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Revista de Direito FATOS JURÍDICOS: UM ENFOQUE SOBRE O

Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 ATO-FATO JURÍDICO

Cleber Pereira Medina


Centro Universitário Anhanguera de RESUMO
São Paulo - unidade Brigadeiro
medina_cleber@yahoo.com.br
Este trabalho visa descrever de maneira simples o panorama geral da
teoria geral dos fatos jurídicos, bem como identificar e apontar suas
espécies. Procurou-se classificar e elaborar uma análise didática e breve
sobre o tema, com o intuito de simplificar a compreensão para os
estudantes que começam a tomar contato com os primeiros passos do
Direito Civil. Além disso, neste trabalho há destaque para uma espécie
de fato jurídico que decorre de ato humano, mas cujo elemento vontade
é desconsiderado pela legislação. Essa espécie é definida e tem sua
importância comentada dentro do ordenamento jurídico vigente, com
exemplos e situações práticas para facilitar a compreensão dos
institutos objeto de estudo.

Palavras-Chave: introdução ao Direito; Direito Civil; fato e ato jurídico.

ABSTRACT

This paper aims to describe in simple overview of the general theory of


legal facts, and identify and discuss their species. We tried to sort and
prepare a training analysis and brief on the subject, in order to simplify
the understanding for students who begin to make contact with the first
steps of civil law. Furthermore, this work emphasis is given to a kind of
legal fact that arises from human action, but whose will is overlooked
element in legislation. This species is defined and its importance has
commented in the legal code, with examples and practical situations to
facilitate understanding of the institutes under study.

Keywords: introduction to law; civil law; fact and legal act.

Anhanguera Educacional Ltda.


Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 2000
Valinhos, São Paulo
CEP 13.278-181
rc.ipade@unianhanguera.edu.br
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Informe Técnico
Recebido em: 01/10/2009
Avaliado em: 29/05/2011
Publicação: 10 de junho de 2011 119
120 Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo procura analisar a teoria geral dos fatos jurídicos, expondo de forma
didática e científica suas espécies, com relevo especial para uma delas: o ato-fato jurídico.

Justifica-se a pesquisa em razão da necessidade de difundir e procurar


fundamentar a autonomia da categoria acima mencionada, amplamente tratada no Direito
pátrio na obra de Pontes de Miranda e de Marcos Bernardes de Mello.

Elaborou-se uma exposição do fato jurídico em sentido amplo, sua definição e


espécies.

Os fatos naturais que contam com relevância jurídica receberam tratamento,


tanto os de ocorrência comum como os extraordinários, com destaque para o caso fortuito
e a força maior.

Na seqüência, restou colocado o conceito de ato jurídico, que envolve o ato


humano e o elemento volitivo em sua estrutura, do qual são espécies o negócio jurídico,
os atos jurídicos em sentido estrito e os atos ilícitos.

Entre os dois primeiros (atos e negócios jurídicos) estabeleceu-se a diferença,


especialmente no que se refere aos seus efeitos, que nos primeiros aparecem
preestabelecidos pela lei e nos segundos fica a cargo das partes disporem, conforme
composição de vontades.

Quanto aos atos ilícitos, além de sua importância no campo das


responsabilidades (civil, penal, administrativa), indica posicionamento no sentido de que
o ato ilícito é ato jurídico.

Enfim, cuidou-se dos atos-fatos jurídicos e seu conceito, além de analisar o


elemento volitivo, que o ordenamento jurídico desconsidera nesta espécie. Apresentou-se
a classificação doutrinária, tendo apontado ainda o tratamento dado pelo ordenamento.

Tudo isso para demonstrar especialmente a importância dessa categoria para o


estudo dos fatos jurídicos e, conseqüentemente, das relações jurídicas e tudo que dela
decorre.

Por fim, como aspecto a ser elevado no presente trabalho, o desenvolvimento


deste campo de estudo em especial aos iniciantes no estudo do Direito.

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2. FATOS JURÍDICOS EM SENTIDO AMPLO

Entender algumas noções básicas sobre este tema mostra-se de grande importância
especialmente em dois momentos no estudo do Direito: no início dos estudos das relações
jurídicas e ao tratar dos negócios jurídicos.

As relações jurídicas merecem tratamento logo nos primeiros passos do estudioso


do Direito, ou seja, quando ele recebe as primeiras noções correlatas de Introdução ao
Direito.

E justamente com os fatos jurídicos é que nascem as relações jurídicas, dentro das
quais se identificam: os sujeitos dessa relação (ativo e passivo), as espécies de obrigações
daí decorrentes (dar, fazer ou não fazer alguma coisa), a natureza dos direitos envolvidos
(pessoais e reais) etc.

Das palavras de Maria Helena Diniz é possível extrair a relevância da teoria geral
dos fatos jurídicos. Para ela, “realmente, do direito objetivo não surgem diretamente os
direitos subjetivos; é necessária uma ‘força’ de propulsão ou causa, que se denomina ‘fato
jurídico’” (2003, p. 321).

Evidente que não basta a existência de normas abstratas, haja vista emergir
efetivamente a importância do direito objetivo tão somente quando os fenômenos
hipotéticos previstos ocorrerem no plano concreto.

Quanto aos negócios jurídicos, não obstante seja espécie do gênero fato jurídico, o
tema mereceu especial atenção dentro do Direito Civil, principalmente diante do atual
Código Civil, assunto a ser melhor desenvolvido oportunamente.

Postos estes comentários, obrigatório apresentar-se uma breve e simples


definição dos fatos jurídicos.

Num primeiro momento, mister esclarecer a importância de o adjetivo jurídico


acompanhar o substantivo fato.

Relevante, pois nem todo fato é jurídico.

José Abreu Filho traça o liame para que o fato seja ou não considerado jurídico,
observando que “um mesmo acontecimento poderia ser jurídico ou material,
diferenciando-se um do outro pela produtividade de efeitos jurídicos, peculiar ao
primeiro e inexistente no segundo” (1997, p. 4, grifado no original).

O fato jurídico é justamente qualquer acontecimento que tenha amparo no


ordenamento jurídico, ou seja, tudo aquilo que ocorre e que de certo modo se encaixa em
uma hipótese prevista em abstrato no ordenamento.

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Ou ainda, como definem de forma mais específica Pablo Stolze Gagliano e


Rodolfo Pamplona Filho, fato jurídico em sentido amplo é “todo acontecimento natural ou
humano capaz de criar, modificar, conservar ou extinguir relações jurídicas” (2007, p.294).

Essa definição merece elogio (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 413) na medida


em que traz como característica do fato jurídico o potencial de provocar tais
conseqüências, ao contrário de parte da doutrina clássica que o conceitua como “os
acontecimentos em virtude dos quais nascem, subsistem e se extinguem as relações
jurídicas” (MONTEIRO, 2005, p. 201) – o que não se concretiza necessariamente.

O equívoco está no fato de condicionar a existência do fato jurídico à ocorrência


de efeitos na órbita jurídica, quando na verdade basta a capacidade, o potencial para criar,
modificar, conservar, extinguir relações jurídicas.

Ao tratar desse aspecto Roberto de Ruggiero, acertadamente, outrora definiu


fatos jurídicos “como aqueles aos quais o ordenamento atribue a virtude de produzir
efeitos de direito, ou seja: eventualidades capazes de provocar a acquisição, a perda e a
modificação de um direito” (1934, p. 240, grifo nosso).

Essa situação fica evidente diante do exemplo doutrinário clássico da simples


chuva que cai no meio do oceano atlântico. Esse fato isolado não tem importância para o
Direito – basta observar as definições acima.

Isso em oposição ao que ocorre com uma forte chuva que destrói uma plantação
de soja. Deste evento podem surgir, por exemplo, obrigações entre uma seguradora e um
agricultor (caso haja um contrato de seguro); pode tornar aceitável pelo Direito o
descumprimento do prazo para entrega da soja aos compradores da safra etc.

Portanto, um fato só será jurídico se relevante para o respectivo ordenamento.

Estabelecida noção básica e necessária de fato jurídico para o presente trabalho,


importante apresentar as espécies de fatos jurídicos.

Aliás, fazendo uso das palavras de San Tiago Dantas, inevitável concluir que “a
noção de fato jurídico é amplíssima; tão ampla que não se pode trabalhar com ela sem
submetê-la a uma minuciosa classificação” (1979, p. 252) – o que acontecerá a seguir.

Apenas para ilustrar a gama de classificações, apresenta-se a visão do saudoso


Vicente Ráo, para quem
[...] o conceito de fato jurídico três categorias compreende, a saber: os fatos ou eventos
exteriores que da vontade do sujeito independem; os fatos voluntários cuja disciplina e
cujos efeitos são determinados exclusivamente por lei; os fatos voluntários (declarações
de vontade) dirigidos à consecução dos efeitos ou resultados práticos que, de
conformidade com o ordenamento jurídico, deles decorrem. (1981, p. 20).

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Percebe-se que dois critérios foram utilizados: a) a existência ou não de intenção


na prática do ato; b) a disposição dos efeitos previstos para cada ato (uns determinados na
lei; outros criados pelas partes, observada a autonomia privada e os limites postos pelo
ordenamento).

A questão é que o desenrolar das situações leva a uma classificação mais


completa e necessária.

3. FATO JURÍDICO EM SENTIDO ESTRITO (STRICTO SENSU)

Conforme anteriormente mencionado, fato jurídico pode tanto decorrer de ação humana,
quanto da natureza.

E aos eventos decorrentes da natureza, ou para os quais a ação humana concorre


de forma indireta, é que deverá ser reservada a expressão fato jurídico stricto sensu1 ou
simplesmente fato jurídico natural.

“Todo fato jurídico em que, na composição do seu suporte fático, entre apenas fatos
da natureza, independentes de ato humano como dado essencial, denomina-se fato jurídico
stricto sensu” (MELLO, 2003, p. 127, grifo nosso).

Note-se que no nascimento, na morte, na maioridade, o evento natural é que é


significativo e não a atuação humana.

Assim, aos atos humanos relevantes para o ordenamento jurídico, reservar-se-á o


termo ato jurídico.

Ressalte-se que, conforme outrora ponderou Clóvis Beviláqua, “as declarações de


vontade não são os únicos elementos capazes de produzir efeitos na vida jurídica” (1929,
p. 224).

Por seu turno, os fatos jurídicos naturais dividem-se em ordinários e


extraordinários.

3.1. Fatos jurídicos ordinários e extraordinários

Existem acontecimentos naturais de ocorrência regular e, portanto, freqüentemente


esperados.

1 Nenhuma classificação é unânime e para ilustrar isso, interessante trazer à baila posicionamento de peso de Miguel Maria

Serpa Lopes (1989, p. 367), que classificou a descoberta de tesouro (art. 607 CC/16) e a invenção (encontro de coisa perdida –
art. 603 CC/16) como fatos e não atos jurídicos, anotando que no primeiro caso “a propriedade é adquirida sem que
intervenha a vontade como elemento preponderante”, havendo “a mesma ausência de intencionalidade” no segundo fato, o
que já põe em relevo a controvérsia sobre as classificações e considera o elemento volitivo como inerente ao ato jurídico.

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Nestes casos, estamos diante dos fatos jurídicos ordinários, como o nascimento,
maioridade (civil, penal, eleitoral etc.), a morte, a condição de idoso nos termos da lei (cf.
Estatuto do Idoso, por exemplo), o decurso do tempo, do qual decorre diretamente a
prescrição, a decadência etc.

Por outro lado, alguns acontecimentos possuem freqüência incomum,


imprevisíveis ou apenas inevitáveis. Neste caso, apresentam-se os fatos jurídicos
extraordinários.

É importante destacar estes últimos, na medida em que importam muitas vezes


na exclusão da responsabilidade, por exemplo.

Enfim, não se pode deixar de considerar que a lei não tem como prescrever como
ocorrerão esses fatos, mas tão somente estipula qual a postura que devem tomar as
pessoas por ele envolvidas.

“Por essa razão, a norma jurídica que regula o abandono de álveo pelo rio, não o
proíbe, não o determina, nem estabelece regras de como se deve processar, apenas
prescreve como se devem comportar as pessoas afetadas por ele” (MELLO, 2003, p. 129,
grifado no original).

3.2. Diferença (tradicional e atual) entre caso fortuito e força maior

Tradicionalmente, muitos autores definiam esses fatos como eventos extraordinários e


inesperados, sendo a força maior decorrente da natureza e o caso fortuito decorrente da
ação humana. Como exemplos, respectivamente, podem-se citar uma tempestade e uma
greve.

Essa forma de distinção aparece inclusive na doutrina estrangeira, mostrando-se


útil expor palavras de Manuel A. Domingues de Andrade, in verbis: “quanto à distinção
entre o simples caso fortuito e o caso de força maior, diremos que aquele é qualquer risco
natural das coisas ou maquinismos empregados pelo responsável; e esta é uma força da
natureza estranha a essas coisas ou maquinismos” (1998, p. 7, grifado no original).

Contudo, essa diferença não é unânime na doutrina, inclusive há opiniões no


sentido de que ambos sequer correspondem a institutos distintos (GOMES, 2001, p. 421).
A legislação também não cuidou de diferenciar, ora apresentando uma denominação ora
outra, não utilizando as duas expressões com clareza de sentido ou mesmo de modo
sistematizado, donde se pudesse extrair suas diferenças.

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O próprio artigo 393, do Código Civil, em seu parágrafo único, define: “o caso
fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou
impedir” (g.n.).

E dessa definição não é possível concluir pela distinção entre os dois fenômenos.

Ademais, com a leitura de outros dispositivos legais, a controvérsia continua,


pois ora aparecem juntas e ora isoladas nos dispositivos, sem diferença significativa.

Não obstante a polêmica, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona ensinam que “a


característica básica da força maior – em que pese ser decorrente, em regra, de um fato
natural – é a sua absoluta inevitabilidade, enquanto o caso fortuito tem como nota
essencial a imprevisibilidade, para os parâmetros do homem médio” (2007, p. 300-301,
grifado no original).

Em razão dessas características conclui-se que correspondem a causas de


excludentes de responsabilidade – e isso é que dá maior importância ao estudo inicial
desses institutos dentro da teoria dos fatos jurídicos.

4. ATO JURÍDICO EM SENTIDO AMPLO

Os fatos jurídicos quando não decorrem da natureza (fato jurídico em sentido estrito), tem
origem com a atuação humana.

E aos fatos envolvendo diretamente a ação humana, reservar-se-á a expressão


“ato”.

Propositalmente o substantivo acima não está acompanhado do adjetivo


“jurídico”. Isso porque existem duas posições doutrinárias básicas em relação às suas
características.

Uma delas sustentando que o ato jurídico é sempre lícito e a outra admitindo
também o ato ilícito como espécie de ato jurídico.

A discussão não parece imprescindível não obstante interessante para a


compreensão da matéria, seja considerando o ato ilícito somente como espécie de ato
humano ao lado do ato jurídico, seja compreendendo-o como espécie de ato jurídico.

Ora, suas conseqüências serão as mesmas, especialmente a constatação de que


nos ilícitos “os efeitos jurídicos produzidos representam uma sanção para o autor do
facto”, conforme destacado por Manuel A. Domingues de Andrade (1998, p. 2).

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Enfim, partindo do pressuposto de que o ato ilícito é jurídico, cumpre desse


modo definir o ato jurídico como aquele fato jurídico decorrente de ação humana
acompanhada (somada) de uma vontade que dirige essa conduta (elemento volitivo).

A licitude, portanto, não se mostra essencial ao conceito de ato jurídico, o que


poderá ser oportunamente discutido.

Por outro lado, a presença da vontade (que por sinal é característica humana e
por isso não caracteriza o fato jurídico natural) sim é essencial para caracterização do ato
jurídico. Assim, o sujeito pratica uma conduta com consciência e essa conduta deverá
estar prevista na norma jurídica.

Partindo desse conceito, é possível identificar três espécies de atos jurídicos: os


atos não negociais, os atos negociais e os atos ilícitos.

4.1. Ato jurídico em sentido estrito

Os atos jurídicos em sentido estrito (ou stricto sensu) correspondem àqueles atos jurídicos
praticados tão somente de acordo com o ordenamento jurídico, ou seja, nos termos
prescritos nas normas jurídicas, na medida em que se consegue identificar regramento
que regule aquela conduta, sem a presença do intuito negocial.

E um exemplo apontado por Silvio Rodrigues (2002, p. 156) é o do pai que


reconhece um filho havido fora do casamento e todas as relações jurídicas daí decorrentes,
como o dever de alimentos.

Para estas condutas humanas o sistema jurídico confere previamente efeitos


próprios, independentemente da composição de interesses entre dois sujeitos (como
ocorre nos negócios jurídicos).

Tais atos têm como espécies os atos materiais (ou reais) e as participações, sendo os
primeiros “simples atuação humana, baseada em uma vontade consciente, tendente a
produzir efeitos jurídicos previstos em lei” e os segundos “atos de mera comunicação,
dirigidos a determinado destinatário, e sem conteúdo negocial”. São exemplos: dos
primeiros a despedida sem justa causa de empregado não estável; dos segundos: a
intimação e a notificação (2007, p. 305-306).

Interessante notar que nos atos jurídicos em sentido estrito não ocorre
composição de interesses, mas é considerável a atuação da vontade ou, ao menos, da
consciência no momento da conduta. Isso porque mais à frente constatar-se-á que há atos

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humanos nos quais este elemento psíquico é irrelevante (atos-fatos jurídicos), o que
também não é unânime da doutrina.

Ao tratar dos negócios jurídicos, Washington de Barros Monteiro pondera que


nestes as ações humanas são praticadas “justamente para obter os resultados desejados”,
como o casamento, o contrato, etc. No entanto, ao tratar dos atos jurídicos lícitos (sentido
estrito), comenta:
[...] outras ações humanas produzem também efeitos jurídicos, mas sem qualquer
atenção àquele elemento interno, psíquico, que é a vontade do agente. Os efeitos
produzidos acham-se previamente delineados na lei como conseqüência fatal da prática
daquela ação. (2005, p. 201).

Para Orlando Gomes, a distinção entre os atos humanos nos quais a vontade (ou
consciência) é considerável e os atos nos quais o elemento volitivo não tem a menor
relevância “não tem a menor utilidade” (2001, p. 255).

Ousa-se discordar dos dois ilustres juristas, na medida em que o elemento


volitivo não pode ser deixado de lado.

Ora, o reconhecimento de um filho concebido fora do casamento deve ocorrer


sem vícios de vontade, sob pena de nulidade. Ademais, o próprio mestre acima citado
descreve o ato jurídico como sendo o “acontecimento voluntário, fruto da inteligência e da
vontade, querido e desejado pelo interessado” (MONTEIRO, 2005, p. 202, grifo nosso).

Conclui-se, pois, que nos atos jurídicos o ordenamento tem por relevante a
vontade, tanto nos negócios jurídicos quanto nos atos jurídicos em sentido estrito. Porém,
nos últimos, além da manifestação da vontade, existe uma prescrição legal da qual o
sujeito não pode escapar, não havendo mobilidade para estipulação de seus efeitos como
nos negócios jurídicos.

Analisada sua estrutura, nada mais coerente do que trazer uma definição
completa do ato jurídico stricto sensu, como sendo
[...] o fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fáctico manifestação ou
declaração2 unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados pelas normas
jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria
jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações jurídicas respectivas. (MELLO,
2003, p. 159).

Por outro lado, não se pode deixar de mencionar que a eles também pode ser
atribuída a denominação atos meramente lícitos ou, nos termos do artigo 185 do Código
Civil, atos jurídicos lícitos.

2 Infere-se da lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que a exteriorização da vontade ocorre através da

declaração ou da manifestação, sendo a primeira uma forma mais explícita, às vezes até formal, uma “manifestação
qualificada”; já a manifestação é extraída de um comportamento, como o sujeito que joga fora um tênis – manifesta, assim,
que não mais o quer (op. cit., p. 423).

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A expressão atos jurídicos lícitos parece útil aos atos humanos não negociais, haja
vista achar-se empregada no sentido de indicar a aplicação aos atos jurídicos não
negociais todas as disposições cabíveis e previstas para os negócios jurídicos.

E confirmando o que a maioria dos doutrinadores coloca, o artigo 185 do Código


Civil limita-se a estabelecer que “aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios
jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior”. Essas disposições
referidas correspondem ao título que trata dos negócios jurídicos.

Através dessa disposição legal, portanto, constata-se que os atos jurídicos lícitos
não negociais tiveram importância secundária em relação aos atos negociais, inclusive os
atos-fatos jurídicos.

4.2. Negócio jurídico

O contexto no qual se insere o negócio jurídico já foi exposto, mas para facilitar a
compreensão, necessário dizer que é espécie do gênero ato jurídico, assim como o ato
jurídico em sentido estrito (atos meramente lícitos) e os atos ilícitos (neste caso, se
considerados como tal).

Inicialmente, uma definição merece apresentação e assim o faz Flávio Tartuce, de


forma técnica e didática: “esse instituto pode ser conceituado como sendo toda ação
humana, de autonomia privada, com a qual os particulares regulam por si os próprios
interesses, havendo uma composição de vontades, cujo conteúdo deve ser lícito” (2007, p.
313).

Ou nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho é a


“declaração de vontade, emitida em obediência aos seus pressupostos de existência,
validade e eficácia, com o propósito de produzir efeitos admitidos pelo ordenamento
jurídico pretendidos pelo agente” (2007, p. 315).

Interessante expor que nos atos jurídicos em sentido estrito o sujeito age de
forma lícita e a lei prevê e determina os efeitos daquela ação (como no pagamento de uma
dívida). Enquanto que no caso dos negócios jurídicos, os efeitos deste ato jurídico, que
também devem ser lícitos são determinados pelas partes próprias através da composição
de seus interesses para um fim por eles escolhido.

Mais uma vez, utilizamo-nos das palavras de Flávio Tartuce para aclarar os
dizeres acima: “diante de uma composição de vontade de partes, que dita a existência de
efeitos, há a criação de um instituto próprio, visando regular direitos e deveres” (2007, p.
310, grifo nosso).

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E o exemplo clássico de negócio jurídico que sempre deve ser lembrado é o


contrato.

Compreendida essa categoria de ato jurídico, um breve comentário acerca da


mudança ocorrida entre o Código de Clóvis Beviláqua (de 1916) e o de Miguel Reale (de
2002).

O antigo diploma civil tratava dos negócios jurídicos em um capítulo intitulado


“dos atos jurídicos”, quando tecnicamente seria mais adequada a expressão “negócios
jurídicos”, como fez o novo Código Civil, que não deixou de tratar dos atos jurídicos em
sentido estrito, determinando que se aplicasse, no que coubesse as regras atinentes aos
negócios, conforme anteriormente mencionado3.

Evidentemente mais regulados especificamente os negócios.

No entanto, não haveria que se esperar outra coisa, na medida em que é nessa
categoria de ato jurídico em que os sujeitos da relação jurídica podem utilizar a
criatividade para nortear os efeitos, o que não ocorre nos atos jurídicos em sentido estrito.
Nestes, os efeitos necessariamente estarão previstos em lei, bastando que o sujeito atue.

Ora, se dependem da criatividade das partes, conseqüentemente a lei deverá


estabelecer os limites para o exercício da autonomia privada.

4.3. Ato ilícito

O ato ilícito é antijurídico, ou seja, uma ação humana que ocorre em desacordo com a
harmonia do ordenamento jurídico.

No entanto, se é antijurídico, se contraria o ordenamento, de alguma forma ele


faz parte do mundo jurídico, haja vista receber amparo no conjunto de regras que
orientam a vida em sociedade. Neste caso, recebe uma negativa do ordenamento e impõe,
via de regra, uma sanção ao sujeito atuante, mas isso não o retira do ordenamento4.

Confirmando esse entendimento, Marcos Bernardes de Mello ressalta que não há


que se confundir jurídico com ilícito, considerando o seguinte:

3 Esclareça-se que o uso da expressão negócios jurídicos ganhou força na doutrina ocidental a partir da metade do século

XX. Apenas o BGB alemão utilizava-se da expressão. Isso em virtude da forte influência da escola francesa da Exegese, com
exagerado apego aos textos legais, limitou-se a difundir a expressão ato jurídico (acte juridique), constante do Código
Napoleônico, mitigando a expressão negócio jurídico (Marcos Bernardes de Mello, op.cit., p.150-151).
4 No mesmo sentido: Maria Helena Diniz (2003, p. 323); Pontes de Miranda (2000, p. 222); Miguel Reale (2005, p. 206). Para

este último, “os atos lícitos e os atos ilícitos são espécies de atos jurídicos, ficando, assim, superada a falsa sinonímia entre
jurídico e lícito” (grifado no original). Com opinião eclética, Silvio de Salvo Venosa afirma ser o ato ilícito uma espécie de ato
jurídico em razão de seus efeitos, entretanto, pondera não considerar “o sentido intrínseco da palavra, pois o ilícito não pode
ser jurídico”; sugere, então, a expressão atos humanos ou atos jurígenos (2005, p. 362).

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[...] jurídico tem um sentido que abrange tudo aquilo, e somente aquilo, que, por força da
incidência da norma jurídica, entra no mundo jurídico. Para ser jurídico é preciso que o
fato esteja previsto como suporte fáctico de uma norma jurídica juridicizante e receba a
sua incidência (...) a ilicitude (= contrariedade a direito) constitui, exatamente, elemento
nuclear do suporte fáctico de uma série de atos e fato que estão regulados (previstos) por
normas jurídicas.

Rubens Limongi França apresenta mesma linha de raciocínio, pois para ele “os
atos jurídicos podem ser lícitos ou ilícitos”, sendo que a estes últimos “convencionou-se
chamar apenas ato ilícito” (1996, p. 124).

De qualquer modo essa classificação (como ato jurídico ou não), não obstante
tenha importância, não tem tanta relevância quanto o tratamento que lhe é dado pelo
Código Civil (1997, p. 11).

Isso porque recebe atenção especial do legislador (até maior do que os atos
jurídicos em sentido estrito), na medida em que tanto o artigo 186 define o que é ato ilícito
e o artigo 187 estabelece que o abuso de direito também caracteriza ato ilícito.

Assim, segundo o artigo 186, comete ato ilícito aquele que por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral.

Destaque para o fato de que o novo Diploma Privado corrigiu equivoco do artigo
159 do Código Civil de 1916, que mencionava violar de direito ou causar dano a outrem
(GONÇALVES, 2007, p. 450).

Realmente devem ocorrer os dois fatores juntos para configurar o ilícito.

Assim, se houver somente a violação de direito ou a ocorrência de dano sem


atitude antijurídica não há ato ilícito. Ora, basta imaginar o sujeito que viola um direito
sem causar dano ou o sujeito que causa dano sem violar direito. Como exemplo desta
última hipótese é possível citar a situação de legítima defesa: neste caso, o sujeito causa
dano em razão da defesa de um direito próprio, o que não é antijurídico.

Outrossim, o Código Civil reconhece e dá maior amparo para coibir o abuso de


direito, estabelecendo que essa conduta também consiste em ilícito.

Mais que isso, o artigo 187 faz com que se perceba uma característica muito forte
da nova lei civil: a concretude. Esse aspecto decorre da presença das chamadas cláusulas
gerais, ou seja, expressões abertas à interpretação dos operadores do Direito, inclusive os
magistrados, que aplicarão tais conceitos ao caso concreto, permitindo interpretação mais
ampla e de acordo com os valores existentes na sociedade e observando todo o sistema
jurídico (especialmente a Constituição Federal).

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Referido dispositivo aponta que “também comete ato ilícito o titular de um


direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Note-se que as expressões “fim econômico ou social”, “boa-fé” e “bons


costumes” exigem interpretação diante do caso concreto, e isso deverá acontecer sob a
orientação dos princípios mencionados pelo saudoso Mestre Miguel Reale, quais sejam:
eticidade, socialidade e operabilidade.

Percebe-se, portanto, que também cometerá ato ilícito aquele que contar com um
direito, mas extrapolar o seu exercício, o que deixa evidente que o aspecto individualista
da legislação de 1916 perdeu terreno para o aspecto coletivo.

Por outro lado, o legislador não desamparou o sujeito que atua em legítima
defesa e em exercício regular de direito, além daquele que age para remover perigo
iminente, mas que causa dano à coisa alheia ou lesão a uma pessoa. Nestes casos, não há
que se falar em ato ilícito, nos termos do artigo 188.

Mister que se reconheça que não seria possível deixar de tratar do ato ilícito com
a devida atenção, uma vez que dele surge a obrigação de indenizar, ou seja, é a base de
estudo para a responsabilidade civil, penal, administrativa.

5. ATO-FATO JURÍDICO

5.1. O elemento volitivo

O elemento volitivo está presente quando se fala em ato jurídico, seja ele lícito (ato
jurídico em sentido estrito e negócio jurídico) ou ilícito.

Entretanto, em alguns casos, o ordenamento jurídico desconsidera a vontade e


toma por relevante tão somente o evento (fato), ou seja, a atuação humana
independentemente da vontade ganha relevância no sistema de normas jurídicas.

Observe-se que a ação humana, chamada de ato, é sempre acompanhada de


vontade. No entanto, essa vontade poderá ser ou não juridicamente relevante. Isso porque
no campo fático ela pode até existir, mas não possuir importância para o Direito.

E o exemplo de um sujeito louco ilustra bem a questão. Ora, eventualmente, se


ele celebrou um negócio, esse negócio não é válido, por faltar-lhe capacidade. No entanto,
é evidente que de fato ele manifestou sua vontade – vontade esta que não recebe
consideração legal.

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132 Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico

Como tratar os atos jurídicos em relação aos quais a lei desconsidera o elemento
volitivo?

Para responder à questão, ninguém melhor do que Pontes de Miranda, que


divulgou e desenvolveu essa doutrina no Brasil:
Ato humano é o fato produzido pelo homem; às vezes, não sempre, pela vontade do
homem. Se o direito entende que é relevante essa relação entre o fato, a vontade e o
homem, que em verdade é dupla (fato, vontade-homem), o ato humano é ato jurídico,
lícito ou ilícito, e não ato-fato, nem fato jurídico stricto sensu. (2000, p. 421-422, grifado no
original).

Simplificando a questão, nos dizeres de Pablo e Pamplona, “o ato-fato jurídico


nada mais é do que um FATO JURÍDICO qualificado pela atuação humana” (2007, p. 301,
grifado no original).

Enfim, no ato-fato jurídico, a vontade não é considerada pelo ordenamento


jurídico e, por isso, não se trata de ato jurídico5, mas de simples fato jurídico, que terá
como característica a simples ação humana.

Portanto, nestes casos, para análise será questionado somente se houve ação
humana e não necessariamente se essa ação esteve acompanhada de vontade.

5.2. Conceito e importância dessa categoria de fato jurídico

Trata-se do fato jurídico que, não obstante decorrente de ação humana, tem o elemento
vontade desconsiderado pelo ordenamento jurídico, que se preocupa tão somente o fato
ocorrido.

“Como o ato que está à base do fato é da substância do fato jurídico, a norma
jurídica o recebe como avolitivo, abstraindo dele qualquer elemento volitivo que,
porventura, possa existir em sua origem” (MELLO, 2003, p. 130).

Da definição pode-se inferir que não é ato jurídico, pois não tem o elemento
volitivo em sua definição, apenas a atuação humana. Portanto, não se orienta chamá-lo de
ato, mas sim de fato jurídico. No entanto, para identificar esse fato jurídico que conta com a
ação do ser humano (cuja vontade não é considerada), utiliza-se a expressão ato-fato jurídico
(ação humana por si só relevante para o direito é fato e não ato jurídico).

A título de exemplo: a caça e pesca permitidas; o desforço incontinenti para


manter ou reaver a posse (art. 1210, § 1º, CC).

5 Para Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 305), que destaca doutrina de Moreira Alves, o ato-fato jurídico é espécie de ato

jurídico (este subdividido em: negócio jurídico, ato jurídico em sentido estrito e ato-fato jurídico).

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Aliás, (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 422), o indivíduo que encontra uma


concha na praia e a joga no mar pratica abandono (perda da propriedade por ato
voluntário do titular do direito – cf. art. 1275, III, CC). Anteriormente, ao colher a concha,
adquiriu a propriedade da “res nullius”, praticando ocupação (art. 1263, CC).

Uma observação sumária, menos profunda, talvez não tenha o condão de


destacar a importância da análise do instituto, especialmente aos que iniciam no estudo
do Direito.

Ora, compreender caso a caso se a existência da vontade mostra-se ou não


relevante parece de fundamental importância para o desenrolar de inúmeras situações
práticas.

A título de exemplo, interessante lembrar dos institutos do dolo e da culpa.


Nestes casos, estabelecer se existe ou não a vontade e qual sua relevância é fundamental,
inclusive a ponto de se concluir que a presença ou não da vontade é irrelevante. Basta
mencionar que na responsabilidade objetiva a existência de dolo ou culpa é irrelevante
para fazer surgir a obrigação de indenizar.

Portanto, não só do ponto de vista didático e acadêmico, mas também sob o


aspecto prático existe evidente necessidade de se destacar e sub-classificar as situações em
que a vontade não tem relevância jurídica.

5.3. Classificação

Para melhor ilustrar, cumpre apresentar classificação (GONÇALVES, 2007, p. 306)


observada nas obras de Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello, donde extrai-se
que os atos-fatos jurídicos podem ser assim classificados: a) atos reais; b) atos-fatos
jurídicos indenizativos; c) atos-fatos jurídicos extintivos ou caducificantes.

Os atos reais ou atos materiais correspondem àqueles eventos considerados


apenas em seu resultado, independentemente da vontade direcionada a esse referido
resultado. É o caso, por exemplo, do louco que pinta um quadro e adquire-lhe a
propriedade (art. 1270, § 2º, CC), cuja vontade independe para que esse fenômeno ocorra
(o surgimento do direito de propriedade).

Situação semelhante caso o mesmo louco ou qualquer incapaz encontrasse um


tesouro enterrado – ocorreria a aquisição da propriedade móvel, sem considerar a vontade
ou não de descobri-lo, pois só o fato descoberta unido à tomada de posse daquele bem
encontra amparo no artigo 1264 do Código Civil.

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134 Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico

Na tomada, na transferência, no abandono de posse, nas ocasiões em que a


vontade não tem relevância, há ato-fato. O mesmo ocorre com a ocupação, na qual existe
apenas um suporte fático para constatação de sua existência.

Com a criação intelectual também ocorre aquisição de propriedade sem análise


nenhuma sobre a vontade. Portanto, com o ato-fato jurídico criação já surge a relação de
propriedade entre o sujeito e a coisa, não havendo que se falar em qualquer nulidade
sobre o consentimento.

Por outro lado, os atos-fatos indenizativos referem-se às hipóteses em que existe


obrigação de indenizar sem a existência sequer da ilicitude, ou seja, sem culpa e muito
menos dolo. Nestes casos, haverá atuação humana, que até pode ser lícita, mas que causa
prejuízo a terceiro (dano) e dá ensejo à indenização.

O estado de necessidade encaixa-se perfeitamente nessa hipótese. O sujeito age


amparado pelo direito, destruindo ou deteriorando coisa alheia, sem cometer ato ilícito,
pois a lei lhe permite (art. 188, II). Contudo, mesmo não cometendo ato ilícito, deverá
indenizar, nos termos do que dispõem os artigos 929 e 930 do Código Civil.

Assim, conforme exemplo de Pontes de Miranda (2000, p. 445-446), poderia um


sujeito ao transportar penicilina para entrega a um credor (contratual) deparar-se com um
acidente e utilizar o medicamento para socorro das vítimas.

Nessa hipótese, não estaria sujeito às sanções pela quebra de contrato, haja vista
tratar-se de estado de necessidade. Entretanto, responderia pelo fato mesmo atuando de
forma lícita, uma vez que o ordenamento determina que indenize, independentemente da
existência do ilícito. É hipótese, portanto, de ato-fato jurídico.

Caso análogo (de estado de necessidade) ocorre com o locatário que está prestes a
desocupar o imóvel quando uma doença em sua família retarda sua saída. Não sofrerá as
conseqüências da inadimplência contratual, mas responderá pelos dias em que retardou a
entrega do imóvel por assim determinar a legislação. Isso porque, não obstante a
inexistência de ilícito, há dever de indenizar previsto na legislação civil.

Nesses casos, nos quais não há caracterização de ilícito, percebe-se a aplicação do


princípio do interesse mais relevante, conforme doutrina ponteana (2000, p. 440). Assim, o
risco iminente, a doença grave, o interesse público em alguns casos legitimam a atuação
humana, sem que seja considerada ilícita. Como o interesse que prevalece é o mais
relevante, o ato não é ilícito, mas mesmo assim haverá obrigação de indenizar.

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Pode-se dizer que nesses casos aplica-se também equidade para determinar a
responsabilidade civil – ora, o risco justifica o ato, mas por outro lado o terceiro não deve
arcar com seu prejuízo: é justiça no caso concreto.

Outrossim, Pontes de Miranda trata do que chama de princípio do perigo


correlativo ao interesse e aponta como exemplos a responsabilidade das estradas de ferro
a terceiros, a responsabilidade do dono da coisa, a responsabilidade do sujeito que
“explora indústria de explosivos ou gases mortíferos”.

Em termos contemporâneos, é possível dizer que se trata de casos de


responsabilidade objetiva e no último caso (especialmente) da aplicação da teoria do risco
da atividade, presente e norteadora do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90) –
todos os casos hoje de responsabilidade sem análise de culpa.

Esses princípios, de uma forma ou de outra ou por outras denominações, podem


ser aplicados no ordenamento jurídico atual.

Por fim, os atos-fatos extintivos ou de caducidade, dos quais decorre a extinção de


um direito em razão do decurso do tempo e, em conseqüência, a pretensão dele
decorrente, sem que a lei considere qualquer vontade envolvendo esse fato jurídico.

Essa espécie refere-se não só à decadência, mas também à prescrição6, à


preclusão, ou seja, em quaisquer situações em que haja o decurso de lapso de tempo (fato)
e a inação do titular do direito (ato), conforme leciona Marcos Bernardes de Mello (2003,
p. 135).

O mesmo autor ressalva que esses fenômenos podem ser considerados atos-fatos
jurídicos quando não constituírem atos ilícitos, observando que a prescrição nunca
decorre de ato ilícito (sempre de inação), mas a decadência sim. Esta última pode decorrer
de ilícito como nos casos em que o pai pratica atos contrários à moral e aos bons costumes
(ilícito implica em culpa), podendo perder o poder familiar (art. 1638, III CC).

Outro exemplo é a usucapião, nos caso em que a lei exige apenas suporte fático,
inclusive independente de boa-fé, como na usucapião extraordinária (art. 1238, CC).

5.4. Controvérsias doutrinárias e reconhecimento no ordenamento jurídico

Durante toda a explanação do presente trabalho, apresentaram-se variadas divergências,


principalmente quanto à classificação.

6Recomenda-se a leitura do artigo “Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações
imprescritíveis”, de Agnelo Amorim Filho. In RT 300/7 e 744/725.

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136 Fatos Jurídicos: um enfoque sobre o ato-fato jurídico

Nesse aspecto, a doutrina pátria e estrangeira é muito rica e isso parece


imprescindível para o desenvolvimento de todos os institutos anteriormente estudados.

Questão a não passar em branco refere-se ao tratamento do ato-fato jurídico


como categoria de fato jurídico autônoma.

Não se trata de ato jurídico, eis que neste o elemento volitivo é da sua estrutura, o
que não ocorre no ato-fato.

Outrossim, não cabe chamá-lo de fato jurídico em sentido estrito, uma vez que
neste eventualmente existe ação humana, mas de forma indireta e no ato-fato a ação
humana é da estrutura do fato jurídico – mas não a vontade.

Inexiste confusão ainda com o negócio jurídico, o qual traz a vontade como
fundamental para sua validade. No entanto, o ordenamento ampara alguns fatos jurídicos
em que havia um aspecto extrínseco de negócio jurídico. É o caso em que existe
incapacidade absoluta, mas mesmo assim o ordenamento não pode virar as costas para os
efeitos dele decorrentes, como no caso da criança que compra um doce em uma padaria.

Aliás, com relação à eficácia, todos os fatos jurídicos, independentemente de sua


validade têm potencial para produzir efeitos no plano concreto. Em suma, a eficácia só
dependerá da existência do fato.

Todavia, os fatos jurídicos stricto sensu, os atos-fatos jurídicos e os fatos ilícitos


não passam pelo plano da validade.
É que somente os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos passarão pelo crivo
da validade, uma vez que, derivando da vontade humana, poderão produzir efeitos em
conformidade ou desconformidade com o ordenamento jurídico. As demais categorias,
como não têm a vontade humana no cerne de seu suporte fático, por conseguinte, não
passarão pelo plano da validade (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 416-417).

Por fim, além de não haver confusão entre essas categorias e os atos-fatos
jurídicos, apenas para ilustrar, há ainda outras denominações doutrinárias para essa
espécie.

Em capítulo destinado a tratar do papel da vontade nos negócios jurídicos, José


de Abreu Filho aponta a existência dos “fatos do homem”, considerados por ele fatos
jurídicos em sentido estrito, pois em relação a eles não interessa a capacidade do sujeito
ou mesmo o elemento de ordem psíquica (“vontade ou consciência da ação”), citando
como exemplo a descoberta de um tesouro e as plantações.

A expressão tem inspiração na doutrina italiana e corresponde ao ato-fato


jurídico, a qual foi adotada no presente estudo.

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6. CONCLUSÃO

De todo o estudo elaborado sobre as diversas categorias de fatos jurídicos, apresenta-se


frutíferas e ricas conclusões.

De início, que a análise e o entendimento da teoria geral dos fatos jurídicos


mostram-se imprescindíveis para melhor compreensão das relações jurídicas e resolução
dos casos concretos.

Ademais, interessa para deslinde das controvérsias o entendimento de cada


espécie de fato jurídico, as quais se distinguem conforme suas estruturas e nem sempre
por seus efeitos.

Em razão do entendimento da estrutura das referidas categorias, parece evidente


a existência dos atos-fatos como categoria autônoma e relevante, os quais não se
confundem com as demais.

Visualizando com distinção e destacando a irrelevância com que o ordenamento


trata o elemento volitivo nessa espécie, fácil concluir que os atos-fatos não passam pelo
plano da validade, cumprindo apenas observar sua existência e eficácia.

Por outro lado, entre os variados exemplos mencionados, destaque para o


tratamento da teoria do risco da atividade e da responsabilidade objetiva como
fenômenos em relação aos quais a legislação afasta a questão da intenção, da vontade, da
simples consciência, para considerar apenas fato (plano da existência), conseqüência
(plano da eficácia) e nexo de causalidade.

Tais situações, buscadas na doutrina de Pontes de Miranda, envolvem casos de


indenização sem culpa, ou seja, sem que se analise esse elemento psíquico, inclusive
podendo surgir responsabilidade de atos lícitos.

Frise-se que essas teorias já estão amplamente desenvolvidas no Brasil,


especialmente através da legislação posterior à Constituição Federal, como o Código de
Defesa do Consumidor e o novo Código Civil.

Enfim, por se tratar de espécie do gênero fato jurídico, conclui-se que às vezes é
confundida com as demais espécies, na medida em que, por óbvio, traz em sua estrutura
elementos de outras espécies. Entretanto, nunca se confundem, haja vista contar com
elementos particulares que o distingue dos demais.

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Cleber Pereira Medina


Especialista em Direito Processual Civil com
ênfase na docência (2005) pelo Centro
Universitário das Faculdades Metropolitanas
Unidas.

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