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Publicações em Medicina Veterinária e Zootecnia

www.pubvet.com.br ISSN: 1982-1263 DOI: 10.22256/pubvet.v10n1.13-20

Fisiopatologia e terapia do cão com sepse: revisão


Breno Curty Barbosa1*, Fernanda dos Santos Alves2, Suzane Lilian Beier3, Rafael
Resende Faleiros3, Patricia Maria Coletto Freitas3
Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Clínica e Cirurgia, Belo Horizonte, MG, Brasil.
1
Médico Veterinário, Mestrando em Ciência Animal
2
Médico Veterinário, Doutorando em Ciência Animal
3
Médico Veterinário, Docente Departamento de Clínica e Cirurgia
*
Email para correspondências: brenocurty@hotmail.com

RESUMO. Os quadros de sepse em animais vêm se apresentando de forma bastante


rotineira, exigindo dos médicos veterinários cada vez mais conhecimento sobre o assunto,
além de uma equipe preparada, para adoção de estratégias terapêuticas rápidas e precisas.
A sepse cursa inicialmente com um quadro da síndrome da resposta inflamatória
sistêmica (SIRS) gerada por um agente infeccioso, que em muitos casos evolui para a
síndrome e disfunção de múltiplos órgãos, a qual sem intervenções adequadas originam
elevadas taxas de mortalidade. Contudo, a sepse na medicina veterinária e na medicina
humana é responsável por alta mortalidade em unidades de terapia intensiva. Porém, sem
o conhecimento da sua fisiopatologia não se pode intervir adequadamente. Assim,
objetivou-se com esta revisão descrever a fisiopatologia e o tratamento para cães com
sepse.

Palavras chave: Cão, fisiopatologia, sepse

Pathophysiology and therapy dog with sepsis: Review


ABSTRACT. Septic states in animals have become common and it demands the
veterinarian greater knowledge about this issue, also a qualified team in order to be able
to have quick and precise therapeutic decisions. Sepsis courses with systemic
inflammatory response syndrome (SRIS), caused by and infectious agent, that most of
times evolve into multiple organs disfunction syndrome (MODS) with high mortality
rates. However, sepsis in veterinary medicine and in human medicine is responsible for
high mortality rates in intensive care units. Nevertheless without the knowledge about its
pathophysiology one may not intervene appropriately. Through this literature review the
objective is to describe the pathophysiology and the treatment of dogs with sepsis.

Keywords: dogs, pathophysiology, sepsis

Introdução enzimas hepáticas e/ou renais; entre outros


(Theobaldo, 2012).
A sepse é definida como a Síndrome da
Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS) do A sepse grave tem sido diagnosticada com
hospedeiro a uma infecção, seja ela por vírus, mais frequência na medicina veterinária e é
fungos ou bactérias (Theobaldo, 2012). responsável por alta mortalidade em unidades de
terapia intensiva e em clínicas veterinárias, sendo
Na sepse grave observa-se um quadro de
de grande importância intervenções imediatas
sepse associado com uma disfunção orgânica
para seu controle e tratamento. Porém, sem o
com alterações de perfusão. Dentre as disfunções
conhecimento da sua fisiopatologia não se pode
orgânicas encontram-se uma diminuição da
intervir adequadamente. Assim, objetivou-se com
pressão arterial sistólica do valor basal, oligúria,
esta revisão descrever a fisiopatologia e o
elevação dos valores de lactato sanguíneo,
tratamento para cães com sepse.
alterações em nível de consciência; alterações em

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Revisão de literatura al., 2010). A citocina pró-inflamatória 6 (IL-6)


tem sua concentração significantemente elevada
Fisiopatologia da sepse
no plasma de cães com sepse, e elevados níveis
A sepse representa uma resposta sistêmica do de IL-6 à admissão deste paciente na terapia
sistema imunológico a um agente infeccioso, na intensiva mostraram-se significativamente
qual a virulência do patógeno e a resistência do correlacionados à severidade da doença, ao
hospedeiro regulam as repercussões da resposta aumento da mortalidade (Rau et al., 2007). A IL-
inflamatória. Do patógeno, a virulência depende 8, in vivo, é um importante regulador da ativação
do número, tipo e local de organismos invasores, e migração de neutrófilos, além de ser detectada
enquanto a imuno competência do hospedeiro é no sangue de pacientes em sepse. A IL-10, por
determinada por múltiplos fatores, dentre eles sua vez, faz parte da síndrome resposta anti
idade, sexo, predisposição genética, estado inflamatória compensatória (CARS), estando
nutricional, medicamentos e condições também presente na circulação de pacientes
subjacentes, como câncer. Uma maciça carga sépticos (Thijs & Hack, 1995). A CARS tem sido
bacteriana pode suprimir os mecanismos vista como um regulador da inflamação
inibitórios para controle da inflamação, levando à exacerbada e parece ser responsável pelo óbito
inflamação sistêmica (Salomão et al., 2014). em sepse severa (Andaluz-Odeja et al., 2012).
Assim, diversos estímulos mecânicos ou Além disso, vários mediadores pró-inflamatórios
químicos, agindo na célula endotelial, aumentam associam-se ao recrutamento de neutrófilos,
a produção da enzima sintase do óxido nítrico sendo um evento-chave para controle do foco
(NOs), que tem por função catalisar a conversão infeccioso. Porém, a falência da migração
de L-arginina e oxigênio para citrulina e óxido neutrofílica para o foco infeccioso compromete
nítrico. Extremamente difusível, o óxido nítrico diversas etapas da migração celular, incluindo a
(NO) é inativado pela hemoglobina, com dessensibilização e internalização de receptores
formação de meta-hemoglobina e, quando se de fatores quimiotáxicos, redução da sinalização
difunde para as células do músculo liso adjacente intracelular envolvida na quimiotaxia e redução
às células endoteliais, propicia a ação da do rolamento e adesão dos neutrófilos ao
guanilato-ciclase, com aumento do GMP cíclico endotélio vascular, resultando no aumento da
intra-citosólico nessas células. O GMP cíclico disseminação bacteriana (Salomão et al., 2014).
promove o menor acoplamento actino-miosina Outro evento que ocorre na sepse é o aumento
através da retirada do cálico intracelular. A dos valores de lactato. Segundo Stenvenson et al.
consequência é o relaxamento da musculatura (2007), isso ocorre devido ao desequilíbrio entre
lisa e consequente vasodilatação. Além disso, a a produção e o consumo do lactato, causado por
NOs induzida leva a uma produção intensa e aumento da glicólise em condições de
desregulada de NO, que resulta em vasodilatação anaerobiose, ou em caso de perfusão sanguínea
arteriolar e redução da resistência vascular reduzida, o que leva à uma condição de
periférica (Caldeira Filho & Westphal, 2010). anaerobiose. Assim, o lactato é um indicador para
Também na sepse ocorre uma resposta imune avaliação do metabolismo celular, para detectar a
aguda e uma excessiva produção de citocinas hipoperfusão e a resposta à terapia. Em um
pró-inflamatórias. As citocinas são mediadores estudo realizado com cães acometidos por
proteicos de baixo peso molecular produzidos diversas doenças, determinou-se que o
precoce e continuamente durante todo o episódio prognóstico é pior para animais nos quais não
séptico (Lopes et al., 2010) e de acordo com Rau houve queda no valor do lactato 6 horas após a
et al. (2007), a SRIS e a sepse são caracterizadas admissão. Entretanto, sua efetividade como
pela ativação de citocinas. As citocinas pró- prognóstico se dá quando ocorre análise seriada
inflamatórias, fator de necrose tumoral alfa (TNF deste parâmetro (Stenvenson et al., 2007).
α) e interleucina (IL-1) ativam células-alvo e Entretanto, também pode-se observar na sepse
induzem a produção de mediadores pró- grave a hipóxia citopática, na qual há oxigênio
inflamatórios, como outras citocinas, disponível, mas a célula não respira devido a um
quimiocinas, espécies reativos de oxigênio bloqueio mitocondrial, causado tanto pelas
(EROs), espécies reativas de nitrogênio (ERN), citocinas quanto pelo NO (Caldeira Filho &
eicosanoides e enzimas proteolíticas (Salomão et Westphal, 2010). O óxido nítrico, o monóxido de
al., 2014). As primeiras citocinas produzidas são carbono e o sulfito de hidrogênio são alguns dos
o TNFα, interleucina (IL)-1β e a IL-6 (Lopes et principais mediadores pró-inflamatórios que

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podem inibir a função mitocondrial, competindo Também, o estresse oxidativo, resultado de


com o oxigênio. Além da competição com o uma resposta inflamatória inerente à sepse, inicia
oxigênio, estas moléculas podem levar a dano na mudanças na função mitocondrial que podem
estrutura proteica dos complexos transportadores resultar em dano orgânico. É resultado de um
de elétrons, provocando aumento da produção de desequilíbrio entre a produção de espécies
espécies reativas de nitrogênio, como reativas ao oxigênio (ROS) e os mecanismos de
peroxinitrito e o radical superóxido. Além disso, proteção por antioxidantes. Normalmente, um
outros processos concomitantes podem acentuar a complexo sistema de antioxidantes é capaz de
disfunção mitocondrial, como a hiperglicemia e a combater o estresse oxidativo e prevenir danos à
ativação de vias de sinalização intracelulares mitocôndria. Esse complexo é constituído por
ativadas pela resposta inflamatória. Todos esses caminhos enzimáticos e não enzimáticos,
mecanismos resultam na redução na produção incluindo os sistemas superóxido dismutase
celular de ATP. Se há manutenção do magnesiana (MnSOD), glutationa (GSH) e
metabolismo normal celular, haverá redução dos tioredoxina (TSH), entre outros. Pela importância
níveis de ATP e consequente prejuízo à sua do estresse mediado por oxidantes, sendo seu
funcionalidade ou ativação de vias de morte dano mitocondrial fundamental na patologia da
celular (normalmente apoptose). Entretanto, pode sepse, sugere-se que os antioxidantes possuam
ocorrer também redução da atividade celular, o função terapêutica (Galley, 2011). A hipótese
que também levaria à redução de sua envolvendo o estresse oxidativo na sepse
funcionalidade. Clinicamente isto se manifestará descreve a infecção como fator desencadeador do
como redução das funções fisiológicas dos aumento da produção de ROS e de espécies
órgãos e, em modelos animais, a falência dos reativas ao nitrogênio (RNS) concomitantemente
órgãos e deterioração clínica associada à ao declínio das defesas antioxidantes, resultando
disfunção mitocondrial e redução na taxa em dano celular, danos ao tônus vasomotor,
metabólica (Salomão et al., 2014). disfunção miocárdica, injúria renal aguda e lesões
em outros órgãos que culminarão em choque e
Somada à hipóxia citopática, as alterações
posterior síndrome da disfunção de múltiplos
microvasculares também contribuem para
órgãos (Vondessauer et al., 2011).
insuficiência dos órgãos. Durante a sepse,
diversos componentes da microcirculação são Em geral, a trombose intravascular,
afetados e resultam em incompatibilidade entre desencadeada pela inflamação local, é benéfica
oferta e o consumo de oxigênio. Entre as por dificultar a disseminação da infecção e da
alterações estão a reduzida sensibilidade das inflamação para o restante do organismo.
células endoteliais a agentes vasoativos, a Entretanto, a ativação incontrolável da
redução da deformabilidade das hemácias, a coagulação é um dos marcos da sepse severa e,
ativação de um estado pró-coagulante (formação provavelmente, um dos principais motores na
de microtrombos e diminuição do fluxo tissular) gênese da disfunção múltipla dos órgãos. A
e, por fim, a ativação leucocitária que leva à ativação ocorre através da via extrínseca da
formação de neutrophil extracelullar traps que coagulação, com grandes quantidades de fator
também estão relacionadas à redução do fluxo tissular (FT) expressas por células endoteliais e
sanguíneo e disfunção orgânica. Não obstante, há monócitos, parecendo depender principalmente
grande heterogeneidade na distribuição do fluxo da IL-6. O aumento da atividade coagulante não é
sanguíneo, com áreas de fluxo aumentado, de suficientemente contrabalançado pelos inibidores
fluxo normal e de fluxo reduzido (Salomão et al., naturais da coagulação na sepse grave, que se
2014). constituem da proteína C ativada (PCA),
antitrombina III (AT) e o inibidor da via do fator
Na sepse, a insuficiência bioenergética parece
tissular (TFPI). Na sepse grave, os níveis de PCA
desempenhar importância central na patogênese
e AT estão diminuídos por resultado de um
da Síndrome da Disfunção de Múltiplos Órgãos
elevado consumo e degradação e de síntese
(SDMO). A SDMO é marcada por relativa
inadequada (Caldeira Filho & Westphal, 2010).
ausência de morte celular, o que sugere que a
insuficiência bioenergética tem como
Sepse e as disfunções orgânicas
consequência alterações na homeostase celular,
que culminam com alteração de processos Na sepse, o acometimento de diferentes
essenciais ao funcionamento celular. sistemas orgânicos culmina em complicações e
pior prognóstico para os pacientes.

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O perfil hemodinâmico clássico do choque orgânica que acompanha o desenvolvimento


séptico é a hipotensão refratária a volume, dessa síndrome. Durante a sepse, a barreira
intensa redução da resistência vascular periférica alveolocapilar pode estar lesada, permitindo que
(RVS) e elevação do débito cardíaco (DC). A as citocinas e outras proteínas cheguem ao
concomitância de hipovolemia, vasodilatação, alvéolo. A IL-8 é a citocina mais importante no
disfunção miocárdica e da obstrução recrutamento de células polimorfonucleares para
microvascular gerada por microtrombos implica o espaço alveolar, causando dano endotelial. Tal
em isquemia e hipoperfusão. A normalização das fato resulta em aumento de permeabilidade,
variáveis mecânicas (débito cardíaco, pré-carga, causando aumento do influxo de proteínas
pós-carga, volume sistólico e outros) deve plasmáticas e células que levam à inativação do
resultar na manutenção do transporte e na surfactante pulmonar (Kitsis, 2010).
adequação da relação entre oferta e consumo de
O território esplâncnico é o primeiro a sofrer
oxigênio de acordo com a demanda orgânica
com a hipoperfusão e o último a recuperá-la.
(Salomão et al., 2014).
Dentre as vísceras, o intestino é extremamente
A disfunção miocárdica observada na sepse susceptível à redução da perfusão e oxigenação, e
parece não ser causada por hipoperfusão assim a lesão isquêmica do intestino delgado
miocárdica. Nas fases iniciais, a produção de desenvolve-se rapidamente. São diversas as
citocinas induz alterações no funcionamento do repercussões do hipofluxo esplâncnico:
miocárdio e na produção de NO. Esse mediador comprometimento da viabilidade de anastomoses,
altera a sensibilidade dos miofilamentos de aumento de permeabilidade dos capilares da
cálcio, a resposta das vias adrenérgicas mucosa intestinal e translocação bacteriana
intracelulares e a função mitocondrial. Ocorrem (Caldeira Filho & Westphal, 2010). Assim, a
também alterações independentes do NO que circulação esplâncnica é uma das primeiras a ser
geram alterações na contratilidade. A disfunção comprometida em situações em que ocorrem
miocárdica caracteriza-se por ser reversível, o redução do índice cardíaco. Essa circulação é
que demonstra que a lesão definitiva por normalizada apenas tardiamente, após o
apoptose ou necrose miocárdica parece não ter restabelecimento hemodinâmico. A maior
grande significado (Salomão et al., 2014). No concentração de células linfóides é encontrada no
homem, um estudo observou que os sistema gastrointestinal e sua ativação pode
sobreviventes apresentavam dilatação aguda do inclusive estar relacionada à perpetuação da
ventrículo esquerdo (VE), com aumento no resposta inflamatória. Em humanos, a abordagem
volume sistólico e diastólico do VE, apesar da da disfunção gastrointestinal aguda (DGIA) é
redução da fração de ejeção do ventrículo realizada pelo reconhecimento e tratamento de
esquerdo (FEVE) para valores menores que 40%. sinais gastrointestinais relacionados à doença
Acredita-se que tal alteração seja devido a uma aguda. A disfunção e perda de enterócitos,
adaptação aguda do coração em uma tentativa de alterações do trânsito intestinal (constipação ou
manter o débito cardíaco, e essa adaptação é diarréia), alteração da motilidade intestinal e
reversível à medida que há resolução do quadro retardo na progressão da nutrição enteral,
séptico (Parker et al., 1984). distensão abdominal e hipertensão intra-
abdominal e sangramento digestivo são algumas
O acometimento pulmonar foi observado em
das manifestações da DGIA (Azevedo, 2014).
79% dos pacientes humanos em um estudo
epidemiológico, com observação de diversos A injúria renal aguda (IRA) relacionada à
fatores de ocorrência simultânea, como o sepse é muito comum e determina elevada
ingresso de neutrófilos na região alveolocapilar, mortalidade quando se comparam pacientes
edema intersticial, perda de surfactante e sépticos com ou sem IRA. É a causa principal ou
exsudatos fibrinosos alveolares (Caldeira Filho & fator adjuvante em até 50% dos casos novos de
Westphal, 2010). Sabe-se que o pulmão é um IRA que ocorrem no paciente humano crítico
órgão que frequentemente evolui com disfunção (Vieira Júnior, 2014). Os mecanismos
na sepse, mesmo que o foco infeccioso não seja fisiopatológicos que auxiliam a explicar a IRA da
pulmonar. A Síndrome da Angústia Respiratória sepse podem ser divididos em mecanismos
Aguda (SARA) é uma complicação comum e hemodinâmicos sistêmicos e regionais, e em
grave em pacientes com sepse grave, e a presença mecanismos não hemodinâmicos. A hipovolemia
de mediadores inflamatórios na circulação relativa ou o choque possuem grande importância
sistêmica pode ser o responsável pela disfunção ao determinarem redução do fluxo renal e

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disfunção orgânica. Ressalta-se que mesmo na demonstraram que a terapia precoce guiada por
ausência de choque manifesto, pacientes metas reduziu a incidência de falência múltipla
hipertensos e idosos, principalmente aqueles com dos órgãos e mortalidade, por meio da
doença renal crônica, são susceptíveis a níveis de manipulação da pré-carga, pós-carga e
PAM considerados aceitáveis devido à perda de contratilidade cardíaca. A infusão de grande
auto-regulação intra-renal. Entretanto, os fatores quantidade de fluidos é usualmente necessária
hemodinâmicos isoladamente não explicam por para normalizar a pré-carga e pressão de
completo o desenvolvimento da IRA. Outros enchimento, com o objetivo de restabelecer
mecanismos presentes na sepse, que incluem perfusão tecidual adequada e a oferta de
ativação da cascata inflamatória sistêmica e intra- oxigênio. Entretanto, essa infusão pode resultar
renal, estresse oxidativo sistêmico e intra-renal, em edema pulmonar e de outros tecidos, além de
ativação do processo de apoptose renal e que a repleção de volume com normalização
alterações da microcirculação intra-renal com hemodinâmica podem não ser suficientes para
hipóxia tecidual, podem explicar parte da prevenir a disfunção microcirculatória. Ressalta-
fisiopatologia da IRA na sepse (Vieira Júnior, se que a restituição hemodinâmica per se pode
2014). reduzir a resposta inflamatória na sepse,
reduzindo o fenômeno de isquemia e reperfusão.
Manejo do paciente com sepse Apesar de a reposição volêmica precoce ser
A campanha Sobrevivendo à Sepse (Surviving iniciada por meio da expansão intravascular por
Sepsis Campaign) de 2012 trouxe recomendações meio de soluções cristalóides ou colóides, o uso
para o tratamento da sepse grave e do choque de drogas vasoativas e inotrópicas pode ser
séptico, por meio de um consenso entre 68 necessário (Lopes et al., 2010). A disfunção
especialistas internacionais, na intenção de vascular relacionada à sepse é multifatorial e
proporcionar orientações aos clínicos (Dellinger pode necessitar de altas doses de vasopressores
et al., 2013). Assim, algumas metas foram (Ramos & Azevedo, 2014). A norepinefrina é o
traçadas para guiar a terapia no homem e nos vasopressor de escolha (Dellinger et al., 2013;
animais com quadro clínico de sepse grave. Essas Ramos & Azevedo, 2014) e pode ser
metas consistem na manutenção de pressão potencializada por associação com epinefrina ou
arterial média (PAM) maior que 65 mmHg, vasopressina (Dellinger et al., 2013). A dopamina
débito urinário maior que 0,5 mL/kg/h, pressão pode ser utilizada em pacientes com baixo risco
venosa central entre 8 e 12cmH2O, saturação de desenvolvimento de taquiarritmias e
venosa de veia cava superior maior que 70% ou bradicardia. A droga inotrópica de escolha é a
saturação venosa mista maior que 65%, bem dobutamina, indicada na presença de disfunção
como a normalização do lactato sérico ou sua miocárdica ou de sinais de hipoperfusão apesar
queda maior ou igual a 20% do valor inicial após da restauração adequada do volume intravascular
as duas primeiras horas de terapia (Dellinger et e da pressão arterial média (Dellinger et al.,
al., 2013). 2013). O seu uso precoce mostrou-se uma
importante estratégia para reversão da
Assim, o manejo hemodinâmico em sepse hipoperfusão antes da progressão das disfunções
grave e choque séptico incluem a rápida orgânicas e da SDMO (Síndrome e disfunção de
restauração do volume intravascular e equilíbrio multiplos órgãos) (Rivers et al., 2001). Não deve
adequado entre a oferta sistêmica de oxigênio e ser utilizado, entretanto, visando alcançar a
sua demanda (Oliveira et al., 2002). Lopes et al. supranormalização das variáveis hemodinâmicas
(2010) e Dellinger et al. (2013) recomendaram de forma tardia (Ramos & Azevedo, 2014).
que a restituição volêmica deve ser realizada de
forma precoce e durante as 6 horas iniciais do Além dessas medidas precoces descritas
tratamento, com o acompanhamento dos acima, deve-se realizar cultura apropriada e
seguintes parâmetros: pressão venosa central que hemocultura em pelo menos dois sítios no
deve oscilar entre 8 a 12mmHg, pressão arterial paciente. Entretanto, esses procedimentos não
média maior ou igual a 65mmHg, débito urinário podem durar mais que 45 minutos da admissão
maior ou igual a 0,5mL/kg/h e saturação venosa do paciente com sepse, pois antimicrobianos
central ou mista de 70% ou 65%, devem ser administrados o mais precoce possível.
respectivamente , além da normalização dos Recomenda-se o uso combinado de um beta-
níveis de lactato em pacientes com lactâmico associado a um aminoglicosídeo ou a
hiperlactatemia. Rivers et al. (2001) uma fluorquinolona ou a um macrolídeo,

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mantendo-se essa terapia empírica por no até mesmo elevada por liberação aumentada de
máximo 3 a 5 dias. Rabelo (2013) sugeriu o uso hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) pela
de cefalotina como antibiótico empírico inicial, hipófise, porém sua função pode estar diminuída
associada ou não a uma quinolona, e ainda devido à resistência periférica aos receptores. É
recomendou que o fármaco escolhido para uso na possível ainda que mesmo níveis elevados não
sala de emergência em casos de sepse grave ou sejam adequado à demanda metabólica do
choque séptico não sejam utilizados na rotina de paciente. Contudo, as recomendações da
internamento e mesmo em consultas para Campanha de Sobrevivência à Sepse orientam
tratamentos de rotina. Contudo, o espectro deve que a hidrocortisona seja usada apenas em
ser reduzido precocemente, de acordo com os pacientes em choque séptico refratário, na dose
resultados do antibiograma, e recomenda-se que de 0,5 mg/kg a cada 6 horas durante 3 dias,
o tempo de terapia seja de 7 a 10 dias, espaçando para a cada 12 horas por mais 2 dias.
prolongando-se apenas em caso de paciente com Outra opção é a utilização sob forma de infusão
resposta clínica lenta, foco infeccioso não contínua, na taxa de 0,08 mg/kg/h (Creedon,
drenável, bacteremia com Staphylococcus aureus 2015). A recomendação ressalta que corticóide
e infecções fúngicas ou virais, bem como não deve ser utilizado em paciente sem choque,
deficiências imunológicas. Ressalta-se que exceto se seu uso era crônico ou em caso de
antimicrobianos não devem ser utilizados em razão para sua utilização (Dellinger et al., 2013;
pacientes em estado inflamatório grave de causa Coimbra & Machado, 2014). A Campanha ainda
não infecciosa (Dellinger et al., 2013). Após 48 a recomenda que a dose deste fármaco seja
72 horas, de acordo com Lopes et al. (2010), a reduzido gradualmente assim que os vasoativos
terapêutica deve ser reavaliada com base em não sejam mais necessários (Dellinger et al.,
dados clínicos e microbiológicos, que podem 2013).
indicar manutenção do esquema inicial,
Além da terapia inicial descrita acima, mais
descalonamento, ampliação do espectro ou
alguns fatores são importantes no manejo do
mesmo sua descontinuação. Além disso, pode-se
paciente com sepse. Entre eles o controle
ser necessário ampliar o espectro antimicrobiano,
glicêmico, pois a hiperglicemia tem participação
caso haja risco de bactérias resistentes, que pode
nos processos de dano celular, resposta imune,
ser estratificado por dados como uso recente de
funcionamento da microvasculatura, aumento na
antibióticos, tempo de internação prolongado,
produção de citocinas, alterações estruturais em
imunossupressão e presença de dispositivos
organelas celulares como a mitocôndria, além de
invasivos como cateter venoso central, sonda
associar-se a um estado de hipercoagulabilidade
vesical de demora, tubo orotraqueal, entre outros
(Coimbra & Machado, 2014). Assim, seu
(Lopes et al., 2010). Vale ressaltar que quando há
controle demonstrou redução de infecções de
atraso em iniciar a antibioticoterapia, ou a
corrente sanguínea, do estado inflamatório,
escolha do antibiótico é direcionado a uma classe
insuficiência renal com necessidade de terapia de
específica de micro-organismo, ou quando o
substituição renal, polineuropatia, dias de
agente é resistente ao fármaco escolhido, pode-se
ventilação mecânica e de hemotranfusões (Lopes
ocorrer falha na terapia com antibióticos (Lopes
et al., 2010). Para tal, deve-se utilizar a insulina,
et al., 2010). Além disso, alguns aspectos
que além de controlar a hiperglicemia, reduz a
hemodinâmicos podem levar à subconcentração
resistência à insulina, promove vasodilatação,
nos níveis de antimicrobianos nos tecidos. São
aumenta a captação de glicose por tecidos
exemplos disso o aumento do débito cardíaco
isquêmicos e possui propriedades anti-
(DC), que pode causar um aumento do clearance
inflamatórias (Coimbra & Machado, 2014).
das drogas; o aumento da perfusão tecidual em
Sugere-se que a insulinoterapia seja tratada
órgãos responsáveis pela eliminação e ou
sempre que a glicemia ultrapassar 180mg/dL em
metabolismo, causando alterações tanto no
cães ou 250mg/dL em gatos, por meio de infusão
clearance quanto na distribuição e a hipoperfusão
contínua de insulina regular iniciada a
tecidual, comprometendo desta forma a
0,05UI/kg/h. Deve haver monitoração contínua
penetração do antimicrobiano no sítio de infecção
dos níveis glicêmicos e de potássio para evitar
(Lisboa & Nagel, 2014).
iatrogenias (Kloss Filho & Rabelo, 2013).
Outros fármacos que podem ser necessários
Além do controle da glicemia, o suporte
em pacientes com sepse são os corticóides. Neste
nutricional deve ser instituído. Sugere-se que se
quadro sua produção pode estar insuficiente ou
inicie após 48 horas de restabelecimento de

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perfusão sanguínea, por via enteral ou oral. A L.C.P. & Machado, F.R. (Ed.). Sepse. São
nutrição plena também não é recomendada na Paulo, Atheneu, 13-20.
primeira semana, optando-se pela nutrição trófica
Creedon, J. M. B. (2015). Controversies
e avançando-se apenas se ocorrer tolerância
surrounding critical illness-related
adequada. A nutrição parenteral isolada ou em
corticosteroid insufficiency in animals.
suplementação à dieta enteral não deve ser
Journal of Veterinary Emergency and Critical
utilizada nos primeiros sete dias após o
Care, 25:107–112.
diagnóstico, bem como não se recomenda o uso
de nutrição suplementar moduladora (Dellinger et Dellinger, R.P., Levy, M.M., Rhodes A., Annane,
al., 2013; Coimbra & Machado, 2014). D., Gerlack, H., Opal, S. M., Sevransky, J. E.,
Sprung, C. L., Douglas, I. S., Jaeschke, R.,
A transfusão de componentes sanguíneos deve
Osborn, T. M., Nunnally, M. E., Townsend, S.
ser considerada quando a hemoglobina estiver
R., Reinhart, K., Angus, D. C., Deutschman,
menor que 7g/dL, apenas após resolução da
S., Machado, F. R., Rubenfeld, G. D., Webb,
hipoperfusão e na ausência de circunstâncias
S., Beale, R. J., Vincent, J. & Moreno, R.
como isquemia miocárdica, hipoxemia grave,
(2013). Surviving Sepsis Campaign:
entre outras, visando um valor de 7 a 9mg/dL de
International Guidelines for management of
hemoglobina em adultos. A transfusão de células
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o uso de ventilação mecânica em pacientes com
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profunda, a profilaxia para úlceras gástricas e de submetidos à terapia intensiva. Dissertação.
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Assim, pode-se concluir que a sepse cursa
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com várias alterações na fisiologia do animal,
sendo de grande importância o conhecimento da Kloss Filho, J.C. & Rabelo, R.C. (2013).
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Recebido em Setembro 24, 2015
England Journal of Medicine, 345(19):1368-
Aceito em Novembro 2, 2015
1377.
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Fisiopatologia da Sepse. In.: Azevedo, L.C.P. Attribution License, which permits unrestricted use,
& Machado, F.R. (Ed.). Sepse. São Paulo, distribution, and reproduction in any medium, provided the
original work is properly cited.
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