completas, edição crítica preparada por Lucinio Ruano de la Iglesia,
Madrid, BAC, 2002, p.299.
407
A u g u s tP A s cB
oaulo en so Pascoal
orges
12
Cf. PARMÉNIDES, Le Poème, VIII, 27, texto, tradução e ensaio crítico por Denis
O’Brien em colaboração com Jean Frére, Études sur Parménide, I, publicados sob a direcção
de Pierre Aubenque, Paris, J. Vrin, 1987, p.38.
13
Cf. João Escoto ERIÚGENA, Periphyseon (De Divisione Naturae), Liber Tertius,
editado por I. P. Sheldon-Williams com a colaboração de Ludwig Bieler (edição bilíngue),
Dublin, The Dublin Institute for Advanced Studies, 1981, p.184.
14
Cf. Reiner Schürmann, Des Hégémonies Brisées, Mauvezin, Trans-Europe-
Repress, 1996.
15
Sobre o conceito de Nada na tradição ocidental, cf. Sergio GIVONE, Historia
de la nada, tradução de Alejo González e Demian Orosz, Buenos Aires, Adriana Hidalgo
editora, 2009.
408
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raízes da
emtolerância
espírito
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
16
Cf. Teixeira de PASCOAES, Santo Agostinho (comentários), Porto, Livraria
Civilização, 1945, pp.275-276.
17
Cf. Paulo BORGES, “O desejo e a experiência do Uno em Plotino”, in Philosophica,
nº 26 (Lisboa, 2005), pp.175-214.
18
Cf. PLOTINO, Enéadas, VI ², 7, 41, texto estabelecido e traduzido por Émile
Bréhier, Paris, Belles Lettres, 1989, p.117; 9, 5, p. 178; 9, 6, p.180.
19
Cf. DAMÁSCIO, Traité des Premiers Principes. De l’Ineffable et de l’Un, I, texto
estabelecido por Leendert Gerrit Westerink e traduzido por Joseph Combès, Paris, Les
Belles Lettres, 1986, pp.7-8.
20
Cf. Ibid., p.4.
21
Pseudo-Dionísio AREOPAGITA, Teologia Mística, edição bilingue, versão do grego
409
10
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal
divino que inspira e move a suplicante busca de união com isso que, “li-
berto de tudo”, é inacessível a toda a afirmação e negação, transcendendo
todas as categorias, pois nem é nem não é, não “é um nem unidade, não é
divindade ou bondade”22. Isto confirma-se, para ficarmos apenas na vertente
ocidental do neoplatonismo cristão, em João Escoto Erígena, ao emancipar
Deus ou o Bem do ser que dele procede, considerando-o como um supra-
-ser (superesse), um não-ser por excesso ou um nada por eminência ou
“por infinidade”, que ignora, por excesso, toda a quididade, pois “não é
um quid objectivado”, permanecendo assim “incognoscível em simultâneo
para Ele-mesmo e para toda a inteligência”23. A “glória” reside, todavia, no
seu “conhecimento por experiência directa”24, além de toda a palavra e de
todo o entendimento, além de toda a dicotomia, dualidade e categorização25.
Não é senão a isso que exorta Mestre Eckhart, de modo mais radical
no sermão sobre a pobreza em espírito, que na sua dimensão interior con-
siste no despojamento ou liberdade total: nada querer, nada saber, nada ter.
No que respeita ao primeiro destes três aspectos de uma mesma liberdade
plena, ao libertar-se de toda a “vontade criada” – incluindo a de “realizar
a vontade de Deus” -, bem como do “desejo” ou “saudade” (Verlangen)
“da eternidade” e “de Deus”, o ser humano devém “como era, quando
<ainda> não era”, quando não tinha “nenhum Deus” e era “causa primei-
ra” de si mesmo, fruindo da “verdade” numa pura coincidência entre ser
e querer, “livre de Deus e de todas as coisas”. Foi apenas quando, “por
livre determinação da vontade” (aus freiem Willensentschluβ), saiu dessa
410
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito
primordial e pura imanência recebendo o ser criado, que passou a ter “um
Deus”, pois antes de haver “criaturas” Deus não era “Deus”, mas apenas
“o que (...) era”, sendo somente pela constituição das “criaturas” que Deus
deixa de ser em si mesmo, sem determinação, para passar a ser nelas, como
“Deus”. A determinação de Deus como tal é assim relativa à determinação
das criaturas como tais, num mesmo movimento de transformação de uma
comum natureza ou fundo primordial, pois “a mais ínfima criatura”, na
medida em que é “em Deus”, tem a mesma “categoria de ser” que ele, o
que faz com que Deus, enquanto apenas o é para a criatura, não possa ser
o seu “fim supremo”. Na verdade, se uma “mosca” possuísse “intelecto” e
fosse capaz de “buscar intelectualmente o abismo eterno do ser divino de
onde saiu”, o mero “Deus” que o é para a criatura não a poderia satisfazer.
É por esse motivo, diz o pregador, que “nós rogamos a Deus ser livres de
Deus” (Darum bitten wir Gott, daβ wir Gottes ledig werden), fruindo eter-
namente a verdade “aí onde os anjos mais elevados, a mosca e a alma são
iguais”, essa mesma imanência abissal e primordial onde se residia antes
da livre decisão criadora, quando se queria o que se era e se era o que se
queria, nada querendo portanto, na original “pobreza” do estado incriado
e pré-criatural26.
A mesma liberdade radical expressa-se no nada saber, num esvazia-
mento de todo o conhecimento de modo a que o ser humano não saiba
nem sinta que Deus “vive nele”, pois quando ainda residia “no ser eterno
de Deus” nada aí vivia senão ele mesmo, porém no pré e supra-existencial
estado primordial livre de toda a alteridade (e da distinção sujeito-objecto
inerente a todo o conhecimento). Libertando-se de todo o conhecimento, o
ser humano recupera esse estado primordial, anterior a ser algo ou alguém,
anterior à determinação da existência e da criatura, o que o pregador vê como
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Cf. Mestre ECKHART, Predigten, 52, in Werke I, textos e versões de Josef Quint,
26
editados e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt, Deutscher Klassiker Verlag, 2008,
pp. 553 e 555.
411
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o aulo so Pascoal
um deixar Deus operar o que quiser e permanecer livre de saber algo acerca
disso27. Na verdade, na nova visão eckhartiana, equidistante dos termos da
disputa tradicional, a beatitude não reside nem no conhecimento nem no
amor, mas em “algo (Etwas) na alma, de onde emanam conhecimento e
amor” e que “não conhece e não ama”, “não tem antes nem depois”, nada
espera e “não pode nem ganhar nem perder”. Isso não sabe ser Deus que
em si opera, sendo pura auto-fruição divina, e é também neste sentido que
o ser humano deve permanecer “quite e livre”, sem nada saber acerca do
operar divino em si, pois Deus, ao contrário da doutrina tradicional dos
“mestres”, “não é Ser nem intelectual” , consistindo antes num estar livre
“de todas as coisas”, razão pela qual “é (...) todas as coisas”. O nada saber,
“nem de Deus, nem da criatura, nem de si mesmo”28, é a “pobreza” de nada
retirar nem acrescentar a esta divina liberdade, riqueza e plenitude.
O terceiro e para Eckhart mais claro aspecto desta pobreza ou liber-
dade radical é o nada ter, no sentido mais profundo de não possuir um ser
diferenciado, pois trata-se de nem sequer haver no ser humano um lugar
distinto onde Deus possa operar, de modo a que Deus, ao operar na “alma”,
não opere senão em si mesmo. “O homem padece assim Deus em si”, tão
“livre de todas as criaturas e de Deus e de si mesmo” que não mantenha
qualquer “lugar” ou “distinção” própria, reencontrando “o ser eterno que
foi, que é agora e que permanecerá para sempre”29.
É neste contexto que Eckhart volta a rogar a Deus que o livre de Deus,
pois o seu “ser essencial (wesentliches Sein) está acima de Deus enquanto
o concebemos como origem das criaturas”. Na verdade, como reitera, é
nisso que em Deus está “acima de todo o ser e acima de toda a diferença”
que ele próprio residia (e reside), na imanência primordial onde é eterna
causa de si mesmo. Aí é “não-nascido” (ungeboren) e como tal não pode
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
27
Cf. Ibid., pp.555 e 557.
28
Cf. Ibid., pp.557 e 559.
29
Cf. Ibid., pp.559 e 561.
412
NA
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raízes da
emtolerância
espírito
30
Cf. Ibid., pp.561 e 563.
31
Cf. Ibid., p.563.
32
Cf. Ibid.
413
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o aulo so Pascoal
33
Cf. Id., “De l’Homme Noble”, in Traités et Sermons, tradução, introdução, notas e
index de Alain de Libera, Paris, Flammarion, 1995, 3ª edição, p.178.
34
Cf. Ibid.
35
Cf. Id., Predigten, 22, in Werke I, p.259.
36
LIN-TSI, Instructions Collectives, 20 b, in Entretiens de Lin-tsi, traduzidos do chinês
e comentados por Paul Demiéville, Paris, Fayard, 2010, p.117. Cf. Paulo BORGES, “”Se
vires o Buda, mata-o!”. Ensaio sobre a essência do budismo”, in Descobrir Buda. Estudos
e ensaios sobre a via do Despertar, Lisboa, Âncora Editora, 2010, pp.79-101.
37
“Se não comerdes a carne do Filho do Homem / e não beberdes o seu sangue, / não
tereis a vida em vós” – Evangelho segundo São João, 6, 53; cf. também 51-58.
414
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espírito
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
38
Raimon PANIKKAR, El silencio del Buddha. Una introducción al ateísmo religioso,
Madrid, Ediciones Siruela, 1996, p.262.
39
Cf. Evangelho segundo São João, 15, 26, 16, 7 e 16, 12-13.
40
Cf. Mestre ECKHART, Von Abgeschiedenheit, in Predigten. Traktate, Werke II,
textos e versões de Ernst Benz, Karl christ, Bruno Decker, Heribert Fischer, Bernhard Geyer,
Josef Koch, Josef Quint, Konrad Weiβ e Albert Zimmermann, editados e comentados por
Niklaus Largier, Frankfurt, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p. 457.
41
Cf. Saddharma Pundarīka Sūtra, XV, 268-272.
42
Cf. Mestre ECKHART, Von Abgeschiedenheit, in Predigten. Traktate, Werke II,
pp.435, 451, 453 e 459.
43
“(...) pois a divindade de Deus reside em ele não estar separado de todas as coisas”
– Mestre ECKHART, Predigten, 77, in Werke I, p.143. Falando de Eckhart, diz um dos seus
415
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416
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2014, p.91. Comentando a súplica eckhartiana de ser livre de Deus, Leloup escreve que “o
homem livre é sem ideias, sem ideal, sem ídolo, sem Deus” – Ibid., p.98.
48
Cf. Paulo BORGES, “Do Bem de nada ser. Supra-existência, aniquilamento e deifi-
cação em Margarida Porete”, in AAVV, Razão e Liberdade. Homenagem a Manuel José do
Carmo Ferreira, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa / Departamento de Filosofia
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010, pp.349-371.
49
Veja-se de Silesius o poema com o título “Deve-se ir ainda além de Deus”: “Onde
é a minha morada? Onde eu e tu não estamos. / Onde é o meu fim último, para o qual devo
ir? / Aí onde nenhum se encontra. Para onde irei então? / Devo ir ainda além de Deus, para
um deserto” (“Man muβ noch über Gott – Wo ist mein Aufenthalt? Wo ich und du nicht
stehen. / Wo ist mein letztes End, in welches ich soll gehen? / Da, wo man keines findt. Wo
soll ich denn nun hin? / Ich muβ noch über Gott in eine Wüste ziehn”) – Angelus Silesius,
Cherubinischer Wandersmann, I, 289, in Sämtliche Poetische Werke, III, pp.7-8 e 219. Numa
nota ao último verso esclarece que se trata de ir “além de tudo o que se conhece de Deus ou
dele se pode pensar / segundo a via negativa”, acrescentando: “acerca de tal, procurar nos
Místicos”. Cf. Paulo BORGES, “Transcender Deus: de Eckhart a Silesius”, Philosophica,
34 (Lisboa, 2009), pp.439-457.
50
Cf. Friedrich NIETZSCHE, A Gaia Ciência, tradução de Alfredo Margarido, Lisboa,
Guimarães Editores, 1977, 2ª edição, p.143.
51
Cf. Ibid., p.230.
417
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o aulo so Pascoal
52
Cf. Ibid., pp.231-232.
53
Cf. Ibid., pp.230-231.
54
Cf. Ibid., p.129.
55
Cf. Ibid., pp.143-144.
418
NA
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emtolerância
espírito
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
56
O “fundo simples” (“einfaltigen Grund”) é simultaneamente o “deserto silencioso
onde jamais a distinção lançou um olhar, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo” (“die
stille Wüste, in die nie Unterschiedenheit hineinlugte, weder Vater noch Sohn noch Heiliger
Geist”) – Mestre ECKHART, Predigten, 48, Werke I, p. 509.
57
Veja-se entre outros o sermão onde Eckhart comenta o passo dos Actos dos Apóstolos,
9, 3-9, que narra a aparição de Jesus ao futuro São Paulo, subitamente envolvido por “uma
luz vinda do céu” que o faz cair por terra. Quando se ergue, diz o texto que, “embora tivesse
os olhos abertos, não via nada”. Eckhart encontra aqui quatro sentidos: “Um desses sentidos
é: quando se levantou da terra, de olhos abertos nada viu e esse nada era Deus; pois, ao ver
Deus, chama-o um nada. O segundo sentido: quando se levantou, nada viu senão Deus.
O terceiro: em todas as coisas, nada viu senão Deus. O quarto: ao ver Deus, viu todas as
coisas como um nada” - Mestre ECKHART, Predigten, Traktate, Werke II, 71, p.65. Cf.
Paulo BORGES, “Mestre Eckhart e Longchenpa: do fundo sem fundo primordial como
nada e vacuidade”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I, coordenação
de Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, pp.567-579.
58
Mestre ECKHART, Predigten, 1, Werke I, pp.13 e 15.
419
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59
João, 10, 30.
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.
60
Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa
de mim, vai encontrá-la” – Mateus, 16, 24-25.
61
Cf. Meister ECKHART, Predigten, 5B, Werke I, pp.71 e 73.
62
“[…] cuando una alma en el camino espiritual a llegado a tanto que se ha perdido a
todos los caminos y vías naturales de proceder en el trato com Dios, que ya no le busca por
consideraciones ni formas ni sentimientos ni otros modos algunos de criaturas ni sentido,
[…]” – São João da CRUZ, “Cantico Espiritual (B)”, Canção 29, 11, in Obras Completas,
edição crítica, notas e apêndices de Lucinio Ruano de la Iglesia, Madrid, BAC, 2002, p.858.
420
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emtolerância
espírito
preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, pare-
cermos dignos dela?”63. O que significa isto? Encontramos duas grandes
possibilidades de interpretação. A primeira, mais fácil e predominante, é a
que se converteu no programa do humanismo ateu e antropocêntrico, mesmo
sem consciência disso ou negando-o: substituir o lugar vazio do “Deus”
cristão pela humanidade autodivinizada, que se auto-institui como o novo
centro do mundo, que doravante não ofereceria mais limites ao domínio do
humano, tal como este se representa e celebra na civilização tecnocientífica
de matriz europeia-ocidental hoje globalizada. Reconhecendo a representa-
ção teológica do divino como projecção psicológica humana (Feuerbach), a
consciência humana, individual e/ou colectiva, preencheria consigo mesma
o vazio aberto pela morte de Deus. Já a segunda leitura – bem mais exi-
gente, em termos teóricos e práticos, espirituais, intelectuais e éticos, e por
isso mesmo minoritária – é a que entende a necessidade de se tornar deus
para ser digno da morte de Deus como a exigência de uma plena e infinita
transcensão do próprio humano, que se deve esvaziar radicalmente de todas
as determinações, referências e apoios, a começar pelo autocentramento,
para ser capaz de habitar o vazio, ou antes, ser o vazio aberto pelo Deus que
nele deixou de colocar (na leitura eckhartiana, ser o puro infinito que Deus
é, livre da ideia de Deus, ou seja, da sua divinização pela humanidade). A
“grandeza” do deicídio64 seria assim inseparável dessa suma “grandeza”
humana que Nietzsche, no Assim Falava Zaratustra, proclama consistir em
o humano “ser uma ponte e não uma meta”, residindo precisamente o que
nele há de amável em ser “transição e perdição” e “uma corda estendida
entre o animal e o Super-Homem – uma corda sobre um abismo”: “Amo
os que só sabem viver com a condição de perecer, porque perecendo se
superam”65. Esta grandeza seria a da superação do humanismo, quer na sua
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Cf. Ibid.
64
65
Cf. Id., Assim Falava Zaratustra, tradução de Alfredo Margarido, Lisboa, Guimarães
Editores, 1964, p.15.
421
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal
de Constança Marcondes César, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, p.52.
67
Cf. Friedrich NIETZSCHE, A Gaia Ciência, pp.144-145.
68
Cf. Mestre ECKHART, Predigten, 5b, Werke I, 5b, p.71.
422
NA
aspobreza
raízes da
emtolerância
espírito
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69
Cf. Bernard McGINN, The Harvest of Mysticism in Medieval Germany, pp.125-129.
70
Realidade vem do latino res (coisa) e este, segundo alguns, do proto-itálico reis,
por sua vez procedente do proto-indo-europeu reh, ís, com o significado de “riqueza, bens”,
afim ao antigo persa rāy- (paraíso, riqueza), ao avéstico rāy-, com o mesmo sentido (paraíso,
riqueza), e ao sânscrito rayí (propriedade, bens).
71
Cf. Paulo BORGES, “Mestre Eckhart e Longchenpa: do fundo sem fundo primor-
dial como nada e vacuidade”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I,
coordenação de maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, p.577.
72
Cf. Lao TSE, Tao Te King. Livro do Caminho e do Bom Caminhar, 40, tradução
e comentários de António Miguel de Campos, Lisboa, Relógio d’Água, 2010, pp. 26-27.
73
“Eu só podia acreditar num Deus que soubesse dançar” – Friedrich NIETZSCHE,
Assim Falava Zaratustra, p.46.
74
“A rosa é sem porquê; floresce porque floresce, / não se considera a si própria, não
pergunta se é vista” – Angelus SILESIUS, Cherubinischer Wandersmann, I, 289, in Werke,
III, Munique, Carl Hanser-Verlag, 1949, p.39.
423
A u g u s tP A s c eBnorges
o aulo so Pascoal
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Les Évangiles de la route de la soie, traduzido por Laurent Strim, Vannes, Sully, 2004, p. 226.
424