Você está na página 1de 88

Universidade de São Paulo

Instituto de Psicologia

Lacan:
psicanálise, ontologia e política

Curso ministrado no Segundo


Semestre de 2017

Prof. Vladimir Safatle


Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 1

Há algumas maneiras possíveis de começar um curso como este. Uma primeira


possibilidade começaria por lembrar como o advento da psicaná lise representou
uma inflexã o importante na compreensã o do que política realmente significa. Ou
seja, eu poderia começar insistindo no fato de nã o podermos falar de política da
mesma forma antes e depois da psicaná lise. Na medida em que a psicaná lise
moldou a sensibilidade social contemporâ nea a respeito dos processos de
socializaçã o dos desejos e das pulsõ es, ela necessariamente influenciou os modos
de problematizaçã o das configuraçõ es sociais aí produzidas. Nã o será possível
compreender a transformaçã o da sexualidade, da corporeidade, da memó ria em
problemas políticos maiores do século XX, nossa forma de questionar o que se
produz nos campos da sexualidade, da corporeidade, da memó ria sem levarmos
em conta o impacto social da psicaná lise em nosso horizonte de crítica social.
No entanto, notemos a especificidade da abordagem psicanalítica. Pois ela
se dá através da questã o sobre a forma com que tais processos de socializaçã o
produzem modalidades de sofrimento. Ou seja, o sofrimento psíquico se
transforma em uma categoria política central por indicar sistemas de
expectativas nã o realizadas no interior da vida social. Ele nã o aparecerá como
desvio em relaçã o a estruturas tipificadas de normalidade, mas como modo de
denú ncia da articulaçã o, necessá ria para nó s, entre socializaçã o e violência, entre
instauraçã o da vida psíquica e sujeiçã o social. A psicaná lise nã o falará , por
exemplo, dos desajustes da família, mas da maneira com que a família produz
necessariamente desajustes para funcionar de maneira “normal”, ou seja, de
acordo com sua pró pria normatividade. Ela nã o falará do uso neuró tico da
religiã o, mas de como a vinculaçã o ao poder pastoral nos coloca necessariamente
em posiçã o neuró tico obsessiva. Neste sentido, a insistência nas feridas
provocadas pela nossa inscriçã o no interior da vida social serã o as marcas de
uma revolta que nã o encontrou voz e que, por isto, aparece no corpo, nos rituais
compulsivos, nas inibiçõ es, na angú stia. Revoltas que aparecem naquilo que os
sujeitos tem de mais verdadeiro.
Assim, nã o se trata de insistir na proposiçã o equivocada de que as
sociedades ocidentais teriam esperado a psicaná lise para iniciar seus
questionamentos a respeito da política implícita em estruturas disciplinares
responsá veis pela constituiçã o de uma civilidade indissociá vel da normalidade
psíquica. Trata-se, na verdade, de lembrar que um passo decisivo é dado pela
psicaná lise na medida em que tais estruturas disciplinares poderã o ser
questionadas nã o tendo em vista a norma que elas deveriam realizar, mas
simplesmente o sofrimento que elas produzem ao, de forma paradoxal,
“funcionarem bem”. A psicaná lise nã o precisou partir do normal para discutir os
desvios da vida social, um pouco como fazia a medicina social do século XIX ou
ainda como certa sociologia do século XIX. Pensemos, por exemplo, nos usos
feitos por Durkheim da noçã o de patologia social enquanto desvio em relaçã o à
média. Na verdade, a psicaná lise partirá da expressã o do patoló gico, da
expressã o do sofrimento psíquico compreendido como marcas da violência e da
sujeiçã o social.

Sujeição libidinal e emancipação social

Mas, e este é um ponto fundamental, ao se indagar sobre as formas da


vida social, a psicaná lise procurou sobretudo descrever os regimes de adesão à
sujeição social, ou seja, a esta maneira de associar a pró pria instauraçã o da vida
psíquica, a constituiçã o de suas instâ ncias à modalidades de adesã o ao que nos
faz sofrer. Pois a sujeiçã o nã o poderia se dar apenas através da coerçã o, da
violência direta, embora ela nã o deixe de apelar a tais expedientes, se necessá rio
for. Há processos identificató rios, demandas de amor, expectativas de amparo,
ou seja, há todo um circuito de afetos com seus medos, esperanças, melancolias
que sustenta o poder, que dá ao poder a força de sujeitar sujeitos, de gerir suas
expectativas e sofrimentos, e é deste circuito que a psicaná lise fala. Nó s
paradoxalmente amamos aquilo que nos sujeita, e nã o seria de outra forma que
tal sujeiçã o conservaria sua força.
Por esta razã o, a psicaná lise logo se consolidou como uma referência
maior na aná lise de fenô menos de regressã o social. Que lembremos, por
exemplo, do recurso massivo da Escola de Frankfurt à psicaná lise na aná lise de
fenô menos como o antisemitismo, o nazismo e a constituiçã o de personalidades
autoritá rias. Este recurso está presente desde o início dos anos trinta, com os
estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesã o do operariado alemã o ao
nazismo a partir da aná lise das articulaçõ es entre “impulsos emocionais do
indivíduo e suas opiniõ es políticas”1. Fromm procurava, para além da expressã o
explícita do engajamento político, compreender e tipificar as estruturas
motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisõ es. Sua compreensã o
visava lançar luz sobre as contradiçõ es imanentes entre comportamentos
pú blicos e representaçõ es psíquicas, o que poderia explicar o sistema de
modificaçõ es bruscas das posiçõ es políticas da classe operá ria, como a deserçã o
do comunismo em direçã o ao nazismo.
Mas para além do uso da psicaná lise na aná lise das dinâ micas de
regressã o social, os frankfurtianos foram os primeiros a mostrar como a
integraçã o da psicaná lise no interior de uma reflexã o sobre a crítica social
permitiria desenvolver uma verdadeira crítica da economia libidinal do
capitalismo. Esta era a consequência da compreensã o de que a aná lise dos
processos de racionalizaçã o social e seus descaminhos deveria, se quiser
esclarecer seu fundamento, incorporar consideraçõ es mais amplas sobre a
ontogênese das capacidades prá tico-cognitivas dos sujeitos2. No entanto, Freud
mostraria como tal ontogênese seria indissociá vel da reflexã o sobre a dinâ mica
conflitual dos processos de socializaçã o das pulsõ es e do desejo no interior de

1
FROMM, Erich; Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stutgart: Deutsche
Verlags-Anstalt, 1980, p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações de Erich Fromm ao
Instituto de Pesquisas Sociais, ver JAY, Martin; The dialectical imagination, California University
Press, 1996
2
Daí porque Adorno lembrará: “Freud mostrou de maneira bem convincente que as forças que
assumem a função do cimento irracional de grupos, como lembrada por autores tais como Gustave Le
Bon, são atualmente efetivas no interior de cada participante do grupo e não pode ser compreendida
como entidades independentes das dinâmicas psicológicas” (ADORNO, Theodor; Vermischte
Schriften I, p. 279).
esferas de interaçã o como a família, as instituiçõ es sociais e o Estado, fornecendo
novas bases para uma perspectiva materialista na medida que derivava
dinâ micas amplas de racionalizaçã o social das experiências materiais de
interaçã o tendo em vista problemas de satisfaçã o e reconhecimento.

Emancipação

Mas eu poderia começar este curso ainda de outra maneira, nã o apenas


lembrando que a psicaná lise modificou a compreensã o ocidental do que política
significa, redimensionando o escopo da crítica social ao tematizar a sociedade
inconsciente de si mesma, mas que ela nos permitiu pensar em outras bases o
processo de emancipaçã o social. Esta é uma dimensã o muitas vezes ignorada, no
entanto decisiva. A psicaná lise é solidá ria do redimensionamento da noçã o de
emancipaçã o, ao conservar a temá tica de uma liberdade possível, de uma crítica
possível da alienaçã o, mas impedindo-a de ser pensada como a realizaçã o social
da autonomia da consciência. A noçã o psicanalítica de inconsciente nos obriga à
reformulaçã o profunda do conceito de autonomia, reformulaçã o a respeito da
qual ainda nã o medimos de forma efetiva suas consequências. Isto nã o poderia
deixar de trazer consequências para a noçã o de açã o política. Pois o que é uma
açã o política que nã o se coloca mais como açã o de uma consciência, seja ela
individual ou consciência de classe? O que é uma açã o política que nã o pode mais
apelar a conceitos de deliberaçã o racional tal como entendemos este conceito até
agora?
Insistir na existência de uma reflexã o psicanalítica sobre as condiçõ es de
emancipaçã o social significa recusar a noçã o, muito presente entre nó s, de que a
psicaná lise freudiana poderia, no má ximo, nos fornecer uma visã o deceptiva da
vida social. Se há emancipaçã o possível, ela deve se realizar como instauraçã o de
laços sociais que possam dar conta de expectativas de liberdade. O que significa
recusar a ideia de que só seria possível pensar laços sociais a partir das
exigências de contençã o possível de uma violência imanente à vida comum. Por
exemplo, creio que vocês todos conhecem afirmaçõ es como:

O ser humano nã o é uma criatura branda, á vida de amor, que no má ximo


pode se defender quando atacado, mas ele deve sim incluir, entre seus
dotes instintuais, também um forte quinhã o de agressividade. Em
consequência disso, para ele o pró ximo nã o constitui apenas um possível
colaborador e objeto sexual, mas também uma tentaçã o para satisfazer a
tendência à agressã o, para explorar seu trabalho sem recompensá -lo, para
dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu
patrimô nio, para humilhá -lo, para infligir-lhe dor, para torturá -lo e matá -
lo. Homo homini lupus3.

A metá fora hobbesiana utilizada por Freud, que afasta do horizonte toda
pressuposiçã o de uma tendência imediata à cooperaçã o, deixaria claro como o
vínculo social só poderia se constituir a partir da restriçã o a esta crueldade inata,
3
FREUD, Sigmund; O mal-estar na civilização, Sã o Paulo: Companhia das Letras, pp. 76-77.
Lembremos ainda do tom claramente hobbesiano da descriçã o da violência do “estado de
natureza” que leva Freud a afirmar: “a principal tarefa da cultura, sua razã o pró pria de existência,
consiste em nos defender contra a natureza” (FREUD, Sigmund; Der zukunft einer Illusion, In:
Gesammelte Werke XIV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 336)
a esta agressividade pulsional que parece ontologicamente inscrita no ser do
sujeito. Desta forma, uma “hostilidade primá ria entre os homens” seria o fator
permanente de ameaça à integraçã o social. O que teria levado alguém como
Derrida a afirmar que “se a pulsã o de poder ou a pulsã o de crueldade é
irredutível, mais velha, mais antiga que os princípios (de prazer ou de realidade,
que sã o no fundo o mesmo, como gostaria eu de dizer, o mesmo na diferença)
entã o nenhuma política poderá erradicá -la”4. Tal crueldade nã o pareceria ser
completamente maleá vel de acordo com transformaçõ es sociais. Daí porque
Freud dirá : “Sempre é possível ligar um grande nú mero de pessoas pelo amor,
desde que restem outras contra as quais se exteriorize a agressividade”5. Ou seja,
os vínculos cooperativos baseados no amor ou em alguma forma de
intersubjetividade primá ria só seriam realmente capazes de sustentar relaçõ es
sociais alargadas à condiçã o de dar espaço à constituiçã o de diferenças
intolerá veis alojadas em um exterior que será objeto contínuo de violência. Tais
vínculos de amor permitiriam a produçã o de espaços de afirmaçã o identitá ria a
partir de relaçõ es libidinais de identificaçã o e investimento. Mas a constituiçã o
identitá ria seria indissociá vel de uma regulaçã o narcísica da coesã o social, o que
explica porque Freud fazia questã o de lembrar que “depois que o apó stolo Paulo
fez do amor universal aos homens o fundamento de sua congregaçã o, a
intolerâ ncia extrema do cristianismo ante os que permaneceram de fora tornou-
se uma consequência inevitá vel”6. Nã o é difícil compreender como tal
exteriorizaçã o da agressividade, assim como toda e qualquer aceitaçã o de
restriçõ es pulsionais só poderá ser feita apelando ao medo como afeto político
central. Medo do exterior, do poder soberano, da despossessã o produzida pelo
outro ou ainda da destruiçã o produzida por si mesmo.
Neste ponto, Freud poderia parecer prisioneiro de um certo nú cleo
metafísico da política, presente nesta forma de radicalizar a irredutibilidade da
violência como constante antropoló gica. Podemos falar em “nú cleo metafísico”
porque a violência irredutível das relaçõ es interpessoais, além de ser elevada a
paradigma intransponível do político, pareceria fadada a só se realizar de uma
forma, a saber, como experiência da vulnerabilidade diante da agressividade
vinda do outro. Tal invariabilidade das figuras da violência parece expressã o de
uma certa crença metafísica na essência intransponível das relaçã o humanas.
No entanto, esta leitura é errada e nã o faz jus à quilo que a psicaná lise
produziu de pontencialidades a respeito de uma teoria da emancipaçã o. Pois há
de se lembrar que a psicaná lise nã o é apenas uma crítica social, ela é uma
reflexã o sobre as possibilidades de emergência de corpos políticos capazes de
bloquear os sistemas de alienaçã o e suas formas de sofrimento social. Eu diria
que sem este horizonte em vista nã o é possível entender o sentido de textos
como Moisés e o monoteismo, Por que a guerra? Ou O futuro de uma ilusão.

Uma teoria das identificações políticas

Foi levando em conta esta dupla inscriçã o da psicaná lise no interior do


campo político desde Freud que gostaria de propor este curso a vocês. Trata-se
de insistir que esta dupla tarefa política da psicaná lise será um dos eixos

4
(DERRIDA, Jacques; Estados de alma da psicanálise, Rio de Janeiro: Relume Dumará , p. 34)
5
FREUD, Der Zukunft einer Illusion, p. 81
6
FREUD, O mal-estar na civilização, op. cit. p. 81
principais do desenvolvimento da experiência intelectual de Jacques Lacan, ela
pode nos fornecer o sentido de elaboraçõ es clínicas maiores de Lacan.
O destino das consequências políticas do pensamento lacaniano é algo que
está longe de ser estabelecido sem problematizaçõ es. Críticas significativas
foram desenvolvidas por leitores de Lacan como Guattari, Deleuze, Foucault,
Derrida, Castoriadis, entre outros. No entanto, eu gostaria de insistir que tais
críticas erram de alvo e que uma leitura atenta dos textos pode nos mostrar uma
outra imagem do pensamento.
Para tanto, neste curso, gostaria de desenvolver quatro eixos de
organizaçã o das relaçõ es entre psicaná lise e política a partir da obra de Jacques
Lacan. Tais eixos respondem por problemas constitutivos da experiência política
e já foram, cada um a sua maneira, elaborados ou criticados por teó ricos e
filó sofos que se confrontaram com a obra lacaniana. No entanto, gostaria de
insistir que, a meu ver, todos esses eixos encontram-se ainda subaproveitados
em suas potencialidades imanentes. Eles carecem ainda de maior sistematizaçã o.
Estes eixos visam dar conta do que poderíamos chamar de “os quatro
conceitos fundamentais da política a partir da psicaná lise lacaniana”. Eles
acabam por cobrir, à sua maneira, problemas centrais para a teoria política
como: a questã o da emergência e da mobilizaçã o, da crítica da situaçã o e da
organizaçã o. Os conceitos sã o: identificaçã o, ato, gozo e reconhecimento. A sua
maneira, eles desdobram o campo organizado por aquilo que Lacan chamou de
“os quatro conceitos fundamentais da psicaná lise”, a saber: a transferência, a
repetiçã o, o inconsciente e o objeto a.
O primeiro eixo que gostaria de analisar com vocês diz respeito a uma
teoria das identificações políticas que se desdobra em uma concepçã o sobre
modalidades de instauraçã o de corpos políticos. Neste eixo, encontramos
inclusive reflexõ es sistemá ticas sobre processos de organizaçã o política
advindos das exigência que Lacan se impô s de constituir um vínculo social
renovado através da transformaçã o do problema da comunidade de analistas em
um problema interno à clínica, isto ao constituir a Escola Freudiana de
Psicaná lise. O que de fato produziu problemas suplementares dificilmente
resolú veis.
Lacan parte de um diagnó stico social referente à quilo que ele chama de
“declínio da imago paterna” e dos efeitos sociais que tal declínio produziria.
Como gostaria de mostrar já na aula que vem, longe de estarmos diante um
tó pico social vinculado ao colapso das autoridades tradicionais devido ao
processo de modernizaçã o social e a potencial anomia que tal desregulaçã o das
normas sociais produziria (como vemos, por exemplo, em Durkheim), tó pico
articulado normalmente com demandas de instauraçã o de um institucionalismo
forte, temos em Lacan uma reflexã o original vinculada à consciência do advento
de uma era histó rica na qual o declínio da imago paterna nã o equivalerá à
liberaçã o dos sujeitos de estruturas patriarcais fortemente normativas, mas à
consolidaçã o de outra forma de sujeiçã o social vinculada à reduçã o das relaçõ es
sociais à s formas imaginá rias do conflito, da agressividade e da rivalidade
narcísica.
A promessa de liberaçã o advinda do fim da sociedade patriarcal nã o se
realizou, é o que diz Lacan. Na verdade, nó s já viveríamos em uma sociedade sem
pais, pois as figuras paternas estariam necessariamente reduzidas à condiçã o de
rivais narcísicos. Sociedades nas quais o verdadeiro pai só pode ser um pai
morto. O que produz um efeito social de generalizaçã o do narcisismo como
estrutura de defesa contra a fragilidade do Eu em uma situaçã o na qual as
identificaçõ es simbó licas tendencialmente nã o conseguem operar enquanto tais.
Antes da temá tica das sociedades narcísicas tomar conta da sociologia dos anos
sessenta, Lacan apontava para um problema estruturalmente semelhante como a
verdadeira forma de reproduçã o social das sociedades capitalistas
contemporâ neas, sem ter que referendar a crítica ao hedonismo que muitas
vezes acompanham tais críticas, transformando-as muitas vezes em críticas
morais do capitalismo.
Há de se salientar ainda que a compreensã o lacaniana do narcisismo
generalizado apontava para dois fenô menos sociais fundamentais. Primeiro, a
submissã o dos sujeitos a um tipo de injunçã o superegó ica nã o mais vinculada à
repressã o advinda de figuras paternas de autoridade, mas a uma demanda
indeterminada de satisfaçã o que só poderia levar ao colapso depressivo da
capacidade individual de açã o. Segundo, a possibilidade de produçã o
generalizada de demandas por figuras superegó icas de autoridade em clara
chave autoritá ria.
Isto mostra como tal economia psíquica trará consequências maiores para
o campo político. A sua maneira, Lacan tentará lidar com elas desde seu texto de
1947 “A psiquiatria inglesa e a guerra” no qual saú da o experimento de Bion e
Rickmann a respeito de grupos sem chefe. Em uma era de declínio da imago
paterna, sua aposta parece caminhar em direçã o à possibilidade nã o de
fortalecimento das figuras paternas de autoridade, mas de constituiçã o de laços
sociais a partir da identificaçã o a um lugar vazio, algo que de certa forma
veremos se realizar com um filó sofo político leitor de Lacan, a saber, Claude
Lefort. O mesmo Lefort que tentará desenvolver uma teoria da democracia a
partir de uma apropriaçã o das distinçõ es lacanianas entre os registros do
simbó lico e do imaginá rio. Daí afirmaçõ es como:

A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas a imagem da


soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser
ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pú blica nã o
poderiam pretender apropriar-se dele. A democracia alia estes dois
princípios aparentemente contraditó rios: um, que o poder emana do
povo; outro, que esse poder nã o é de ninguém7.

Assim, da mesma maneira com que o desejo do analista aparecerá inicialmente


como um desejo puro, as identificaçõ es no campo social, se nã o quiserem abrir
espaço a regressõ es autoritá rias, deveriam saber se guiar pela explicitaçã o do
lugar vazio simbó lico do poder com suas consequências pretensamente
apaziguadoras para os conflitos sociais.
No entanto, da mesma forma que o desejo do analista acabará por
demonstrar nã o poder ser pensado como um desejo puro, esta teoria das
identificaçõ es políticas que visa sustentar a força do lugar vazio para além da
reduçõ es imaginá rias de conflitos pró prios a sujeitos narcísicos impulsionados
pela agressividade terá de ser revista. Se na teoria dos quatro discursos, a
discurso do analista será caracterizado exatamente pelo fato de nã o haver
sujeitos como agentes, mas a posiçã o da agência ser dada por um objeto que
7
Idem; A invenção democrática, op. cit. p. 76.
causa o desejo, entã o há de se perguntar o que esta nova compreensã o do lugar
do objeto a traz para uma teoria das identificaçõ es socio-políticas.
Notem que se no primeiro modelo, a abertura à dimensã o simbó lica com o
vazio que ela implica permitiria uma transposiçã o do conflito social à cena de um
horizonte possível de preservaçã o dos oponentes e de garantia de certa
pluralidade agonística, no segundo a identificaçã o ao objeto a nos remete a uma
dinâ mica pró pria ao registro do Real. Estas dinâ micas do Real serã o de outra
ordem, como nos mostrará um texto que poderá nos orientar, a saber,
“Proposiçã o de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”.
Conhecemos um filó sofo político que, na contramã o de Lefort, recupera a
centralidade dos processos identificató rios na constituiçã o de corpos políticos
apoiando-se de forma explícita e sistemá tica em Lacan. Trata-se de Ernesto
Laclau. Gostaria de discutir as estratégias de Laclau, em especial seu uso de
noçõ es homó logas ao objeto a na compreensã o dos processos populistas de
identificaçã o. Assim, o primeiro eixo de nosso curso terá como textos
fundamentais: “A psiquiatria inglesa e a guerra”, a “Proposiçã o de 9 de outubro
de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, o capítulo de A razão populista intitulado
“O povo e a construçã o política do vazio”, de Laclau, e o subcapítulo de A
invenção democrática, “Contribuiçõ es para a compreensã o do totalitarismo”, de
Claude Lefort.

Uma teoria da emergência de sujeitos

O segundo eixo de nosso curso refere-se a uma teoria da emergência de


sujeitos políticos que encontra configuraçã o através das temá ticas lacanianas do
ato analítico e de sua capacidade em problematizar teorias da deliberaçã o
racional e da autonomia ainda tributá rias dos limites de uma filosofia da
consciência muitas vezes nã o explicitada. Ou seja, é através das discussõ es sobre
a anatomia do ato que podemos encontrar, em Lacan, uma compreensã o das
dinâ micas de agência política nã o mais dependente dos limites de uma filosofia
da consciência.
Em seu seminá rio O ato analítico, Lacan fornece aquilo que ele chama de
“a fó rmula do ato”. Esta fó rmula encontra-se enunciada em um poema de
Rimbaud chamado À uma razã o:

Um bater de seu dedo contra o tambor descarrega/ todos os sons e


começa a nova harmonia./ Um passo seu é o levante de novos homens/ E
seus em-marcha./ Tua cabeça se vira: o novo amor!/ Tua cabeça se volta:
o novo amor! /“Muda nossos destinos, alveje as pragas, a começar pelo
tempo”, cantam-te essas crianças. “Cultiva nã o importa onde a substâ ncia
de nossas fortunas e desejos”, te suplicam./ Vinda de sempre, quem irá
contigo por toda parte.

A escolha do poema de Rimbaud nã o poderia ser mais apropriada,


principalmente se lembrarmos que estamos aqui a falar do poeta que canta a
Comuna de Paris e seus desejos de transformaçã o. É clara a constelaçã o da
ruptura, dos destinos que mudam ao alvejar o tempo vivido como praga, do
espaço que se abre para um “nã o importa onde”, para um “por toda parte”. Neste
horizonte, a psicaná lise procura pensar as condiçõ es de transformaçõ es
subjetivas capazes de trazer uma agência que nã o é completamente coordenada
pela estrutura. Daí porque: “se eu posso aqui caminhar falando a vocês, isto nã o é
um ato, mais se um dia ultrapasso um certo solo no qual coloco-me fora da lei,
neste dia minha motricidade terá valor de ato”8. No que se percebe como há uma
suspensã o da estrutura que é constitutiva da noçã o de ato analítico.
Lacan articula a estrutura do ato ao manejo da transferência,
especialmente na sua forma de liquidaçã o do sujeito suposto saber e de extraçã o
do objeto que sustenta a relaçã o de suposiçã o, a saber, o objeto a. Tal extraçã o
retira o objeto a de sua posiçã o de suporte imaginá rio da consistência da
estrutura e lhe permite aparecer na posiçã o de resto, ou seja, de um inassimilá vel
que só pode impulsionar a “um novo amor”, a “um levante de novos homens”. Há
uma queda de um saber suposto, queda de um saber deliberar que aparece como
efeito fundamental do ato analítico. Daí porque Lacan afirmará que se trata de:
“um ato tal que destitui em seu fim o pró prio sujeito que o instaura”9.
Este ato analítico, por sua vez, nã o é a inscriçã o no interior de uma
rememoraçã o capaz de integrar as dimensõ es da experiência à historicizaçã o e a
seus mecanismos de construçã o. Por isto, o ato analítico nã o é uma “tomada de
consciência”. Ele é uma repetiçã o específica. É esta recompreensã o da repetiçã o
que permitirá o recurso clínico à noçã o de ato. Ou seja, haverá uma relaçã o
profunda entre ato e repetiçã o, todo verdadeiro ato será uma forma específica de
repetiçã o (o que nos exige constituir uma gramá tica dos modos de repetiçã o),
algo que todo leitor de Hegel e Marx conhece bem através do tema da repetiçã o
histó rica. Ou seja, o ato instaura uma temporalidade pró pria, uma repetiçã o que
nã o é nem simbó lica, no sentido de meramente atualizar as posiçõ es de uma
estrutura, nem imaginá ria, no sentido de meramente repetir conformaçõ es
imaginá rias, vestimentas de outra época. O ato instaura uma temporalidade real
que permite a emergência de sujeitos que nã o podem mais ser pensados sob a
figura de indivíduos. Há de se entender o que pode ser este registro real das
repetiçõ es que se encarna na pró pria natureza do ato analítico.
Notem a importâ ncia desta discussã o sobre o ato analítico para o campo
político. Em maio de 1968, os estudantes escrevem nos muros de Paris: “as
estruturas nã o descem à s ruas”. Esta era uma maneira de dizer que as formas da
revolta social mostravam a inanidade de teorias incapazes de dar espaço a uma
agência emancipada que nã o seria, a sua maneira, reiteraçã o das posiçõ es
previamente normatizadas por uma estrutura metaestá vel. A resposta de Lacan
será : “se há algo que a revolta estudantil mostrou foi a descida à s ruas da
estrutura”. Ou seja, havia para Lacan algo de reiteraçã o de posiçõ es na revolta
estudantil, de impossibilidade de produçã o de rupturas efetivas. Nã o será a
primeira vez que Lacan insistirá que a revolta estudantil nã o seria um ato, seria
um acting out, já que lhe faltaria, no fundo, a capacidade de emergência de
sujeitos políticos. “O que vocês aspiram como revolucioná rios é a um mestre”,
dirá Lacan aos estudantes, “vocês o terã o”10. Maneira de insistir que as demandas
políticas teriam dois destinos possíveis: ou ficar na posiçã o histérica de ter de se
garantir graças a presença de um poder questionado que deve continuar no
mesmo lugar para poder ser continuamente exigido e questionado ou permitir a
incorporaçã o dos sujeitos da demanda na estrutura do pró prio saber

8
LACAN, S XV, sessã o de 15 de novembro de 1967
9
LACAN, Autres écrits, p. 375
10
LACAN, S XVII, p. 239
questionado. Nos dois casos, há uma adesã o da resistência à gramá tica do que é
questionado, à sua forma de organizaçã o do saber, de inscriçã o e
reconhecimento de sujeitos.
Mas o que haveria no ato analítico que demonstraria o impasse das açõ es
de revolta? Veremos como o ato nã o pode ser ato de uma consciência que se
assenta na afirmaçã o da autonomia de suas decisõ es. Ele nã o pode sequer ser
expressã o de uma consciência de classe que se produz como identidade coletiva
por vir com todos os riscos de sua reificaçã o identitá ria posterior. Ele só pode ser
a tentativa de extraçã o do que causa nosso desejo das sendas de seu
aprisionamento no interior de certa noçã o de sujeito, de demanda e estrutura. Há
uma singular forma de emancipaçã o através da noçã o lacaniana de ato. Ela deve
ser tematizada.
Das críticas à posiçã o lacaniana a respeito de maio de 68, talvez a mais
elaborada seja a de um ex-militante dos movimentos de juventude maoísta, a
saber, Alain Badiou. No entanto, Badiou construirá sua pró pria teoria do ato
político através de uma leitura singular das dinâ micas de conversã o religiosa, tal
como ela aparece em São Paulo: a fundação do universalismo. Teremos ocasiã o de
organizar tal debate através do trabalho com os textos: “O ato analítico” e
“Discurso à Escola Freudiana de Paris”, de Lacan e o pequeno livro de Badiou.

A economia libidinal do capitalismo

O terceiro eixo, talvez o mais discutido pela fortuna crítica, nos fornece
uma crítica da economia libidinal do capitalismo através do uso extensivo de um
conceito de gozo forjado na relaçã o entre psicaná lise freudiana e teoria social de
Georges Bataille (de onde o conceito realmente vem). Lacan acredita que a crítica
social do capitalismo deve estar inicialmente atenta à s formas de incitaçã o
libidinal necessá rias à reproduçã o das formas sociais. A compreensã o das
articulaçõ es entre instauraçã o da vida psíquica e modos de sujeiçã o social
passam, no caso de Lacan, por uma dinâ mica que nã o é legível através dos
problemas ligados aos destinos dos processos repressivos, mas aos modos de
expropriaçã o das experiências de gozo.
Na verdade, Lacan parte inicialmente da perspectiva batailleana relativa à
compreensã o dos processos de reproduçã o material da vida sob o capitalismo
através da elevaçã o dos princípios utilitaristas de maximizaçã o do prazer e de
afastamento do desprazer. Em Bataille, tal tó pica servia para lembrar que o
capitalismo deveria procurar eliminar do horizonte da vida social todos estes
fatos totais que nã o poderiam ser pensados através da estrutura calculadora do
prazer, em especial o erotismo e o sagrado. Pois sagrado e erotismo seriam fatos
sociais motivados pelo gozo, nã o pelo prazer.
Esta distinçã o entre prazer e gozo será transposta para o interior da
teoria psicanalítica por Lacan, principalmente a partir do Seminário VII, sobre a
ética da psicaná lise. Na ocasiã o, Lacan fará uma importante elaboraçã o a respeito
da experiência analítica como uma prá tica dirigida por uma ética que, no
entanto, nã o promete forma alguma de adaptaçã o possível entre virtudes
privadas e virtudes pú blicas nas condiçõ es atuais. “Il n’y a aucune raison que
nous nous fassions les garants de la rêverie bourgeoise”11. Nas condiçõ es atuais, a
realizaçã o do gozo só pode se dar de forma disruptiva em relaçã o à s exigências
11
LACAN, S VII, p. 350
de auto-conservaçã o dos indivíduos. No entanto, ele é abertura para a
possibilidade de realizaçã o de açõ es que nã o se mesurem mais ao princípio do
prazer. Desta forma, a existência de um para-além do princípio do prazer ganha
em Lacan uma dimensã o ética que nã o existia em Freud.
Esta crença na força disruptiva de experiências de gozo, no entanto, terá
que lidar com uma economia libidinal pró pria ao capitalismo, que nã o se baseia
apenas na repressã o do gozo e afirmaçã o do prazer, mas na espoliaçã o do gozo
no interior de uma ló gica de reproduçã o de sua desmedida, mas no interior da
ló gica de produçã o do valor. O capitalismo nã o apenas codifica nossos desejos,
ele nos espolia de nosso gozo. Com isto, Lacan cria uma teoria da economia
libidinal do capitalismo no qual os processos de socializaçã o nã o serã o mais
pensados sob a forma da repressã o, mas da incitaçã o contá bil, da eliminaçã o da
força disruptiva do gozo através da pró pria colonizaçã o do gozo.
Esta racionalidade pró pria a uma sociedade organizada a partir da
circulaçã o do que nã o tem outra funçã o a nã o ser se auto-valorizar, que
determina as açõ es dos sujeitos a partir da produçã o do valor, precisa socializar
o desejo levando-o a ser causado pela pura medida da intensificação, pelo puro
empuxo à ampliaçã o que estabelece os objetos de desejo em um circuito
incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar. Assim é possível
afirmar que “subjetivaçã o ‘contá bil’ e subjetivaçã o ‘financeira’ definem em ú ltima
aná lise uma subjetivaçã o do excesso de si sobre si ou ainda pela ultrapassagem
indefinida de si”12. Esta estrutura psíquica, cujo desejo é causado pela pura
medida da intensificaçã o, pede uma economia psíquica nã o mais assentada em
um supereu repressivo, mas em um supereu que eleva o gozo à condiçã o de
imperativo transcendente, impossível de ser encarnado sem destruir sua pró pria
encarnaçã o, o que Lacan compreendeu muito bem através de sua teoria do
supereu como injunçã o contínua ao gozo13.
Como se trata, porém, de uma ló gica contá bil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questã o a normatividade interna do processo
capitalista de acumulaçã o e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusõ es de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relaçõ es por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que nã o se
transforma em modificaçã o qualitativa. Ao contrá rio, todo excesso é
financeiramente codificá vel, é confirmaçã o do có digo previamente definido14.
Como diria Hegel a respeito de outros fenô menos, esse excesso é marca de uma
má infinitude, pois nã o passa ao infinito verdadeiro do que muda sua pró pria
forma de determinaçã o a partir de si, do que é infinito por realizar-se
produzindo paradoxalmente a exceçã o de si. Uma exceçã o que, ao ser integrada,
modifica processualmente a estrutura da totalidade anteriormente pressuposta.
Antes, ele é o infinito ruim do que é sempre assombrado por um para além que
nunca se encarna, para além cuja ú nica funçã o é marcar a efetividade com o selo
da inadequaçã o, do gosto amargo do “ainda nã o”. A sua maneira, Lacan nos
lembra que a aná lise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois
infinitos. Os destinos do gozo só podem ser pensados no interior de uma teoria
dos dois infinitos.
12
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
13
Desenvolvi este ponto em SAFATLE, Vladimir; Cinismo e falência da crítica, op. cit.
14
Desta forma, “nã o se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de
conceder a cada um uma espécie de espaço econô mico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
Para tanto, trabalharemos sessõ es dos Seminá rios VII, A ética da
psicanálise, e XVII, O avesso da psicanálise. Neste ponto, gostaria de retomar as
críticas de Foucault à “desqualificaçã o dos prazeres” feita por Lacan e de
Deleuze/Guattari a sua teoria do capitalismo.

Uma prática de organização

Por fim, o ú ltimo eixo de reflexã o sobre a relaçã o entre política e psicaná lise em
Lacan diz respeito à forma com que ele tematiza práticas de organização. A partir
de 1964, sã o vá rios os textos nos quais Lacan se confronta com problemas de
organizaçã o na qual seria necessá rio pensar a possibilidade de constituiçã o de
laços sociais em situaçõ es nas quais a travessia da fantasia teria se realizado.
Uma organizaçã o que, por isto, deveria ser capaz de fazer circular a angú stia, e
nã o se defender dela, que deveria ser capaz de afirmar o desamparo, e nã o
construir representaçõ es superegó icas que visam realizar promessas de amparo.
Ou seja, há principalmente uma pergunta a respeito do circuito de afetos
pró prios a organizaçõ es e grupos que queiram ser espaços de atos analíticos, o
que poderia ser uma matriz para a compreensã o de grupos capazes de realizar
expectativas de emancipaçã o.
No entanto, a prá tica de organizaçã o de Lacan termina sob a égide de um
fracasso representado pelo autodissoluçã o de sua Escola. O eixo da explosã o de
sua Escola foi, de forma sintomá tica, a tentativa de reintroduzir algo dos
processos de comunicaçã o e intersubjetividade através da noçã o de “passe”. Eu
gostaria de terminar o curso pensando as dimensõ es políticas deste fracasso a
fim de compreendermos o que ele nos diz, quais os desafios que ele nos deixa
para uma teoria geral de grupos e organizaçõ es. Principalmente, em que
condiçõ es poderemos pensar a inscriçã o comum da posiçã o de sujeitos. Esta será
uma maneira de demonstrar a necessidade de conservar, no interior do
pensamento lacaniano, a temá tica do reconhecimento como horizonte normativo
de realizaçã o de demandas políticas.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 2

Um dos principais diagnó sticos sociais de Jacques Lacan, e que poderá nos
auxiliar a introduzir nossas reflexõ es sobre as relaçõ es entre clínica e política em
sua obra, será claramente enunciado já em 1938, a ocasiã o da publicaçã o do
texto Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaios sobre a formação
de uma função em psicologia. Ele diz respeito ao que será conhecido como o
“declínio da imago paterna”. Tentemos compreender melhor este ponto.
Inicialmente, o topos lacaniano parece referendar um modelo de crítica
social que insistiria nas consequências desagregadoras do enfraquecimento do
sistema de autoridades tradicionalmente constituídas. Como se o
enfraquecimento das normas sociais responsá veis pela regulaçã o das condutas e
socializaçã o dos sujeitos fosse a causa de modalidades de sofrimento social que
poderiam levar a consequências políticas regressivas. Nã o foram poucos aqueles
que viram uma espécie de pressuposiçã o durkheimeana neste diagnó stico social
lacaniano15. Ela seria a marca indelével de uma pretensa tendência falocêntrica e
patriarcal que assombraria a psicaná lise lacaniana durante todo seu
desenvolvimento. Por isto, tal filiaçã o indicaria muito a respeito das estratégias
que realmente norteariam Lacan em suas estratégias de crítica social.
Lembremos, inicialmente, como em Durkheim, o problema central,
quando é questã o de aná lise de patologias sociais, será a maneira com que a
experiência da modernidade traria em seu bojo uma potencial desregulaçã o das
normas devido à perda de adesã o em relaçã o a padrõ es tradicionais de conduta e
valoraçã o. Isto implicaria no enfraquecimento das normas com sua capacidade
de limitaçã o, de determinaçã o de obrigaçõ es e de individualizaçã o. Este
enfraquecimento só poderia produzir um tipo de sofrimento social a ser
chamado de “anomia”. Sabemos que temos anomia quando as demandas sociais
deixam de ser determiná veis, deixam de ter forma específica, pois elas nã o
podem mais se referir a um campo de codificaçã o e significaçã o comum
socialmente partilhada. Neste contexto entra-se em um “estado de
indeterminaçã o”16 no qual nenhuma individualizaçã o é socialmente bem
sucedida, podendo este colapso das açõ es potenciais levar até mesmo ao suicídio
(o suicídio por anomia será uma das modalidades de suicídio analisadas por
Durkheim). Contra isto, seria necessá rio um fortalecimento dos quadros
normativos a fim de permitir a definiçã o de processos de obrigaçã o e assunçã o
social através da limitaçã o da indeterminaçã o produzida pelo impacto social da
crítica moderna à reproduçã o de formas tradicionais de vida. Os sujeitos devem
ser redirecionados a quadros institucionais fortes, que permitam o
desenvolvimento de individualidades reguladas pela assunçã o comum de
processos produtores de mutualidade e cooperaçã o, isto se quisermos evitar o
sofrimento social produzido pelo impacto da modernidade.
Notemos, no entanto, que o tipo de diagnó stico fornecido por Lacan nã o
pode ser confundido com aná lises desta natureza, de cunho durkheimeano. Isto é
importante para compreendermos qual é, afinal, a estrutura das modalidades de

15
Neste sentido, a leitura mais conhecida é de ZAFIROPOULOS, Mark; Lacan et les sciences
sociales
16
DURKHEIM, Emile; Le suicide, Paris: PUF, 2005, p. 275
sofrimento que o declínio da imago paterna, ao menos segundo Lacan,
produziria. Primeiro, há de se notar como tal declínio é produzido por aquilo que
poderíamos chamar de “quebra das consequências da contraçã o da família
paterna (a família extensa normalmente submetida à autoridade do pai) na
figura da família conjugal (apenas pai, mã e e filhos)”. A principal consequência da
quebra das consequências de tal contraçã o será a perda da produtividade de
certa antinomia. Pois esta família conjugal, encarnada entre nó s na família
burguesa possui uma antinomia de funçõ es no eixo paterno. A este respeito,
lembremos como, para o pai da família conjugal, convergem duas funçõ es
imediatamente contraditó rias, a saber, a repressã o (ele inibe a funçã o sexual de
forma inconsciente através do supereu) e a sublimaçã o (ele preserva a funçã o
social através do ideal do eu). O pai é aquele, ao mesmo tempo, responsá vel pela
determinaçã o social dos ideais e pelas relaçõ es de rivalidade sexual no interior
da estrutura do complexo de É dipo. Apesar de insistir, contrariamente a Freud,
na necessidade de distinguir claramente o que é da ordem do supereu, com suas
injunçõ es fantasmá ticas, da ordem do ideal do eu, com suas funçõ es de
transmissã o simbó lica de identificaçõ es, apesar de recusar a estratégia de
psicanalistas como Ferenzci de diferenciar um supereu saudá vel de um supereu
patoló gico, Lacan entende que a sobreposiçã o da contradiçã o na figura paterna
tem uma funçã o maior na maturaçã o psíquica. Pois:

“a evidência da vida sexual nos representantes das obrigaçõ es morais, o


exemplo singularmente transgressivo da imago do pai a respeito da
interdiçã o primordial exaltam no mais alto grau a tensã o da libido e o
alcance da sublimaçã o”17.

Neste sentido, ele lembrará que, em sociedades pré-modernas,


encontramos muitas vezes tais funçõ es separadas. Nesses casos, o representante
da autoridade social nã o será o pai, mas muitas vezes o irmã o da mã e, cabendo
ao pai bioló gico a funçã o desinflacionada de iniciador a prá ticas e costumes. Tal
separaçã o diminuiria as relaçõ es de rivalidade com representaçõ es da
autoridade, já que a distâ ncia da autoridade em relaçã o ao nú cleo familiar mais
restrito aqui seria sinal de conservaçã o da norma social a despeito de seus usos
no interior de relaçõ es profundamente conflituais ligadas ao investimento
libidinal em figuras familiares. Pois há de se lembrar aqui da temá tica edípica
segundo a qual o pai bioló gico é aquele que estabelece relaçõ es com a mã e,
privando a criança de um objeto inicialmente desejado. Nã o sendo mais o
representante direto da lei social, o pai acaba por conservar a lei de todo desejo
de transgressã o devido à s relaçõ es de rivalidade no interior do nú cleo familiar.
Lacan, no entanto, nã o louva esta característica de famílias nã o contraídas
a seu nú cleo conjugal. Pois, se por um lado tal situaçã o evita a consolidaçã o das
neuroses como quadro hegemô nico de sofrimento advindo das configuraçõ es da
vida social, já que as relaçõ es de autoridade nã o sã o objetos da ambivalência
neuró tica que vincula sujeiçã o, recusa e desejo, ela acaba, por outro lado, por
levar à consolidaçã o de estereotipias. Pois a relaçã o à Lei nã o é, de certa forma,
infectada pela agressividade produzida no nível das relaçõ es de rivalidade no
interior do nú cleo familiar. Por isto, há , ao menos para o jovem Lacan, um certo
princípio de estaticidade em tais sociedades devido à ausência de uma
17
Idem, p. 59
contradiçã o produtiva no nível dos processos sociais de identificaçã o. O que lhe
leva a afirmar: “quã o forte o ímpeto de sublimaçã o está dominado pela repressã o
quando essas duas funçõ es estã o separadas”18.
Assim, e esta seria uma espécie de vantagem da família conjugal para
Lacan, ao produzir uma antinomia ligada à figura paterna, a família burguesa se
apoiaria em uma determinaçã o contraditó ria. Pois o pai é o lugar de uma
contradiçã o que permitiria ao sujeito fazer da contraposiçã o ao pró prio pai a
contraposiçã o à lei. Por isto, Lacan deve afirmar: “é por crises dialéticas que o
sujeito se cria, ele mesmo e seus objetos”19. Tais crises dialéticas sã o descritas
como subversõ es: “Por encarnar a autoridade na generalidade a mais vizinha e
sob uma figura familiar, a família conjugal coloca tal autoridade ao alcance
imediato da subversã o criadora”20.
Ou seja, a peculiaridade da posiçã o de Lacan vem do fato dele afirmar que
a família conjugal é aquela que permite identificaçõ es que subvertem, vínculos à
Lei que transgridam a pró pria Lei. Assim, a funçã o da lei paterna é permitir a
subversã o das autoridades constituídas em nome de um ideal que nunca se
encarna completamente. Pois ao encarnar a Lei na figura familiar mais pró xima,
a família conjugal incita a transgressã o da Lei, mas paradoxalmente em nome da
pró pria Lei, já que as relaçõ es de rivalidade fazem com que o pai seja percebido
sempre nã o estando à altura das injunçõ es da funçã o paterna. O que explica
porque: “os ideó logos que, no século XIX, levaram contra a família paternalista as
críticas as mais subversivas nã o sã o os que menos tem a influência desta mesma
família”21.
Notem que esta antinomia relativa à figura paterna é possível porque
Lacan partem de um pressuposto central, a saber, há uma espécie de
transcendência da lei que impulsiona os sujeitos a transgredirem as encarnaçõ es
empíricas da lei. No entanto, esta transcendência é, de forma paradoxal, uma
espécie de transcendência negativa. Ou seja, a lei social nã o é caracterizada pelo
conjunto positivo de normas e regras que ela enuncia, mas pela inadequaçã o que
ela produz em relaçã o aos seus portadores. Esta inadequaçã o é fundamental para
que a socializaçã o nã o seja uma simples conformaçã o a normas, mas uma
possibilidade de entrar em dinâ micas individualizadoras de subversã o criadora.
Este ponto é decisivo no argumento de Lacan. De certa forma, a Lei
funciona bem quando ela nã o legifera, mas quando simplesmente autoriza o
conflito em relaçã o a seu pró prio sentido. Neste sentido, quando Lacan afirma
que a “grande neurose” contemporâ nea expressa o fato da personalidade do pai
ser sempre “ausente, humilhada, dividida ou postiça”, provocando com isto uma
carência capaz de: “tanto secar o ímpeto instintivo quanto tarar a dialética da
sublimaçã o”22, nã o se trata de defender que a cura da neurose estaria no
fortalecimento do cará ter normativo da lei paterna. Na verdade, e este me parece
o ponto realmente importante aqui, Lacan compreende que nã o se trata
simplesmente de um “declínio” da autoridade, mas de uma eliminaçã o da
transcendência. O pai é humilhado na contemporaneidade porque ele se reduziu
a ser apenas um rival.

18
Idem, p. 57
19
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 59
20
Idem,
21
Idem, p. 60
22
Idem, p. 61
Isto leva sujeitos ao fortalecimento de formas de compensaçã o da
ausência da transcendência através da consolidaçã o do narcisismo. Pois a
reduçã o da lei à figura das demandas do rival, das demandas do outro que está
na mesma posiçã o que eu mesmo, reduzem toda autoridade à expressã o de
representaçõ es superegó icas que visam mascarar impossibilidades de amparo.
Uma autoridade superegó ica se sustenta por sustentar relaçõ es de demanda de
amparo. Nã o haverá assim internalizaçã o de ideais, haverá apenas a
internalizaçã o de figuras superegó icas que se servirã o da fragilizaçã o narcísica
dos indivíduos, produzindo identificaçõ es imaginá rias visando reforçar um Eu
enfraquecido, reduzindo assim todo conflito à forma de um atentado à
integridade narcísica e fazendo de toda afirmaçã o uma afirmaçã o narcísico-
identitá ria.
Este diagnó stico lacaniano estará presente em vá rias outras aná lises
sociais que procuraram mobilizar a psicaná lise para compreender fenô menos de
regressã o social. Por exemplo, em seus estudos sobre a ascensã o do fascismo,
Theodor Adorno falará da especificidade do líder fascista. Pois estamos diante:
“do alargamento da pró pria personalidade do sujeito, uma projeçã o coletiva de si
mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante a ú ltima fase da
infâ ncia do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual”23. Adorno explora
tal traço ao afirmar que “uma das características fundamentais da propaganda
fascista personalizada é o conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que
sugere, ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do
povo, um simples, rude e vigoroso americano, nã o influenciado por riquezas
materiais ou espirituais”24. Pois as identificaçõ es nã o sã o construídas a partir de
ideais simbó licos. Elas sã o basicamente identificaçõ es narcísicas que parecem
compensar o verdadeiro sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua
subsequente fraqueza”25, um declínio que nã o é apenas apaná gio de sociedades
abertamente totalitá rias. Isto talvez explique porque este “mais um do povo”
possa ser expresso nã o apenas pela simplicidade, mas à s vezes pelas mesmas
fraquezas que temos ou que sentimos, pela mesma revolta impotente que
expressamos26.
Neste sentido, Adorno é um dos primeiros a compreender a
funcionalidade do narcisismo enquanto modo privilegiado de vínculo social em
uma sociedade de enfraquecimento da capacidade de mediaçã o do eu,
adiantando em algumas décadas problemas que levarã o à s discussõ es sobre a
“sociedade narcísica”27. Ele sabe como tal fraqueza permite, através da

23
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
24
Idem, p. 421
25
Idem, p. 411. Adorno dirá a respeito: “A fragilidade do eu [tema que Adorno traz do psicanalista
Hermann Nunberg] que retrocede ao complexo de castraçã o, procura compensaçã o em uma
imagem coletiva e onipotente, arrogante e, assim, profundamente semelhante ao pró prio eu
enfraquecido. Esta tendência, que se incorpora em inumerá veis indivíduos, torna-se ela mesma
uma força coletiva, cuja extensã o até agora nã o se estimou corretamente”. (ADORNO, Theodor;
Ensaios de psicologia social e psicanálise, Sã o Paulo: Unesp, 2015).
26
Pois “o líder pode adivinhar as necessidades e vontades psicoló gicas desses suscetíveis à sua
propaganda porque ele se assemelha a eles psicologicamente, e deles se distingue pela
capacidade de expressar sem inibiçã o o que está latente neles, isto ao invés de encarnar uma
superioridade intrínseca” (ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”,
op. cit., p. 427)
27
A respeito do narcisismo como modo de vínculo social hegemô nico nas sociedades liberais, ver
EHRENBERG, Alain; La société du malaise: le mental et le social, Paris: Odile Jacob, 2010
consolidaçã o narcísica da personalidade com suas reaçõ es diante da consciência
tá cita da fragilidade dos ideais do eu, aquilo que ele chama de expropriaçã o do
inconsciente pelo controle social, ao invés de transformar o sujeito consciente de
seu inconsciente.
Outro diagnó stico convergente ao de Lacan foi fornecido por Alexander
Mitscherlich em seu livro Em direção a uma sociedade sem pais (Auf dem weg zur
vaterlosen Gesellschaft), de 1963. Partindo do diagnó stico frankfurtiano do
declínio da autoridade paterna devido à s mutaçõ es na sociedade capitalista do
trabalho, à generalizaçã o do modelo burocrá tico de autoridade e à insegurança
produzida pela ausência de “seguranças de cará ter paternalista” (paternistischer
Sicherung)28 na constituiçã o de modelos para processos de decisõ es a serem
tomadas pelos indivíduos (o que suscitará décadas depois a temá tica da
“sociedade de risco”), Mitscherlich poderá afirmar que o advento de uma
sociedade sem pais já teria sido, à sua maneira, realizada pelo capitalismo. A
desapariçã o do pai é um destino, nã o cansará de dizer Mitscherlich. No entanto, a
comunidade de irmã os nã o teria redundado em novas formas de organizaçã o
política. Na verdade, à estrutura da rivalidade edípica entre pai e filho substitui-
se um comportamento de afirmaçã o de si entre irmã os, expressos através de
ciú me e concorrência com suas patologias ligadas ao culto da performance e à
pressã o narcísica dos ideias29. Mesmo as figuras paternas no interior do nú cleo
familiar seriam cada vez menos representantes de modelos patriarcais de
autoridade e cada vez mais pró ximas de figuras fraternas concorrentes. Desta
forma, a sociedade capitalista teria sido capaz de sobreviver ao se transformar
em uma sociedade sem pais organizada em chave narcísica, cujas patologias
deixarã o de se constituir a partir dos conflitos neuró ticos com as interdiçõ es da
Lei para se constituírem a partir dos conflitos narcísicos diante da impotência de
realizar ideais. É pensando em fenô menos semelhantes que Lacan afirmará que
tal fortalecimento do narcisismo será responsá vel pelo recrudescimento de
regressõ es sociais como: a xenofobia, a segregaçã o e a procura por figuras
superegó icas de autoridade.
Notemos entã o dois pontos fundamentais. Primeiro, por mais paradoxal
que inicialmente possa parecer, Lacan afirma que o declínio da imago paterna
impede a subversã o da autoridade, fixando o sujeito em um fortalecimento
fantasmá tico de figuras superegó icas de autoridade. No entanto, Lacan precisa
defender a tese de que a funçã o da lei paterna é permitir a transgressã o contra
ela mesma, sem que isto implique necessariamente perpetuaçã o de uma situaçã o
de desagregaçã o. Segundo, Lacan diz muito pouco a respeito das causas de tal
declínio ou do momento histó rico em que a imago paterna nã o teria declinado.
Pois para a tese do “declínio” funcionar, seria necessá rio um momento histó rico
no qual, a lei paterna teria funcionado como mera potência de transcendência,
descolada dos enunciados normativos que definem as condutas e
comportamentos que lhe seriam conformes. Nã o será no passado que Lacan

28
MITSCHERLICH, Alexander; Auf dem Weg zur vaterlosen Gesellschaft, In: Gesammelte Schriften,
Frankfurt; Suhrkamp, 1983, p. 250
29
Daí afirmaçõ es como “a necessidade de performance, o medo de ser ultrapassado e de ficar
para trá s sã o componentes fundamentais da vivência do indivíduo na sociedade de massa. O
medo de envelhecer toma proporçõ es de pânico; a pró pria velhice se transforma em um está gio
da vida no qual experimentamos grande abandono sem reciprocidade por geraçõ es seguintes”
(Idem, p. 324)
poderá encontrar tal modelo de funcionamento, o que nã o lhe impede de
procurar, de certa forma, no futuro.

O que a guerra nos ensina

É neste contexto que devemos ler “A psiquiatria inglesa e a guerra”, de 1947. Se


“Os complexos familiares” é escrito pouco antes da deflagraçã o da Segunda
Guerra e expressa claramente as preocupaçõ es com fenô menos totalitá rios que a
Europa conhecia entã o, “A psiquiatria inglesa” traz as marcas da meditaçã o sobre
a possibilidade de superaçã o das condiçõ es psíquicas que permitiriam impedir
tais regressõ es. Neste sentido, ao analisar experimentos de grupo criados por
Bion e Rickmann durante a guerra, nã o é por acaso que Lacan dirá que a vitó ria
inglesa na guerra deve ser computada também ao fato da: “intrepidez de seu
povo repousar sobre uma relaçã o verídica ao real”30. Mas o que “verdade” e “real”
fazem neste contexto?
Aceitemos que “real” se refere aqui a uma forma de instauraçã o de
vínculos sociais que nos coloca diante do que submete as organizaçõ es
imaginá rias ou simbó licas ao esvaziamento. Por isto, há uma dimensã o real dos
vínculos sociais que exige um certo afeto (“intrepidez”) pois nos coloca diante do
que pode decompor grupos ou leva-los a uma forma reinstaurada. Neste sentido,
lembremos dos eixos principais do experimento de Bion e Rickmann. Em um
hospital militar, Bion recebe soldados que recusam sua integraçã o e seu trabalho
cooperativo no exército. Ele resolve entã o organiza-los em grupos de trabalho
cujas funçõ es serã o decididas pelos pró prios membros. Organiza-se entã o grupos
de carpintaria, de prá tica cartográ fica, de conserto de automó veis etc. Até mesmo
um grupo responsá vel por cursos de dança se organiza. Bion se serve aqui do
que conheceremos mais tarde por grupos terapêuticos, tã o presentes em
tentativas de tratamento em psicose.
No entanto, estes grupos tal como pensados por Bion tem uma
característica fundamental: o lugar da liderança encontra-se vazio. Aquele que
ocupa tal lugar, a saber, o pró prio Bion, agirá de forma tal a simplesmente
reenviar a mensagem dirigida para o pró prio enunciador. Ele nã o age, nã o
comanda, mas leva o pró prio grupo a tomar as decisõ es a respeito do que lhe
compete. No entanto, Bion garante que o grupo será responsabilizado pela açã o
de seus membros. Assim, por exemplo, as tesouras de um grupo desaparecem.
Bion afirma que nã o haverá puniçõ es, mas nã o haverá também compra de novas
tesouras. O resultado é descrito por Lacan nos seguintes termos:

Sobre este dado, ele se proporá a organizar a situaçã o de maneira a forçar


o grupo a tomar consciência de suas dificuldades de existência enquanto
grupo – posteriormente a torna-lo cada vez mais transparente a si
mesmo, ao ponto de cada um dos membros poderem julgar de forma
adequada o progresso do conjunto -, o ideal de tal organizaçã o, para o
médico, encontraria-se na legibilidade perfeita, de forma tal que o grupo
poderia apreciar a todo momento em direçã o a qual porta de saída se
encaminha cada “caso” confiado a seus cuidados: retorno a sua unidade,
reenvio à vida civil ou perseverança na neurose31.
30
Idem, p. 101
31
Idem p. 109
As colocaçõ es sã o bastantes significativas. Ao preservar o lugar do poder como
um lugar simbolicamente vazio, ou seja, lugar que pode ser ocupado por
qualquer um que se disponha a tanto mas que encontra-se determinado em
condiçõ es simbó licas partilhadas, Bion permitira ao grupo “tomar consciência de
suas dificuldades de existência”, isto a ponto de instaurar uma transparência do
grupo a si mesmo. Se Lacan fala de uma “legibilidade perfeita” é porque o grupo
se confronta com sua pró pria possibilidade de desapariçã o, com sua falta de
fundamento natural, sem no entanto ser levado ao pâ nico produzido pelo
sentimento de perda do que garantia sua sedimentaçã o enquanto grupo. Isto é
possível porque, para além do esvaziamento imaginá rio do lugar do poder, há
uma sustentaçã o simbó lica quer permanece. Bion está presente de forma
silenciosa, mas o enquadre simbó lico da instituiçã o do exército e do hospital
ainda continuam lá .
Neste sentido, o que houve nã o foi uma perda de liderança, mas uma
tomada de consciência da possibilidade de funcionamento a despeito de uma
representaçã o imaginá ria do poder. Este esvaziamento do lugar central
permitiria assim a consolidaçã o de um sistema de relaçõ es igualitá rias capaz de
abrir o espaço a formas renovadas de cooperaçã o. Lacan chega mesmo a falar de
um “princípio de cura de grupo”, isto para lembrar posteriormente:

Se podemos dizer que o neuró tico é egocêntrico e tem horror de todo


esforço para cooperar, é talvez porque ele raramente está localizado em
um meio no qual todo membro esteja no mesmo nível que ele no que
concerne as relaçõ es aos semelhantes32.

Ou seja, emerge aqui um tipo de relaçã o na qual um certo igualitarismo,


que nã o é a mera projeçã o narcísica do eu sobre o outro, aparece como força
fundadora de novos vínculos sociais. Lacan entende que esta é a saída mais
consistente para o desafio social que ele descreverá ao final de seu texto:

É claro atualmente que as potências sombrias do supereu se coalizam


com os abandonos os mais fracos da consciência para levar os homens a
uma morte aceita em nome das causas as menos humanas, e que nem
tudo o que aparece como sacrifício é, por esta razã o, heroico. Por outro
lado, o desenvolvimento dos meios de agir sobre o psiquismo que
crescerá neste século, um manejo combinado de imagens e paixõ es do
qual já fizemos uso com sucesso contra nosso julgamento, nossa
resoluçã o, nossa unidade moral, serã o a ocasiã o de novos abusos do
poder33.

Ou seja, com o declínio da imago paterna e a consolidaçã o de um modo de


relaçã o à autoridade baseado nas “potências sombrias do supereu” abre-se o
espaço para processos identificató rios e reaçõ es defensivas que farã o a base
psíquica das formas de autoritarismo que a Europa conheceu inicialmente na
Segunda Guerra. É contra formas de manejo combinado de imagens e paixõ es
que certamente crescerá no século XX que Lacan irá procurar inicialmente
32
Idem, p. 111
33
Idem, p. 120
insistir na estratégia de conservar o lugar do poder vazio de toda identificaçã o
imaginá ria possível. A política emancipa quando ela nos leva a nos
identificarmos com um lugar vazio.

A dimensão clínica

É claro como esta forma de pensar o campo político expressa os


pressupostos clínico que Lacan defendia à época. Lembremos, por exemplo,
como até o final dos anos cinquenta há um conceito central na metapsicologia
lacaniana: o desejo puro. Como Lacan dirá , a respeito da especificidade da “nova
mensagem” trazida por Freud:

Este lugar que nós procuramos apreender, definir, coordenar, que nunca foi
identificado até agora em seu desdobramento ultra-subjetivo, é o lugar
central da função pura do desejo34.

Este desejo puro foi um dispositivo que serviu durante um certo tempo
como orientaçã o para o desejo do analista. Lembremos de afirmaçõ es como: "o
lugar puro do analista, enquanto podemos defini-lo no e pelo fantasma, seria o
lugar do desejante puro"35. A posiçã o deste desejo puro parece abrir o espaço a
uma liberaçã o possível dos sujeitos que define certos caminhos para a
emancipaçã o.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a
característica principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural
de objetificaçã o. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de
nomeá vel"36. Aqui, escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que
tentava costurar o ser-para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de
afirmar que a verdade do desejo era ser “revelaçã o de um vazio”37, ou seja, pura
negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginá ria. Um desejo
incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade
imediata de realizaçã o fenomenal. Mas por que esta pura tendência que insiste
para além de toda relaçã o de objeto transformou-se em algo absolutamente
incontorná vel para Lacan? Nó s podemos fornecer aqui uma explicaçã o geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituiçã o dos objetos a partir
sobretudo de consideraçõ es sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento
lacaniano, tanto os objetos quanto os outros indivíduos empíricos sã o sempre
projeçõ es narcísicas do eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos
do mundo empírico. De onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas
as relaçõ es de objeto, assim como a necessidade de atravessar este regime
narcísico de relaçã o através de uma crítica ao primado do objeto na
determinaçã o do desejo. Lacan é claro a respeito deste narcisismo fundamental.
Ele dirá , por exemplo, que: “A relaçã o objetal deve sempre submeter-se à

34
LACAN, S X, sessã o de 08/05/63
35
LACAN, S VIII, p. 432.Ou ainda : " Nó s sempre desconhecemos, até um certo grau, o desejo que
quer se fazer reconhecer pois nó s o indicamos seu objeto, enquanto que nã o é de um objeto que
se trata - o desejo é desejo desta falta que, no Outro, designa um outro desejo" (LACAN, S V, p.
329)
36
LACAN, S II, p. 261
37
KOJÈ VE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
estrutura narcísica e aí se inscrever”38. E ele dará um cará ter epistemoló gico a
sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso científico [e
todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"39.
Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan
principalmente através da crítica à s relaçõ es reduzidas a dimensã o do
Imaginá rio, já que o Imaginá rio lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera
das relaçõ es que compõ em a ló gica do narcisismo com suas projeçõ es e
introjeçõ es40. Aqui, faz-se necessá rio salientar um ponto importante: o objeto
empírico aparece necessariamente como objeto submetido à engenharia do
Imaginário e à lógica do fantasma. A possibilidade de fixaçã o libidinal a um
objeto empírico nã o-narcísico ainda nã o é posta. Assim, a fim de livrar o sujeito
da fascinaçã o por objetos que sã o, no fundo, produçõ es narcísicas, restava à
psicaná lise “purificar o desejo” de todo e qualquer conteú do empírico. Subjetivar
o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento.
Lacan percebeu claramente que a psicaná lise nascera em uma situaçã o
histó rica na qual o sujeito precisava ser compreendido como entidade nã o-
substancial, desnaturada e marcada pelo selo de uma "liberdade negativa" que
lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas representaçõ es e
identificaçõ es. A operaçã o de 'purificaçã o do desejo' escondia assim uma
estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a funçã o
transcendental pró pria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo
(o que nos explica como foi possível à psicaná lise desenvolver uma teoria não-
psicológica do desejo). Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das
realizaçõ es fenomenais, haveria uma "permanência transcendental do desejo"41.
O que nos envia à definiçã o canô nica do sujeito como falta-a-ser, já que:

O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual
o ser existe42.

Neste caso, esta estranha falta que nã o é disto ou daquilo é o pró prio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condiçã o a priori de constituiçã o do mundo dos
objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta nã o
seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, nã o há nada parecido a
uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer
uma verdadeira ' deduçã o transcendental' do desejo puro. Contrariamente a
Freud, ele nã o identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida
pela interdiçã o vinda da Lei do incesto43. É verdade que Lacan afirmará : "o objeto
38
LACAN, S I, p. 197
39
LACAN, S II, p. 130
40
"Nó s consideramos o narcisismo como a relaçã o imaginá ria central para a relaçã o interhumana
" (LACAN, S III, p. 107)
41
LACAN, S VIII, p.
42
LACAN, SII, p. 261.
43
Podemos seguir aqui uma afirmaçã o de Bernard Baas: "Pois, ao mostrar que o pensamento de
Lacan é trabalhado pelo procedimento do questionamento transcendental, tal interpretaçã o
permite também dar conta do sentido propriamente crítico do ´retorno à Freud´, já que ele
explicita como ilusã o transcendental o mito no qual a psicaná lise sempre ameaçou recair e contra
o qual Lacan nunca cessou de se opor. Trata-se do mito da origem perdida, o mito da experiência
originá ria de gozo, ou seja, o mito da empiricidade da Coisa " (BAAS, De la chose à l'objet, Louvain:
da psicaná lise nã o é o homem, mas o que lhe falta - nã o uma falta absoluta, mas
falta de um objeto "44. No entanto, devemos sublinhar que tal objeto que lhe falta
nã o é exatamente um objeto empírico.
Notemos que a decisã o lacaniana de pensar o sujeito e o desejo a partir de
relaçõ es de negatividade tem uma funçã o política clara. Ela é uma saída ao
diagnó stico de reificaçã o generalizada das estruturas da realidade social e de
seus modos de determinaçã o. A negatividade é, na verdade, a posiçã o de uma
existência nã o-saturada, inadequada ao campo de determinaçõ es atualmente
postas pela realidade social.

Peeters, 1998, p. 32). Podemos encontrar um exemplo do que pode dar uma leitura ´realista´ do
desejo lacaniano nesta afirmaçã o de Judith Butler: "Para Lacan, o sujeito vem a existência
somente através do recalcamento originá rio dos prazeres incestuosos pré-individuais com o
corpo materno (agora recalcado)" (BUTLER, Gender trouble, New York: Routledge, 1999, p. 57)
44
LACAN, AE, p. 211
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 3

Na aula de hoje gostaria de aprofundar nossa discussã o a respeito do destino dos


processos identificató rios no interior da reflexã o lacaniana sobre vínculos
sociais. Nó s vimos na aula passada como deveríamos partir do diagnó stico social
do chamado “declínio da imago paterna” a fim de melhor compreender o quadro
de problemas e alternativas que Lacan tinha em vista. Vimos, por exemplo, como
a aposta em uma transcendência negativa necessá ria da Lei era a forma
lacaniana de insistir nas possibilidades, abertas pelo advento da família conjugal,
de socializaçõ es capazes de abrir espaço a “subversõ es criadoras”. Tal
possibilidade de socializaçã o através de transgressõ es possível das figuras
empíricas de autoridade devido a pressã o de transcendência da Lei estaria em
declínio, o que nos explica como o “declínio” ao qual Lacan se refere nã o é um
declínio em relaçã o a uma situaçã o que teria estado anteriormente em operaçã o,
mas um declínio em relaçã o ao campo de possíveis que ainda nã o se atualizou.
Tal modo de socializaçã o nunca existiu de fato, mas poderia aparecer como uma
possibilidade imanente ao funcionamento da família conjugal. Daí porque nã o faz
sentido se perguntar sobre o momento no qual a imago paterna nã o teria
entrado em declínio.
Por outro lado, o diagnó stico lacaniano de colapso das possibilidades de
transcendência negativa da Lei lhe leva a uma configuraçã o de problemas sociais
que servirã o de ponto de partida para sua reflexã o sobre a possibilidade do
impacto da psicaná lise enquanto experiência crítica das sociedades
contemporâ neas. Lacan falará entã o da reduçã o dos processos identificató rios do
Eu à dimensã o imaginá ria e da consolidaçã o de determinaçõ es de relaçõ es
(sejam relaçõ es a si, sejam relaçõ es ao mundo) baseadas no narcisismo. Este
tó pico da generalizaçã o do narcisismo será a forma lacaniana de afirmar que a
referência do processo analítico à realidade socialmente partilhada nã o pode
fazer outra coisa que referendar formas de reificaçã o generalizada. Nã o é em
nome do princípio de realidade que o analista pode orientar a conduta do Eu do
analisando. A realidade é apenas uma esfera de projeçõ es e internalizaçõ es
egomó rficas que precisa de uma contínua expulsã o de toda alteridade real para
sustentar sua homeostase. Daí a fragilidade das relaçõ es narcísicas e sua
necessidade contínua de sustentar-se através de identificaçõ es com figuras
superegó icas que sã o apenas a projeçã o narcísica dos pró prios sujeitos aos quais
a elas se submetem.
Desta forma, Lacan procurava fornecer uma reflexã o psicanalítica sobre
os processos de regressã o social fascista que assombravam a Europa na década
de trinta. Vimos ainda como sua resposta a tais regressõ es passava pela
possibilidade de mostrar como a política nos emancipa quando ela nos leva a nos
identificarmos com um lugar vazio. O comentá rio ao texto lacaniano “A
psiquiatria inglesa e a guerra” visou mostrar como o operador de constituiçã o de
grupos a partir da identificaçã o ao lugar simbó lico vazio do poder permitiria a
possibilidade de processos de “tomada de consciência” da ausência de
fundamentaçã o natural do laço social baseada na assunçã o de alguma forma de
identidade coletiva, na possibilidade da consolidaçã o de relaçõ es igualitá rias
baseadas na falta de aderência entre os ocupantes do lugar do poder e o pró prio
lugar, com a possibilidade de uma circulaçã o de posiçõ es no interior do grupo e
uma poliformidade das pró prias relaçõ es de poder. Este modelo lacaniano
pressupõ e um esvaziamento das identificaçõ es imaginá rias com as figuras do
poder e uma emergência da força das identificaçõ es com o lugar simbó lico nã o-
saturado, o que pressupõ e um problema importante que será de difícil resoluçã o,
a saber, que as coordenadas que constroem e definem o lugar, que a
espacialidade do poder em suas determinaçõ es tó picas de relaçõ es seja
sustentada.
Por fim, eu lembrara como tais discussõ es estã o relacionadas ao
dispositivo clínico do desejo do analista como um desejo puro, que estará
presente em Lacan até o final dos anos cinquenta. Esta aposta clínica no desejo
puro deve ser lida como a consequência de uma leitura política. Ela explicita a
funçã o imanente ao desejo como pura negatividade, que Lacan traz de suas
leituras de Kojève. Longe de ser uma espécie de idealizaçã o religiosa da falta, de
uma socializaçã o feita através do aprendizado da quebra das ilusõ es de
onipotência do desejo, aprendizado da realidade madura de nossa finitude, do
impossível do gozo etc., o que temos em Lacan é uma operaçã o que visa lembrar
que o desejo só pode estar em falta em relaçã o à s determinaçõ es sociais
atualmente disponíveis. Um desejo como falta nã o é necessariamente um desejo
que expressa a finitude dos sujeitos. Ele pode também ser pensado como modo
de experiência do excesso da potencialidade do desejo em relaçã o à s
determinaçõ es fenomenais imanentes à situaçã o atual.

Fundar uma Escola

É tendo em vista tais problemas que devemos ler a “Proposiçã o de 9 de outubro


de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Lembremos o contexto claramente
político de um texto como este. Lacan fora expulso da Sociedade Francesa de
Psicaná lise em 1963, o que lhe levou a fundar sua pró pria Escola no ano
seguinte. A partir deste momento, Lacan nã o será apenas um psicanalista, mas o
responsá vel por sustentar um novo vínculo de formaçã o e transmissã o que se
chamará , durante quinze anos, de “Escola”. De 1964 a 1980, Lacan será a figura
principal da Escola Freudiana de Psicaná lise, cuja dissoluçã o será produzida pelo
seu pró prio fundador. Neste sentido, o que veremos será a experiência de
constituiçã o de modos de vínculos sociais e de seu fracasso. Devemos pensar
claramente nos dois fatos.
Isto leva inicialmente Lacan a escrever de forma mais explícita sobre
problemas de organizaçã o e sobre a forma com que a experiência psicanalítica,
longe de produzir novas configuraçõ es de vínculos sociais com força
emancipató ria, havia produzido novas formas de burocracia. Neste sentido, suas
críticas a Sociedade Internacional de Psicaná lise (IPA) nã o será movida apenas
por questõ es internas a lutas por hegemonia no interior do círculo de
psicanalistas. Ela será a forma da denú ncia das consequências do desconhecido
que os pró prios analistas teriam daquilo que Lacan chama de “ato analítico”. Ou
seja, Lacan insiste que os problemas de organizaçã o dos psicanalistas sã o um
problema interno a pró pria teoria e prá tica analítica, nã o apenas um equívoco
exterior à quilo que a psicaná lise traz enquanto experiência. Desta forma, Lacan
dá o passo decisivo de afirmar que nã o há experiência psicanalítica que nã o nos
leve, necessariamente, ao redimensionamento das possibilidades da vida social.
Neste processo, Lacan trará revisõ es importantes a respeito daquilo que
pode sustentar laços sociais capazes de realizar expectativas de emancipaçã o. A
figura do laço social fundado na identificaçã o ao lugar vazio do poder nã o terá
mais a mesma funçã o ordenadora que antes. O que nã o poderia ser diferente, já
que a pró pria orientaçã o do desejo do analista como desejo puro será revista.
Tomemos, por exemplo, o primeiro princípio que Lacan apresenta ao
discutir as estruturas de organizaçã o da Escola Freudiana de Psicaná lise, a saber:
“O psicanalista só se autoriza de si mesmo” 45. Ou seja, o tornar-se psicanalista
nã o é algo autorizado pela realizaçã o de baterias de testes, de conformaçã o a
princípios garantidos por uma instituiçã o, de formaçã o curricular. O psicanalista
se autoriza a partir de si mesmo quando “ele se transforma no analista de sua
pró pria experiência”. Isto significa, ele ocupa a posiçã o do analista de sua pró pria
experiência, o que implica que ele desaloja aquele que era entã o o seu analista,
que ele destitui o saber daquele que até entã o era o seu analista. O que nã o
poderia ser diferente para alguém que havia dito:

No recurso que preservamos de sujeito a sujeito, a psicaná lise pode


acompanhar o paciente até o limite está tico do “tu és isso”, no qual se
revela a ele a cifra de sua destinaçã o mortal, mas nã o está em nosso poder
de clínicos leva-lo a este momento no qual começa a verdadeira viagem46.

Ou seja, a experiência da interlocuçã o analítica pode levar o sujeito a


confrontaçã o com estas palavras plenas que definiram seu destino, que
constituíram suas posiçõ es. Mas a verdadeira viagem, esta na qual a
singularidade pode de fato começar a emergir para além do limite está tico dos
atos de fala que nos inscreveram e constituíram, é algo cujos caminhos nã o sã o
exatamente objetos da intervençã o clínica. Eles podem, no má ximo, ser
desencadeados por ela, para além dela. Por isto, décadas depois, Lacan dirá que
este transformar-se no analista de sua pró pria experiência nã o exige autorizaçã o
de ninguém e haverá mesmo sujeitos, ao menos para Lacan, que serã o analistas
de sua pró pria experiência sem passar necessariamente por uma psicaná lise,
como será o caso, por exemplo, de James Joyce.
No entanto: “isto nã o exclui que a Escola garanta que um analista seja algo
de sua formaçã o”. Ou seja, mesmo que a autorizaçã o do psicanalista diga respeito
apenas a si mesmo, pode haver um laço social, chamado Escola, que permita a
formaçã o de tal autorizaçã o. Mas esta Escola nã o será exatamente caracterizada
por uma formaçã o no sentido tradicional no termo, ou seja, garantia de tó picos
de ensino. Mais do que “ensino”, a Escola deve garantir uma “transmissã o”. Mas
notemos que, no interior do pensamento lacaniano, ensino e transmissã o nã o sã o
exatamente equivalentes. É interessante notar como Lacan constantemente
reclamará da ausência de leituras dos psicanalistas, de seu desconhecimento de
saberes, de suas dificuldades em operar com conceitos etc. No entanto, para isto
nã o seria necessá rio uma Escola de psicaná lise, mas alguma forma de instituiçã o
de formaçã o. O que a Escola garante nã o é um ensino, mas a possibilidade de
transmissã o. No caso, a transmissã o de um ato. Ela nã o é uma sociedade de
45
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 243
46
LACAN, Jacques; Ecrits, p. 100
interesse científico, que será responsá vel por experiências, coló quios, simpó sios
etc (embora possa fazer isto também). O que explica porque Lacan afirmará : “Há
solidariedade entre a pane, ou mesmo os desvios que a psicaná lise mostra e a
hierarquia que aí reina – e que nó s designamos como a de uma cooptaçã o de
sá bios”47.
Pois se Lacan dirá : “há um real em jogo na pró pria formaçã o do
psicanalista”48, há sobretudo de entender que a ú nica razã o efetiva de existência
da Escola é a transmissã o de tal real. Há uma organizaçã o fundada sobre a
possibilidade de circulaçã o nã o dos efeitos imaginá rios de grupo, ou mesmo dos
vínculos simbó licos a sistemas de regras e normas, mas de um real que tem a
força de formar analistas. Real este vinculado à possibilidade de emergência de
uma forma de laço social na qual a transmissã o de um ato seja possível. Este é o
primeiro dado que precisamos levar em conta: o que Lacan se engaja é na
produçã o de um laço social capaz de ser produzido a partir de certa experiência
do real.
Neste sentido, é sintomá tico que, em um texto a respeito do que deveria
ser uma Escola de psicaná lise, Lacan discuta principalmente a transferência. Nã o
porque os vínculos que fundarã o a Escola serã o vínculos transferenciais, mas
porque a Escola deveria ser o destino daqueles que se confrontaram com o real
que aparece como saldo necessá rio da liquidaçã o da transferência. Um real que
impulsiona a transformaçõ es de estrutura. Neste sentido, a Escola aparece como
um laço social que vincula aqueles que passaram pela experiência da liquidaçã o
da transferência.

Problemas de transferência

“No começo da psicaná lise, está a transferência”49. A colocaçã o de Lacan é clara


na sua decisã o em privilegiar a transferência como eixo fundamental do processo
analítico. Muito mais do que a interpretaçã o e seus processos de simbolizaçã o
vinculados, de maneira privilegiada, ao complexo de É dipo e à teoria da
sexualidade infantil, Lacan insistirá que a experiência analítica é um manejo da
transferência.
Notemos inicialmente como a transferência é um operador psicanalítico
que tem uma clara matriz ligada a questõ es de ordem política. Lembremos
inicialmente, como a compreensã o de que a relaçã o interpessoal entre paciente e
médico é um espaço privilegiado no desenvolvimento de processos que
influenciarã o a realidade da cura foi uma constante a partir do início do século
XIX. Alguns, como Michel Foucault, chegam a ver aqui o motor fundamental para
o advento da psiquiatria moderna de Pinel, de Samuel Tuke com seus métodos de
intervençã o. Para tanto, ele nã o teme recorrer a textos, como este de Esquirol
(1818) para quem a terapêutica da loucura seria: “a arte de subjugar e de domar,
por assim dizer, o alienado, pondo-o na estreita dependência de um homem que,
por suas qualidades físicas e morais, seria capaz de exercer sobre ele um ímpeto
irresistível e de mudar a corrente viciosa de suas ideias”50. Pois o
reconhecimento do poder terapêutico desta sugestã o e influência, um poder
47
LACAN, Jacquesl Autres écrits, p. 245
48
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 244
49
LACAN, idem, p. 247
50
ESQUIROL, Des étabilssements consacrés aux aliénés em France et des moyens d´améliorer le sort
de ces infortunés apud FOUCAULT, O poder psiquiátrico, pp. 11-12
terapêutico que teria levado tais processos a ser vistos como peças maiores
daquilo que chamá vamos à época de “tratamento moral” seria, para Foucault,
decisivo para a “invençã o” do psicoló gico, ou seja, para o reconhecimento de uma
causalidade estritamente psicoló gica daquilo que hoje compreendemos como
“doenças mentais”. Ou seja, uma genealogia da transferência nos mostra como
sua realidade esteve, desde o início, profundamente ligada a uma reflexã o sobre
o poder e sua força.
Por outro lado, o conceito de transferência, tal como ele aparece no início
do século XX, será também tributá rio de uma reflexã o sobre fenô menos de
imitaçã o e mimetismo no interior de vínculos só cio-políticos pró prios a
sociedades de massas. Vemos isto claramente nas reflexõ es de “psicó logos
sociais” como Gustave Le Bon e Gabriel Tarde a respeito do comportamento
imitativo das massas. Reflexõ es importantes para Freud pensar a dinâ mica das
identificaçõ es (ver, principalmente, os primeiros capítulos de Psicologia das
massas e análise do eu). A este quadro, devemos acrescentar ainda as reflexõ es de
Max Weber sobre o carisma “hipnó tico” de lideranças em sociedades pré-
modernas.
Lembremos, por exemplo, de Gabriel Tarde em seu As leis da imitação,
livro fundador da psicologia social e do qual Freud certamente conhecia. Tarde,
insistia no papel fundamental da imitaçã o na estruturaçã o do vínculo social: “o
ser social, enquanto social, é por essência imitador. A imitaçã o desempenha nas
sociedades um papel aná logo à quele da hereditariedade nos organismos e da
ondulaçã o nos corpos brutos”51. No entanto, esta imitaçã o fundamental para a
reproduçã o do vínculo social seria um fenô meno, em larga medida, desenvolvido
de maneira inconsciente. Daí porque Tarde irá descrever o homem social como
um “verdadeiro sonâ mbulo”52, como alguém em estado constante de hipnose, já
que, em todos os três casos (sonambulismo, hipnose, açã o social) encontramos a
ilusã o de ter ideias sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reproduçã o social através da
imitaçã o, Tarde precisa insistir no papel formador das relaçõ es de autoridade e
de prestígio. Daí afirmaçõ es como: “Foi necessá rio a fortiori no início de toda
sociedade antiga uma grande autoridade exercida por alguns homens
soberanamente imperiosos e afirmativos. Foi através do terror e da impostura,
como se diz normalmente, que eles reinaram? Nã o, esta explicaçã o é claramente
insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio”53. A fim de explicar o que
entende por prestígio, por uma certa forma de admiraçã o capaz de sustentar
relaçõ es sociais, Tarde faz entã o apelo à s relaçõ es pró prias a hipnose. Segundo
ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de desejo, imobilizada
em lembranças de toda natureza, adormecidas mas nã o mortas”54. O
hipnotizador será aquele capaz de, através do seu prestígio, atualizar tal força
potencial, atualizar este desejo imobilizado em lembranças de toda natureza. Ele
será aquele capaz de colocar-se como sujeito suposto saber, saber a respeito da
verdade do meu desejo. O que Tarde nã o está longe de aceitar ao dizer:
“Obedecer alguém nã o é sempre querer o que ele quer ou parece querer?”55. Tal
relaçã o de hipnose social baseada em relaçõ es assimétricas de prestígio poderia
51
TARDE, Les lois de l´imitation, p. 12
52
idem, p. 84
53
idem, p. 86
54
idem, p. 87
55
idem, p. 97
nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade imitativa do ser social”.
Uma passividade que o leva mais tarde a dizer que a “sociedade é a imitaçã o e a
imitaçã o é uma espécie de sonambulismo”56.

Sujeitos e objetos

Fiz esta digressã o porque gostaria de pedir a vocês para terem tais
debates em mente a fim de entender porque uma discussã o sobre a estrutura da
transferência ocupa lugar tã o central em um texto de Lacan dedicado ao
funcionamento de uma organizaçã o. A transferência é indissociá vel de uma
reflexã o sobre o destino de relaçõ es políticas ligadas a autoridade e à força de
sugestã o. Nã o por outra razã o, a posiçã o do analista em transferência é
caracterizada por uma relaçã o de poder descrita por Lacan como: “sujeito
suposto saber”.
Mas antes de discutir este ponto, lembremos como como Lacan necessita
afirmar que a existência da transferência produz uma objeçã o clara à noçã o de
intersubjetividade. Entre transferência e intersubjetividade há uma relaçã o de
refutaçã o. Esta é uma afirmaçã o importante, já que a noçã o de intersubjetividade
foi, ao menos até o começo dos anos sessenta, o eixo principal da racionalidade
do processo analítico para Lacan. Dentre tantas afirmaçõ es, lembremos de como
Lacan dizia: ““O sujeito começa a aná lise falando de si sem falar a você, ou
falando a você sem falar de si. Quando ele for capaz de falar de si a você, a aná lise
estará terminada”57. Ou seja, neste momento, o final de aná lise está relacionado à
emergência de uma relaçã o intersubjetiva de reconhecimento entre sujeitos. No
entanto, o eixo da transferência nã o se encontra em uma relaçã o de
reconhecimento entre sujeitos, mas entre sujeito e objeto. A transferência nã o se
realiza em uma relaçã o de reconhecimento entre sujeitos, este é um ponto
central que merece ser salientado. Ela se realiza em uma relaçã o de
reconhecimento entre sujeito e um objeto que causa seu desejo.
Isto explica porque Lacan inicia lembrando que a transferência nã o é
exatamente uma relaçã o entre dois sujeitos mas entre um sujeito e um sujeito
suposto saber. “O sujeito suposto saber é para nó s o pivô a partir do qual se
articula tudo o que é da ordem da transferência”58. Há um Outro, que define o
lugar do analista, caracterizado por ser efeito de uma suposiçã o e por ser suporte
de uma expectativa de saber. Na transferência, o Outro aparece como capaz de
um saber sobre a verdade do desejo do sujeito. Ou seja, a suposiçã o em questã o é
crença na associaçã o entre saber e verdade, entre articulaçã o significante, com
sua possibilidade de inscriçã o simbó lica do desejo e de seu objeto, e experiência
de verdade. Esta crença é uma espécie de efeito de estrutura, ou seja, efeito da
capacidade do analista ocupar certos lugares, ouvir a partir de certos lugares
manejar certos sistemas de repetiçã o. O que explica porque Lacan afirma: “Um
sujeito nã o supõ e nada, ele é suposto. Suposto pelo significante que o representa
para um outro significante”59. Neste sentido, o processo analítico poderá ser
descrito como uma dessuposiçã o de saber. Dessuposiçã o esta que nã o afetará
simplesmente a figura imaginá ria específica do analista, mas a estrutura

56
idem, p. 97
57
LACAN; E, p. 373
58
LACAN, Autres écrits, p. 248
59
Idem, p. 248
significante que o supõ e. O que pode começar a nos auxiliar a entender o que tal
dessuposiçã o pode realmente significar, quais sã o seus efeitos esperados.
Lacan entã o recupera sua leitura de O Banquete, de Platã o, a fim de falar
da especificidade do processo transferencial. Como vocês sabem, esta havia sido
a estratégia principal do seminá rio VIII, dedicado exatamente à transferência. De
certa forma, a leitura de Lacan faz de Só crates o primeiro analista, assim como
faz da resposta de Só crates ao desejo de Alcebíades a primeira liçã o de manejo
da transferência que teríamos conhecido.
Notemos, inicialmente, como esta escolha tem uma clara conotaçã o
política. Nos diá logos de Platã o, Alcebíades nã o é apenas aquele que nã o sabe
como governar a si mesmo. Ele é aquele espera poder governar a pó lis, governar
os outros. De certa forma, Só crates é aquele que tenta mostrar a Alcebíades como
ele nã o será capaz de governar a cidade enquanto nã o for capaz de governar a si
mesmo. No entanto, o governo de si neste contexto nã o se confunde, ao menos
para Lacan, com uma dominaçã o de si com suas dinâ micas de controle. Na
verdade, podemos mesmo dizer que governar a si mesmo é indissociá vel da
capacidade de reconhecer: “este resto que como determinando a divisã o do
sujeito, o faz decair de seu fantasma e o destitui como sujeito” 60. Se Só crates
mostra algo a Alcebíades é como nã o haverá governo de si enquanto ele nã o for
capaz de confrontar com o objeto que causa seu desejo, mas confronta-lo em um
ponto no qual tal relaçã o ao objeto se constitui em um campo onde o fantasma
decaiu e o pró prio sujeito foi destituído.
Por isto, Lacan insiste na maneira com que Só crates afirma que
Alcebíades se engana a respeito de seu desejo, pois apesar de suas
demonstraçõ es e louvores nã o é exatamente ele, Só crates, que Alcebíades deseja,
mas os agalmatas que ele porta. O que Só crates faz pois é uma operaçã o de
separaçã o, na medida em que ele tenta mostrar a Alcebíades uma distâ ncia entre
I e a, entre o ideal do Eu e o objeto que o sustenta. Ao expor tal distâ ncia,
Só crates produz uma espécie de curto-circuito no sistema de identificaçõ es que
sustentava a posiçã o de Alcebíades, já que o ideal do Eu nã o aparece mais, como
aparecia outrora, como o ponto de transcendência necessá rio à afirmaçã o da
emancipaçã o em relaçã o aos objetos imaginá rios. Ele aparece como uma
vestimenta que sustenta o sujeito por impedi-lo de se confrontar com um objeto
sem lugar que, no entanto, nos causa e nos constitui.
Antes de continuar, lembremos algumas consideraçõ es importantes
sobre esta noçã o de agalma. Há vá rias maneiras de introduzi-la, mas talvez
poderíamos apreender algo importante de sua dimensã o se partirmos de uma
afirmaçã o de Lacan como:

Nã o sei porque, apó s ter dado uma conotaçã o tã o pejorativa ao fato de


considerar o outro como objeto, nunca se tenha notado que considerá -lo
como um sujeito nã o é melhor (...) se um objeto equivale a outro, para um
sujeito a situaçã o é bem pior. Pois um sujeito nã o vale simplesmente por
um outro – um sujeito, de maneira estrita, é um outro. Um sujeito
estritamente falando é alguém a quem podemos imputar o que? Nada
mais do que ser como nó s (...) do que poder entrar em nosso cá lculo como
alguém que opera combinaçõ es como nó s (LACAN, 2001, pp. 178-179).

60
Idem, p. 249
Nã o por acaso, esta afirmaçã o está no Seminário VIII. Lacan afirmarque
ser objeto no amor nã o é, necessariamente, ser submetido à vontade de um
sujeito, mas pode significar simplesmente ser objeto para outro objeto. Ou seja, a
reflexã o sobre o amor ( e há de se lembrar que a transferência é uma espécie de
“amor de laborató rio”) mostra a Lacan a possibilidade da existência de relaçõ es
construídas através da circulaçã o do “que nã o entra em nosso cá lculo como
alguém que opera combinaçõ es como nó s”. Na citaçã o acima, é claro que a
dimensã o comum do “como nó s” aparece como espaço de sobreposiçã o narcísica.
Como se nã o houvesse “como nó s” capaz de ser outra coisa que imposiçã o
identitá ria de sujeiçã o. O que nos levaria a afirmar a sujeiçã o pró pria à tentativa
de “amar o outro como a si mesmo”. Para Lacan, isto significa que, se algo como o
amor é possível, entã o nã o será o amor do que é “como nó s”, pessoas, mas como
o que é nosso avesso, objetos. Esta é uma maneira de dizer que o amor nã o é
apenas abertura à alteridade de uma outra pessoa, que no fundo seria “como
nó s”. Ele é abertura a uma alteridade mais radical, pois abertura à quilo que, em
nó s, nos destitui da condiçã o de pessoas.
Neste sentido, é compreensível que Lacan descreva tais objetos que
constroem relaçõ es amorosas como agalmata. Lendo O banquete, de Platã o,
Lacan percebe como Alcebíades apaixona-se pelos agalmata que Só crates porta.
O termo grego implica a noçã o de objetos que portam valor e “exprime na
maioria das vezes uma ideia de riqueza, mas especialmente de riqueza nobre”61.
Apaixonar-se pelos agalmata é ser tocado por aquilo que, em Só crates, age à sua
revelia, longe de sua deliberaçã o consciente, pois se configuram como objetos
dotados da capacidade indutora de operar transferências de valor, como se fosse
o caso de objetos que, por vias pró prias, impõ em relaçõ es de transposiçã o de
afetos e atitudes a sujeitos. Como se, no amor, fossem os objetos que agissem,
nã o os sujeitos. Apaixonar-se pelos agalmata é, assim, reconhecer que, no amor,
os objetos agem à revelia dos sujeitos, portando relaçõ es sociais à sua revelia.
Neste sentido, há de se lembrar que tais objetos a pensados como
agalmata operam incorporaçõ es, mas tais incorporaçõ es nã o sã o representaçõ es
personalizadas que determinam totalidades, o que apenas a imagem do corpo
pró prio poderia fazer. Por indicar o modo de vínculo ao Outro que deve ser
continuamente negado para que a autonomia do Eu e sua identidade corporal
possam se afirmar, tais objetos só podem incorporar o que se põ e na
irredutibilidade de sua retraçã o ao todo, criando relaçõ es a respeito das quais o
Eu nada quer saber e que nã o saberia como integrar. Ninguém entendeu melhor
as consequências da funçã o dos objetos a no desejo lacaniano do que Deleuze e
Guattari ao afirmarem que “o desejo é este conjunto de sínteses passivas
maquinadas pelos objetos parciais, pelos fluxos e pelos corpos, e que funciona
como unidade de produçã o”62. Objetos parciais produzem sínteses passivas, ou
seja, que nã o sã o a expressã o da atividade de uma subjetividade constituinte com
suas ilusõ es de autonomia. No entanto, a proliferaçã o de tais sínteses passivas
nos mostra como “estamos na era dos objetos parciais, dos tijolos e dos restos
[metá fora usada à exaustã o por Lacan a fim de falar dos objetos a]. Nã o
61
GERNET, Louis; Anthropologie de la Grèce antique, Paris: Flammarion, 1982, p. 127
62
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix; L’anti-OEdipe: capitalisme et schizophrénie, Paris: Minuit,
1971, p. 34. Um bom exemplo de como Lacan pensa o cará ter conflitual dos vínculos produzidos
pelos objetos a é seu comentá rio a respeito do caso do professor com fantasmas de plagianismo,
de Ernst Kris. Para uma interpretaçã o do caso, ver SAFATLE, Vladimir; “Aquele que diz nã o” In:
FREUD, Sigmund; A negação, Sã o paulo: Cosac e Naif, 2014, pp. 50-53
acreditamos mais nesses falsos fragmentos que, tais como pedaços de uma
está tua antiga, esperam para serem completados e recolados para comporem
uma unidade que seria também unidade de origem” 63. O que nos causa no amor
nã o se cola como pedaços de uma está tua antiga.

Destituição subjetiva

Aqui já podemos entender um pouco melhor o que a operaçã o de dessuposiçã o


do saber no interior da transferência pode significar. Se o saber na transferência
é saber suposto sobre meu desejo e o que lhe causa, o processo analítico visa
extrair o objeto que causa meu desejo das sendas do saber. Só crates diz nada
saber a respeito das coisas do amor, o que nã o significa que ele nã o saiba o que
fazer com tais coisas. Significará apenas que tal fazer nã o se orienta como uma
deliberaçã o, nã o funda um saber partilhado que se inscreve como lugar dentro
de uma estrutura simbó lica. Ele é uma forma de abertura que pressupõ e uma
destituiçã o de domínio, uma forma de reconhecimento de uma causalidade
exterior a respeito da qual nã o faz mais sentido procurarmos nos defender.
Lacan fala entã o uma operaçã o de “afrontar a verdade”, distinta da operaçã o de
exercício de um saber.
Ele mesmo reconhece que isto parece significar a impossibilidade de
constituir qualquer forma de laço social: “A destituiçã o subjetiva inscrita no
ticket de entrada ... nã o seria provocar o horror, a indignaçã o, o pâ nico, ou
mesmo o atentado, em todo caso dar o pretexto à objeçã o de princípio?”64. Pois o
que pode ser um laço constituído a partir de uma liquidaçã o da transferência que
parece impossibilitar toda identificaçã o simbó lica, que nã o pode mais mobilizar
produçã o fantasmá tica alguma, isto a ponto de Lacan afirmar:

Nesta viragem na qual o sujeito vê vacilar a segurança fornecida pelo


fantasma, onde se constitui para cada um sua janela para o real, o que se
percebe é que a tomada do desejo nã o é outra coisa que a de um desser.
Neste desser se desvela o inessencial do sujeito suposto saber, no que o
psicanalista por vir se vota ao agalma da essência do desejo, prestes a
pagá -lo por se reduzir, ele pró prio e seu nome, ao significante qualquer65.

É desta forma que Lacan descreve o processo de término da transferência.


Mesmo o processo de identificaçã o a um Ideal do Eu é visto como inscrito no
interior da segurança que o fantasma fornece por ser uma janela para o real, ou
seja, por enquadrar o real em uma certa distâ ncia e operaçã o. Quando tal
segurança vacila, o desejo se revela como nã o sendo outra coisa que um desser.
Sendo o desejo o ser do sujeito, este ser se revela aqui um desser. Nã o
exatamente alguma forma de reinscriçã o do sujeito na segurança ontoló gica de
um ser pensado como normatividade, o que seria o caso se operá ssemos em
chave naturalista ou ontoló gica em relaçã o ao desejo. Esta viragem do ser ao
desser é pró pria da dessuposiçã o do saber do analista, desta extraçã o que
permite ao analisando, o psicanalista por vir, apreender como seu desejo é
movido por uma causalidade externa, que nunca fundará uma autonomia. Neste

63
Idem, p. 50
64
Idem, p. 252
65
Idem, p. 254
sentido, o reconhecimento de si neste objeto é feito de forma tal a reduzir o
nome do sujeito a um significante qualquer, ou seja, seu nome, aquilo que
estabelece relaçõ es de filiaçã o e transmissã o, aquilo que porta a marca de sua
inscriçã o no horizonte de uma constelaçã o familiar decai à condiçã o de
significante qualquer, isto no sentido de uma inscriçã o meramente contingente,
sem lugar no interior de uma cadeia de necessidades. Assim, a contingência se
revela no interior de um desejo que abre uma clareira para fora de toda
segurança ontoló gica. No entanto, talvez nã o esteja claro para alguns de vocês
porque este processo nã o seria apenas um processo depressivo. O que faz dele
um processo, ao contrá rio, de afirmaçã o da liberdade e da emancipaçã o? E como
será possível constituir laços sociais apó s uma experiência desta natureza. Esta
sã o questõ es que Lacan tentará responder na sequência de seu texto.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 4

Na aula de hoje, gostaria de dar continuidade a nossa leitura da Proposição de 9


de outubro de 1967 sobre o analista da Escola. Em nosso ú ltimo encontro, eu
insistira na importâ ncia de perceber que um dos textos fundamentais de Lacan a
respeito da política pressuposta pelo advento da Escola Freudiana de Psicaná lise
estruturava-se a partir de uma reflexã o sobre a transferência. Pois se é verdade
que a psicaná lise pensa os processos de constituiçã o de laços sociais a partir de
dinâ micas de identificaçã o, se é fato que nã o é possível haver laço social sem
alguma forma de identificaçã o, já que a identificaçã o visa explicar a dimensã o
produtiva do poder, ou seja, a maneira com que o poder produz a vida psíquica,
mobiliza afetos e demandas de amor, constituindo os sujeitos aos quais ele se
relaciona, entã o será a tematizaçã o da transferência que pode nos abrir à s portas
à compreensã o dos modos de abandono da dominaçã o. Neste sentido, há uma
reflexã o sobre processos de emancipaçã o que nasce como saldo necessá rio da
transferência. Levando em conta o exercício do poder através das identificaçõ es,
toda a emancipaçã o possível terá a forma de uma liquidaçã o da transferência,
com suas questõ es ligadas ao destino da experiência do saber, à destituiçã o
subjetiva e à dejeçã o do analista.
Pois há de se fazer uma distinçã o aqui. As identificaçõ es mostram como as
relaçõ es sociais sã o, necessariamente, relaçõ es de poder e repetiçã o. Ao
identificar-se com algo ou alguém, assumo o desenvolvimento implícito pró prio
à quilo com o qual me identifiquei, as estruturas da minha vida psíquica e seus
desenvolvimentos serã o produzidos por aquilo com o qual me identifiquei.
Desde o está dio do espelho, Lacan insiste que se identificar com uma imagem é
internalizar o princípio de desenvolvimento que ela contrai, é constituir-se no
interior da histó ria que ela representa. Ou seja, toda identificaçã o é um exercício
de poder. No entanto, nem todas as relaçõ es de poder sã o relaçõ es de dominaçã o.
Pois podemos lembrar como a sustentaçã o dos processos identificató rios se dá ,
em ú ltima instâ ncia, por aquilo que nem eu nem o Outro domina. Há algo que
circula nos processos identificató rios que nã o pode ser compreendido como
exercício de uma dominaçã o. Pois tais processos se produzem apropriando-se de
algo que ultrapassa toda vontade de sujeitos e que Lacan tematiza através de sua
teoria dos objetos a (que, segundo o pró prio Lacan, seria o ú nico conceito que ele
realmente teria inventado), algo cujo circuito pró prio sempre insiste no interior
das relaçõ es de poder e que faz com que tais relaçõ es sejam, no fundo, instá veis,
sempre prontas a se inverterem, a se derivarem. Insistamos em um ponto
fundamental: uma relaçã o de dominaçã o é a expressã o da submissã o da minha
vontade à vontade do Outro, mas há aquilo que permite ao poder circular e que
nã o é nem minha vontade, nem a vontade do Outro. O poder circula
expropriando algo que pode depô -lo.
Tiremos, por exemplo, as consequências de uma afirmaçã o como:

Assim funciona o i(a) do qual o eu e seu narcisismo imaginam fazer o


casulo deste objeto a que faz a miséria do sujeito. Isto porque o (a), causa
do desejo, por estar a mercê do Outro, angustia o sujeito na ocasiã o,
vestindo-se contrafobicamente da autonomia do eu, como faz o
caranguejo ermitã o de toda carapaça66.

Lacan está a dizer que o eu ideal, que sustenta processos identificató rios
responsá veis pela constituiçã o imaginá ria do eu através de relaçõ es narcísicas,
sustenta-se por apoiar-se em objetos a, por tentar retirar a angú stia que eles
produzem (lembremos, em Lacan, a angú stia tem um objeto) fortalecendo o
discurso da autonomia do eu. Uma autonomia que aparece como discurso de
defesa contra a fobia resultante da descoberta de que aquilo que nos constitui
em nossa identidade, as imagens que nos constituem, só sã o desejantes na
medida em que elas trazem algo que pode dissolve-las. O que sustenta a
reproduçã o material da vida psíquica, o que permite o exercício constituinte das
relaçõ es de poder é algo que, ao mesmo tempo, pode dissolver as relaçõ es de
poder. E se o poder consegue controlar a circulaçã o destes objetos que nos
descentram, é porque ele sabe que o reconhecimento de si nestes objetos nos
angustia. O poder sabe que a liberdade nos angustia, ao mesmo tempo que ela
nos atrai. Se sujeitos aceitam a servidã o é porque eles temem a angú stia que a
liberdade produz e um dos exercícios fundamentais que a aná lise pode fornecer
ao exercício da liberdade é levar o sujeito a depor suas defesas contrafó bicas.
É esta instabilidade das relaçõ es de poder que a transferência permite
circular, é desta instabilidade que ela é feita e desfeita. E insistiria que este
movimento duplo é fundamental. Compreender a transferência é compreender
como ela é feita e desfeita, é compreender como sua liquidaçã o é a abertura do
sujeito à quilo que poderíamos chamar de relaçõ es de poder sem dominaçã o. Daí
uma questã o política central para Lacan, a saber, a política exige instituições nas
quais a liquidação da transferência possa ser reconhecida. A transferência nã o é
um fenô meno existente apenas em situaçõ es analíticas, ela existe em todo lugar
onde há poder e identificaçã o. Por isto, seu destino pode nos dizer algo de
fundamental a respeito dos processos de emancipaçã o.
Neste sentido, a funçã o da Escola era basicamente reconhecer sujeitos
que passaram pela liquidaçã o da transferência, que por isto deixaram para trá s
uma forma de sujeiçã o que se expressava nã o apenas na suposiçã o de um saber
ao Outro, mas na suposiçã o de um saber que me constituiria, que definiria os
modos de minha relaçã o a mim mesmo, um saber que produziria meus modos de
controle, de autonomia, de deliberaçã o. Por esta razã o, este reconhecimento nã o
era apenas a garantia para a constituiçã o de vínculos sociais nã o mais
assombrados por relaçõ es de sujeiçã o. Era a possibilidade de emergência de
vínculos capazes de transformar sujeitos.
Afinal, Lacan compreendia perfeitamente que, se alguém entra em aná lise,
é porque há uma suposiçã o de saber sobre a verdade do seu desejo. Esta
suposiçã o de saber nã o é apenas uma curiosidade cognitiva, um querer se
conhecer melhor, mas é uma expectativa de configuraçã o das estrutura da
prá tica e do cuidado a partir de um saber sobre si mesmo. No entanto, este saber
suposto será destituído, nã o pela simples constataçã o da ignorâ ncia do analista,
mas pela emergência da circulaçã o de um objeto que sustentava a relaçã o e que
esteve, até entã o velado. Isto nos explica porque, no discurso do analista, é o
objeto que ocupa o lugar de agente. Neste momento, revela-se ao sujeito como

66
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 262
sua ligaçã o à suposiçã o de saber era, na verdade, vínculo a um objeto que lhe
causava, que lhe retirava de si.
Como lembrei a vocês na aula passada, um exemplo disto é dado pela
leitura lacaniana do diá logo entre Alcebíades e Só crates em O banquete.
Lembremos mais uma vez o que foi dito. De certa forma, a leitura de Lacan faz de
Só crates o primeiro analista, assim como faz da resposta de Só crates ao desejo de
Alcebíades a primeira liçã o de manejo da transferência que teríamos conhecido.
Tal escolha tem uma clara conotaçã o política. Nos diá logos de Platã o, Alcebíades
nã o é apenas aquele que nã o sabe como governar a si mesmo por ser
descontrolado, servo de seu pró prio desejo. Ele é aquele que espera poder
governar a pó lis, governar os outros. De certa forma, Só crates é aquele que tenta
mostrar a Alcebíades como ele nã o será capaz de governar a cidade enquanto
nã o for capaz de governar a si mesmo. No entanto, o governo de si neste contexto
nã o se confunde, ao menos para Lacan, com uma dominaçã o de si com suas
dinâ micas de controle. Na verdade, podemos mesmo dizer que governar a si
mesmo é indissociá vel da capacidade de reconhecer: “este resto que como
determinando a divisã o do sujeito, o faz decair de seu fantasma e o destitui como
sujeito”67. Se Só crates mostra algo a Alcebíades é como nã o haverá governo de si
enquanto ele nã o for capaz de se confrontar com o objeto que causa seu desejo,
mas confronta-lo em um ponto no qual tal relaçã o ao objeto se constitui em um
espaço onde o fantasma decaiu e o pró prio sujeito foi destituído.
Por isto, Lacan insiste na maneira com que Só crates afirma que
Alcebíades se engana a respeito de seu desejo, pois apesar de suas
demonstraçõ es e louvores nã o é exatamente ele, Só crates, que Alcebíades deseja,
mas os agalmatas que ele porta. O que Só crates faz pois é uma operaçã o de
separaçã o, na medida em que ele tenta mostrar a Alcebíades uma distâ ncia entre
I e a, entre o ideal do Eu e o objeto que o sustenta. Ao expor tal distâ ncia,
Só crates produz uma espécie de curto-circuito no sistema de identificaçõ es que
sustentava a posiçã o de Alcebíades, já que o ideal do Eu nã o aparece mais, como
aparecia outrora, como o ponto de transcendência necessá rio à afirmaçã o da
emancipaçã o em relaçã o aos objetos imaginá rios. Ele aparece como uma
vestimenta que sustenta o sujeito por impedi-lo de se confrontar com um objeto
sem lugar que, no entanto, nos causa, age em nó s e nos constitui.
Por isto que eu insistira que, se o saber na transferência é saber suposto
sobre meu desejo e o que lhe causa, o processo analítico visa extrair o objeto que
causa meu desejo das sendas do saber. Só crates diz nada saber a respeito das
coisas do amor, o que nã o significa que ele nã o saiba o que fazer com tais coisas.
Significará apenas que tal fazer nã o se orienta como uma deliberaçã o, nã o funda
um saber partilhado que se inscreve como lugar dentro de uma estrutura
simbó lica. Ele é uma forma de abertura que pressupõ e uma destituiçã o de
domínio, uma forma de reconhecimento de uma causalidade exterior a respeito
da qual nã o faz mais sentido procurarmos nos defender. Lacan fala entã o uma
operaçã o de “afrontar a verdade”, distinta da operaçã o de exercício de um saber.
Aqui, esta distinçã o entre saber e verdade é fundamental.
Ele mesmo reconhece que isto parece significar a impossibilidade de
constituir qualquer forma de laço social: “A destituiçã o subjetiva inscrita no
ticket de entrada ... nã o seria provocar o horror, a indignaçã o, o pâ nico, ou

67
Idem, p. 249
mesmo o atentado, em todo caso dar o pretexto à objeçã o de princípio?”68. Pois o
que pode ser um laço constituído a partir de uma liquidaçã o da transferência que
parece impossibilitar toda identificaçã o simbó lica, que nã o pode mais mobilizar
produçã o fantasmá tica alguma, isto a ponto de Lacan afirmar:

Nesta viragem na qual o sujeito vê vacilar a segurança fornecida pelo


fantasma, onde se constitui para cada um sua janela para o real, o que se
percebe é que a tomada do desejo nã o é outra coisa que a de um desser.
Neste desser se desvela o inessencial do sujeito suposto saber, no que o
psicanalista por vir se vota ao agalma da essência do desejo, prestes a
pagá -lo por se reduzir, ele pró prio e seu nome, ao significante qualquer69.

É desta forma que Lacan descreve o processo de término da transferência.


Notemos inicialmente como mesmo o processo de identificaçã o a um Ideal do Eu
é visto como inscrito no interior da segurança que o fantasma fornece por ser
uma janela para o real, ou seja, por enquadrar o real em uma certa distâ ncia e
operaçã o. Quando tal segurança vacila, o desejo se revela como nã o sendo outra
coisa que um desser. Sendo o desejo o ser do sujeito, este ser se revela aqui um
desser. Nã o exatamente alguma forma de reinscriçã o do sujeito na segurança
ontoló gica de um ser pensado como normatividade, como necessidade, mas a
deriva de uma desapropriaçã o. O desejo é a deriva de uma desapropriaçã o. Esta
viragem do ser ao desser é pró pria da dessuposiçã o do saber do analista. Ou seja,
na aná lise, o analista passa por um desser, o que pressupõ e uma angú stia e
dejeçã o, e o analisando passa por uma destituiçã o subjetiva, o que pressupõ e
certo desamparo.
Esta destituiçã o está descrita através do processo de reconhecimento de
si nã o em outro sujeito, mas em um objeto. Tal reconhecimento é feito de forma
tal a reduzir o nome do sujeito a um significante qualquer, ou seja, seu nome,
aquilo que estabelece relaçõ es de filiaçã o e transmissã o, aquilo que porta a
marca de sua inscriçã o no horizonte de uma constelaçã o familiar decai à
condiçã o de significante qualquer, isto no sentido de uma inscriçã o meramente
contingente, sem lugar no interior de uma cadeia de necessidades. Assim, a
contingência se revela no interior de um desejo que abre uma clareira para fora
de toda segurança ontoló gica.
Mas, na aula passada, havíamos ficado com uma questã o: porque este
processo nã o seria apenas um processo depressivo? O que faz dele um processo,
ao contrá rio, de afirmaçã o da liberdade e da emancipaçã o? E como será possível
constituir laços sociais apó s uma experiência desta natureza?

Transferência e emancipação

Para responder tais questõ es, comecemos por nos perguntar sobre como se
liquida um processo transferencial. É claro que esta pergunta só poderá ser
respondida em um nível genérico, já que os caminhos de uma aná lise sã o sempre
singulares. O que nã o significa que tal genericidade seja desprovida de
importâ ncia e interesse, que ela nã o revele traços de estrutura. Diremos entã o

68
Idem, p. 252
69
Idem, p. 254
que a transferência é liquidada quando ocorre aquilo que Lacan chama de “ato
analítico”.
Veremos de forma mais detalhada a teoria lacaniana do ato no pró ximo
mó dulo. Por enquanto, insistamos em um ponto: um ato analítico sempre produz
uma destituiçã o subjetiva. Uma analisanda ou um analisando pode agir de três
formas, a saber, produzindo um acting out, uma passagem ao ato ou um ato
efetivo. Ou seja, é possível agir produzindo um acting out, agindo de maneira
imaginá ria, respondendo a necessidades de transformaçã o através de açõ es que
nã o tem a força de modificaçã o da estruturas, como o paciente de Ernst Kris que,
ao invés de afirmar a oralidade desmedida do objeto que causa seu desejo e que
o destitui de todo lugar simbó lico possível como autor, contenta-se em comer
miolos frescos. Nesse nível, a açã o se resume à encenaçã o imaginá ria de uma
demanda ao Outro. Encenaçã o que simplesmente deixará intocada a estrutura
que provocou o sofrimento que gerou a açã o. Mesmo comendo miolos frescos, o
paciente de Kris continuará em sua paralisia.
Por outro lado, pode-se agir de forma tal a suspender todo processo
possível, como em uma espécie de negaçã o sem sequencia. Age-se entã o por
passagem ao ato como suas formas nã o-dialéticas de negaçã o, de destruiçã o sem
produtividade. Ao lado de uma negatividade, ou seja, de uma negaçã o que é
atividade e processo, há sempre uma negaçã o bruta, negaçã o sem atividade,
como as tentativas de suicídio ou as passagens em direçã o à s formas de auto-
destruiçã o bruta.
Mas pode-se ainda afirmar o cará ter sem lugar que o reconhecimento de
si no objeto que causa seu desejo produz. Ou seja, pode-se parar de agir e
permitir que objetos ajam, criando com isto outra forma de deliberaçã o e prá tica.
O que implica compreender que nã o é o sujeito suposto saber aquele que detém
a prá tica sobre o que causa meu desejo. Todo verdadeiro ato é sempre uma
dessuposiçã o de saber e só assim ele pode ser uma reconfiguraçã o do poder.
De fato, nã o há ato possível que nã o seja uma dessuposiçã o de saber. Mas,
e este é um ponto decisivo, isto nã o implica simplesmente deslocar o saber
anteriormente pressuposto no Outro para um saber agora presente na
consciência do sujeito. Nã o significa reapropriar-se do saber. Pois este
deslocamento seria apenas a reiteraçã o de um mesmo regime de saber e de açã o,
só que agora disponível à consciência. De nada adiante louvar a prá tica se essa
prá tica ainda é dependente da mesma gramá tica de saber que havia nos
sujeitado. Pouco importa quem realmente age, quando sempre se age a partir da
mesma gramá tica. Em todos os casos, é a gramá tica que age, sã o os sistemas de
regra e existência que agem. Uma prá tica emancipada nã o é o resultado da
transferência de uma saber que supunhamos no outro e que agora nos o
reapropriamos. A emancipaçã o nã o é uma transferência de saber que nos
permitiria recuperar a enunciaçã o do saber para nó s, melhor deliberar
conscientemente. Como se tivéssemos agora a posse de uma saber nos foi
negado. A emancipaçã o é, antes, uma deposiçã o do saber. Notemos o sentido de
uma afirmaçã o decisiva como:

Assim o ser do desejo reencontra o ser do saber para renascer nisto em


que eles se juntam em uma tira feita de um lado só no qual se inscreve
uma falta só , esta que sustenta o agalma70.
70
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 254
Desejo e saber se encontram como dois lados de uma banda de Moebius se
encontram. Eles passam um no outro e ao passar um no outro, passagem que se
dá apenas à condiçã o de assumirem uma torçã o, eles fazem desta passagem a
inscriçã o de uma falta, que nã o é uma falta simplesmente ligada à incompletude
ou à subjetivaçã o da castraçã o, mas que é emergência de um objeto que nã o se
reduz a ser aquilo que uma cadeia significante pode representar. Quando uma
saber do desejo é possível, é só através de uma torçã o que, do ponto de vista da
configuraçã o atual do saber, é uma falta.
Mas insistamos em um ponto fundamental. Se algo aparece em falta, é
porque eu nã o o tenho. Se a junçã o entre desejo e saber inscreve uma falta é
porque ela aponta para algo que nunca posso ter, que nunca se colocará sob o
signo da minha posse, e esta é exatamente uma das características principais dos
agalmata: os sujeitos nã o os tem, eles os portam, o que é algo totalmente
diferente. Esta é uma maneira de dizer que a dessuposiçã o de saber que é
condiçã o para a liquidaçã o da transferência tem algo de assunçã o de uma outra
fala, de uma outra relaçã o à linguagem, a uma linguagem que nã o apareça
exatamente como minha. Daí afirmaçõ es como:

Tudo o que é do inconsciente se desdobra apenas a partir dos efeitos da


linguagem. É algo que se diz, sem que o sujeito aí se represente, nem que
ele aí se diga – nem que ele saiba o que ele diz71.

Mais do que ser estruturado como uma linguagem, o inconsciente é uma


fala que depõ e a representaçã o do sujeito, que depõ e seu pró prio dizer de si. Ele
é a emergência de uma linguagem que nã o aparece mais como minha. Nã o
apenas porque suas enunciaçõ es estã o submetidas ao involuntá rio, nã o sã o
comandadas por mim, mas principalmente porque esta nã o é mais a linguagem
do sentido. Ela é a linguagem de um acontecimento da verdade.

A religião do sentido

É claro que esta noçã o de sentido com a qual Lacan trabalha tem sua
especificidade. Afinal, o que pode ser uma linguagem que nã o é uma linguagem
do sentido, mas uma linguagem de um acontecimento da verdade? Dentre as
vá rias formas de discutir este problema complexo, insistamos em uma que expõ e
a dimensã o política deste debate. Lembremos quando Lacan afirma, em um texto
no qual é questã o do ato político de dissoluçã o de uma instituiçã o que ele
pró prio criou:

A Internacional, já que este é seu nome, se reduz ao sintoma que ela é


daquilo que Freud dela esperava. Mas nã o é ela que pesa. É a Igreja, a
verdadeira, que sustenta o marxismo por lhe fornecer sangue novo... um
sentido renovado. Por que nã o a psicaná lise, quando ela se volta ao
sentido? Nã o digo isto por uma persiflagem vã . A estabilidade da religiã o
vem do fato que o sentido é sempre religioso72.

71
Idem, p. 334
72
Idem, p. 328
Esta é a maneira lacaniana de dizer que o verdadeiro problema político
com o qual devemos lidar é a recrudescência da dimensã o teoló gico-política do
poder. Sendo a religiã o uma forma de sustentar vínculos sociais através da
reduçã o da dimensã o política das demandas à demanda de amparo, de
constituiçã o de autoridade através das figuras do poder pastoral, afirmar que o
sentido é sempre religioso significa dizer que a psicaná lise deve ser capaz de
fazer emergir o que nã o se ampara por nã o ser pensá vel no interior de relaçõ es
de necessidade, de confirmaçã o do originá rio, do destino teleoló gico, da unidade
substancial da redençã o. Lacan nã o teme em falar aqui da religiã o, de um certo
marxismo e da burocratizaçã o dos vínculos sociais através de uma Internacional
(no caso, a IPA) que se sustenta apenas por seu medo do ato analítico.
Estes casos demonstram que, para Lacan, as operaçõ es de produçã o de
sentido sã o produçõ es de relaçõ es de necessidade estruturadas a partir de
dinâ micas teleoló gicas no interior das quais apenas se desdobra a expressã o de
uma origem em seu processo de realizaçã o destinal. Sentido é uma relaçã o de
necessidade garantida por um fundamento situado na origem. O sentido
reinstaura o que foi perdido, ele cura fazendo-nos retornar a um estado original.
Neste contexto, a principal contraposiçã o é entre sentido e acontecimento. Uma
contraposiçã o a respeito da qual Lacan insiste em suas consequências políticas.
Se Lacan critica o marxismo aqui é por compreender sua teoria da revoluçã o
dependente de uma escatologia histó rica na qual o proletariado aparece como
sujeito-objeto enfim reconciliado. Nesta escatologia, todo acontecimento é
anulado diante do peso de um tempo que nã o é outra coisa que a projeçã o de
uma escatologia do progresso. Esta nã o é a ú nica leitura que podemos fazer da
teoria da revoluçã o em Marx.
Mas diante da crítica da religiã o, da política utó pica e da ascensã o da
burocracia, o que a psicaná lise poderia oferecer? Neste sentido, se voltarmos a
pergunta sobre como sabemos que nã o estamos simplesmente diante da
estilizaçã o de uma posiçã o depressiva, deveremos insistir na relaçã o entre ato e
gozo. Pois o que leva a um ato desta natureza, um ato para além do sentido, é a
deslocalizaçã o e a despersonalizaçã o que a experiência de gozo necessariamente
produz. Nã o poderia deixar de haver uma relaçã o entre o ato e a tentativa de
fazer do impossível do gozo a figura de uma forma de relaçã o por vir. Por isto, na
transferência nã o seria possível ao sujeito nã o ser impulsionado pela emergência
de seu pró prio gozo para além das formas de inscriçã o simbó lica do desejo. É
exatamente isto que permite a liquidaçã o da transferência, sua nã o consolidaçã o
em uma simples relaçã o de sugestã o e dependência.
Insistamos neste ponto: há uma emergência do cará ter sem lugar do gozo
no interior da transferência, como se vê por exemplo no gozo oral do paciente de
Ernst Kris, assombrado pelo seu desejo de plá gio e sua decomposiçã o das ilusõ es
de ser autor, ou no gozo do homem dos ratos diante da descriçã o das sevícias
chinesas. A transferência, em sua suposiçã o de saber, deve permitir a emergência
de tal gozo, por mais que ele seja angustiante e desamparador. Mas ela deve
permitir sua emergência nã o para assegurar o sujeito de que, afinal, seu gozo nã o
é assim tã o ameaçador, nã o para mostrar que há um lugar para ele na
administraçã o possível da vida tal como ela se dá na situaçã o atual. Na verdade, a
psicaná lise tenta extrair deste gozo uma política, tenta mostrar como o cará ter
desamparador deste gozo traz em si uma verdade política, a saber, a verdade de
que as condiçõ es de reproduçã o material da vida à s quais o sujeito se submeteu
só podem se exercer porque, deste gozo, ele nã o pode nada saber, com ele nã o é
possível nada fazer. Ou seja, o cará ter sem inscriçã o, a natureza real deste gozo
faz da transferência um processo que é fadado a sua pró pria auto-dissoluçã o, isto
se o sujeito for capaz de assumir, de produzir um ato que é a forma mesma da
nã o-inscriçã o. Neste sentido, podemos entender melhor a importâ ncia de uma
afirmaçã o como: “o gozo é o que a verdade encontra ao resistir ao saber”73.
Se ele é o que a verdade encontra ao resistir ao saber, entã o a deposiçã o
do sujeito suposto saber só pode ser feito em seu nome.

O passe

Mas deste gozo há ainda uma palavra que circula e se produz, há uma
singularidade que deve encontrar lugar, e esta era a funçã o do passe. A aná lise
procura fazer emergir este gozo a respeito do qual o sujeito nada quer saber
porque ela acredita que daí sairá uma palavra. Por isto, a Escola deveria ser o
lugar no qual a liquidaçã o da transferência poderia ser “comunicada”: ”esta
experiência nã o pode ser eludida, seus resultados devem ser comunicados”, dirá
Lacan74. Se os resultados devem ser comunicados, é porque o desvelamento do
cará ter sem-lugar do gozo que impulsiona a dejeçã o do analista e de seu saber
suposto nã o leva a uma posiçã o de simples isolamento. Dirá Lacan:

O que este passo, de ter sido feito só (seul), tem a ver com o ú nico (le seul)
que se acredita ser ao segui-lo? Nã o me fiaria eu à experiência analítica,
ou seja, ao que me vem de quem se virou só ? Acreditaria eu ser o ú nico a
te-la, entã o para quem eu falaria? 75

Neste contexto, Lacan fala de seu ato de fundaçã o da EFP, mas é claro que se
trata aqui também da natureza mesma do ato analítico. Ato que se faz só , mas
que pode mesmo assim constituir um laço pressuposto nesta exigência de
“comunicaçã o”. E há de se sentir esta tensã o extrema entre gozo e comunicaçã o,
uma tensã o que talvez nã o possa ser de fato resolvida, que só poderia terminar
na dissoluçã o do espaço de comunicaçã o, o que é outra maneira de compreender
a questã o da dissoluçã o da Escola. Mas a dissoluçã o do espaço de comunicaçã o
será , de forma paradoxal, a ú ltima aposta na possibilidade institucional da
política, como veremos em outra aula.
Lembremos aqui do que estava em jogo no dispositivo do passe. Segundo
o procedimento do passe, um final de aná lise permite ao analisando “contar sua
aná lise” a três passantes que irã o entã o passá -la a um jú ri. A primeira questã o
relativa a este procedimento encontra-se na noçã o de “contar uma aná lise”. Em
outros momentos, Lacan falará de um ato que possa ser “legível” por todos. Mas
que tipo de fala e de legibilidade é esta? O que se conta aqui? E para que forma de
espaço comum? Pois percebam a tensã o real do problema. Há algo de
transmissível no final de uma aná lise, mas como dirá Lacan: “como fazer
reconhecer uma estatuto legal a uma experiência da qual nã o se sabe sequer
responder?”76. Esta é uma maneira de se perguntar: como fazer reconhecer o que

73
Idem, p. 358
74
Idem, p. 255
75
Idem, p. 263
76
Idem, p. 262
só se inscreve como falta, como fazer reconhecer um gozo do qual a linguagem
nã o quer e parece nã o pode nada saber? Lacan aposta em uma transmissã o
possível chegando mesmo a descrever aquilo que é integralmente transmissível,
a saber, um matema, termo inspirado nos mitemas de Lévi-Strauss: unidades
mínimas de articulaçã o formal de relaçõ es pressupostas pelos mitos. Ou seja, a
fala sobre a aná lise deveria ser a constituiçã o de um matema capaz de passar a
dois níveis de transmissã o. O ato analítico parece se realizar na constituiçã o de
um matema.
De fato, só há comunicaçã o se podemos falar em dois níveis de
transmissã o. Se conto algo para alguém e esta mesma pessoa nã o pode contar
isto para uma terceira pessoa, nã o há comunicaçã o alguma, pois nã o há garantia
alguma de que o enunciado inicial foi, de fato, entendido. A comunicaçã o
demonstra que o sentido é a perpetuaçã o da referência para além da modificaçã o
de seus enunciadores.
No entanto, a inscriçã o do ato em uma transmissã o nã o deve ser sua
submissã o ao sentido, e neste ponto encontra-se a complexidade da exigência.
Podemos mesmo nos perguntar se isto nã o invalidaria necessariamente toda e
qualquer comunicaçã o. Lacan acredita que esta irredutibilidade do ato ao sentido
é a ú nica forma de garantir que nã o voltaremos a um “efeito de grupo”. A
associaçã o entre “efeito de grupo” e “sentido” nã o poderia ser diferente. O que
funda o grupo é a possibilidade da unidade da referência, é a partilha dos modos
de interpretaçã o de enunciados e prá ticas. O grupo é a expressã o má xima da
crença em uma gramá tica comum e a uma referência que nã o se transforma a
partir da modificaçã o dos seus enunciadores. Por isto, podemos de fato nos
perguntar se a experiência do passe poderia ter outro destino que o fracasso.
Entendamos o que leva Lacan a esta aposta que talvez nã o possa ser paga.
O apelo lacaniano à legibilidade e à comunicaçã o neste momento é sua forma de
dizer: há algo no ato que tem força de implicaçã o, ele dessupõ e o saber mas nã o
abole a relaçã o social. Daí esta estrutura do passe. Para nã o ser apenas a
reiteraçã o de uma posiçã o depressiva, a transferência deve levar a um
reconhecimento. No entanto, demandas de reconhecimento tem como condiçã o
de existência o apelo à universalidade, mesmo que seja uma universalidade nã o-
toda. Pois elas tem a característica de serem genéricas, elas exigem validade para
além de todo e qualquer contexto. Nã o há sentido algum em exigir ser
reconhecido no interior de um contexto específico, no interior de um grupo
limitado. Mas este reconhecimento genérico talvez nã o seja objeto possível de
uma comunicaçã o.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 5

Começamos discutindo a funçã o formadora das identificaçõ es no campo político.


Vimos como Lacan, em certo momento, mobiliza as identificaçõ es simbó licas
contra as identificaçõ es imaginá rias a fim de impedir a generalizaçã o de
representaçõ es narcísicas de autoridade, com todo seu cortejo de constituiçã o
identitá ria e imunitá ria. Vimos posteriormente como os laços sociais seriam
pensados a partir nã o mais da assunçã o do lugar vazio, mas da circulaçã o de
objetos que causam nosso desejo, nos destituindo de nosso lugar de sujeitos
agentes, abrindo-nos a um tipo de agência que Lacan procura tematizar através
das discussõ es sobre destituiçã o subjetiva.
Nesta aula, gostaria de contextualizar melhor o debate lacaniano no
interior das discussõ es referentes à filosofia política. Para tanto, gostaria de
debater dois autores cuja referência ao pensamento lacaniano é evidente e
importante: Claude Lefort e Ernesto Laclau. Elas serã o importantes para
contextualizarmos nosso debate no interior de questõ es referentes à teoria da
democracia.
Começemos por Lefort. Partindo, entre outros, de certas elaboraçõ es de
Jacques Lacan a respeito do simbó lico, do real e do imaginá rio77, ou seja,
inscrevendo suas discussõ es nas sendas de um debate entre filosofia política e
psicaná lise, Lefort afirmará que a revoluçã o política propriamente moderna
encontra-se no “fenô meno de desincorporaçã o do poder e de desincorporaçã o do
direito”78 representado pela desapariçã o do “corpo do rei” (ou, se quisermos, de
sua representaçã o teoló gico-familiar) como encarnaçã o da unidade imaginá ria
da sociedade e de seus ideais de totalidade orgâ nica encarnados em uma
autoridade soberana. “Essa sociedade revela-se doravante impossível de ser
circunscrita, pelo fato de que nã o poderia se relacionar consigo mesma em todos
os seus elementos e representar-se como um só corpo, uma vez que foi privada
da mediaçã o de um poder incorporado”79. Tal desincorporaçã o, tal “dissoluçã o da
corporeidade do social” - que colocaria em cheque inclusive todas as
representaçõ es orgâ nicas do Estado como expressã o da unidade ontoló gica da
vontade geral e todos os recursos à existência de um povo-Uno que têm na
metá fora hobbesiana do Leviatã seu momento decisivo - permitiria a abertura à
potência de “indeterminaçã o do social” que nos forneceria um forte princípio de
distinçã o entre a democracia e todas as formas variadas de totalitarismo. Pois a
democracia seria este governo que impede o preenchimento do exercício
simbó lico do poder por construçõ es imaginá rias de completude. Daí porque
“Estado, Sociedade, Povo, Naçã o sã o, na democracia, entidades indefiníveis”80. Ou
seja, a substancializaçã o identitá ria de tais identidades (denunciada pelo uso de
maiú sculas ) é estranha à indeterminaçã o pró pria a um governo cujo motor
consiste em colocar continuamente em questã o aquilo que procura esconder a
natureza profundamente antagô nica da vida social. A democracia seria, assim
77
Para a relaçã o entre Lefort e Lacan, ver FLYNN, Bernard; The philosophy of Claude Lefort:
interpreting the political, Northwestern University Press, 2005
78
LEFORT, Claude; A invenção democrática: os limites do totalitarismo, Sã o Paulo: Brasiliense,
1983
79
Idem, p. 54
80
Idem, p. 68
“uma sociedade sem determinaçã o positiva, irrepresentá vel na figura de uma
comunidade”81 que, por funcionar a partir da institucionalizaçã o do conflito,
precisaria ser capaz de suportar uma “quase-dissoluçã o das relaçõ es sociais” nos
momentos de manifestaçã o da vontade popular.
Servindo-se da ideia lacaniana do universo simbó lico como composto de
significantes puros que sã o a expressã o da ausência de denotaçã o exterior e, por
isto, reenviam a estabilizaçã o do processo de produçã o de sentido a significantes
contíguos no interior de uma cadeia, até que sejam basteados por um
significante-mestre que é expressã o de um lugar vazio82, Lefort afirmará que a
democracia caracteriza-se por conservar o lugar simbó lico do poder como um
lugar vazio. Desta forma:

A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas a imagem da


soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser
ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pú blica nã o
poderiam pretender apropriar-se dele. A democracia alia estes dois
princípios aparentemente contraditó rios: um, que o poder emana do
povo; outro, que esse poder nã o é de ninguém83.

O vazio simbó lico do poder permite à autoridade política nã o se transformar em


uma parte que procura encarnar o todo, que vale no lugar do todo, como a cabeça
que sintetiza todas as funçõ es do corpo social. Processo fetichista de
incorporaçã o que constitui retroativamente aquilo que a parte deveria
representar. É tal lugar vazio que demonstrará como a democracia seria o
governo no qual “nã o há poder ligado a um corpo”84, no qual nos
confrontaríamos com a “indeterminaçã o que nasce da perda da substâ ncia do
corpo político”85.
Esta funçã o central da indeterminaçã o como característica da democracia
é um elemento fundamental do pensamento de Lefort. Mas podemos nos
perguntar sobre as formas que tal indeterminaçã o toma em seu pensamento e se
ela poderia ser conjugada de outra maneira. Servindo-se da ideia lacaniana do
universo simbó lico como composto de significantes puros que sã o a expressã o da
ausência de denotaçã o exterior e, por isto, reenviam a estabilizaçã o do processo
de produçã o de sentido a significantes contíguos no interior de uma cadeia, até
que sejam basteados por um significante-mestre que é expressã o de um lugar
vazio86, Lefort afirmará que a democracia caracteriza-se por conservar o lugar
simbó lico do poder como um lugar vazio. É este lugar vazio que inscreve a
natureza indeterminada da sociedade democrá tica. Desta forma:

81
Idem, Essais sur le politique, op. cit., p. 292
82
Lembremos, por exemplo, da definiçã o lacaniana do Falo, significante-mestre, como:
“significante do ponto onde o significante falta/fracassa [seguindo aqui a duplicidade de sentido
do termo manque]” (LACAN, Jacques; Le seminaire - vol. VIII, Paris: Seuil, 2001, p. 277)
83
Idem; A invenção democrática, op. cit. p. 76.
84
Idem; p. 118
85
Idem, p. 121
86
Lembremos, por exemplo, da definiçã o lacaniana do Falo, significante-mestre, como:
“significante do ponto onde o significante falta/fracassa [seguindo aqui a duplicidade de sentido
do termo manque]” (LACAN, Jacques; Le seminaire - vol. VIII, Paris: Seuil, 2001, p. 277)
A legitimidade do poder funda-se sobre o povo; mas a imagem da
soberania popular se junta a de um lugar vazio, impossível de ser
ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pú blica nã o
poderiam pretender apropriar-se dele. A democracia alia estes dois
princípios aparentemente contraditó rios: um, que o poder emana do
povo; outro, que esse poder nã o é de ninguém87.

O vazio simbó lico do poder permitiria à autoridade política nã o se transformar


em uma parte que procura encarnar o todo, que vale no lugar do todo, como a
cabeça que sintetiza todas as funçõ es do corpo social. Processo fetichista de
incorporaçã o que constitui retroativamente aquilo que a parte deveria
representar. É tal lugar vazio que demonstrará como a democracia seria o
governo no qual “nã o há poder ligado a um corpo”88, no qual nos
confrontaríamos com a “indeterminaçã o que nasce da perda da substâ ncia do
corpo político”89.
Difícil nã o perceber o quanto este esquema depende de uma certa
apropriaçã o de esquemas conceituais mobilizados por Lacan dentro dos
processos de cura analítica. O corpo político seria uma construçã o produzida a
partir da noçã o imaginá ria de corpo pró prio, com sua ló gica de consistência e de
identidade determinada a partir de dinâ micas de exclusã o. No limite, esta ló gica
é narcísica e deve ser quebrada. Do ponto de vista político, ela seria narcísica por
criar determinaçõ es que nã o suportam antagonismos algum entre si e no seu
interior, já que todas as partes devem ser a reiteraçã o da consistência
previamente substancializada e encarnada na figura do soberano. Todas as
partes encontram sua determinaçã o completa por sustentarem o vínculo direito
ao mesmo fundamento normativo fornecido pelo poder soberano.
Assim, tal como ocorre em uma certa leitura da experiência psicanalítica,
as determinaçõ es imaginá rias seriam quebradas a partir do momento em que
levamos sujeitos a reconhecer a natureza indeterminada daquilo que os
constitui, inscrevendo tal indeterminaçã o na forma do vínculo a um lugar vazio
ocupado por alguém que, a todo momento, como um psicanalista advertido,
apontaria a distâ ncia entre o objeto que ocupa o lugar e o pró prio lugar que
determina seu valor. Assim, a democracia seria uma espécie de regime político
de subjetivaçã o do vazio e de crítica à s imagens de completude.
No entanto, tal como este esquema é clinicamente falho, ele também é
politicamente problemá tico. Podemos começar por dizer que o reconhecimento
da sociedade como uma “totalidade antagô nica” que coloca em questã o a
necessidade de um fundamento comum do social nã o implica, necessariamente,
que o lugar vazio seja a configuraçã o mais adequada de tal ser social. Na verdade,
devemos começar por nos perguntar: como delibera aquele que ocupa o lugar

87
Idem; A invenção democrática, op. cit. p. 76.
88
Idem; p. 118
89
Idem, p. 121
vazio do poder? Nã o deveria ele colocar-se à distâ ncia do debate incessante e
mó vil das ideologias a fim de remeter cada um dos lados à sua pretensa
parcialidade e à parcialidade de seus afetos, já que quem ocupa o lugar vazio do
poder nã o pode ser feito da mesma matéria que aqueles que perpetuam o
embate constante a respeito do fundamento do poder? Mas, se este for o caso,
nã o seria a teoria do lugar vazio do poder ainda dependente da ideia de que a
deliberaçã o racional pressupõ e o esfriamento das paixõ es, com seus
questionamentos interminá veis, e a abertura de um espaço para além dos
conflitos das paixõ es com suas parcialidades? Algo como apostar na crença de
que a mobilizaçã o libidinal e afetiva que sedimenta os vínculos sociais, em suas
mú ltiplas formas, seria sempre uma regressã o a ser criticada, como se a
dimensã o dos afetos devesse ser purificada para que a racionalidade
desencantada e resignada da vida democrá tica pudesse se impor, esfriando o
entusiasmo e calando o medo. Difícil nã o perceber como a teoria de Lefort parece
dependente da ideia clá ssica de que “o corpo intervém para perturbar-nos de mil
modos, causando tumulto e inquietude em nossa investigaçã o, até deixar-nos
incapazes de perceber a verdade”90, mesmo que esta “verdade” seja a verdade da
ausência de enunciado possível para o fundamento comum da vida social. Em
suma, há algo da crença clá ssica na separaçã o necessá ria entre razã o e afeto a
habitar hipó teses desta natureza. Como se os afetos fossem, necessariamente, a
dimensã o irracional do comportamento político, devendo ser contraposta à
capacidade de entrarmos em um processo de deliberaçã o tendo em vista a
identificaçã o do melhor argumento.
Disto se segue um segundo pressuposto problemá tico na escolha de
Lefort em pensar a indeterminaçã o do social sob a forma do lugar vazio do
poder. Tal teoria tende a funcionar como a justificaçã o das potencialidades
internas ao quadro institucional da democracia atualmente posta. Lefort pensa,
de forma bastante sintomática, a experiência da indeterminação nos limites da
representação política. Para ele, nã o há uma incompatibilidade de fato entre
indeterminaçã o e representaçã o pois o lugar vazio é apenas a operacionalizaçã o
de que qualquer sujeito político submetido à representaçã o pode ocupar tal
lugar. A ideia de lugar vazio é a consequência de um pensamento estruturalista
para o qual a funcionalidade do universo simbó lico é garantida por lugares
vazios claramente determinados em suas possibilidades e impossibilidades, mas
que permitem a intercambialidade de seus representantes. Qualquer sujeito
político que se reconhece apenas como uma representaçã o pode subjetivar o
lugar vazio. O lugar vazio circula pelas mã os de todos sujeito político. Ele é, na
verdade, a garantia da estabilidade da estrutura simbó lica que sustenta
democracia representativa. Daí uma afirmaçã o como:

A democracia moderna é o ú nico regime a significar a distâ ncia do


simbó lico e do real através da noçã o de um poder que ninguém, nem
90
PLATÃ O; Fédon, Belem: Edufpa, 2013, 66b
príncipe nem grupo reduzido, saberia tomar para si; sua virtude é de
referir a sociedade à prova de sua instituiçã o; lá onde se desenha um
lugar vazio nã o há conjunçã o possível entre o poder, a lei e o saber, nã o há
enunciado possível de seu fundamento comum; o ser social se esquiva, ou
melhor, se dá sob a forma de um questionamento interminá vel (o que dá
testemunho o debate incessante, mó vil, das ideologias)91.

A democracia moderna teria tal característica por se fundar, por um lado,


no pretenso cará ter dessacralizador do sufrá gio universal, que abstrai a rede de
vínculos sociais ao instaurar uma multiplicidade numerá vel, deixando a decisã o à
“enigmá tica arbitragem do Nú mero”92. Esta arbitragem enigmá tica que reduz os
sujeitos políticos a multiplicidades numerá veis seria a chave para que o primado
da representaçã o se imponha no interior do campo político organizando seus
atores. Por outro lado, a democracia se fundamenta na defesa do fim dos vínculos
entre poder, saber e tradiçã o como condiçã o para legitimar a decisã o sobre quem
ocupará o lugar vazio do poder. No entanto, nã o bastam tais traços para definir
nossos atuais horizontes de representaçã o como realmente democrá ticos. Pois
ser parte de uma multiplicidade numerá vel de indivíduos nã o é expressã o da
afirmaçã o da produtividade da indeterminaçã o do social, nem é acolhimento do
“irrepresentá vel”93. Ao contrá rio, é algo com o qual só podemos nos conformar à
condiçã o de quebrar tal indeterminaçã o naquilo que ela tem de mais
transformador, a saber, sua a-normatividade representativa, sua força de
destituiçã o de normas e de conformaçõ es a unidades de conta. Mas a
determinaçã o do sujeito como unidade de contagem em uma multiplicidade
numerá ria nã o é uma figura do lugar vazio em sua potência produtiva. Ela é uma
figura da determinaçã o indiferente em sua reificaçã o mortificada da estrutura.
Ela é a perpetuaçã o de um espaço político só legível através da representaçã o, a
traduçã o da “institucionalizaçã o do conflito” em uma forma de “competiçã o
regulada”94. Fato ainda mais grave se lembrarmos como tal multiplicidade
numerá vel em competiçõ es eleitorais nunca apresenta-se em sua pureza
instauradora. Ao contrá rio, no interior da competiçã o regulada das democracias
liberais, sua eclosã o eleitoral é sempre mediada pelo peso institucional-
econô mico das forças sociais que organizam as condiçõ es de representaçã o dos
atores políticos. Forças que se dispõ em em silêncio. E o controle das condiçõ es
de representaçã o é, ao mesmo tempo, o controle da cena do político. Há uma
zona de sombra em todo campo de representaçã o, composta pelo peso de atores
que trabalham no controle da definiçã o do que é representá vel. A crença tã o
presente ainda hoje de que, fora da representaçã o política com seus mecanismos
de sufrá gio, só haverá o caos, acaba por naturalizar o fato das condiçõ es de
possibilidade da representaçã o impor um modo de presença na cena política, um
91
LEFORT, Claude; Essais sur le politique, op. cit., p. 294
92
Idem; Essais sur le politique, p. 293
93
Idem, p. 30
94
Idem, p. 28
modo de constituiçã o dos “atores políticos” que se paga com a invisibilidade de
uma multiplicidade de sujeitos políticos possíveis. Por isto, por nã o estar
disposto a dar este passo em direçã o à crítica do primado da representaçã o no
interior do pensamento político, Lefort tende a perder a força da indeterminaçã o
que ele pró prio descobre. Ele tende a nã o compreender como todo verdadeiro
acontecimento é uma quebra de estruturas e de seus regimes de circulaçã o do
lugar vazio.

Laclau e a outra via da indeterminação

Neste sentido, gostaria de dizer que o excesso que a democracia impõ e ao


Estado de direito é, na verdade, excesso das possibilidades da política em relaçã o
ao primado da representaçã o. Este excesso pede uma incorporaçã o específica e
diria que um eixo importante dos debates atuais em filosofia política gira em
torno de como pensar a especificidade de tal incorporaçã o. Se Lefort tivesse
explorado mais as possibilidades de seu recurso à psicaná lise, ele veria que
conhecemos nã o apenas o corpo imaginá rio, que ele projeta nas figuras da
corporeidade totalitá ria do social. Há ainda um conceito importante de corpo
real, ou seja, esta corporeidade que quebra a força reguladora das determinaçõ es
estruturais funcionando através das dinâ micas das pulsõ es parciais, sem
convergência ou identidade. Lacan fala constantemente de uma corporeidade
real que produz afecçõ es que nos fazem nos confrontarmos ao que há de
inassimilá vel no corpo do Outro, aquilo que no corpo do Outro me despossui de
minha pró pria identidade. Um corpo que nã o se configura como um organismo,
mas como um fluxo constante de desintegraçã o formal e de integraçã o de
contingências.
Poderíamos recuperar o sentido de tal experiência para o campo da
filosofia política perguntando-nos se nã o haveria formas de encarnaçã o política
mais pró ximas desta experiência subjetiva. Talvez isto nos levaria a afirmar que
uma sociedade que: “em sua forma, acolhe e preserva a indeterminaçã o”95 nã o é
necessariamente uma sociedade descorporificada mas, antes, aquela na qual é
possível incorporar o que é indeterminado do ponto de vista da representaçã o.
Toda verdadeira política é a arte de construir corpos que despedaçam aqueles
que procuram submetê-los a uma mediaçã o pacificadora. Toda verdadeira
política produz corpos lá onde outros só conseguem enxergar o caos.
Notemos inicialmente que, se tal excesso de indeterminaçã o que procura
outras formas de incorporaçã o nã o devesse ser levado em conta, dificilmente
poderíamos fazer alguma distinçã o entre política e gestã o das possibilidades
previamente determinadas pelo ordenamento jurídico atual. Isto talvez explique
porque alguém como Ernesto Laclau, também baseando-se no mesmo universo
psicanalítico que Lefort, procurou recuperar o conceito de populismo. É
interessante salientar como Laclau, a sua maneira, parte de um problema
95
LEFORT, Claude; Essais sur le politique, p. 26
deixado por Lefort. Ele compreende a força de descorporificaçã o do social
presente na democracia moderna, mas a vê como um risco à política. Se ele está
disposto a afirmar que nã o há “nenhuma intervençã o política que nã o seja, até
certo ponto, populista”96 é por compreender que o populismo, ao permitir
processos de incorporaçã o popular na figura de lideranças, criam as condiçõ es
para que a força anti-institucional da política quebre as limitaçõ es impostas pelo
controle da representaçã o.
Claro que alguns podem ouvir tais colocaçõ es como um convite à
regressã o social, mas tentemos perceber com mais calma a configuraçã o
sugerida por Laclau do líder populista. Ao invés de simplesmente ver os
fenô menos populistas como a elevaçã o da particularidade do líder à condiçã o de
apresentaçã o de uma totalidade composta pelo povo, em uma saída que
lembraria os fenô menos totalitá rios que Lefort procura descrever, Laclau
procurará compreender como “uma particularidade assume uma significaçã o
universal incomensurá vel consigo mesma”97, transformando-se no corpo de uma
totalidade inalcançá vel.
É importante para Laclau insistir no cará ter inatingível da totalidade a fim
de impedir que ela se coloque como fundamento a ser recuperado em um
retorno autoritá rio à essencialidade original dos vínculos sociais, aparecendo ao
contrá rio como fundamento de um horizonte de transformaçã o continuamente
aberto. Para tanto, tal particularidade deve se tornar um “significante vazio”. O
líder populista de Laclau é um significante vazio e é isto que deve nos chamar a
atençã o por expor um modelo peculiar de incorporaçã o. Esta noçã o de
significante vazio a incorporar o poder é outra figura para pensarmos modos de
inscriçã o política da indeterminaçã o do social. Ou seja, nã o basta, como disse
Lefort, que o lugar simbó lico do poder esteja vazio. Faz-se necessá rio que aquele
que ocupa tal lugar também apareça como um significante vazio e que tal
vacuidade seja decisiva na constituiçã o de sujeitos políticos. Há aqui uma
diferença importante bem salientada por Slavoj Zizek, segundo a qual “O vazio do
‘povo’ é o vazio do significante hegemô nico que totaliza a cadeia de equivalência,
isto é, cujo conteú do particular é ‘transubstanciado’ numa incorporaçã o do todo
social, enquanto o vazio do lugar do poder é uma distâ ncia que torna ‘deficiente’,
contingente e temporá rio todo portador empírico do poder” 98. Só assim o vazio
poderia preencher o papel que lhe cabe: instaurar o povo como um modelo de
identidade coletiva baseado na multiplicidade e na indeterminaçã o. No caso,
multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos distintos, muitas
vezes contraditó rias entre si, mas capaz de ser agenciada em uma rede de
equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituiçã o de uma identidade
popular-coletiva e a determinaçã o de linhas antagô nicas de exclusã o (agora
politizadas). Tal cará ter vazio dos significantes que unificam o campo popular
nã o é resultado de algum arcaísmo político pró prio a sociedades prenhes de
ideias fora do lugar. Ele “simplesmente expressa o fato de que toda unificaçã o
populista tem lugar em um terreno social radicalmente heterogêneo”99.
96
Idem, p. 195
97
Idem, p. 95
98
ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, Sã o Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
99
Idem, p. 128
No caso, multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos
distintos, muitas vezes contraditó rias entre si, mas capaz de ser agenciada em
uma rede de equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituiçã o de uma
identidade popular-coletiva e a determinaçã o de linhas antagô nicas de exclusã o
(agora politizadas). Assim, Laclau poderá afirmar:

Nã o há totalizaçã o sem exclusã o, e sem que tal exclusã o pressuponha a


cisã o de toda identidade entre, de um lado, sua natureza diferencial que a
vincula/separa de outras identidades e, de outro, seu laço equivalencial
com todas as identidades restantes a partir do elemento excluído. A
totalizaçã o parcial que o vínculo hegemô nico consegue criar nã o elimina a
cisã o mas, ao contrá rio, deve operar a partir das possibilidades
estruturais que derivam dela100.

Freud nã o falaria outra coisa ao denunciar a dinâ mica autoritá ria da


psicologia das massas, mas Laclau nã o vê tal cisã o como expressã o necessá ria de
prá ticas segregacionistas. Vá rios movimentos populistas, em especial os latino-
americanos, se servem desta totalizaçã o por exclusã o para operar no â mbito
político das lutas de classe, no que é incorreta a crítica de que Laclau
desconheceria a luta de classes. Desta forma, o populismo pode dividir a
sociedade em dois campos antagô nicos no interior do qual o povo, mesmo nã o se
confundindo com a totalidade dos membros da comunidade, coloca-se como
parte que procura ser concebida como ú nica totalidade politicamente legítima,
plebs até entã o nã o-representada que reclama ser o ú nico populus legítimo.
No entanto, sob o populismo, a constituiçã o do campo popular, quanto
maior for, pede cada vez mais a suspensã o do cará ter contraditó rio de demandas
particulares que ele precisa mobilizar. Por isto, só cabe à liderança ser um
significante vazio que parece operar como ponto de unidade entre interesses
aparentemente tã o distintos. Tal cará ter vazio dos significantes que unificam o
campo popular nã o é resultado de algum arcaísmo político pró prio a sociedades
prenhes de ideias fora do lugar. Ele “simplesmente expressa o fato de que toda
unificaçã o populista tem lugar em um terreno social radicalmente
heterogêneo”101. Laclau fornece vá rios exemplos para dar conta de um fenô meno
que, em seu caso, certamente tem expressõ es profundas no peronismo e em
outras formas de populismo latino-americano reformista, capazes de permitir a
constituiçã o de identidades coletivas. Nestes casos, o populismo demonstrou tal
funçã o pelo fato da defesa da ordem institucional nestes países ter sempre
estado, em larga medida, vinculada à s demandas hegemô nicas de setores
conservadores da sociedade. O que pode nã o ser o caso. Tal indeterminaçã o de
resultados relativos a fenô menos populistas permite a Laclau ver no papel
unificador de Nelson Mandela, na política cosa nostra do governador paulista
Adhemar de Barros ou nos projetos de Mao Tse-Tung exemplos do
antiinstitucionalismo populista. Pois “existe em toda sociedade um reservató rio
de sentimentos anti status quo puros que se cristalizam em alguns símbolos de
maneira relativamente independente da forma de sua articulação política e é sua
presença que percebemos intuitivamente quando denominamos “populista” um

100
LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
101
Idem, p. 128
discurso ou uma mobilizaçã o”102. Tais símbolos sã o “significantes flutuantes” cujo
cará ter de “flutuaçã o” vem do fato de poderem aparecer organizando o discurso
de perspectivas políticas muitas vezes radicalmente distintas entre si.
As elaboraçõ es de Laclau sã o precisas em mais de um ponto. Elas
mostram como a perspectiva freudiana e seus desdobramentos permitem
compreender, com clareza, os processos identificató rios no campo político nã o
apenas como regressivos, mas também como constitutivos da pró pria dinâ mica
transformadora das lutas sociais. Nã o há política democrá tica sem o
reconhecimento de dinâ micas constituídas no ponto de nã o-sobreposiçã o entre
direito e demandas sociais, entre legalidade e legitimidade. Nã o há política
democrá tica sem um excesso de antagonismo em relaçã o à s possibilidades
previamente decididas pela estrutura institucional, e é isto que a experiência
populista nos mostra, embora Slavoj Zizek lembre com propriedade que o
populismo nã o é o ú nico modo de existência do excesso de antagonismo sobre a
estrutura democrá tico-institucional103. De toda forma, Laclau nos permite
compreender como a reflexã o política freudiana pode nos ajudar a sublinhar a
complexidade da relaçã o entre institucionalidade e demandas que se alojam em
um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da posiçã o da liderança implica
reconhecimento de um lugar, nã o completamente enquadrado do ponto de vista
institucional, marcado pela presença da natureza constituinte da vontade
política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se transforme na gestã o
administrativa das possibilidades previamente determinadas e constrangidas
pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o espaço aberto para a recorrência
contínua de figuras de autoridade e liderança que parecem periodicamente se
alimentar de fantasias arcaicas de segurança, proteçã o e de medo. Esta
ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a pró pria ambivalência da
incorporaçã o em política.
No entanto, Laclau deveria explorar com mais sistematicidade a natureza
profundamente ambígua das estratégias populistas e sua necessá ria limitaçã o.
Ambiguidade entendida nã o no sentido da polaridade, sempre alimentada pelo
pensamento conservador, entre democracia com instituiçõ es fortes e
autoritarismo personalista, mas no sentido de uma oscilaçã o contínua, interna a
todo movimento populista, entre transformação e paralisia. Por sustentar a
necessidade de sujeitos políticos se expressarem como povo constituído através de
cadeias de equivalências entre demandas concretas muitas vezes contraditó rias,
o populismo é assombrado continuamente pelo risco da paralisia dos processos
de transformaçã o social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um ponto de
equilíbrio no qual demandas conflitantes começam a se vetar mutuamente. O
populismo avança em situaçõ es nas quais há um cá lculo possível que permite a
vá rias e determinadas demandas mais fortes serem, em algum nível,
contempladas. No entanto, ele se depara rapidamente com uma situaçã o na qual
processos de transformaçã o se estancam devido ao equiílbrio impossível entre
demandas conflitantes, o que faz do processo de liderança uma gestã o contínua
do imobilismo e da inércia, desviada pela construçã o pontual de antagonismos
setorizados com grupos exteriores. Faz parte da dinâ mica do populismo a
presença destes momentos nos quais o imobilismo se justifica pela
transformaçã o da luta de classes em mero fantasma a assombrar, com ameaças
102
Idem, p. 136
103
Cf. ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, op. cit., p. 287
de regressõ es a condiçõ es antigas de vulnerabilidade, os setores submetidos à
liderança. Assim, consolida-se a dependência à s figuras de liderança que já nã o
sã o mais capazes de fazer o processo de transformaçã o avançar, mas que tentam
nos fazer acreditar que, se desaparecerem, elas poderiam nos levar à situaçã o de
perda das conquistas geradas. Figuras que a partir de entã o se perpetuarã o
através do retorno fatídico à mobilizaçã o libidinal do medo como afeto político. O
caso brasileiro recente do esgotamento do lulismo é um exemplo quase didá tico
neste sentido.
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 6

Na aula de hoje, daremos início ao mó dulo dedicado ao conceito de “ato


analítico”. Lembremos quã o central é tal conceito para Lacan, isto a ponto dele
afirmar que:

O ato analítico, nem visto nem conhecido antes de nó s, ou seja, nunca


notado, muito menos colocado em questã o, eis o que supomos no
momento eletivo em que o psicanalisante passa ao psicanalista104.

Ou seja, o ato analítico é apresentado como uma elaboraçã o original de Lacan e


que aparece como decisivo na estruturaçã o do final de aná lise, em especial no
que diz respeito à assunçã o do analisando na posiçã o de analista, o que responde
pelas questõ es normalmente pró prias a uma aná lise didá tica. Por outro lado, ao
insistir que a reflexã o sobre o ato analítico nã o fora nem vista nem conhecida
antes, Lacan estabelece uma distinçã o clara entre sua prá tica e a de outros
analistas, isto a ponto de afirmar que a ú nica resistência em aná lise é a do
pró prio analista, isto no momento em que o analista mostra ter horror de seu
ato. Como se houvesse algo em circulaçã o na experiência analítica que a
psicaná lise tende a recusar. Algo que diz respeito ao que de fato uma aná lise
produz.
Notemos que esta discussã o sobre a noçã o de ato analítico aparece para
Lacan a partir de meados dos anos sessenta. De forma mais precisa, ela aparece
no momento em que Lacan se vê diante de sua expulsã o dos quadros da
Sociedade Francesa de Psicaná lise, por consequência de sua expulsã o da
Associaçã o internacional de Psicaná lise. Nesta situaçã o de nã o ter mais garantias
institucionais para sustentar sua prá tica analítica, Lacan produz um ato de
fundaçã o: “Eu fundo – tã o só quanto sempre fui em um minha relaçã o à causa
psicanalítica – a Escola Freudiana de Psicaná lise”105. Ou seja, nesta assunçã o de
um isolamento, de uma perda de garantia institucional e de inscriçã o simbó lica
( a princípio, a decisã o da IPA levaria Lacan a deixar de ser um “analista”), nesta
assunçã o de uma dissoluçã o abre-se um espaço no qual uma instauraçã o é
possível. É para conceitualizar este movimento de instauraçã o e dissoluçã o, em
um processo que será , ao mesmo tempo, clínico e político, que Lacan
desenvolverá o conceito de ato analítico.
Lembremos inicialmente que esta maneira de vincular o final de aná lise a
um modelo de agência que a partir de entã o se torna possível implica vínculo
importante a respeito das relaçõ es entre clínica e praxis. Há uma praxis outra
que emerge de uma experiência analítica e, de certa forma, toda a aná lise é uma
longa elaboraçã o para que tal praxis emerja com sua força performativa de
instauraçã o. Esta praxis, como veremos, é vinculada normalmente por Lacan a
modificaçõ es profundas nos modos de inscriçã o simbó licas dos sujeitos, seja em
suas identidades sociais, seja em suas estruturas narrativas e em seus modos de
falar de si. Neste sentido, de certa forma, o conceito de ato analítico recupera e
redimensiona os processos implicados em outro conceito lacaniano até entã o
104
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 375
105
Idem, p. 229
central para a compreensã o da racionalidade da prá xis analítica, a saber, palavra
plena. Esta mesma palavra plena que aparecia em sua dimensã o performativa de
ato de fala em situaçõ es nas quais o sujeito produzia modificaçõ es em seus
modos de inscriçã o simbó lica, criando relaçõ es implicativas baseadas em
demandas redimensionadas de reconhecimento. No entanto, a palavra plena,
para ter força performativa, exige a presença de estruturas simbó licas
partilhadas e já em operaçã o entre os falantes. Ela reforça as possibilidades
imanentes à açã o da estrutura. De certa forma, o ato analítico opera em um nível
ainda mais fundamental ao suspender a estrutura, operando neste sentido com a
categoria de impossível. Pois as modificaçõ es que ele produz modificações
globais de estrutura que, ao menos para Lacan, tem consequências políticas tã o
evidentes que ele chega a aproximar o ato analítico, muitas vezes, de uma noçã o
muito específica de revoluçã o, como vemos em afirmaçõ es como:

Nã o há diferença, uma vez o processo engajado, entre o sujeito que se


vota à subversã o até produzir o incurá vel no qual o ato encontra seu fim
pró prio e o que do sintoma adquire efeito revolucioná rio, simplesmente
por nã o mais andar com a varinha marxista106.

De certa forma, eu gostaria de usar a aula de hoje para comentar esta proposiçã o
de forma demorada.

Um ato de subversão

Há vá rias proposiçõ es importantes nesta afirmaçã o. A primeira delas é de que o


ato é produzido através da realizaçã o da subversã o do sujeito. Este é um ponto
vá rias vezes sublinhado por Lacan, a saber, no ato analítico o sujeito é
subvertido. Por esta razã o, podemos insistir que se trata de um dos conceitos
decisivos de Lacan para medirmos o aporte político de sua experiência
intelectual. Pois, por estar vinculado ao movimento de subversã o do sujeito, a
importâ ncia política do conceito de ato analítico vem do fato dele permitir a
psicaná lise pensar formas de agência nã o mais dependentes das figuras da
consciência, sem no entanto reduzir tais agências à forma genérica do
involuntá rio. O ato é uma modalidade de agência que nã o é fruto de uma
deliberaçã o da consciência, sem no entanto significar alguma forma de fatalismo.
Ao falar da subversã o do sujeito, Lacan fará sua famosa inversã o do cogito
cartesiano: “Sou onde nã o penso, penso onde nã o sou”. A sua maneira, o ato
analítico é uma agência que vem desta existência que nã o se submete à s formas
atual do pensamento. O que nã o poderia ser diferente para alguém que define o
inconsciente como: “o termo metafó rico que designa o saber que só se sustém
por se apresentar como impossível, para através disto se confirmar como real
(entendam discurso real)”107. Novamente, vemos aqui o uso fundamental da
noçã o de impossível como o que indica uma latência da existência que nã o se dá
como localizaçã o no interior de uma estrutura, que nã o se dispõ e como um saber
possível e apreensível nas condiçõ es atuais de determinaçã o da estrutura. Uma
latência que nos abre ao que devemos entender por inconsciente e real. Desta
forma, e este é o primeiro ponto importante para esclarecer o interesse neste
106
Idem, p. 381
107
LACAN, Jacques; idem, p. 425
conceito, a reflexã o sobre o ato analítico permite reconsiderar o problema
politico da emancipaçã o apó s a reflexã o psicanalítica sobre o sujeito do
inconsciente.
Lembremos de algumas consideraçõ es gerais sobre os processos de
emancipaçã o como horizonte normativo para as lutas políticas. Conhecemos a
tendência tradicional em ordenar as discussõ es sobre emancipaçã o a partir da
noçã o reguladora de maturidade, como se estivéssemos a generalizar, para a
esfera da vida social, consequências da distinçã o entre minoridade e maioridade.
Desta forma, lutas políticas orientadas por expectativas de emancipaçã o seriam
lutas para realizar formas de reconhecimento de si que permitiriam o
desenvolvimento enquanto indivíduo capaz de deliberaçã o pró pria e afirmaçã o
de si.
No entanto, há de se insistir que esta forma de pensar a emancipaçã o nã o
nos permite distingui-la da sujeiçã o a padrõ es disciplinares de comportamento
socialmente exigidos e necessá rios, padrõ es estes normalmente enunciados
como expressã o efetiva da autonomia. Sair da minoridade pode ser
compreendido como resultado da internalizaçã o de sistemas de julgamento e de
açã o socialmente aceitos como pró prios à queles sujeitos socialmente
considerados imputá veis e responsá veis. Neste contexto, corre-se o risco de nã o
podermos mais estabelecer distinçõ es minimamente operativas entre
emancipaçã o e mera adaptaçã o social a padrõ es jurídicos de imputabilidade, ou
ainda entre reconhecimento, enquanto instauraçã o de modos de existência até
entã o impredicados, e recogniçã o, como confirmaçã o de potencialidades postas
pelo modo atual de existência. Assim, uma condiçã o de socializaçã o
historicamente definida e juridicamente organizada acaba por se transformar em
horizonte ontologicamente está vel de regulaçã o das formas de vida. No entanto,
a sua maneira a noçã o de ato analítico nos permite ver a emancipaçã o aparecer
como possibilidade do sujeito emergir enquanto potência normativa capaz de
produzir singularizaçõ es. Mas para tanto há uma modificaçã o estrutural na
noçã o de agência que precisa ocorrer.
Ao definir sua noçã o de ato analítico, Lacan afirma que ele estaria fundado
em uma “estrutura paradoxal vinda do fato do objeto estar nele ativo e o sujeito
subvertido”108. Uma subversã o que é inscriçã o da posiçã o do sujeito no real.
Voltamos a este ponto pois tal ideia de um ato capaz de inscrever o sujeito no
real é central. Ela implica que, ao produzirem um ato, sujeitos agem a partir do
que coloca em colapso a ordem simbó lica. Por isto, eles perdem sua inscriçã o
anterior na ordem simbó lica e na ordem do saber que os constituíram. Esta é a
razã o pela qual, do ponto de vista clínico, o conceito de ato analítico acaba por
reconfigurar globalmente os processos de intervençã o analítica ao secundarizar
os mecanismos de simbolizaçã o através da inscriçã o significante produzida pela
interpretaçã o. A partir de agora, a aná lise nã o irá procurar, através da
interpretaçã o, fornecer a inscriçã o dos sujeitos no interior de um quadro
regulado de conflitos e filiaçõ es. Ela irá confrontar os sujeitos a um ato que os
destituem de tal lugar.
Isto nos explica porque, no dispositivo do ato analítico, vincula-se uma
força de dissoluçã o e uma operaçã o de instauraçã o, e toda sua complexidade está
exatamente na compreensã o deste duplo movimento. Nã o é possível pensar
processos de instauraçã o sem responder a pergunta sobre como se realiza
108
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 332
dissoluçõ es. Pois há dissoluçõ es que sã o apenas degradaçõ es da ordem anterior,
ou se quisermos, mera passagem ao ato, mera fascinaçã o pela aniquilaçã o que
retira do ato toda possibilidade de reconhecimento. Por isto, as formas clá ssicas
da passagem ao ato sã o vinculadas ao suicídio.
No entanto, há dissoluçõ es e desabamentos que sã o pressõ es de novas
orientaçõ es e lembraria que uma das questõ es fundamentais para a reflexã o
sobre a açã o política é: como fazer ordens desabarem? Pois, e isto a experiência
das revoluçõ es no século XX nos mostrou, ordens podem se perpetuar mesmo
apó s sua queda, ou melhor, elas podem se perpetuar exatamente por terem caído
e por passarem a um modo implícito de existência, ao invés de um modo
explícito de ordenamento. Elas podem entã o ressurgir, como uma reincidência
que ressurge quando menos esperamos ou elas podem continuar operando em
um estrato subterrâ neo, paulatinamente corroendo a nova ordem até ela se
tornar irreconhecível. Por isto, a questã o do ato político como um processo de
dissoluçã o é de suma importâ ncia. O que toda política revolucioná ria sempre
soube, basta lembrar a problemá tica de Marx a respeito da dissoluçã o do Estado.
Nã o se dissolve o Estado para a abertura a uma sociedade de associaçõ es livres
sem conquistá -lo e transforma-lo até que todos seus modos de reproduçã o se
transfigurem (esta era inclusive a necessidade da temá tica da chamada “ditadura
do proletariado”). De outra forma, ele poderá perpetuar-se em silêncio, entrar
em um modo implícito de existência.

Uma certa revolução

Tal discussã o nos remete à potência de negaçã o pró pria a todo ato. Isto
levava Lacan a insistir que “revoluçã o” significa normalmente, como sabemos a
respeito dos movimentos astronô micos, “voltar ao mesmo lugar”. Ao comentar a
revoluçã o copernicana, tã o usada como metá fora de mudança epistêmica na
filosofia (Kant e a crítica como revoluçã o copernicana) e mesmo na psicaná lise
(Freud e a revoluçã o copernicana do inconsciente), Lacan se perguntava: “o que
há de revolucioná rio no recentramento do mundo solar em torno do Sol?”109.
Maneira de afirmar que nã o havia mudança alguma através da conservaçã o da
hierarquia, da unidade e da centralidade que a noçã o de movimento esférico
enquanto forma celeste perfeita representava. A verdadeira revoluçã o
encontrava-se o advento do movimento elíptico, ou seja, da noçã o de dois
centros enquanto forma dos movimentos celestes. No que se vê que a revoluçã o,
se nã o quiser ser um retorno ao mesmo lugar, é indissociá vel de uma mudança
na estrutura do saber, nã o nos lugares que cada elemento ocupa no interior de
uma estrutura dada, nã o nos detentores do saber e do poder. Lembremos a este
respeito de um poema caro a Lacan que lhe aparecia como expressã o da “fó rmula
geral do ato”, trata-se de A uma razão, de Arthur Rimbaud:

Um bater de seu dedo contra o tambor descarrega todos os sons e começa


a nova harmonia
Um passo seu é o levante de novos homens e os põ e em marcha
Tua cabeça se vira: o novo amor!
Tua cabeça se volta: o novo amor!

109
Idem, p. 420
“Muda nossos destinos, alveje as pragas, a começar pelo tempo”, cantam
essas crianças.
“Cultiva nã o importa onde a substâ ncia de nossas fortunas e desejos”, te
suplicam.
Vinda de sempre, quem irá contigo por toda parte.

Primeiro, há de se salientar que a fó rmula geral do ato analítico seja dada


por um poema. Pois se trata de aproximar o ato da emergência de outro regime
de partilha da linguagem que se encontra expresso na forma do poema. Se a
linguagem aparece aqui em posiçã o fundamental é por ela decidir a forma da
experiência, a dinâ mica de nossas gramá ticas de afetos, a estrutura das nossas
sensibilidades. Nã o há revoluçã o efetiva sem uma transformaçã o na capacidade
de enunciaçã o da linguagem. A este respeito, lembremos de uma discussã o de
Stalin a respeito da linguagem nã o ser uma super-estrutura, já que ela nã o
poderia ser mudada ao modificarmos as relaçõ es de produçã o:

O que poderia ser a necessidade para tal revoluçã o linguística se


demonstrarmos que a linguagem existente e sua estrutura sã o
fundamentalmente adequadas à s necessidades do novo sistema? A antiga
superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no
curso de alguns anos, a fim de dar livre curso ao desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma linguagem
existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de
alguns anos sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de
desintegraçã o da sociedade? Quem a nã o ser um Dom Quixote poderia dar
a si mesmo tal tarefa?110

Stalin, que sabia bem o que significa assassinar uma revoluçã o, recusa que
a linguagem seja uma superestrutura porque ela nã o deve ser nem o veículo nem
o resultado de um processo revolucioná rio. Ela deve permanecer tal e qual, sob o
risco de desencadear anarquia e desintegraçã o. No entanto, há de se perguntar
que tipo de revoluçã o é este que vê as instauraçõ es no campo da linguagem como
algo fora de seu escopo. Pois afirmar que a linguagem nã o se modifica é a
maneira mais segura de afirmar que uma revoluçã o nã o altera aquilo que
aparece como a condiçã o prévia (ao menos para os sujeitos falantes) de toda
experiência possível. Para a restauraçã o, é fundamental afirmar que a linguagem
desconhece dinâ micas políticas por ela expressar a “totalidade” da sociedade. No
entanto, digamos que, se Stalin houvesse lido Nietzsche, ele saberia que: “nunca
nos desvencilharemos de Deus enquanto acreditarmos na gramá tica”. Esta era
uma forma astuta de afirmar haver uma metafísica implícita na gramá tica e o que
faz uma revoluçã o é dissolver esta metafísica implícita que orienta os processos
mais elementares de nossa forma de vida. É com isto em mente que podemos nos
voltar ao poema de Rimbaud e a seu uso por Lacan.
Primeiro, lembremos do título: “a uma razã o”. A fó rmula geral do ato é
vinculada a um poema intitulado: “a uma razã o”. O que mais se evidencia aqui é a
ideia de “uma razã o”, e nã o de “a razã o”. Como se fosse questã o de dizer “cada
um tem sua razã o”. Mas uma frase desta natureza normalmente parece significar:
“nã o há razã o alguma, pois cada um tem a sua”. Nã o havendo razã o alguma, nã o
110
STALIN; Marxismo e linguística
há ratio, nã o apenas no sentido de nã o haver medida comum, mas
principalmente no sentido de nã o haver implicaçã o genérica. Nã o havendo a
razã o, parece nã o haver nada que nos implique genericamente, nada que nos
forneça um campo, parece haver apenas uma fala, mais uma fala, mais uma fala.
No entanto, o poema expressa exatamente o inverso desta ideia. Como se
a singularidade da experiência que me faz o corpo no qual se irrompe uma razã o
fosse uma experiência irrecusá vel para todo e qualquer. Como se o que é
desvelado só fosse a abertura de um comum ainda fora do mundo. Neste sentido,
lembremos como “raison” tem em seu interior “son” que aparece no poema
quando o bater do tambor descarregar “tous les sons”. Há a infinitude de todos
os sons nesta razã o que emerge. Neste sentido, se o artigo indefinido “uma”
singulariza, tal singularidade indica apenas a corporeidade da experiência da do
que se resolve em todos os sons, o que exige também todos os ouvidos, o que
mimetiza todas as vozes.
É claro como o poema começa com um horizonte de guerra e mú sica, com
se a verdadeira guerra fosse a transformaçã o da linguagem em mú sica. Ele
começa com um toque de tambor, como quem anuncia a criaçã o ao romper o
silêncio com um gesto sonoro, normalmente seco, sem ressonâ ncia, mas agora
esta ausência de ressonâ ncia é o advento de uma nova harmonia produzida por
todos os sons. Mas notem um ponto importante aqui. Todos os sons tocados
juntos só podem produzir uma massa sonora do tipo cluster, nunca fornecer uma
nova harmonia. Um toque que descarrega todos os sons pode ser visto, na
verdade, como um som capaz de produzir qualquer harmonia, um pouco como a
substâ ncia de nossa fortuna e desejos que pode ser cultivada nã o importa onde,
como o que virá contigo por toda parte. Ou seja, o que se fala aqui é de uma
relaçã o (pois a harmonia é necessariamente uma relaçã o) sem restriçã o, sem
perda, que potencialmente pode operar em um tempo e um espaço que nã o
conhecem mais a finitude das determinaçõ es.
E assim que a irrupçã o da guerra com suas mudanças e domínios se
transmuta em mú sica, o poema produz a irrupçã o do novo: novos homens, novo
amor. Um novo amor que precisa ser repetido, que nã o se diz apenas uma vez,
que precisa fazer a cabeça retornar em direçã o a um chamado mais uma vez.
Como se fosse o caso de lembrar que atos revolucioná rios sã o repetiçõ es, que
este tempo das emergências se abre ao se repetir.
Que seja o amor aquilo que deve ser repetido, que na verdade o amor seja
a cena de uma repetiçã o, seja o que permite a repetiçã o existir em sua força de
transformaçã o, nos mostra como é no interior deste novo amor que emerge a
razã o da qual fala Rimbaud. Como ele dirá em outro poema, Génie: “amor, medida
perfeita e reinventada, razã o maravilhosa e imprevista”. Pois haverá um tempo
pró prio, uma destituiçã o pró pria ao amor e à dispersã o de seu ato. Este tempo
pró prio funda outra razã o, como Lacan percebeu bem ao afirmar: “o amor, neste
texto, é o signo apontado como tal, de que se troca de razã o”111.
E ao produzir esta repetiçã o que denuncia um desejo de instauraçã o e
duraçã o, o poema se abre a um canto. Um canto de crianças cuja mú sica traz os
destinos que devem mudar e o tempo que deve ser alvejado como uma praga
para que ele se abra ao que vem de sempre, ou seja, ao que vem do que suspende
a pró pria ordem do tempo. Crianças que nã o apenas cantam, mas suplicam
porque sentem a urgência de que os desejos sejam cultivados em um lugar fora
111
LACAN, Jacques; Seminá rio XX, p. 26
do lugar, em um “nã o importa onde” fora do mundo tal como agora se compõ e e
divide.
Um ato é sempre a irrupçã o de outro tempo e outro espaço, esta é sua
funçã o: permitir que o desejo seja cultivado em outro tempo e em outro espaço,
que quebra a hierarquia dos lugares, que dessacraliza as distâ ncias. Por isto, ele
só poderia terminar em uma frase sem sujeito: “Vinda de sempre, quem irá
contigo por toda parte”. Pois o que vem de sempre e por toda parte inicia-se por
dissolver a unidade de todo sujeito. O que nã o pode ser diferente para alguém,
como Rimbaud, que em uma carta a Izambard dirá : “É falso dizer: eu penso;
deveríamos dizer: pensam-me”.
Neste sentido, nã o é por acaso que Lacan escolhe Rimbaud para fornecer
uma fó rmula geral do ato analítico. Trata-se do poeta que falará de um tempo de
revoluçõ es, que escreverá poemas sobre a comuna e as batalhas de emancipaçã o
popular, que abandonará o poema versificado, que fará a linguagem se
aproximar de um sistema de cores devido ao trabalho fonético com as vogais, ou
seja, que produzirá uma nova aisthesis na linguagem e em sua força de expressã o,
explorando dimensõ es significantes que se elaboram para além dos modos
meramente semâ nticos de determinaçã o do sentido. Um “desregramento de
todos os sentidos”, como dirá o pró prio Rimbaud que é advento de novos
princípios construtivos. Lembremos como o poema “A uma razã o” foi escrito
entre 1872 e 1873, ou seja, logo apó s a comuna. O que dá uma expressã o
bastante concreta de quem sã o esses novos homens que se levantam e se põ em
em marcha expressando uma nova harmonia.
Há de se ter isto em mente quando ouvirmos Lacan dizer que: “o ato tem
lugar em um dizer e ele modifica o sujeito”, ou ainda “o ato destitui em seu fim o
pró prio sujeito que ele instaura”112. Isto demonstra como o ato analítico é
solidá rio de um dizer que, ao invés de meramente exteriorizar o sujeito,
modifica-o em uma paradoxal instauraçã o destituinte. Esta posiçã o paradoxal
talvez explique porque “o ato se realiza da melhor forma ao fracassar”, o que nã o
significa que todo ato seja um fracasso. Há um tipo de fracasso que é resultado da
pressã o da produtividade do desejo em direçã o a novas formas, um pouco como
os atos falhos sã o um fracasso da força de determinaçã o da linguagem ordiná ria.
Pois há de se sentir a linguagem atual fracassar, confessar sua impotência e
transmutar suas categorias. O que, se vocês fossem Lacan, poderia ser dito da
seguinte maneira: “Minha prova toca o ser apenas ao faze-lo nascer da falha que
produz o ente por se dizer”113.
Lembremos ainda que Lacan insistirá que esta falha pela qual passa o ato
pode ser objeto de uma ló gica capaz de inscrever o que é indemonstrá vel, como
no caso de Cantor. Para além das questõ es de fundo sobre a ló gica, nota-se a
tensã o em direçã o a uma forma de inscriçã o do que nã o se representa que
permitiria o advento de uma forma outra de legibilidade e de transmissã o. Esta
será a via do matema que, juntamente com o poema, constituirã o os dois
produtos fundamentais do ato analítico.

O sintoma e a cura

112
Idem, p. 375
113
Idem, p. 426
Neste ponto, podemos entender melhor porque Lacan afirma: “Nã o há
diferença, uma vez o processo engajado, entre o sujeito que se vota à subversã o
até produzir o incurá vel no qual o ato encontra seu fim pró prio e o que do
sintoma adquire efeito revolucioná rio”. Se a subversã o do sujeito leva ao
incurá vel que é ato é porque há uma subversã o também do sintoma, subversã o
esta que toma efeito revolucioná rio por ser a forma mesma da denú ncia da
verdade segundo a qual o sofrimento é correlato da sustentaçã o da situaçã o
atual. Trata-se de um efeito revolucioná rio porque será do que até agora
apareceu como doença, como impossível de ser reconhecido como minha açã o,
como impossível de ser visto com algo que me faz parte (e o que é o sintoma a
nã o ser tudo aquilo que tem a forma do “isso age em mim”?) que virá a
transformaçã o. Como dirá Lacan: “O ato sintomá tico, é necessá rio que ele
contenha já em si algo que ao menos o prepara a este acesso, ao que para nó s, em
nossa perspectiva, realizaria sua plenitude de ato, mas a posteriori” 114. Pois se
Lacan pode falar aqui de uma dimensã o incurá vel que vincula o ato e o sintoma
nã o é porque ele está a nos resignar diante do cará ter doentio e limitado da vida,
mas porque ele insiste que, de certa forma, nã o há cura porque nã o estamos
doentes. Faz parte da astú cia dialética da clínica nã o poder curar porque se trata
de revelar que nunca houve exatamente doença. Os descaminhos do desejo
devem se transfigurar em errâ ncias através das quais a verdade se revelava. O
que apareceu sob a forma de sintoma já trazia em si a potencialidade de um ato.
E todo sofrimento produzido pelo caminho deve se transfigurar como sendo
apenas o longo esforço de parto de uma anomalia portadora de uma criaçã o que
ainda nã o encontrou sua gramá tica e seu tempo.
A este respeito, lembremos como nã o há sintoma sem gozo, o que a
reaçã o terapêutica negativa nos mostra bem. Neste sentido, o sintoma nã o é
apenas um modo de defesa contra o gozo. Ele também é gozo e aí se encontra a
oportunidade de intervençã o clínica. De forma estrita, nã o se cura um sintoma.
Extrai-se dele uma forma potencial que está paralisada porque o sujeito nã o
consegue passar do sintoma ao ato. Por exemplo, nas inibiçõ es, há sempre a
emergência potencial de objetos que nos deslocalizam. As inibiçõ es sã o o
pressentimento da emergência potencial de tais objetos. Nas conversõ es
histéricas, há a insistência de que os mestres devem ser dessupostos. Elas dizem
que a linguagem nã o pode mais dizer o que efetivamente deve ser dito, por isto o
corpo deve denunciar o silêncio da linguagem e de seus mestres. Ou seja, de
forma enfá tica, o ato analítico nã o cura, como quem elimina os sintomas e
reinstaura uma condiçã o perdida. Na verdade, o ato nos cura da cura. Ele nos
cura da ideia de que há uma cura necessá ria vinda de um saber suposto. É neste
ponto podemos compreender uma afirmaçã o central de Lacan:

Nenhum clamor do ser ou do nada que se extinga do que o marxismo


demonstrou por sua revoluçã o efetiva: que nã o há progresso algum a
esperar da verdade nem bem-estar, mas apenas a viragem da impotência
imaginá ria ao impossível que se mostra ser o real a fundar-se apenas na
ló gica: ou seja, lá onde adverti que o inconsciente sedia, mas nã o para
dizer que a ló gica desta viragem nã o precise assombrar-se do ato115.

114
LACAN, Jacques; Seminaire XV, 22/11/67
115
Idem, p. 439
Abordemos este problema por duas dimensõ es. Afirmar nã o haver progresso,
afirmar que o ato nã o é a expressã o de um progresso, tem consequências tanto
clínicas quanto políticas. Do ponto de vista clínico, isto implica recusar toda
intervençã o que se oriente por um horizonte de maturaçã o, normalmente
vinculado à reconstituiçã o da capacidade de síntese e direçã o da personalidade,
no interior do qual a doença apareceria como degenerescência. Esta noçã o da
doença como degenerescência, como fixaçã o em estados anteriores de
desenvolvimento esteve presente de forma hegemô nica na psiquiatria e na
psicaná lise (lembremos, por exemplo, dos usos de conceitos como fetichismo,
ligado a uma teoria histó rico-social do progresso, dos vínculos entre patologias e
fixaçã o em está gios de maturaçã o libidinal, a perversã o como regressã o a uma
comportamento infantil polimó rfico etc.). Nã o haver progresso algum a se
esperar da verdade significa, neste contexto, livrar a experiência analítica de sua
dependência a horizonte ideais normativos. Por outro lado, o que a aná lise pode
fornecer nã o é bem-estar ou realizaçã o de um ideal de conduta que seria a
expressã o de alguma noçã o de progresso. O que ela oferece é a viragem da
impotência imaginá ria ao impossível. Ao final, é isto que o ato analítico pode
fazer: fazer o sujeito passar da impotência ao impossível. Pois o que a revoluçã o
efetiva de Marx demonstra é que a eclosã o da verdade implica apenas sair da
posiçã o melancó lica de impotência para nos confrontarmos ao impossível que
impulsiona nosso desejo.
Neste ponto, podemos entender a importâ ncia de uma colocaçã o de Lacan
como: “a teoria revolucioná ria faria bem de se tomar por responsá vel de deixar
vazia a funçã o da verdade como causa quando é ai, no entanto, que se encontra a
suposiçã o primeira de sua pró pria eficá cia”116. Ou seja, a eficá cia da teoria
revolucioná ria consiste em deixar vazia a funçã o da verdade como causa. Isto
significa que ela nã o deve procurar preenche-la através de uma perspectiva
necessitarista na qual a identificaçã o da causa instaura uma relaçã o de
necessidade com seus efeitos. Nã o há necessidade no interior de um processo
revolucioná rio, como poderíamos acreditar ao transformar a categoria do
proletariado em um polo positivo de doaçã o de sentido de todo ato político. Na
verdade, deixar vazia a causa do que a revoluçã o seria o efeito é uma maneira de
definir como os processos de transformaçã o sã o marcados por acontecimentos
que nã o se colocam como predicados de sujeito algum. Do ponto de vista de uma
relaçã o simples de causalidade, tais acontecimentos nã o produzem efeitos. Ao
contrá rio, eles fazem emergir relaçõ es que nã o sã o pensá veis sob a forma da
causalidade simples. Por isto, a causa de uma revoluçã o é sempre o que rompe a
pró pria estrutura do pensamento causal, ela é o que esvazia a categoria de causa
por permitir o aparecimento de novas formas de relaçã o.

116
LACAN, Jacques; idem, p. 208
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 7

Na aula passada, discutimos a noçã o de ato analítico e suas consequência no


interior de um pensamento clínico e político. Insisti no cará ter paradigmá tico do
conceito de Lacan, já que ele marca uma inflexã o no interior da clínica lacaniana,
ao direcionar os processos de intervençã o nã o mais a partir de dinâ micas de
rememoraçã o, de simbolizaçã o e de verbalizaçã o (embora tais processos ainda
desempenhem papel importante), mas a partir das formas de transformaçã o de
estrutura e de destituiçã o subjetiva produzidas pela emergência de experiências
da ordem do real.
Dentro desta discussã o sobre o ato analítico, eu procurei aproximar o
problema do ato do conceito político de revoluçã o. Contrariamente a uma teoria
estruturalista clá ssica, há um lugar para o sujeito em Lacan, pois há uma agência
fora do quadro de virtualidades estabelecido pela estrutura. Esta agência nã o é
feita por um sujeito pensado enquanto substâ ncia capaz de se auto-determinar.
O paradoxo da perspectiva lacaniana vem do fato desta agência poder ser feita
apenas por um sujeito que passa pela destituiçã o de sua posiçã o assegurada no
interior do universo simbó lico. Isto significa, um sujeito capaz de reconhecer
uma agência que vem do que está na exterioridade da estrutura.
Do ponto de vista político, a destituiçã o do sujeito pressupõ e uma
transformaçã o global de estrutura e é neste ponto que a temá tica da revoluçã o
ganha um interesse psicanalítico. Desta forma, se a psicaná lise tem uma
contribuiçã o importante a dar a respeito desta questã o, é porque ela colabora
para o redimensionamento da noçã o de revoluçã o. Pois se trata de afirmar a
existência de uma dimensã o psíquica cuja transformaçã o é fundamental para que
transformaçõ es globais de estrutura ocorram, para que formas outras de agência
emerjam e a pró pria noçã o de sujeito seja reconstituída. Há uma modificaçã o da
vida psíquica que nã o é apenas consequências de transformaçõ es estruturais,
mas a sua condiçã o.
Na aula passada, eu havia explorado uma dimensã o importante deste
problema através da tematizaçã o das relaçõ es entre sujeito e linguagem no
interior das dinâ micas do ato analítico. Tais relaçõ es entre sujeito e linguagem
sã o centrais para Lacan porque se articula aqui um conjunto mais intrincado de
processos. Na concepçã o lacaniana de linguagem (e neste ponto Lacan continua
estruturalista) está o conjunto das relaçõ es sociais, já que a linguagem aparece
como uma espécie de condiçã o transcendental para a constituiçã o social do
horizonte de relaçõ es. Lembremos desta colocaçã o de A instância da letra:

A referência à experiência da comunidade como à substâ ncia do discurso


nã o resolve nada. Pois tal experiência toma sua dimensã o essencial na
tradiçã o que instaura tal discurso. Esta tradiçã o, bem antes que o drama
histó rico nela se inscreva, funda as estruturas elementares da cultura. E
essas estruturas mesmas revelam uma ordenaçã o de trocas que, mesmo
sendo inconsciente, é inconcebível fora das permutaçõ es que a linguagem
autoriza117.
117
LACAN; É crits, p. 496
Neste sentido, as modificaçõ es na ordem da linguagem nã o sã o modificaçõ es que
se reduzem apenas à dimensã o descritiva dos modos de existência, mas à
dimensã o constitutiva e instauradora da ordem social. Mesmo que os sujeitos
nã o possam modificar a estrutura da linguagem por vontade pró pria, eles as
modificam ao permitir a circulaçã o de objetos que nã o podem ser tematizados
apenas como o que é representado por um significante para outro significante.
Lembremos ainda como modificaçõ es na linguagem sã o ainda mutaçõ es
na gramá tica dos saberes e no exercício dos poderes. Por isto, eu lembrara a
vocês esta passagem do debate de Stalin a respeito da linguagem como uma
super-estrutura:

O que poderia ser a necessidade para tal revoluçã o linguística se


demonstrarmos que a linguagem existente e sua estrutura sã o
fundamentalmente adequadas à s necessidades do novo sistema? A antiga
superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no
curso de alguns anos, a fim de dar livre curso ao desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade, mas como poderia uma linguagem
existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de
alguns anos sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de
desintegraçã o da sociedade? Quem a nã o ser um Dom Quixote poderia dar
a si mesmo tal tarefa?118

Eu gostaria agora de explorar esta transformaçã o na linguagem produzida pelo


ato analítico a fim de melhor compreender os regimes de transformaçã o que
Lacan tem em vista

Ato e castração

Partamos entã o do fim de uma dos textos mais importantes de Lacan a respeito
da linguagem, a saber, Lituraterre: “Uma ascese da escritura parece-me só poder
passar ao encontrar um “está escrito” através do qual se instauraria a relaçã o
sexual”119. Esta é a maneira lacaniana de dizer que há um exercício de escritura
que permite a realizaçã o de uma literalizaçã o, ou seja, uma passagem a existência
em ato capaz de instaurar aquela que é a relaçã o disjuntiva por excelência, a
saber, a relaçã o sexual. Esta instauraçã o do que, até entã o, nã o cessava de nã o se
inscrever só é possível à condiçã o de uma modificaçã o estrutural que Lacan
chama, neste contexto, de ascese. Uma ascese da escritura.
Mas tentemos compreender melhor este ponto. A instauraçã o da relaçã o
sexual é aquilo que permite ao gozo constituir relaçõ es. Relaçõ es sexuais nã o sã o
apenas relaçõ es de desejo, mas relaçõ es de gozo. No entanto, esta instauraçã o
nã o pode se realizar de forma a produzir unidades, a assegurar identidades, a
prometer o retorno a alguma forma de unidade indiferenciada. Elas sã o uma
paradoxal relaçã o disjuntiva, que conserva a diferença como modo de relaçã o
entre dois termos. Mas nã o uma diferença pensada como desdobramento de uma
univocidade. Na verdade, uma diferença pensada como a infinitude de uma

118
STALIN; Marxismo e linguística
119
LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 20
relaçã o em disjunçã o. Isto talvez explique melhor a funçã o da castraçã o no
desdobramento da liquidaçã o da transferência.
Muito já se falou a respeito do lugar da castraçã o na experiência analítica.
Desde Derrida a Deleuze e Guattari, a castraçã o foi denunciada como uma
estratégia para submeter o desejo à inscriçã o de uma negatividade no interior da
estrutura, impedindo sua disseminaçã o ou a produtividade de suas conexõ es.
Como dirá , por exemplo, Deleuze:

Costumam-nos dizer : vocês nã o compreendem nada. É dipo nã o é papai-


mamã e, é o simbó lico, a lei, o acesso à cultura, é a finitude do sujeito, a
‘falta-a-ser que é a vida’. E se nã o é É dipo, será a castraçã o e as pretensas
pulsõ es de morte. Os psicanalistas ensinam a resignaçã o infinita, eles sã o
os ú ltimos padres (nã o, ainda haverá outros)120

Ou seja, a castraçã o aparece aqui como o emblema de uma resignaçã o infinita


diante da impossibilidade do gozo e da finitude do sujeito. Ela imporia uma
pragmá tica da inadequaçã o que só poderia ter consequências morais e políticas
deletérias. Pois se trata de insistir na incompletude fundamental do desejo e de
sua impossibilidade de satisfaçã o, que acabaria por elevar a posiçã o histérica a
horizonte final de aná lise.
No entanto, lembremos como o problema da castraçã o acabará por se
enquadrar nas discussõ es a respeito da realizaçã o da relaçã o sexual:

A castraçã o, a saber que o sujeito realiza que ele nã o tem o ó rgã o do que
eu chamaria de o gozo ú nico, unitá rio, unificador. Trata-se propriamente
do que faz um o gozo na conjunçã o de sujeitos do sexo oposto, ou seja,
daquilo que insisti no ano passado em relevando o fato de nã o haver
realizaçã o possível do sujeito como elemento, como parceiro sexual no
que se imagina a unificaçã o no ato sexual121.

Ou seja, a castraçã o aparece como a realizaçã o da ausência do que poderia


assegurar a realizaçã o fusional de um gozo unitá rio. Se este gozo unitá rio
existisse, ele asseguraria uma espécie de univocidade do ser capaz de permitir
aos sujeitos uma conjunçã o que seria retorno à submissã o da experiência a um
pensamento identificador. Nã o há univocidade possível, é o que diz a castraçã o.
Por isto, nã o há realizaçã o possível do sujeito como parceiro sexual no que se
imagina a unificaçã o no ato sexual. É isto que leva Lacan a afirmar que a
castraçã o marca: “a desigualdade do sujeito em relaçã o a toda subjetivaçã o
possível de sua realidade sexual”122.
Este ponto é decisivo. Se há uma desigualdade entre os procedimentos de
subjetivaçã o e o sexual, se nã o é possível subjetivar o sexual em sua
integralidade, como podemos fazer, por exemplo, quando dizemos ter “a minha
sexualidade” submetendo o sexual à condiçã o de atributo predicativo de um
sujeito, é porque o sexual é o pró prio espaço no qual algo que se coloca como
diferença irredutível emerge. A inscriçã o desta diferença será operaçã o política
fundamental porque ela fornecerá a matriz para as relaçõ es gerais à diferença no

120
DELEUZE et PARNET, Dialogues, Paris: Flammarion, 1977, p. 100)
121
LACAN; Seminaire XV, sessã o do 17/01/68
122
Idem, sessã o 07/02/68
interior da vida social. Como se o problema da diferença no campo do sexual
fornecesse a base para as mú ltiplas formas de relaçã o à diferença em outros
campos da experiência social.
Neste sentido, notemos como a diferença em questã o aqui nã o diz
respeito ao binarismo da diferença anatô mica entre sexos. Ela diz respeito a uma
incompatibilidade entre duas formas de gozo que habitam os sujeitos (o gozo
fá lico e o gozo feminino nã o-todo). Há algo nos sujeito que se orienta fora do
gozo fá lico e, de certa forma, é a isto que o ato analítico se dirige. A dessuposiçã o
de saber e a emergência do gozo que o ato analítico produz é solidá ria da
referência a um gozo que nã o seria inscrito na ordem do significante e, por isto,
submetido ao primado fá lico.
Note, que, se devemos levar a sério a proposiçã o lacaniana de que “a
mulher nã o existe” é porque em uma relaçã o sexual todos orientam seus desejos
a partir do Falo, sejam eles homens anatomicamente falando, sejam mulheres. É
assim que devemos interpretar a afirmaçã o de que o Falo: “é o significante
fundamental através do qual o desejo do sujeito pode se fazer reconhecer
enquanto tal, quer se trate do homem ou quer se trate da mulher”123. Através do
Falo, o sujeito partilha uma funçã o social sob a forma de um ter que dom (no caso
da posiçã o masculina) ou de um ser que é ser para um Outro, e nã o indicaçã o de
um atributo essencial (no caso da posiçã o feminina)124. Isto mostra como o
significante fálico é o emblema de toda simbolização possível do desejo.
Este lugar central do falo é submissã o da diversidade possível dos modos
de sexuaçã o ao primado da funçã o fá lica. Assim, a sexuaçã o feminina será
inicialmente pensada através do Penisneid, com sua maneira de superar tal
relaçã o de dependência através do ato de transformar os atributos femininos em
signos de reivindicaçõ es fá licas e que Lacan, seguindo Joan Rivière, chama de
mascarada. Maneira lacaniana de interpretar a afirmaçã o freudiana segundo a
qual toda libido é necessariamente masculina. Tal maneira de compreender a
posiçã o feminina será revista através da compreensã o de que nem tudo (pas
tout) de uma mulher inscreve-se sob a funçã o fá lica. Mas este não todo nã o
significa necessariamente negaçã o do genérico da funçã o fá lica e da castraçã o a
qual a mulher se relaciona, se nã o fosse assim uma mulher seria sempre
portadora de um gozo totalmente nã o submetido à castraçã o.
Isto demonstra como o falo permite a construção de um Universal capaz de
unificar as experiências singulares do desejo. Ele cria um campo universal de
reconhecimento mú tuo do desejo para além da irredutibilidade dos
particularismos e dos acidentes da histó ria subjetiva. Mas trata-se de um campo
universal de reconhecimento mú tuo extremamente peculiar. Lembremos, por
exemplo, que tal campo nã o pode realizar-se através da possibilidade da relaçã o
sexual. Compreendamos aqui ‘relaçã o sexual’ principalmente como o espaço
intersubjetivo de reconhecimento do desejo de sujeitos capazes de subjetivar
seus corpos, já que: “a relaçã o sexual é isto através do qual a relaçã o ao Outro
desemboca em uma uniã o de corpos”125.
Sabemos como Lacan insistirá , até o fim de seu ensinamento, que: “nã o há
relaçã o sexual”. Mas podemos nos perguntar: por que o universal da Lei fá lica
nã o é capaz de realizar as condiçõ es para o advento da relaçã o sexual, isto apesar

123
LACAN, S V, p. 273
124
Isto de acordo com a fó rmula: “o homem nã o é sem tê-lo [o falo], a mulher é [o falo] sem tê-lo”
125
LACAN, S VIII, p. 243
da afirmaçã o lacaniana de que o Falo: “equivale a uma có pula (ló gica)"126? Parte
da resposta está no fato do falo ser: “Um símbolo geral desta margem que sempre
me separa de meu desejo, e que faz com que meu desejo seja sempre marcado pela
alteração que ele sofre ao entrar no significante” 127. Tal noçã o do falo como ‘um
símbolo geral desta margem que sempre me separa do meu desejo’ nos mostra
como o falo é apenas a inscrição significante da impossibilidade de uma
representação adequada do sexual no interior da ordem simbólica 128. Ele é a
inscriçã o significante da relaçã o de inadequaçã o entre o sexual e a
representaçã o. Devemos sublinhar aqui uma característica maior da economia
fá lica: a injunção primordial de castração presente na Lei fálica exige o sacrifício
de todo objeto do desejo. A ú nica coisa que a Lei fá lica diz é: nã o há objeto
adequado à transcendentalidade do desejo: “É isto que quer dizer o complexo de
castraçã o: nã o há objeto fá lico”129. Maneira de ler a proposiçã o lacaniana da
castraçã o como uma operaçã o simbólica que incide sobre um objeto imaginário.
No entanto, percebamos que esta impossibilidade da representaçã o nã o
termina aqui. Se assim fosse, seria de fato difícil separar a experiência analítica
de uma posiçã o deceptiva que se fixa na dimensã o do irrepresentá vel, na
dimensã o de uma negatividade que seria apenas a sustentaçã o de uma ordem
significante de representaçã o que lembra a todo momento sua pró pria
inadequaçã o e impotência. Se um gozo que se evoca da ruptura do semblante,
entã o devemos segui-lo em sua capacidade produtiva, em sua força de retirar os
sujeitos do império da representaçã o e de seus impasses. Como todo pensamento
dialético, o pensamento lacaniano procura uma literalizaçã o da experiência que
lhe coloca fora das amarras do pensamento representativo. Esta é, de certa
forma, a temá tica de um texto central como Lituraterre.

Escrita e gozo

Lituraterre é um dos raros textos psicanalíticos dedicados à


especificidade do estatuto da literatura enquanto regime de discurso. Nele, Lacan
recusa as formas de utilizaçã o hermenêutica da literatura tendo em vista a
explicitaçã o e exemplificaçã o de conceitos psicanalíticos, assim como recusa as
psicobiografias que procuram transformar o horizonte romanesco dos
complexos e teorias da sexualidade em chave explanató ria da produçã o literá ria.
Esta dupla recusa tem consequências clínicas importantes. Pois nã o se
trata apenas de discutir o estatuto da literatura enquanto tal, mas as formas do
narrar de si que estã o no fundamento da psicaná lise. Como dissera
anteriormente, a psicaná lise tem uma dependência de certos modelos literá rios
de narrativa. É claro, por exemplo, a forma romanesca dos casos freudianos, com
seus romances familiares e suas intrigas a serem desveladas. Esta forma
romanesca é um operador clínico, já que indica um modo de totalizaçã o, de
determinaçã o de causalidade, de produçã o de síntese que orientará o sujeito em
seus processos de rememoraçã o e simbolizaçã o.

126
LACAN, E., p. 692
127
LACAN, S V, p. 243
128
É a partir de tal perspectiva que podemos compreender Lacan quando ele fala da : “relaçã o
significativa da funçã o fá lica enquanto falta essencial da junçã o da relaçã o sexual com sua
realizaçã o subjetiva" (LACAN, S XIV, sessã o do 22/02/67)
129
LACAN, S XIV, sessã o de 24/05/67
Neste sentido, ao discutir a literatura de vanguarda, Lacan procura, na
verdade, fornecer um outro horizonte de narrativa para a clínica analítica. Sua
insistência em pensar uma literatura organizada a partir da letra que,
diferentemente do significante, nã o se organiza em sistema diferencial-opositivo,
nã o constitui totalidades, mas opera por repetiçã o e inscriçã o, permite-lhe
pensar outra forma de operaçã o linguística relacionada à literalizaçã o do sujeito
e de sua expressã o. Este outro horizonte de narrativa para a clínica analítica é
indissociá vel de uma possibilidade de reconciliaçã o entre sujeito e linguagem
que nã o poderia deixar de ter consequências políticas.
Neste conceito de letra está articulado as duas dimensõ es do ato analítico,
a saber, o ato como dissoluçã o das relaçõ es anteriores e como instauraçã o. Sua
dimensã o de dissoluçã o está ligada à condiçã o da letra como rasura. Ela está logo
presente na citaçã o que Lacan faz de um jogo de palavras de Finnegans Wake, de
Joyce, entre letter e litter. A importâ ncia que Lacan dá a tal jogo de palavras vem
do fato de estarmos em um regime de linguagem marcado pela dissoluçã o da
linguagem em sua dimensã o comunicacional a uma exposiçã o de ruínas. A
lembrança de Beckett neste contexto nã o deixa dú vidas. Pois quem melhor do
que Beckett expô s o cará ter atualmente arruinado da linguagem que socialmente
se impõ e a nó s. Uma linguagem que só por meio da mais brutal violência pode
nos fazer ainda confiar nas relaçõ es de causalidade, na certeza produzida pelo
efeito que segue a causa, na recogniçã o produzida pela memó ria, na continuidade
narrativa com sua orientaçã o de açã o pelas noçõ es de necessidade e
desenvolvimento.
Desta forma, a linguagem que pode falar do sujeito será agora uma
linguagem inicialmente marcada pela força de arruinar a linguagem da
comunicaçã o. Ela trará balbucios, gagueiras, palavras gastas que se apresentam
como gastas, impossibilidades de narrativa, recusas ou ainda prazer fonético,
aproximaçõ es sonoras. Em suma, rasuras. Como se fosse questã o de mostrar
como é impossível continuar a usar a linguagem como até agora se utilizou. Daí
esta maneira lacaniana de dizer que a letra produz um buraco na linguagem,
expõ e um saber em fracasso, um saber em questã o (“savoir en échec”). A letra
como o que desenha a borda do buraco do saber, dirá Lacan. Neste sentido, se o
verdadeiro ato só se realiza ao fracassar, há de se lembrar como a literatura deve
fazer a forma romance fracassar para poder realizar sua força expressiva. Mas,
como dirá Lacan:

Rasura de nenhum traço que seja anterior, é o que faz terra do litoral.
Litura pura, é o literal. Produzi-la, é reproduzir esta metade sem par
através da qual o sujeito subsiste130.

Ou seja, esta rasura da qual a literatura é composta nã o é simplesmente a


negaçã o de um traço que lhe seria anterior. Ela é uma litura pura, uma inscriçã o
que literaliza aquilo do qual ela fala reproduzindo aquilo que, do sujeito, é uma
dimensã o sem par, nã o-contá vel: a expressã o. De certa forma, o que a literatura
de vanguarda faz, aos olhos de Lacan, é afirmar a potência de um real até entã o
em deriva através do ato mesmo de arruinar a linguagem. Daí um jogo de
palavras decisivo neste contexto entre litoral e literal.

130
LACAN; Autres écrits, p. 16
Isto talvez nos aproxime do momento mais importante de nosso texto, a
saber, este momento no qual Lacan afirma:

É possível do litoral constituir um discurso que se caracteriza por nã o


emitir semblantes? Eis a questã o que apenas a literatura de vanguarda
propõ e, literatura que é ela mesma feita de litoral e que nã o se sustenta
do semblante, mas que prova apenas a quebra, que apenas um discurso
pode produzir, com efeito de produçã o. É ao que parece pretender uma
literatura em sua ambiçã o de lituraterrir, a saber, ordenar um movimento
que ela chama de científico131.

O que define a experiência daquilo que Lacan chama de “literatura de


vanguarda” é uma tentativa de ser um discurso para além do semblante. O
conceito de semblante neste contexto é central. Ele se contrapõ e a uma potência
de descentramento da literatura que transforma o limite em expressã o de outra
ordem. Uma pouco como desde o romantismo o limite da forma é exposto como
condiçã o para a reconstituiçã o da expressã o.
Lembremos inicialmente como o conceito de semblante será
transformado em um conceito maior na compreensã o lacaniana das relaçõ es
entre as dimensõ es do Imaginá rio, do Simbó lico e do Real. Poderíamos dizer que
semblante será , em Lacan, tudo aquilo que nã o é real. Desde o início de suas
consideraçõ es sobre o papel do Imaginá rio na organizaçã o do diverso da
experiência sensível, Lacan nunca cessou de denunciar o cará ter ‘enganador’ da
aparência. Ele se pergunta: “Por que o desejo é, na maior parte do tempo, outra
coisa do que parece ser? "132. Ao mesmo tempo, ele sublinha, por exemplo, que a
fascinaçã o sexual do animal e do homem pela imagem mostra como: “os
comportamentos sexuais sã o especialmente enganá veis "133, já que eles sã o
estimulados por aparências que, no caso do sujeito humano, vêm das imagens
mnésicas das primeiras experiências de satisfaçã o.
Notemos aqui que a aparência é inicialmente compreendida como o
espaço do Imaginá rio e de seu sistema de produçã o de imagens. Assim, quando
Lacan fala da aparência como engano e do final de aná lise como um: “declínio
imaginá rio do mundo”134 capaz de nos desvelar a estrutura significante que
constitui o mundo dos objetos do desejo, poderíamos pensar que tal estratégia
indica a existência de uma espécie de oposiçã o entre aparência e essência em
vigor no interior da psicaná lise lacaniana. Tal desconfiança nos leva a colocar
uma questã o: o que acontece com a aparência (e com as escolhas empíricas de
objeto) quando o desejo se revela na sua verdade de falta-a-ser desprovido de
objeto, desejo que alcança sua verdade na determinaçã o transcendental do falo?
A resposta de Lacan consiste em dizer que a aparência se transforma em
semblante, ou seja, aparência que se coloca enquanto pura aparência. Neste
sentido, a característica maior do semblante é que ele: “nã o é semblante de outra
coisa”135, ou seja, ela nã o nos reenvia a referência alguma para além da superfície
das aparências. Se o ser do sujeito revelou-se como falta de determinaçã o
empírica, entã o o que subsiste como aparência deve ser posto como puramente
131
LACAN; Autres écrits, p. 18
132
LACAN, S II, p. 265
133
LACAN, S I, p. 142.
134
LACAN, S I, p. 258
135
LACAN, S XVIII, sessã o do 13/01/71
negativo. Contrariamente à imagem narcísica, imagem que era aparência
enganadora resultante de uma reificação e de uma naturalização do olhar
constitutivo do Outro, o semblante nã o é imagem reificada. Diante do semblante,
o sujeito sabe que está diante de uma pura aparência que nã o se coloca mais
como representaçã o que ainda obedeceria ao princípio de adequaçã o136.
Duas vias partem desta maneira de compreender o estatuto ontoló gico da
aparência. Há a via pró pria ao gozo fálico e que consiste em assumir uma escolha
de objeto que é na verdade escolha de uma aparência, escolha de uma má scara.
Se a subjetivaçã o da falta através do falo colocou a inadequaçã o de todo objeto
empírico ao desejo, entã o nada impede o sujeito de gozar de um objeto que, de
uma certa maneira, faz deliberadamente semblante de ser adequado, um objeto
que é uma má scara. Em outras palavras, nada impede que o gozo fá lico advenha
gozo perverso. Aqui, o sujeito se bloqueia na dimensã o do jogo infinito dos
semblantes e simulacros.
A outra via consiste em pensar uma passagem em direçã o a uma
experiência do Real a partir do semblante.

136
Notemos que nã o estamos muito longe de Deleuze, para quem : “Tudo transformou-se em
simulacro. Pois, por simulacro, nã o devemos entender uma simples imitaçã o, mas o ato através
do qual a pró pria idéia de um modelo e de uma posiçã o privilegiada encontra-se contestada,
invertida" (DELEUZE, Différence et répétition, Paris: PUF, 2000, p. 95). Tanto Lacan quanto
Deleuze pensam em uma situaçã o histó rica na qual o domínio da apresentaçã o parece nã o mais
nos enviar a sistemas estruturados de produçã o de sentido. Mas enquanto Deleuze opera na
vertente do desdobramento da potência do virtual, Lacan insiste na necessidade do advento de
um discurso que nã o seria do semblante.
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 9

Na aula de hoje, iniciaremos nosso ú ltimo mó dulo, a saber, este dedicado ao


conceito de gozo. “O gozo faz a substâ ncia de tudo aquilo a respeito do qual
falamos em psicaná lise”137, dirá Lacan em seu seminá rio “De um Outro ao outro”.
Esta afirmaçã o deixava claro o papel estruturante do conceito de gozo no interior
do pensamento lacaniano e de sua clínica. No entanto, ele aparecerá para Lacan
de forma relativamente tardia. Podemos mesmo dizer que o uso do termo “gozo”
como conceito clínico e metapsicoló gico deverá esperar o Seminário VII: A ética
da psicanálise para, de fato, ser apresentado de forma mais sistemá tica. Ele
responde a um deslocamento, cada vez mais visível no pensamento lacaniano,
em direçã o à tematizaçã o do uso clínico de processos ligados à dimensã o do Real,
o que implica em redistribuir o peso dado aos processos de simbolizaçã o,
verbalizaçã o e rememoraçã o no interior da clínica.
Mas notemos um dado bibliográ fico significativo. Apó s sua apresentaçã o
no Seminário VII, o conceito de gozo voltará a ser objeto central de aná lise
principalmente nos seminá rio XVI (De um Outro ao outro), XVII (O avesso da
psicaná lise) e XX (Mais, ainda). Há um dado significativo nesta distribuiçã o. A
tematizaçã o do gozo volta à s preocupaçõ es centrais de Lacan logo apó s os
acontecimentos de maio de 68, já que o seminá rio XVI começa no final de 1968. É
evidente, neste contexto, como Lacan faz do conceito de gozo um conceito
fundamental no interior de uma estratégia de crítica social psicanaliticamente
orientada. Pois Lacan lê o capitalismo a partir nã o de uma economia política, mas
de uma economia libidinal que se constró i através de certas homologias
importantes com a crítica marxista. O capitalismo será descrito nã o como um
sistema econô mico que produziria modos de existência baseados na repressã o e
na conformaçã o a padrõ es disciplinares de conduta, como era a temá tica
dominante neste momento histó rico, mas como um sistema de expropriaçã o do
gozo, de integraçã o do gozo à ló gica da produçã o mercantil e seus padrõ es de
conta. Ou seja, as temá ticas da repressã o do desejo como condiçã o de
socializaçã o nã o estã o presentes de formas estruturante em Lacan. No seu lugar,
encontramos a noçã o de que o capitalismo nã o reprime o gozo, ele o expropria, o
que significa que ele o reinscreve em uma ló gica mais adaptada a sua injunçõ es
de produçã o. Isto complexifica em demasia as dinâ micas da crítica social. Pois o
conceito de gozo preencherá duas funçõ es distintas: ele será o fundamento da
crítica à s sociedades capitalistas e o fundamento dos modos normais de
funcionamento destas mesmas sociedades.
Isto ficará mais claro se levarmos em conta que tal dimensã o crítica
pró pria ao conceito de gozo será suplementada no Seminá rio XX, onde será
questã o de abordar a possibilidade de um gozo capaz de abrir a experiência para
além da inscriçã o social do desejo através da relaçã o ao falo. Há uma articulaçã o
complexa e necessá ria entre o que Lacan chamará de gozo fá lico, gozo produzido
pela inscriçã o do desejo através de sua relaçã o ao significante fá lico, e
capitalismo. Ou seja, o conceito de gozo é, ao menos tempo, o que sustenta os

137
LACAN; Séminaire XVI, p. 45
modos de reproduçã o material de nossas formas de vida e o que pode
desestabilizar tal reproduçã o.
Levando em conta esta dispersã o pró pria ao conceito de gozo, nã o é difícil
imaginar como haveria uma multiplicidade de maneiras a abordá -lo. Mas neste
curso, eu gostaria de explorar uma que, a meu ver, ainda foi pouco explorada, a
saber, como se trata de um conceito político fundamental da psicaná lise
lacaniana. Ele permite a compreensã o das dinâ micas de integraçã o do
capitalismo, assim como abre o espaço para a tematizaçã o dos processos
subjetivos de ruptura com tais formas de integraçã o. Sua origem, e isto nã o
poderia nos escapar, nã o se encontra em textos freudianos, embora Lacan se
esforce em fazer das incidências freudianas do termo Genuss indicaçõ es da
presença de um conceito. Mas se quisermos encontrar uma verdadeira referência
ao uso lacaniano do conceito de gozo, deveremos procurar em Georges Bataille.
Por isto, gostaria de começar lembrando do contexto no interior do qual Bataille
desenvolve seu conceito. Pois mesmo as diferenças evidentes de Lacan e Bataille
a respeito do gozo exigem a recomposiçã o do espaço inicial de problemas
compreendidos pelo segundo.

Bataille e a crítica da sociedade do trabalho

Bataille serve-se do conceito de gozo como eixo fundamental de uma


crítica social baseada na crítica da sociedade do trabalho. Ou seja, em suas mã os,
o conceito será , desde o início, ligado a uma certa teoria social na qual a crítica do
capitalismo se insere em um horizonte mais amplo a respeito do advento do
trabalho como modo fundamental de atividade humana. Lembremos, por
exemplo, de afirmaçõ es como:

O trabalho exige uma conduta em que o cá lculo do esforço, relacionado à


eficá cia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoá vel, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo,
nã o sã o admitidos. Se nã o pudéssemos refrear esses movimentos, nã o
poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razã o de
refreá -los138.

Nesta citaçã o, vemos Bataille insistir na existência de um modelo de


cá lculo, de mensuraçã o, de quantificaçã o derivado da ló gica do trabalho e
estranho à “improdutividade” desses modos de relaçã o social que sã o a festa e o
jogo. Tal modelo é indissociá vel da noçã o de “utilidade”, assim como de um
tempo no qual as atividades sã o medidas tendo em vista o cá lculo dos esforços e
investimentos, a “eficá cia produtiva” com sua recusa ao desperdício enquanto
horizonte supremo de moralidade de nossas açõ es. Há uma capacidade de
controle a partir da possibilidade de prever resultados e grandeza que funda o
trabalho como modo de apropriaçã o de minha força e dos objetos. Controle
encarnado no primado da utilidade.
Mas, se nos perguntarmos sobre o que devemos entender por “utilidade”
neste contexto, teremos que apelar a um texto do início dos anos 30, intitulado
“A noçã o de dispêndio”. Nele, lemos:
138
BATAILLE, Georges; O erotismo, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 64
A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob
uma forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se
deixa limitar, por um lado, à aquisiçã o (praticamente à produçã o) e à
conservaçã o dos bens e , por outro, à reproduçã o e à conservaçã o das
vidas humanas (...) No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a
atividade social subentende o princípio de que todo esforço particular
deve ser redutível, para ser vá lido, à s necessidades fundamentais da
produçã o e da conservaçã o139.

Ou seja, fica claro como a utilidade aparece nã o apenas enquanto modo de


descriçã o da racionalidade pró pria a um sistema só cio-econô mico determinado,
mas principalmente como o princípio fundamental de definiçã o moral da
natureza dos sujeitos pró prios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do
capitalismo sã o aqueles que organizam suas açõ es tendo em vista sua auto-
conservaçã o, a conservaçã o de seus bens, o cá lculo econô mico de seus esforços e
a fruiçã o de formas moderadas de prazer, ou seja, formas de prazer que nã o nos
coloquem fora de nosso pró prio domínio. Eles sã o aqueles que se julgam
racionais por sempre submeterem sua afetividade à reflexã o sobre a utilidade e a
medida. Dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da
mercadoria, as relaçõ es entre pessoas acabarã o por se submeterem a
racionalidade instrumental da relaçõ es entre coisas. Algo que Bataille, à sua
forma, recupera ao afirmar que: “a humanidade, no tempo humano, antianimal
do trabalho é em nó s o que nos reduz a coisas”140. Tempo antianimal porque
tempo que se acumula, que conta, que se dispõ e como unidade bruta de
contagem, tempo disciplinar do cá lculo dos meios em relaçã o a fins. Desta forma,
como lembra Lukà cs: “o tempo perde o seu cará ter qualitativo, mutá vel e fluido:
ele se fixa num continuum delimitado com precisã o, quantitativamente
mensurá vel, pleno de ‘coisas’ quantitativamente mensurá veis”141.

Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que nã o se
confunde com o cá lculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda açã o social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer
e alegria. Daí o sentido de uma afirmaçã o como:

A atividade humana nã o é inteiramente irredutível a processos de


reproduçã o e de conservaçã o, e o consumo deve ser dividido em duas
partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo
necessá rio para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservaçã o da
vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto,
simplesmente da condiçã o fundamental desta ú ltima. A segunda parte é
139
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
140
Idem; O erotismo, p. 184. Neste sentido, marxistas como Moishe Postone acabam por se aproximar ,
mesmo a contragosto, de tal tipo de crítica do trabalho colocada em circulação por Bataille quando
insistem que “O trabalho social não é somente o objeto da exploração e dominação, mas é, ele próprio,
o terreno da dominação. A forma não pessoal, abstrata, ‘objetiva’ de dominação carcterística do
capitalismo está aparentemente relacionada à dominação dos indivíduos por seu trabalho social”
(POSTONE, Moishe; Tempo, trabalho e dominação social, São Paulo: Boitempo, 2014, p. 150)
141
LUKÀ CS, Gyorg; História e consciência de classe, op. cit., p. 205
representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as
guerras, os cultos, as construçõ es de monumentos santuá rios, os jogos, os
espetá culos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da
finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condiçõ es
primitivas, têm em si mesmas seu fim142.

Há vá rias questõ es que poderíamos colocar a partir de afirmaçõ es desta


natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela
necessidade de experiências de excesso, de dispêndio e de destruiçã o que, do
ponto de vista das exigências econô micas de produçã o e maximizaçã o, sã o
simplesmente irracionais. A atividade sexual seria um exemplo privilegiado de
atividade improdutiva, de excesso e de dispêndio sem finalidade. Ela está bem
expressa em uma afirmaçã o como:

Há entre a consciência, estreitamente ligada ao trabalho, e a vida sexual,


uma incompatibilidade cujo rigor nã o poderia ser negado. Na medida em
que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve nã o
apenas que moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele mesmo
o excesso sexual. Em certo sentido, essa desconsideraçã o desviou o
homem, senã o da consciência dos objetos, ao menos da consciência de
si143.

Notem, inicialmente, a peculiaridade da construçã o de Bataille. Primeiro,


trata-se de dizer que há uma incompatibilidade entre a ló gica do trabalho e a
vida sexual. Isto exige nã o apenas aceitar desvincular a vida sexual dos
imperativos de reproduçã o (pois se sexo servisse principalmente para a
reproduçã o, entã o ele entraria sem maiores problemas no interior das exigências
de conservaçã o das sociedades), mas também, e este é o passo mais singular,
desvincular sexo e prazer. Pois poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar,
como afinal sempre se imaginou, que o desgaste do mundo do trabalho pede um
complemento através do uso do tempo livre enquanto momento de prazer. Nã o
por outra razã o, mais ou menos à mesma época, filó sofos ligados à Escola de
Frankfurt, como Herbert Marcuse e Theodor Adorno, lembravam como as
sociedades capitalistas nã o podiam ser compreendidas como sociedades
repressivas em relaçã o à s exigências da sexualidade. Elas eram sociedades de
contínua incitaçã o à sexualidade, sociedades nas quais o poder fornece, ao
mesmo tempo, o paradigma da ordem e as figuras da desordem. Desde o advento
das sociedades de consumo, a experiência do prazer é um argumento
constantemente presente para o fortalecimento da coesã o social.
Por uma razã o desta natureza, Bataille procura pensar a experiência
sexual como aquilo que nã o se encaixa dentro da racionalidade instrumental dos
que procuram maximizar seus prazeres e se afastar de seus desprazeres. Por
isto, sua incompatibilidade com o trabalho nã o é simplesmente derivada da ideia
de quanto mais tempo para o trabalho, menos tempo para a vida sexual. Na
verdade, trata-se de afirmar que a incompatibilidade é estrutural: o tempo
profano do trabalho em nada se assemelha ao tempo sagrado do erotismo. Eles
nã o tem medida comum, eles nã o seguem a mesma ló gica. Sua relaçã o é de

142
Idem; A parte maldita, p. 21
143
Idem; O erotismo, p. 188
completa heterogeneidade. Quem habita o primeiro tempo, nã o sabe como
habitar o segundo e quem habita o segundo despreza profundamente o primeiro.
Por isto, o erotismo é excessivo. Mas, com isto, nã o significa dizer que o erotismo
é mais intenso que o trabalho. Seu excesso nã o é da ordem da grandeza, mas da
alteridade. Nem sempre, “excessivo” significa o que é muito grande, pois isto
corresponderia a dizer que há uma medida comum entre os dois fenô menos,
sendo que um é apenas maior do que o outro. Na verdade, “excessivo” significa
aqui o que excede minha capacidade de medir, simplesmente porque é o que nã o
se mede, o que colapsa toda medida, porque sua ló gica nã o é a ló gica dos objetos
mensurá veis. Neste sentido, mesmo quando for leve, etéreo e silencioso, mesmo
quando se reduzir a um simples olhar ou a um toque, o erotismo será excessivo.
Porque seu excesso é a recusa do que nã o aceita ser sentido e vivido da mesma
forma que sentimos as coisas que podemos calcular, mensurar e quantificar. O
erotismo será sempre excessivo porque o que lhe caracteriza é exatamente
aquilo que nã o entra na imagem atual do homem, deste homem da sociedade do
trabalho e da ló gica utilitá ria. Por isto, ele poderia, ao menos para Bataille, ser
um horizonte de atividades com forte potencial crítico. Como se o gozo fosse o
fundamento da crítica social ao capitalismo.

Lacan e o vínculo entre gozo e pulsão

É tendo algo parecido em vista que Lacan, ao discutir a ética da psicaná lise, trará
o conceito de gozo para o centro de suas indagaçõ es. Recusando a defesa de uma
liberaçã o naturalista do desejo que levaria à afirmaçã o do “homem do prazer”,
Lacan nã o faz, por isto, alguma forma de profissã o de fé na necessidade de auto-
legislaçã o e auto-governo. Sua estratégia será trazer o gozo para dentro de uma
reflexã o ética sobre a direçã o da clínica.
Neste sentido, ele começará por insistir cada vez mais que a experiência
humana nã o é um campo de condutas guiadas apenas por imagens ordenadoras
(Imaginá rio), por estruturas só cio-simbó licas (Simbó lico) que visam garantir e
assegurar identidades, mas também por uma força disruptiva cujo nome correto
é Real. Aqui, o Real nã o deve ser entendido como um horizonte de experiências
concretas acessíveis à consciência imediata. O Real nã o está ligado a um
problema de descriçã o objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo
de experiências subjetivas que nã o podem ser adequadamente simbolizadas ou
colonizadas por imagens fantasmá ticas. Isto nos explica porque o Real é sempre
descrito de maneira negativa, como se fosse questã o de mostrar que há coisas
que só se oferecem ao sujeito sob a forma de negaçõ es.
O nome lacaniano do modo de acesso ao Real é “gozo”144. Seguindo
Bataille, Lacan insiste que a ló gica do comportamento humano nã o pode ser
totalmente explicada a partir do cá lculo utilitarista de maximizaçã o do prazer e
de afastamento do desprazer. Há atos cuja inteligibilidade exigem a introduçã o
de um outro campo conceitual com sua ló gica pró pria, um campo que desarticula
distinçõ es estritas entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante de
uma certa dissoluçã o de si que produz, ao mesmo tempo, satisfaçã o e terror.
Indistinçã o entre satisfaçã o e terror que Lacan chama de “gozo”. Dissoluçã o da

144
Para uma aná lise exaustiva do conceito lacaniano de gozo, ver Christian Dunker, O cálculo
neurótico do gozo (Sã o Paulo: Escuta, 2002)
auto-identidade que ele chama de “destituiçã o subjetiva” e que, de uma maneira
ou de outra, sempre estaria presente em todo final de aná lise.
Este campo que visa fornecer a inteligibilidade de atos através dos quais o
sujeito procura se confrontar com o que faz vacilar as certezas identitá rias de seu
Eu é animado por uma dinâ mica pulsional pró pria à pulsã o de morte. Tal ideia de
uma tendência, interna a todo organismo, de retorno ao inorgâ nico, é um
conceito freudiano extremamente criticado por mais parecer um entulho
metafísico. No entanto, ele é central em Lacan, isto a ponto dele afirmar que
“toda pulsã o é virtualmente pulsã o de morte”145.
Há uma estratégia ética neste uso da pulsã o de morte, por mais
contraintuitivo que isto possa parecer. Lembremos de Lacan afirmando: “O que é
o instinto de morte? O que é esta forma de lei para além de toda lei, que só pode
se colocar como uma estrutura ú ltima, um ponto de fuga de toda realidade
possível a alcançar?”146. A colocaçã o é clara: a pulsã o de morte aparece como um
lei para além de toda lei, uma estrutura ú ltima que abre o espaço a uma linha de
fuga em relaçã o a toda realidade socialmente organizada. Ela abrirá o espaço a
uma açã o que desestabiliza as determinaçõ es da estrutura e que é descrita como
realizaçã o de uma “verdade liberadora”147 que expressa o cará ter imperioso do
desejo.
Mas o que pode significar que a pulsã o de morte é uma verdade
liberadora? Estaria Lacan a colocar um gozo mortífero como horizonte de final
de aná lise, como vá rios comentadores criticaram? De fato, Lacan quer conservar
a ideia da pulsã o como retorno em direçã o à morte, mas é o pró prio conceito de
“morte” que se transforma. Ao invés da morte como retorno à origem inorgâ nica,
morte pensada a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente
inanimada, Lacan procura a possibilidade de satisfazer a pulsã o através de uma
“morte simbó lica” ou “segunda morte”. Freud falava de uma auto-destruiçã o da
pessoa pró pria à satisfaçã o da pulsã o de morte. Digamos que, para Lacan, a
morte procurada pela pulsã o é realmente a “auto-destruiçã o da pessoa”, mas à
condiçã o de entendermos por pessoa a identidade do sujeito no interior de um
universo simbó lico estruturado. Esta morte é pois o operador fenomenoló gico
que nomeia a suspensã o do regime simbó lico e fantasmá tico de produçã o de
identidades. Por isto, ela nã o descreve o destino de nossa presença física, mas
uma transformaçã o de ordem moral.
Se tal operador fenomenoló gico descreve uma operaçã o de ordem moral,
é porque ele fornece o fundamento para o advento de outras formas de
relacionalidade. A descoberta, em si mesmo, de algo que se manifesta como auto-
destruiçã o da pessoa nã o nos leva, necessariamente, à defesa compulsiva contra
tudo o que poderia colocar em questã o nossa identidade. Ela pode nos levar, ao
contrá rio, à abertura a uma alteridade que nos constitui e que procura se realizar
para além dos sistemas de propriedade e identidades da pessoa. Daí porque
Lacan deve reposicionar o problema do gozo e da pulsã o de morte no interior de
uma discussã o organizada a partir de dinâ micas de reconhecimento da
alteridade. Este é o sentido do problema da relaçã o entre sujeito e das Ding, que
ocupa um lugar central no Seminá rio VII.

145
Jacques Lacan, Escritos, p. 848
146
LACAN; Séminaire VII, p. 29
147
idem, p. 32
Lacan irá encontrar das Ding em um manuscrito de Freud, Projeto para
uma psicologia científica. Apó s o Seminá rio VII, das Ding vai praticamente
desaparecer dos textos lacanianos, já que, de uma certa maneira, sua funçã o será
absorvido pelo objeto a. Sabemos que, em Freud, o movimento pró prio ao desejo
é pensado através da repetiçã o alucinató ria de experiências primeiras de
satisfaçã o. Estas primeiras experiências deixam imagens mnésicas de satisfaçã o
no sistema psíquico. Quando um estado de tensã o ou de desejo reaparece, o
sistema psíquico atualiza de uma maneira automá tica tais imagens, sem saber se
o objeto correspondente está ou nã o está efetivamente presente. A fim de nã o
confundir percepçã o e alucinaçã o, faz-se necessá ria uma prova de realidade. O
fator complicador é que Freud sabe como a articulaçã o entre a percepçã o de um
objeto no mundo exterior e a imagem mnésica de satisfaçã o pressupõ e uma
possibilidade de julgamento (Urteil) feito pelo eu. A estrutura sintá tica do
julgamento vai permitir ao eu desenvolver operaçõ es mais complexas do que a
simples comparaçã o biunívoca. Por exemplo, ele poderá aproximar o objeto e a
imagem através da divisã o sintá tica entre sujeito e predicado. Se um objeto é
apenas parcialmente semelhante à imagem mnésica, o eu poderá julgar que as
diferenças dizem respeito aos predicados, aos atributos, ou seja, dizem respeito a
acidentes, e nã o ao nú cleo do objeto, que aparece no sujeito proposicional. Isto
permite ao eu estabelecer uma relaçã o de identidade a partir do sujeito
proposicional e submeter a realidade ao prazer.
Mas há um segundo tipo de caso; este é o que interessa realmente a Lacan.
Em certas situaçõ es pode surgir: "uma percepçã o que nã o se harmoniza de
maneira alguma com a imagem mnemô nica desejada"148. No Projeto, Freud a
introduz através do chamado complexo do semelhante ou, ainda, do humano-ao-
lado (Komplex des Nebenmensch), quer dizer, a primeira experiência na qual o
objeto vindo do exterior é um semelhante, "um objeto da mesma ordem deste
que trouxe ao sujeito sua primeira satisfaçã o (e também seu primeiro desprazer)
"149, quer dizer, a mã e. O que acontece quando a criança está diante de um
semelhante pela primeira vez? Aqui, vemos uma inversã o em relaçã o ao exemplo
anterior. O eu divide o objeto, mas é o sujeito da proposiçã o que continua opaco.
Freud diz que ele continua unido como coisa (als Ding beisammenbleibt); isto
enquanto os atributos, os predicados, serã o compreendidos e transformados em
representaçõ es (Vorstellung) mnésicas. Esta articulaçã o é extremamente
importante pois, como nos assinala Lacan, trata-se de uma: "fó rmula totalmente
surpreendente na medida em que ela articula fortemente o ao-lado e a
semelhança, a separaçã o e a identidade"150.
Quando a criança está diante de um semelhante, o eu inscreve no interior
do sistema psíquico tudo o que é familiar: os traços do rosto do outro, os
movimentos do corpo etc. Tudo isto se transforma em um complexo de
representaçõ es. Mas há qualquer Coisa que continua inassimilá vel à
representaçã o, inassimilá vel à imagem e que, no entanto, aparece na posiçã o
gramatical do sujeito do julgamento. Trata-se da irredutível estranheza do
pró ximo, a mesma irredutibilidade que aparecerá mais tarde em Freud sob o
conceito de das Unheimliche e que indica, entre outras coisas, a angú stia vinda da
percepçã o do duplo. Angú stia que nos lembra como a verdadeira alteridade vem
148
FREUD, GW vol. XVIII, p. 426
149
FREUD, GW vol. XVIII, p. 426
150
LACAN, S VII, p. 64
daquilo que nos é mais familiar, já que ela embaralha a divisã o entre diferença e
identidade, entre pró ximo e distante, entre eu e outro.
Lacan articula o Projeto ao texto freudiano sobre A negação (Die
Verneinung) a fim de indicar como das Ding nã o é outra coisa que o que foi
forcluído (verworfen) pelo Eu-prazer (Lust-Ich) através de um julgamento de
atribuiçã o. Lembremo-nos que, através de um julgamento de atribuiçã o, o eu
procurava expulsar para fora de si o Real (sobretudo o Real das moçõ es
pulsionais) que rompia com o princípio de constâ ncia no plano das excitaçõ es do
aparelho psíquico. Tal expulsã o permitia o desenvolvimento das operaçõ es
primordiais de simbolizaçã o que formarã o o sistema de representaçã o
significante.
Aqui, a astú cia de Lacan, mobilizada para aproximar sua construçã o
metapsicoló gica da estratégia kantiana de determinaçã o de uma vontade moral,
consistia em mostrar como há um desejo que sempre procura alcançar das Ding.
Trata-se de um desejo que quer a transgressão de um gozo para além do
princípio do prazer, já que alcançar das Ding significa necessariamente aniquilar
o sistema de determinaçã o fixa de identidades e de diferenças que funda o eu. E a
aniquilaçã o da ilusã o de identidade pró pria ao eu só pode produzir a angú stia da
dissoluçã o. Notemos como a temá tico de das Ding se liga ao problema do
reconhecimento. Das Ding apareceu em Freud como o limite ao reconhecimento
do outro já que se trata da manifestaçã o da negatividade pró pria à alteridade151.
Em Lacan, ele continua a desempenhar este papel. O que lhe leva a afirmar:

Se algo, no cume do mandamento ético, termina de maneira tã o estranha,


tã o escandalosa para o sentimento de alguns, por se articular sob a forma
do Amarás seu próximo como a si mesmo, é que é pró prio à lei da relaçã o
do sujeito humano a si mesmo que ele se faça, em si mesmo, na sua
relaçã o a seu pró prio desejo, seu pró prio pró ximo152.

Gozo e crítica

No Seminá rio VII, Lacan afirma que a pulsã o nã o se limita a ser um


conceito psicoló gico, mas se trata de um conceito ontoló gico absolutamente
central que responde a uma crise da consciência que seria pró pria ao nosso
tempo. Esta era sua forma de afirmar que a pulsã o expressa uma estratégia
crítica ao primado da consciência. Primado este a ser situado nã o apenas como
atribuiçã o geral de um conceito psicoló gico, mas como estratégia ontoló gica de
definiçã o das condiçõ es gerais de forma de vida. A consciência traz consigo um
modo de presença, de determinaçã o de objetos, de definiçã o das condiçõ es da
açã o, de autonomia, de deliberaçã o. Insistir em sua crise é colocar em questã o
todas essas operaçõ es.
Lacan se confronta a tal crise pensando as estruturas da consciência
desejante. Daí porque ele insistirá que a psicaná lise é uma alusã o perpétua à
fecundidade do erotismo na ética. Este erotismo tende a vincular o prazer à
inscriçã o simbó lica ao qual o sujeito se submete e a definir o gozo como aquilo
que se orienta por um lugar que “padece do significante”. No entanto, como

151
"Esta aná lise de um complexo perceptivo foi qualificada de reconhecimento (erkennen), implica
um julgamento e termina com este ú ltimo" (FREUD, GW vol. XVIII, p. 427)
152
LACAN, S VII, p. 92
vimos anteriormente, o que está para além do prazer tem relaçõ es necessá rias
com a pulsã o de morte. No que nosso problema se torna assim o que significa
integrar politicamente a pulsã o de morte. O uso do gozo como conceito crítico é,
do ponto de vista psicanalítico, indissociá vel do problema do destino da pulsã o
de morte no interior da experiência social. Pois devemos pensar as incidências
da pulsã o de morte apenas sob as figuras do instinto de destruiçã o, da crueldade
e, com isto, a partir do problema da violência imanente à s relaçõ es sociais entre
indivíduos? Ou haveria para a pulsã o de morte outro destino social? Pois a
pulsã o de morte e sua satisfaçã o poderiam responder pelos fundamentos
pulsionais de vínculos sociais baseados na relaçã o a uma noçã o de alteridade que
nã o se reduz à condiçã o da alteridade de outra consciência. Notemos as
consequências de uma colocaçã o como:

A pulsã o de morte é uma sublimaçã o criacionista, ligada ao elemento


estrutural que faz com que, desde que nos relacionemos ao que quer que
seja que se apresenta sob a forma da cadeia significante, há algum lugar,
mas seguramente fora do mundo da natureza, o para além desta cadeia, o
ex nihilo sobre o qual ela se funda e se articula como tal153.

Se a pulsã o de morte é ligada a uma sublimaçã o criacionista é porque a


produçã o está sendo pensada como um domínio de criaçã o ex nihilo. Neste
sentido, a produçã o social necessita passar pelo que se coloca para além da
cadeia significante. No entanto, esta dimensã o de um para além determina as
formas de relaçã o com o que redimensiona toda tematizaçã o da experiência.
Lacan chega a utilizar o exemplo do potlatch e sua destruiçã o dos bens como
funçã o reveladora de valor, recuperando uma temá tica cara a Bataille sua “parte
maldita”:

Tudo se passa como se a colocaçã o no primeiro plano da problemá tica do


desejo chamasse como seu correlato necessá rio a necessidade dessas
destruiçõ es chamadas “de prestígio”, já que elas se manifestam como
gratuitas154.

Lacan compreende o gozo provocado por tais destruiçõ es como algo


instaurador de vínculos e destruidor de um regime de utilidade e valor interno à s
sociedades capitalistas. Como se, de certa forma, o capitalismo nã o conhecesse a
pulsã o de morte, já que ele nã o conheceria estas sublimaçõ es criadoras que
suspendem os regimes de determinaçã o de valor e utilidade. Daí porque Lacan
insistirá vá rias vezes que o gozo é aquilo que nã o serve para nada.
Lembremos, para finalizar, o que este uso paradigmá tico do potlatch
significa. Como sabemos, o potlatch, praticado principalmente por alguns tribos
da costa noroeste dos EUA como os Tsimshiam, os Kwakiutl, os Haida e os
Tlingit, é um meio de circulaçã o das riquezas através do dom. Um chefe oferece
riquezas a seu rival afim de desafiá -lo e obrigá -lo a uma retribuiçã o mais alta.
Como lembra Bataille, “ele deve retribuir com usura”155, pois “a ‘devoluçã o’ é

153
LACAN, S VII, p. 252
154
Idem, p. 276
155
BATAILLE, Georges; A parte maldita, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 78
sempre maior e mais cara”156. No entanto, o potlatch nã o se dá apenas sob a
forma de dom, mas pode se dar também sob a forma de destruiçã o na qual um
rival é desafiado pelo gesto de destruiçã o solene de riquezas. Lacan se interessa
principalmente a esta versã o extrema do potlatch na qual os bens nã o sã o sequer
trocados, mas destruídos em uma manifestaçã o suntuá ria infinita. Jogo mú tuo de
destruiçã o da riqueza e utilidade, compreendido por Lacan como expressã o de
uma luta por prestígio, um pouco como vemos na leitura de Bataille157. Mas ao
invés de falar das condiçõ es para a afirmaçã o da soberania, como o faz Bataille,
Lacan se interessa, na verdade, pela ideia de circulaçã o do que só se apresenta
como destruiçã o contínua dos objetos até a exaustã o, ou melhor, do que só se
apresenta destruindo continuamente os objetos até a exaustã o. Fato que
demonstra “que a destruiçã o dos bens como tais pode ter uma funçã o reveladora
de valor” (LACAN, 1986, p. 275). Este modo de circulaçã o de objetos é o espaço
da desmesura, pois é construçã o de vínculos através do que nã o se mede, do que
se gasta em um dispêndio sem utilidade, do que nos lembra que “o gozo é aquilo
que serve para nada”158. É fazendo apelo ao gozo produzido por tais relaçõ es que
Lacan acredita poder reposicionar a crítica do capitalismo.
Por isto, a psicaná lise, dirá Lacan ao final do seu seminá rio VII, nã o pode
procurar se colocar sob o signo da “demanda de felicidade”, até porque “a
felicidade se transformou em um fator da política”, já que ela pressupõ e alguma
forma de conciliaçã o entre o desejo e as possibilidade atuais de determinaçã o
social. No entanto, ela se colocará sob o signo da escuta de um gozo a respeito do
qual o sujeito nã o sabe o que fazer. Uma escuta que deverá constituir um
movimento de “passagem ao limite”. Uma passagem ao limite, uma aproximaçã o
que Lacan descreverá da seguinte maneira:

No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanálise pode


acompanhar o paciente até o limite estático do Tu és isso, onde se revela a
marca de seu destino mortal, mas não está em nosso poder de clínicos de levá-
lo a este momento no qual começa a verdadeira viagem159

156
MAUSS, Marcel; Sociologia e psicologia, Sã o Paulo: Cosac e Naif, 2003, p. 294
157
Neste sentido: “o prestígio, a gló ria, a posiçã o nã o podem ser confundidos com o poderio. Ou,
se o prestígio é poderio, ele o é na medida em que o pró prio poderia escapa à s consideraçõ es de
força ou de direito a que habitualmente é submetido (…) A gló ria, consequência de uma
superioridade, é outra coisa além de um poder de tomar o lugar de outrem oude se apoderar de
seus bens: ela exprime um momento de frenesi insensato, de dispêndio de energia sem medida,
que o ardor do combate pressupõ e” (BATAILLE, Georges; idem, p. 79)
158
LACAN, Jacques; Seminaire XX, Paris: Seuil, 1973, p. 10
159
idem, p. 100
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 10

Na aula passada, começamos a discussã o a respeito da natureza política do


conceito de gozo em Lacan. Eu insistira como ele deveria ser compreendido,
inicialmente, como conceito operativo no interior de uma crítica da sociedade do
trabalho e de suas formas de socializaçã o. Desde Bataille, o gozo aparecia como o
eixo de relaçõ es sociais nã o submetidas aos modos de determinaçã o pró prios à
sociedade do trabalho, com sua mensuraçã o, sua funcionalidade dos objetos,
seus padrõ es de utilidade e de reproduçã o material da vida social. Desde este
momento, a crítica à s formas de socializaçã o no interior das sociedades
capitalistas do trabalho nã o era feita tendo em vista a defesa de alguma forma de
hedonismo e de afirmaçã o do prazer. Na verdade, a distinçã o entre gozo e prazer
já se fazia sentir, já que o prazer era reduzido ao primado utilitarista da agência
racional como maximizaçã o de interesses e afastamento do desprazer.
Vimos que o uso lacaniano do conceito de gozo partia deste quadro. Sua
estratégia será trazer o gozo para dentro de uma reflexã o ética sobre a direçã o
da clínica. Tal estratégia se consolidava através do vínculo entre gozo e pulsã o de
morte. Caberia a psicaná lise permitir a relaçã o com um gozo que impulsiona os
sujeitos a atravessar a fantasia e viver a pulsã o, como veremos na formulaçã o
que aparecerá no Seminário XI. Como “toda pulsã o é virtualmente pulsã o de
morte” fica a questã o de saber o que pode significar viver a pulsã o neste contexto
e porque tal relaçã o à pulsã o de morte, tal subjetivaçã o da pulsã o de morte teria
necessariamente uma consequência ética e política.
Eu insistira com vocês que a subjetivaçã o da pulsã o de morte deveria ser
inscrita no interior de uma reflexã o sobre estruturas de relacionalidade. A
perspectiva ética de Lacan funda-se no problema da relaçã o à alteridade, nã o no
sentido do reconhecimento do outro e da tolerâ ncia para com sua diferença, mas
no sentido das consequências éticas e políticas da constituiçã o de uma outra
forma de relaçã o a si na qual o si mesmo apareça como portador de diferença
interna. As relaçõ es ao outro podem nã o ser projetivas apenas à condiçã o de
serem homó logas a relaçõ es nã o-idênticas a si mesmo. Por isto, é fundamental
que o sujeito reconheça a extensã o do cará ter negativo de sua estrutura
pulsional.
No entanto, nã o se trata aqui de reconhecer o potencial de agressividade,
de destruiçã o e de crueldade que sujeitos portariam em si devido à presença da
pulsã o de morte. Se assim fosse, apenas retornaríamos a uma versã o pulsional do
estado de natureza hobbesiano onde as relaçõ es entre indivíduos sã o marcados
por dinâ micas de agressividade, concorrência e crueldade. Em Lacan, a
negatividade da pulsã o de morte tem uma dimensã o produtiva de relaçõ es já que
ela permite a constituiçã o de relaçõ es para além da estrutura da pessoa, de seus
interesses e atributo. Pois, de fato, Lacan quer conservar a ideia da pulsã o como
retorno em direçã o à morte, mas é o pró prio conceito de “morte” que se
transforma. Ao invés da morte como retorno à origem inorgâ nica, morte pensada
a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente inanimada, Lacan
procura a possibilidade de satisfazer a pulsã o através de uma “morte simbó lica”
ou “segunda morte”. Freud falava de uma auto-destruiçã o da pessoa pró pria à
satisfaçã o da pulsã o de morte. Digamos que, para Lacan, a morte procurada pela
pulsã o é realmente a “auto-destruiçã o da pessoa”, mas à condiçã o de
entendermos por pessoa a identidade do sujeito no interior de um universo
simbó lico estruturado. Esta morte é pois o operador fenomenoló gico que nomeia
a suspensã o do regime simbó lico e fantasmá tico de produçã o de identidades. Por
isto, ela nã o descreve o destino de nossa presença física, mas uma transformaçã o
de ordem moral. Transformaçã o esta que permite aos sujeitos um modelo de
relaçã o à diferença com forte potencial transformador, pois pulsionalmente
fundado.
Desta forma, a psicaná lise, dirá Lacan ao final do seu seminá rio VII, nã o
pode procurar se colocar sob o signo da “demanda de felicidade”, até porque “a
felicidade se transformou em um fator da política”, já que ela pressupõ e alguma
forma de conciliaçã o entre o desejo e as possibilidade atuais de determinaçã o
social. No entanto, a psicaná lise se colocará sob o signo da escuta de um gozo a
respeito do qual o sujeito nã o sabe o que fazer. Uma escuta que deverá constituir
um movimento de “passagem ao limite”. Uma passagem ao limite, uma
aproximaçã o que Lacan descreverá da seguinte maneira:

No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicaná lise pode


acompanhar o paciente até o limite está tico do Tu és isso, onde se revela a
marca de seu destino mortal, mas nã o está em nosso poder de clínicos de
levá -lo a este momento no qual começa a verdadeira viagem160

Gozo e capitalismo

Este esquema se complexifica com os seminá rios XVI e XVII. Pois neles, Lacan
apresenta uma outra faceta política do conceito de gozo, a saber, sua funçã o no
interior de uma teoria da estrutura libidinal do capitalismo. A tese fundamental
de Lacan é de que a dinâ mica libidinal do capitalismo, seus modos de adesã o
subjetiva à s injunçõ es pró prias à racionalidade econô mica, nã o pode ser
compreendida a partir da temá tica dos processos de repressã o e de conformaçã o
disciplinar do desejo. Pois o capitalismo nunca poderia ser um modo de
existência baseado na simples renú ncia ao gozo. Na verdade, nã o há modo de
existência social que construa suas dinâ micas de adesã o através da simples
renú ncia. O capitalismo se funda no que Lacan chama de “espoliaçã o do gozo”, ou
seja, na inscriçã o de seu excesso no interior das dinâ micas de reproduçã o social:
“O que Marx denuncia na mais-valia é a espoliaçã o do gozo. E no entanto esta
mais-valia é o memorial do mais-gozar, seu equivalente do mais-gozar” 161. Há de
se entender entã o como tal espoliaçã o se dá , como este excesso anima o
capitalismo por dentro e para tanto Lacan se serve de homologias fundamentais
entre a crítica marxista da economia política e a crítica psicanalítica da economia
libidinal do capitalismo.
Há quatro pontos fundamentais na leitura feita por Lacan do capitalismo.
Primeiro, há o que podemos chamar de “espoliaçã o do gozo através da produçã o
do mais-gozar”. Segundo, temos a defesa lacaniana de uma forclusã o da castraçã o
pelo capitalismo. Terceiro, temos a compreensã o do capitalismo trazer uma nova
forma de dominaçã o e mestria vinculada à relaçã o saber/poder. Por fim, Lacan
160
idem, p. 100
161
LACAN, S XVII, p. 92
fará uma crítica a crença marxista do proletariado como sujeito revolucioná rio
por ver, no uso marxista do proletariado, a conservaçã o de uma relaçã o ao saber
que é fundamento da dominaçã o social sob o capitalismo.
Comecemos entã o com o problema do capitalismo como modo de
espoliaçã o do gozo. Há vá rias maneiras de discutir este ponto, mas eu gostaria de
sugerir uma ligada a uma mutaçã o no interior do capitalismo que ocorrerá , mais
ou menos, na mesma época que Lacan tematiza sua crítica da economia libidinal
do capitalismo. Tal mutaçã o está ligada à hegemonia do neoliberalismo. De certa
forma, a reflexã o lacaniana sobre o capitalismo já se inscreve no interior dos
modos de reproduçã o pró prios ao advento do neoliberalismo. Há sua maneira, as
colocaçõ es de Lacan acabam por se adaptar de forma privilegiada à configuraçã o
psíquica do neoliberalismo.
O neoliberalismo nã o é apenas um modo de regulaçã o dos sistemas de
trocas econô micas baseado na maximizaçã o da concorrência e do dito livre-
comércio. Ele é um regime de gestã o social e produçã o de formas de vida. Neste
sentido, toda reflexã o sobre o neoliberalismo talvez tenha de partir de um
paradoxo aparente. Poderíamos começar lembrando como o desmantelamento
neoliberal do sistema de seguridade social construído pelos ditos Estados de
Bem-estar a partir dos anos setenta provocou a liberaçã o de um processo de
expropriaçã o da mais-valia absoluta, ou seja, de acumulaçã o econô mica através
de uma expropriaçã o baseada na intensificaçã o dos regimes de trabalho e na
reduçã o dos salá rios. No entanto, tal processo ocorreu paradoxalmente a partir
do momento em que as sociedades capitalistas nã o podiam mais constituir sua
coesã o social e sua adesã o psicoló gica a tal processo através do recurso aos
modelos de internalizaçã o psíquica de uma ética do trabalho de moldes
weberianos; devido, entre outras coisas, ao desenvolvimento exponencial da
sociedade de consumo e suas exigências de mobilizaçã o total dos desejos, de
enunciaçã o integral dos desejos no interior da esfera da multiplicaçã o da
satisfaçã o mercantil. Neste momento, em que um novo ethos do capitalismo se
fazia necessá rio, o neoliberalismo conseguiu consolidá -lo através de uma certa
expropriaçã o direta da economia libidinal dos sujeitos.
A disciplina neoliberal nã o pode ser compreendida como simples
conjunto de condiçõ es para a internalizaçã o de dinâ micas repressivas capazes de
determinar sujeitos em individualidades rígidas e funcionalizadas, como vemos
nas “sançõ es psicoló gicas” da moralidade pró pria ao espírito protestante do
capitalismo, tal como descrito por Weber. Por serem repressivas, tais estruturas
disciplinares produziam subjetividades clivadas entre exigências de
conformaçã o social e uma “outra cena” na qual se alojava a potência
desreguladora do desejo. A uniformizaçã o disciplinar criava uma matriz de
conflito claramente presente na fratura entre princípio de realidade e desejo
recalcado cujo modelo de sofrimento psíquico era tã o claramente expresso nas
neuroses, tais como descritas por Freud. Mas regimes de gestã o social que se
queiram realmente eficazes nã o podem permitir clivagens desta natureza com a
consequente constituiçã o de um polo alternativo de motivaçõ es para o agir, que
encontrariam muitas vezes expressã o em atividades normalmente dissociadas
do universo compulsivo do trabalho alienado, atividades vistas por este como
improdutivas (como o sexo, a experiência amorosa, o fazer estético, etc.). Ele
deve expropriar todas as esferas que poderiam fornecer espaço para
experiências que nã o se deixam ler a partir da ló gica em operaçã o na esfera
econô mica.
Mas expropriar só é possível aqui através da absorçã o da pró pria
dinâ mica pulsional pela ló gica econô mica, ou seja, através de uma socializaçã o
das pulsõ es que nã o passe mais, de forma hegemô nica, pelas clivagens
organizadas sob a forma do recalque. Uma socializaçã o que nã o é simplesmente
retorno à temá tica da integraçã o das demandas particulares de satisfaçã o por
uma sociedade cada vez mais “hedonista”, topos clá ssico de uma crítica moral da
sociedade de consumo, mas que se refere à maneira com que a estrutura
polimó rfica e disruptiva da ordem das pulsõ es, sua potência de indeterminaçã o e
gozo é traduzida em um novo papel só cio-econô mico.
O neoliberalismo conseguiu resolver esta equaçã o através da constituiçã o
de um “ideal empresarial de si” como dispositivo disciplinar, cuja base psíquica
se encontra na noçã o lacaniana de uma mutaçã o da relaçã o entre supereu e
repressã o. Assim, se nos perguntarmos sobre como foi possível colocar em
marcha um processo de recentragem da acumulaçã o através da extraçã o da
mais-valia absoluta no momento em que nã o havia mais condiçõ es para apelar à
ética protestante do trabalho, responderemos que devemos estar atento a
maneira com que um certo “consentimento moral”162 a tal expropriaçã o, vindo
exatamente daqueles que dela mais sofrem, constitui-se graças ao impacto
psíquico da internalizaçã o de um “ideal empresarial de si”.
Normalmente, insistimos que este ideal empresarial de si foi o resultado
psíquico necessá rio da estratégia neoliberal de construir uma “formalizaçã o da
sociedade com base no modelo da empresa”163, o que permitiu à ló gica mercantil,
entre outras coisas, ser usada como tribunal econô mico contra o poder pú blico.
Pois é fundamental ao neoliberalismo “a extensã o e disseminaçã o dos valores do
mercado à política social e a todas as instituiçõ es”164. A generalizaçã o da forma-
empresa no interior do corpo social abriu as portas para os indivíduos se auto-
compreenderem como “empresá rios de si mesmos” que definem a racionalidade
de suas açõ es a partir da ló gica de investimentos e retorno de “capitais”165 e que
compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a
produçã o de “inteligência emocional”166 e otimizaçã o de suas competências
afetivas. Ela permitiu ainda a “racionalizaçã o empresarial do desejo”167,
fundamento normativo para a internalizaçã o de um trabalho de vigilâ ncia e
controle baseado na auto-avaliaçã o constante de si a partir de critérios derivados
do mundo da administraçã o de empresas. Esta retraduçã o das dimensõ es gerais
das relaçõ es inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de aná lise econô mica
baseada no “cá lculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface
entre governo e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais
enraizados psiquicamente.

162
Bem percebido, como veremos no pró ximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel;
Das recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
163
FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 222
164
BROWN, Wendy; Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 50
165
Fundamental para isto foi a consolidaçã o do uso da noçã o de “capital humano” tal como
podemos encontrar em BECKER, Gary; Human Capital: a theoretical and empirical analysis with a
special reference to education, University of Chicago Press, 1994
166
Cf. GOLEMAN, Daniel; Inteligência emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
167
DARDOT e LAVAL: La nouvelle raison do monde, op. cit, p. 440.
Notemos ainda que esta internalizaçã o de um ideal empresarial de si só
foi possível porque a pró pria empresa capitalista havia paulatinamente
modificado suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A
brutalidade do modelo taylorista de administraçã o de tempos e movimentos,
assim como a impessoalidade do modelo burocrá tico weberiano haviam
paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista” desde a aceitaçã o dos
trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos psicoló gicos de uma
engenharia motivacional na qual “cooperaçã o”, “comunicaçã o” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimizaçã o da
produtividade. Esta “humanizaçã o” da empresa capitalista, responsá vel pela
criaçã o de uma zona intermediá ria entre técnicas de gestã o e regimes de
intervençã o terapêutica, com um vocabulá rio entre a administraçã o e a
psicologia, permitiu uma mobilizaçã o afetiva no interior do mundo do trabalho
que levou à “fusã o progressiva dos repertó rios do mercado com as linguagens do
eu”168. As relaçõ es de trabalho foram “psicologizadas” para serem melhor
geridas, até chegar ao ponto em que as pró prias técnicas clínicas de intervençã o
terapêutica começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente, padrõ es
de avaliaçã o e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da
administraçã o de empresas. Sem tal movimento prévio, nã o teria sido possível ao
neoliberalismo reconstruir processos de socializaçã o, em todas as esferas sociais
de valores, através da internalizaçã o de um ideal empresarial de si.

O infinito ruim do capitalismo

Mas voltemos os olhos para a estrutura interna dos ideais empresariais de


si a fim de compreender melhor a natureza de suas disposiçõ es normativas. Este
é o ponto que mais nos interessa. Lembremos, neste sentido, como tais ideais se
baseiam na racionalizaçã o das açõ es a partir de uma dinâ mica de maximizaçã o
de performances e intensidades. Açõ es que visam à pura maximizaçã o de
performances devem se organizar de maneira similar a atividades econô micas
baseadas na extraçã o da mais-valia e, por consequência, nos processos de auto-
valorizaçã o circular do Capital. Este é o sentido fundamental da estratégia
lacaniana em insistir na homologia entre a forma pela qual objetos que causam o
desejo (objetos a) circulam socialmente no interior das sociedades capitalistas
contemporâ neas e o estatuto da mais-valia em Marx, criando com isto o sintagma
“mais-gozar” (plus-de-jouir).
Lacan se interessa pelo fato da mais-valia poder ser extraída a partir do
momento em que o trabalho social inscreve-se no mercado como trabalho
abstrato, mensurá vel como puro quantum de trabalho, permitindo com isto que
o capitalismo se sirva da dessimetria entre valor pago pelo tempo de trabalho e
valor dos objetos produzidos durante tal tempo quantificado. Assim, se Lacan
pode afirmar que “o que Marx denuncia na mais-valia é a espoliaçã o do gozo”, é
para lembrar que a renú ncia ao gozo produzida pela abstraçã o do tempo de
trabalho (tema batailleano por excelência que nos lembra como o tempo do gozo
e o tempo do trabalho nã o se confundem), esta “reduçã o do pró prio trabalhador
a nã o ser nada mais que valor” 169, ou seja, nã o ser mais que suporte do processo
de produçã o do valor, permite a produçã o de um mais-valor que inaugura a
168
Idem, p. 154
169
LACAN, Jacques; Séminaire XVII, Paris: Seuil, 1991, p. 93
circulaçã o incessante da auto-valorizaçã o do Capital. Circulaçã o do que “é
absolutamente urgente gastar. Se nã o se gasta, isto produz toda forma de
consequência”170. Assim, Lacan dirá que há uma renú ncia ao gozo através da
produçã o do mais-gozar:

O mais-gozar é funçã o da renú ncia ao gozo sob o efeito do discurso. É o


que fornece seu lugar ao objeto a. Como o mercado define como
mercadoria qualquer objeto que seja do trabalho humano, tal objeto porta
em si mesmo algo do mais-gozar171.

“Renú ncia ao gozo sob o efeito do discurso” porque o discurso produz


uma perda através da inscriçã o do sujeito no significante, em um discurso que
também é saber, um saber contá bil. A sujeiçã o ao significante nã o poderia ser
feita sem uma renú ncia ao gozo, o que vimos desde o seminá rio VII quando
Lacan definia das Ding como “o que padece do significante”. Pois se trata de
permitir ao desejo inscrever-se no interior de um sistema de representaçõ es e de
homeostase.
No entanto esta renú ncia ao gozo é integrada sob a forma do que
impulsiona processos cada vez mais extensivos de auto-valorizaçã o. Daí porque
ela se constitui como mais-gozar. Esta racionalidade pró pria a uma sociedade
organizada a partir da circulaçã o do que nã o tem outra funçã o a nã o ser se auto-
valorizar, que determina as açõ es dos sujeitos a partir da produçã o do valor,
precisa socializar o desejo levando-o a ser causado pela pura medida da
intensificação, pelo puro empuxo à ampliaçã o que estabelece os objetos de desejo
em um circuito incessante e superlativo chamado por Lacan de mais-gozar.
Assim é possível afirmar que “subjetivaçã o ‘contá bil’ e subjetivaçã o ‘financeira’
definem em ú ltima aná lise uma subjetivaçã o do excesso de si sobre si ou ainda
pela ultrapassagem indefinida de si”172. Isto a ponto de Lacan afirmar que a
estrutura da dominaçã o se modificaçã o quando: “a partir de certo dia, o mais-
gozar se conta, se contabiliza, se totaliza”173.
Esta estrutura psíquica, cujo desejo é causado pela pura medida da
intensificaçã o, pede uma economia psíquica nã o mais assentada em um supereu
repressivo, mas em um supereu que eleva o gozo à condiçã o de imperativo
transcendente, impossível de ser encarnado sem destruir sua pró pria
encarnaçã o, o que Lacan compreendeu muito bem através de sua teoria do
supereu como injunçã o contínua ao gozo.
Como se trata, porém, de uma ló gica contá bil e financeira, em momento
algum o excesso deve colocar em questã o a normatividade interna do processo
capitalista de acumulaçã o e desempenho. Em momento algum o excesso implica
quebra das ilusõ es de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em
suas relaçõ es por propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que nã o se
transforma em modificaçã o qualitativa. Sob a forma-empresa, ao contrá rio, todo
excesso é financeiramente codificá vel, é confirmaçã o do có digo previamente
definido, de um saber de inscriçã o e produçã o. Como diria Hegel a respeito de
outros fenô menos, esse excesso é marca de uma má infinitude, pois nã o passa ao

170
Idem, p. 19
171
LACAN, SXVI, p. 19
172
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
173
LACAN, SXVII, p. 207
infinito verdadeiro do que muda sua pró pria forma de determinaçã o a partir de
si, do que é infinito por realizar-se produzindo paradoxalmente a exceçã o de si.
Uma exceçã o que, ao ser integrada, modifica processualmente a estrutura da
totalidade anteriormente pressuposta. Antes, ele é o infinito ruim do que é
sempre assombrado por um para além que nunca se encarna, para além cuja
ú nica funçã o é marcar a efetividade com o selo da inadequaçã o, do gosto amargo
do “ainda nã o”. A aná lise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois
infinitos. É neste ponto que talvez fique mais clara uma afirmaçã o centra de
Lacan como:

Ce qui distingue le discours du capitalisme est ceci ― la Verwerfung, le


rejet en dehors de tous les champs du symbolique […] le rejet de quoi ? De
la castration. Tout ordre, tout discours qui s’apparente du capitalisme
laisse de cô té ce que nous appellerons simplement les choses de l’amour

Uma leitura incorreta desta afirmaçã o nos levaria a crer que Lacan acusa
o capitalismo de desconhecer a impossibilidade de satisfaçã o do desejo, sua falta
constitutiva, isto através de uma proliferaçã o de meios de incitaçã o e prazeres.
Um pouco como se estivéssemos a ver mais uma versã o de uma crítica moral ao
pretenso hedonismo capitalista. No entanto, o erro aqui consiste em nã o
entender como a problemá tica da castraçã o funciona neste momento do
pensamento lacaniano. Veremos melhor este ponto na aula que vem, quando for
questã o de uma discussã o a respeito de elaboraçõ es importantes do Seminá rio
XX. Por enquanto, lembremos como Lacan afirma: “a castraçã o, que é o signo que
adorna a confissã o de que o gozo do Outro, do corpo do Outro só se promove da
infinitude”174. Ou seja, por mais contraintuitivo que isto possa parecer, a
castraçã o aparece aqui como condiçã o para a realizaçã o de certa infinitude
ligada ao gozo. Porque, neste contexto, a castraçã o indica que a relaçã o sexual
nã o pode se realizar como unidade, como afirmaçã o do primado do Um, como
constituiçã o de relaçõ es de complementaridade, de simetria, mas como relaçã o
em disjunçã o: ú nica forma, aos olhos de Lacan, para realizar uma relaçã o à
diferença que, como vimos desde o seminá rio VII, é um tó pico fundamental da
contribuiçã o ética da psicaná lise. Desta forma, a castraçã o deverá aparece como
o que impede a relaçã o sexual entre sujeitos que tiveram seus desejos inscritos
sob a forma do Falo se realizar. Mas esta é uma maneira, como veremos na aula
que vem, de abrir a experiência à possibilidade de um gozo outro.
Neste sentido, a afirmaçã o de que o capitalismo forclui a castraçã o
significa insistir que, em seu interior, nã o há espaço para uma infinitude que nã o
se dá sob a forma infinito ruim do mais-gozar e de sua maximizaçã o de
performances, da procura infinito ruim pelo mais-gozar. Uma infinitude que nos
lembra que sua atualizaçã o só pode se dar à condiçã o da dissoluçã o dos modos
de relaçã o como até agora se constituíram e até agora permitiram a reproduçã o
material de nossa vida social. Por isto que o capitalismo nada sabe sobre as
coisas do amor, pois como o erotismo em Bataille, o amor nã o saberia o que fazer
no interior de um infinito contá bil. Por outro lado, a ideia da forclusã o aqui apela
a uma noçã o de expulsã o da ordem simbó lica e de retorno no real sob as formas
mú ltiplas do delírio social. O gozo expulso da ordem simbó lica nã o é
simplesmente eliminado, ele retorna como o que parece a todo momento colocar
174
LACAN, Jacques; S XX, p. 13
tal ordem em cheque de fora, ela a assombra com todas as formas paranó icas do
delírio (perseguiçã o, grandeza, destruiçã o etc.).
Neste momento, podemos compreender o terceiro ponto da crítica de
Lacan ao capitalismo, a saber, a maneira com que ele constitui novas formas de
dominaçã o baseadas em uma predominâ ncia das relaçõ es de saber. Lacan insiste
em vá rios momentos que o capitalismo implica, principalmente, uma mudança
no lugar do saber que produz uma diferença estrutural entre aquilo que ele
chama de “mestre antigo” e o “mestre” no interior do discurso do capitalismo.
Sabemos como Lacan insiste que estaríamos atualmente diante de uma
modificaçã o estrutural nos regimes sociais de discurso. A principal destas
modificaçõ es diria respeito ao destino daquilo que ele entende por “discurso do
mestre”.
Lembremos como a teoria dos discursos de Lacan, nascida exatamente
apó s maio de 68, comporta quatro posiçõ es: a agente, o outro, a produçã o e a
verdade. A base de todos é o chamado discurso do mestre: S1/$  S2/a, onde
um agente na posiçã o de significante mestre interpela/fundamenta um outro
como cadeia significante produzindo um resto cuja verdade é o sujeito clivado.
Trata-se de um discurso do mestre porque ele procura formalizar o princípio do
poder. O poder se constitui através de um fundamento que mascara a divisã o do
sujeito e, no entanto, produz um objeto a que caíra sob a barra, ou seja, que nã o
aparecerá nunca na posiçã o de agente.
Em vá rios momentos, Lacan se serve da estrutura da dialética hegeliana
do senhor e do escravo para dar conta das relaçõ es internas a sua teoria dos
discursos. Por exemplo, ele descreverá a relaçã o entre o agente e o outro como
uma relaçã o entre senhor e escravo, na qual o senhor retira do escravo seu saber
ao se colocar como aquele para o qual o agir do escravo é dirigido, Lacan falará
em subtraçã o do saber do escravo pelo mestre. É só desta forma que S1 pode
aparecer como: “o Eu idêntico a si mesmo”, “isto precisamente com o qual se
constitui o S1 do imperativo puro”175. Ou seja, Lacan nã o concorda com a ideia de
que um saber é constituido a partir das vias do trabalho, como ele lê em Hegel:
“nó s estamos a vontade para colocar em duvida que o trabalho engendre no
horizonte um saber absoluto, nem mesmo saber algum”176. Esta é sua maneira de
afirmar que nã o será o sujeito do trabalho aquele que produzirá transformaçõ es
estruturais no interior da vida social.
No entanto, no lugar do agente, o capitalismo coloca o sujeito clivado, tal
como o discurso da histérica, este sujeito que parece denunciar a falta
constitutiva do discurso do poder. Ou seja, este sujeito que por ser clivado tem
alguma forma de saber sobre a castraçã o. Sujeito este, e esta é a grande diferença
do discurso do capitalista, que age diretamente sobre o que estava excluído,
abaixo da barra. Ele age sobre a verdade produzindo uma injunçã o de domínio
(S1). Por outro lado, no discurso do capitalista a verdade é o que tece relaçã o ao
saber (S2), mas esta relaçã o da verdade e do saber nã o significa uma
dessuposiçã o do saber, como deveria ocorrer no interior, por exemplo, de um
processo de liquidaçã o da transferência. O saber sobre a verdade, no capitalismo,
produz apenas um mais-gozar que, ao ligar-se diretamente à posiçã o do sujeito,
cria um sistema de circulaçã o incessante. Neste sentido, o discurso do capitalista
faz o que o discurso do mestre nã o é capaz de fazer, a saber, funcionar. Ele
175
LACAN, Jacques; S XVII, p. 70
176
idem, p. 90
funciona por integrar algo do que atravessa o sujeito em sua divisã o, por dar a
isto a forma de um mais-gozar completamente absorvido dentro do processo
normal de funcionamento da produçã o.

O impasse proletário

Neste ponto, podemos compreender melhor as razõ es pelas quais Lacan


recusa a saída marxista de ver, no proletariado, o sintoma capaz de romper com
o circuito capitalista de produçã o. Na verdade, a sociedade dos proletá rios,
lembra Lacan, produziu até agora produziu apenas uma mais brutal sociedade do
trabalho. Daí porque encontraremos afirmaçõ es como:

De maneira que é por estar despossuído de tudo – antes, é claro, da


propriedade comunal – que o proletá rio encontra-se qualificado de
despossuído, o que justifica tanto o empreendimento quanto o sucesso da
revoluçã o. Nã o é sensível que aquilo que lhe é restituído nã o é
forçosamente sua parte? Seu saber, a exploraçã o capitalista efetivamente
lhe frustra transformando-o em algo inú til. Mas o que lhe é devolvido em
uma forma de subversã o, é outra coisa – um saber de mestre. E é por isto
que ele apenas mudou de mestre177.

Afirmaçõ es desta natureza, e elas sã o vá rias em Lacan, demonstram sua


crítica à defesa marxista do proletariado como figura fundamental do sujeito
revolucioná rio. Sua tese é que o proletariado nã o pode aparecer como um sujeito
revolucioná rio, mas como a reiteraçã o de um forma de domínio. Daí porque
Lacan dirá , por exemplo, que Marx nã o teria impedido a manutençã o de um
discurso do mestre.
Na teoria marxista, ao menos na leitura de Lacan, o proletariado é o lugar
da constituiçã o de um saber sob a forma da consciência de classe. Mais do que
uma forma de açã o, o proletariado representaria a possibilidade da constituiçã o
de um saber. Mas, para Lacan, este saber é forma de participaçã o em uma
estrutura de domínio que representa a pró pria perda da possibilidade de
revoluçã o. Esta consciência pressupõ e uma forma de agência e deliberaçã o
autô noma, pressupõ e uma forma de domínio e de identidade, pressupõ e
principalmente uma forma de relaçã o aos objetos através do trabalho, como se o
trabalho pudesse produzir emancipaçã o, o que Lacan nega seguindo sua
primeira influência de Bataille. Esta é inclusive uma das razõ es principais de sua
recusa dos desdobramentos da dialética hegeliana do senhor e do escravo.
Desta forma, ao menos aos olhos de Lacan, o proletariado nã o implica a
emergência de outra figura do sujeito. Implica apenas o deslocamento dos
centros de poder de uma classe socioló gica a outra. O que Lacan procura é, como
vimos, um sujeito capaz de agir tendo em vista a dessuposiçã o do saber do Outro,
uma destituiçã o subjetiva que seja a verdadeira forma da despossessã o.

177
Idem, p. 34

Você também pode gostar