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Django Livre de Quentin Tarantino e Pai Contra a Mãe de Machado de Assis: retratos da

escravatura na América

No conto Pai Contra a Mãe (1906) de Machado de Assis, acompanhamos a trajetória


de Cândido, um homem brasileiro branco que possui um futuro pouco promissor. Sem
nunca ter tido um trabalho formal, casado e com um filho à espera, Cândido procura seu
sustento na caça de escravos fugidos. Apesar de ter sido advertido diversas vezes por Tia
Mônica, tia de sua esposa Clara, de que o adequado seria procurar um trabalho que
oferecesse mais segurança, esses nunca foram os planos de Cândido, que inclusive possui
certo orgulho da ocupação, apesar de viver na pobreza e não ter um futuro promissor para
seu filho. O conto avança até que se chegue em um momento de impasse: sem conseguir
capturar um escravo por muito tempo, Cândido não possui dinheiro para comida ou para o
aluguel, e todos são despejados pouco antes de Clara dar à luz. Cândido decide ceder aos
conselhos de Tia Mônica, e leva seu filho recém-nascido para a Roda dos Enjeitados, local
de abandono para recém-nascidos em instituições de caridade, dada às circunstâncias de
extrema pobreza da família. Desesperado e vagando pelas ruas com o filho nos braços,
Cândido cruza caminhos com Arminda, uma escrava grávida fugida que valia uma grande
quantidade de dinheiro. Deixando o filho no farmacêutico, Cândido corre atrás da mulher e a
captura, apesar dos pedidos de clemência. Arminda está grávida, e sabe que irá levar
chicotadas quando voltar, situação ainda mais grave no seu estado. Dando voz à classe
escravocrata, Cândido questiona:
“— Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?”
O homem leva Arminda até a casa do senhor e, no próprio portão, enquanto Cândido é
pago, Arminda aborta, tomada pelo medo e pela dor. Rapidamente, Cândido se retira da
cena, busca seu filho e o leva para casa em segurança com a certeza do dinheiro que irá
garantir a comida do dia seguinte, agradeçe a fuga e o aborto da escrava entre lágrimas,
dizendo:
“— Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”

Já no filme Django Livre (2012) dirigido por Quentin Tarantino, somos apresentados
ao personagem Django, um escravo inseguro e tímido que, enquanto é transportado, um
homem chamado Dr. King Schultz o aborda. Esse é um dentista alemão, caçador de
recompensas que captura ladrões em troca de recompensas. A Dr. King é dado o direito de
matar os procurados se necessário durante sua busca. Django conhece os homens que o
dentista deseja capturar, por isso ele compra Django, o liberta e o chama para uma
conversa na mesa de bar. Lá, Django aceita se tornar sócio de Dr. King e ajudá-lo na
captura dos fugitivos, desde que King ajude Django a recuperar sua esposa, Brunhilda. Na
caça dos primeiros homens procurados por Dr. Schult, dois homens brancos, Django mata
um deles no campo de algodão e açoita um outro na frente de outros escravos da fazenda.
A partir daí, se inicia uma jornada de vingança, onde Django assume as rédeas de sua
própria história contra o sistema que o oprime.
O filme se passa dois anos antes da guerra civil americana (1861), onde os estados
do Norte defendiam uma sociedade mais industrializada e o trabalho de homens livres. Já
os estados do Sul eram totalmente agrícolas (voltados para o platio de algodão) e
pró-escravidão. Em 1865 a guerra terminou com a vitória do Norte e ocasionando no
reconhecimento dos direitos civis e politicos aos escravos negros libertos nos Estados
Unidos. O filme se passa no sul, dois anos antes da guerra. Django sai de escravo para
homem livre, até recuperar sua esposa.
O maior antagonista no filme, Calvin Candie, é aquele que possui a fazenda onde
Brunhilda se encontra. Calvin é a incorporação dos ideais sulistas, pois é dono de uma
grande platação e deixa seu óbvio desprezo pelos negros. Em uma das cenas, Calvin diz
que os negros só possuem serventia para trabalhos braçais ou para lutas até a morte de
entreterimento. Ele vê a figura de Django como algo cômico, um escravo liberto que é
caçador de recompensas ao lado de um estrangeiro. Após uma cena de luta e troca de
tiros, Calvin é morto, Django escapa e destrói a mansão Candie vestindo as roupas de seu
dono falecido, fugindo ao lado de Brunhilda.
Apesar das duas obras discutirem sobre a realidade dos escravos na América e
possuírem algumas semelhanças, há uma clara diferença de abordagem. No conto de
Machado, apesar de ser narrado em terceira pessoa e possuir um narrador que ironiza a
situação dos negros no Brasil, a realidade é apresentada como ela é de fato, nua e crua.
Apenas alguns bebês sobrevivem, e esses são os dos homens brancos. Cândido e Clara
são pobres, mas não são nem escravos e nem senhores, vivem nesse vácuo, ora sendo
oprimidos, ora sendo opressores, pois, apesar de não possuírem riquezas, são brancos,
permitindo que Cândido seja o caçador dos escravos fugitivos. O final, apesar de feliz para
o casal e seu filho, não deixa o leitor esperançoso em relação à realidade. O filho de
Armindo está morto, e outros também irão morrer. Já no filme Django, a narrativa proposta
por Tarantino é a de vingança histórica. Django passa de um escravo tímido, para uma força
de vingança contra o sistema escravocrata estadunidense. Ele se apropria dos meios dos
senhores e de sua violência, para destruí-los em seu próprio jogo. Em certo momento,
Django assume o papel de alguém que menospreza os negros para conseguir se aproximar
de Calvin e recuperar a sua esposa. Por misturar fatos históricos com ficção, Django se
torna um filme que reflete sobre a herança escravocrata estadunidense, enquanto propõe
uma vingança para os oprimidos desse sistema na imagem do protagonista.
Um ponto em comum entre as duas obras é a presença da violência. O tom inicial do
narrador do conto Pai Contra a Mãe se assemelha muito à narrativa do filme de Django,
quando esse tece comentários ironicos sobre a situação dos escravos no Brasil e o tipo de
violência que sofriam, com a descrição dos aparelhos de tortura ou a cena do aborto de
Arminda.
“A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca.
Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por
um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era
dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados
extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem
social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Há meio
século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da
escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de
apanhar pancada”
Essa violência também esta presente no filme Django, que possui diversas cenas de
morte e tortura, mas reservada apenas aos homens brancos. Quando Django açoita o
bandido que procura, a cena é clara, mas quando um escravo fugitivo é comida vivo por
cachorros, a cena é cortada, reforçando a narrativa proposta de vingança. Outra questão
importante, são os sinais dos escravos. É por esses sinais físicos e trejeitos que Cândido
reconhece os escravos que deve capturar, e é pelo sinal que Brunhilda tem no rosto, que
Dr. King reconhece a esposa de Django na casa de Calvin. Esses sinais de identificação
dão meios para que Cândido exerça sua função como mantenedor da estrutura
escravocrata, e é esse sinal que também permite que Django e Dr. King deem seu primeiro
passo contra Calvin e recuperação de Brunhilda. Os nomes também possuem um grande
significado nas duas obras: a branquitude do casal do conto de Machado é exposta em
seus nomes Cândido e Clara, também trazendo uma noção de tranquilidade e falta de
firmeza. Já Brunhilda é o nome da valquíria mitológica nórdica resgatada por seu amado
Siegfried na ópera clássica alemã “O Anel de Nibelungo”, história que que Dr. King conta
para Django à beira de uma fogueira, em uma das cenas mais bonitas do filme.
Vale ressaltar que nas duas obras é possível perceber que a escravidão é justificada
por um sentido de superioridade. Cândido entrega uma escrava grávida, mesmo com o filho
recém-nascido, e se justifica colocando a culpa em Arminda, que engravidou e fugiu. Tal
lógica também é reforçada por Tia Mônica que diz “palavras duras” sobre a escrava por
conta do aborto e a fuga. Há um sentimento de superioridade que ratifica as ações de
Cândido graças à lógica escravocrata. No filme de Tarantino, Django se aproveita desse
pensamento para se aproximar de Calvin e realizar sua vingança, mas, no processo, cruza
com Stephen, um escravo que serve Candie e que defende as ações do senhor, já que
decide aceitar a lógica escravocrata como ela é para a própria sobrevivência. O
preconceito, segundo Nilma Lino Gomes (2005) é:
“(...) um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de pertença,
de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel significativo. Esse
julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade, pois tende a ser
mantido sem levar em conta os fatos que o contestem” (GOMES, 2005, p.54-55).
Esse tipo de pensamento permite que os indivíduos não sintam empatia pelo outro,
não vendo o negro como um ser humano e sim como alguém inferior, proporcionando uma
sensação de justificativa para Cândido e Calvin e suas ações absurdas.
Portanto, é possível concluir que as duas obras apresentam narrativas críticas sobre
a questão dos escravos nos Estados Unidos e Brasil, mas através de abordagens distintas.
Machado apresenta uma classe social muito característica brasileira, a de homens brancos
livres que vivem de forma precária e que usufruem da lógica escravocrata. Esse é um
arquétipo de personagem muito comum em diversas obras de Machado como: Brás Cubas
e José Dias. Já em Django, a história é contada sob o ponto de vista do escravo liberto que,
através da violência, procura sua própria justiça e reparação.

Bibliografia:

Apontamentos sobre “Pai contra mãe”. Texto oferecido pelo Prof. Paulo Motta Oliveira na
disciplina Literatura Portuguesa: Ensino-Aprendizagem;

Assis, Machado de. Pai Contra a Mãe. In: 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 466-475;

Django Livre. Direção: Quentin Tarantino. Produção de Stacey Sher, Reginald Hudlin e Pilar
Savone. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2012;

GOMES, N. L. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no


Brasil: uma breve discussão. In: EDUCAÇÃO Antirracista: caminhos abertos pela Lei
Federal nº 10.639/03/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005. p.39-62. (Coleção Educação para Todos);
Hebbel, Friedrich. Os Nibelungos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora
Peixoto Neto, 2016.

Título do trabalho

Django Livre de Quentin Tarantino e Pai Contra a Mãe de Machado de Assis:


Retratos da escravatura na América

Aspectos positivos

Os resumos das obras são muito bons, possibilitando que o leitor que não as
conheça entenda os seus enredos. Os pontos comparados de ambas as obras
foram bem analisados, destacando bem as suas semelhanças e os pontos que as
diferenciam. Excertos do conto analisado e de textos teóricos estão presentes no
texto, ajudando na caracterização do que é analisado.

Aspectos que poderiam ser modificados

No texto há a presença de alguns erros de digitação. Não há recuo de margem nas


duas citações longas do texto. O nome do conto está erroneamente apontado no
título e no corpo do texto.

Conceito Proposto

Excelente.

Justificativa do conceito atribuído

Os argumentos de comparação entre obras são bastante coerentes. Muito


interessante a comparação entre o filme de um diretor estadunidense e o conto de
um escritor brasileiro, mostrando diferentes abordagens da escravidão nas obras. A
leitura do texto é fluida e prazerosa.
Django Livre de Quentin Tarantino e Pai contra mãe de Machado de Assis: retratos da
escravatura na América

No conto Pai contra mãe (1906) de Machado de Assis, acompanhamos a trajetória


de Cândido, um homem brasileiro branco que possui um futuro pouco promissor. Sem
nunca ter tido um trabalho formal, casado e com um filho à espera, Cândido procura seu
sustento na caça de escravos fugidos. Apesar de ter sido advertido diversas vezes por Tia
Mônica, tia de sua esposa Clara, de que o adequado seria procurar um trabalho que
oferecesse mais segurança, esses nunca foram os planos de Cândido, Ele, inclusive, possui
certo orgulho da ocupação, apesar de viver na pobreza e não oferecer um futuro promissor
para seu filho. O conto avança até um momento de impasse: sem conseguir capturar um
escravo por muito tempo, Cândido não possui dinheiro para comida ou para o aluguel, e
toda a família é despejada pouco antes de Clara dar à luz. Cândido decide ceder aos
conselhos de Tia Mônica, e leva seu filho recém-nascido para a Roda dos Enjeitados, local
de abandono para recém-nascidos em instituições de caridade, dada às circunstâncias de
extrema pobreza da família. Desesperado e vagando pelas ruas com o filho nos braços,
Cândido cruza caminhos com Arminda, uma escrava grávida fugida que valia uma grande
quantidade de dinheiro. Deixando o filho no farmacêutico, Cândido corre atrás da mulher e a
captura, apesar dos pedidos de clemência. Arminda está grávida, e sabe que irá levar
chicotadas quando voltar, situação ainda mais grave dado o seu estado atual. Dando voz à
classe escravocrata, Cândido questiona:

“— Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?”

O homem leva Arminda até a casa do senhor e, no próprio portão, enquanto


Cândido é pago, Arminda acaba abortando, tomada pelo medo e pela dor. Rapidamente,
Cândido se retira da cena, busca seu filho e o leva para casa em segurança com a certeza
do dinheiro que irá garantir a comida do dia seguinte. Enquanto agradece a fuga e o aborto
da escrava entre lágrimas, diz:

“— Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”

Já no filme Django Livre (2012) dirigido por Quentin Tarantino, somos apresentados
ao personagem Django, um escravo inseguro e tímido que, durante o transporte junto a
outros escravos, é abordado por um homem chamado Dr. King Schultz. Ele é um dentista
alemão, caçador de recompensas que captura ladrões em troca de dinheiro. O Dr. King
possui o direito de matar os procurados, se necessário, durante sua busca. Django
conhece os homens que o dentista deseja capturar, por isso ele compra Django, o liberta e
o chama para uma conversa franca na mesa de bar. Lá, Django aceita se tornar sócio de Dr.
King e ajudá-lo na captura dos fugitivos, desde que King ajude Django a recuperar sua
esposa, Brunhilda. Na caça dos primeiros homens procurados por Dr. Schult, que são dois
homens brancos, Django mata um deles no campo de algodão e açoita o outro na frente de
outros escravos da fazenda. A partir daí, se inicia uma jornada de vingança, onde Django
assume as rédeas de sua própria história contra o sistema que o oprime.
O filme se passa dois anos antes da guerra civil americana (1861), onde os estados
do Norte defendiam uma sociedade mais industrializada e o trabalho de homens livres. Já
os estados do Sul eram totalmente agrícolas (voltados para o platio de algodão) e
pró-escravidão. Em 1865 a guerra terminou com a vitória do Norte e ocasionando no
reconhecimento dos direitos civis e politicos dos escravos negros libertos nos Estados
Unidos. O filme se passa no Sul, dois anos antes da guerra, época em que os ânimos já
estavam acirrados. Django sai de escravo para homem livre, até recuperar sua esposa.
O maior antagonista no filme, Calvin Candie, é aquele que possui a fazenda onde
Brunhilda se encontra. Calvin é a incorporação dos ideais sulistas, pois é dono de uma
grande platação e deixa óbvio seu desprezo pelos negros. Em uma das cenas, Calvin diz
que os negros só possuem serventia para trabalhos braçais ou para lutas até a morte de
entreterimento. Ele vê a figura de Django como algo cômico, um escravo liberto que é
caçador de recompensas ao lado de um estrangeiro. Após uma cena de luta e troca de
tiros, Calvin é morto, Django escapa e destrói a mansão Candie vestindo as roupas de seu
dono falecido, fugindo ao lado de Brunhilda.
Apesar das duas obras discutirem sobre a realidade dos escravos na América e
possuírem algumas semelhanças, há uma clara diferença de abordagem. No conto de
Machado, apesar do narrador em terceira pessoa criticar a situação dos negros no Brasil
através da ironia no ínicio do conto, a realidade é apresentada como ela é de fato, nua e
crua. Apenas alguns bebês sobrevivem, e normalmente são os dos homens brancos.
Cândido e Clara são pobres, mas não são nem escravos e nem senhores, vivem nesse
vácuo, ora sendo oprimidos, ora sendo opressores, pois, apesar de não possuírem
riquezas, são brancos, permitindo que Cândido seja o caçador dos escravos fugitivos. O
final, apesar de feliz para o casal e seu filho, não deixa o leitor esperançoso em relação à
realidade. O filho de Arminda está morto, e outros também irão morrer. Já no filme Django
Livre, a narrativa proposta por Tarantino é a de vingança histórica. Django passa de um
escravo tímido, para uma força de vingança contra o sistema escravocrata estadunidense.
Ele se apropria dos meios dos senhores e de sua violência, para destruí-los em seu próprio
jogo. Em certo momento, Django assume o papel de alguém que menospreza os negros
para conseguir se aproximar de Calvin e recuperar a sua esposa. Por misturar fatos
históricos com ficção, Django se torna um filme que reflete sobre a herança escravocrata
estadunidense, enquanto propõe uma vingança para os oprimidos desse sistema na
imagem do protagonista.
Um ponto em comum entre as duas obras é a presença da violência. O tom inicial do
narrador do conto Pai contra mãe se assemelha muito à narrativa do filme de Django Livre,
quando esse tece comentários ironicos sobre a situação dos escravos no Brasil e o tipo de
violência que sofriam, descrevendo os aparelhos de tortura ou a cena do aborto de
Arminda:

“A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca.
Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por
um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era
dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados
extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem
social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Há meio
século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da
escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de
apanhar pancada”

Essa violência também esta presente no filme Django Livre, que possui diversas
cenas de morte e tortura, mas reservada apenas aos homens brancos. Quando Django
açoita o bandido que procura, a cena é clara, mas quando um escravo fugitivo é comido
vivo por cachorros, a cena é cortada, reforçando a narrativa proposta de vingança. Outra
questão importante, são os sinais dos escravos. É por esses sinais físicos e trejeitos que
Cândido reconhece os escravos que deve capturar, e é pelo sinal que Brunhilda tem no
rosto que Dr. King reconhece a esposa de Django na casa de Calvin. Esses sinais de
identificação dão meios para que Cândido exerça sua função como mantenedor da
estrutura escravocrata, e é esse sinal que também permite que Django e Dr. King deem seu
primeiro passo contra Calvin e recuperem Brunhilda. Os nomes também possuem um
grande significado nas duas obras: a branquitude do casal do conto de Machado é exposta
em seus nomes Cândido e Clara, também trazendo uma noção de tranquilidade e falta de
firmeza. Já Brunhilda é o nome da valquíria mitológica nórdica resgatada por seu amado
Siegfried na ópera clássica alemã O Anel de Nibelungo, história que que Dr. King conta para
Django à beira de uma fogueira, em uma das cenas mais bonitas do filme.
Vale ressaltar que nas duas obras é possível perceber que a escravidão é justificada
por um sentido de superioridade. Cândido entrega uma escrava grávida, mesmo com o filho
recém-nascido, e se justifica colocando a culpa em Arminda, que engravidou e fugiu. Tal
lógica também é reforçada por Tia Mônica que diz “palavras duras” sobre a escrava por
conta do aborto e a fuga. Há um sentimento de superioridade que ratifica as ações de
Cândido graças à lógica escravocrata. No filme de Tarantino, Django se aproveita desse
pensamento para se aproximar de Calvin e realizar sua vingança, mas, no processo, cruza
com Stephen, um escravo que serve Candie e que defende as ações do senhor, já que
decide aceitar a lógica escravocrata como ela é para a própria sobrevivência. O
preconceito, segundo Nilma Lino Gomes (2005) é:

“(...) um julgamento negativo e prévio dos membros de um grupo racial de pertença,


de uma etnia ou de uma religião ou de pessoas que ocupam outro papel significativo. Esse
julgamento prévio apresenta como característica principal a inflexibilidade, pois tende a ser
mantido sem levar em conta os fatos que o contestem” (GOMES, 2005, p.54-55).

Esse tipo de pensamento permite que os indivíduos não sintam empatia pelo outro,
não vendo o negro como um ser humano e sim como alguém inferior, proporcionando uma
sensação de justificativa para Cândido e Calvin e suas ações absurdas.
Portanto, é possível concluir que as duas obras apresentam narrativas críticas sobre
a questão dos escravos nos Estados Unidos e Brasil, mas através de abordagens distintas.
Machado apresenta uma classe social muito característica brasileira, a de homens brancos
livres que vivem de forma precária e que usufruem da lógica escravocrata. Esse é um
arquétipo de personagem muito comum em diversas obras de Machado como: Brás Cubas
e José Dias. Já em Django Livre, a história é contada sob o ponto de vista do escravo
liberto que, através da violência, procura sua própria justiça e reparação.

Bibliografia:

Apontamentos sobre “Pai contra mãe”. Texto oferecido pelo Prof. Paulo Motta Oliveira na
disciplina Literatura Portuguesa: Ensino-Aprendizagem;

Assis, Machado de. Pai Contra a Mãe. In: 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 466-475;
Django Livre. Direção: Quentin Tarantino. Produção de Stacey Sher, Reginald Hudlin e Pilar
Savone. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2012;

GOMES, N. L. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no


Brasil: uma breve discussão. In: EDUCAÇÃO Antirracista: caminhos abertos pela Lei
Federal nº 10.639/03/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005. p.39-62. (Coleção Educação para Todos);

Hebbel, Friedrich. Os Nibelungos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora
Peixoto Neto, 2016.

1. Título do trabalho avaliado: As relações de trabalho brasileiras em “Que horas


ela volta?” e “Vidas secas”

2. Aspectos positivos
O comentário apresenta as duas obras de forma clara e compreensível. Eu conheço tanto o
filme quanto o livro proposto, mas, mesmo se não conhecesse, não haveria qualquer
problema. O autor apresenta o enredo e problemática das duas obras com detalhes, mas de
forma concisa, sem divagar muito, permitindo uma reflexão objetiva.
Outro ponto positivo, é que o autor aborda tanto os pontos de semelhança quanto os de
diferença das duas obras, o que deixa a análise completa.

3. Aspectos que poderiam ser modificados


Acredito que haviam mais detalhes que poderiam ter sido abordados na análise, para ele
não soar “superficial”, mas entendo que isso também acontece por conta da limitação do
tamanho do trabalho. Uma sugestão que eu deixo é a de apresentar os trechos das obras
que foram mencionados como forma de citação. Por exemplo, quando Fabiano fica com
raiva do patrão ou alguma fala de Val do filme. Assim, a argumentação ficará mais
embasada.

4. Conceito proposto: Excelente

5. Justificativa do conceito atribuído


O trabalho cumpre todos os requisitos propostos: as duas obras possuem relação, a
comparação é coerente, e o enredo das obras é apresentado de forma clara, permitindo que
qualquer leitor entenda a análise. O texto é bem escrito e estruturado.

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