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O Ato Clínico e o Hospital Geral

Prof. Dr. Paulo Mattos

Gostaria de começar ressaltando que esta Jornada Interna de número III, pelo menos no que me cabe,
traz a marca de uma novidade. Em todas as anteriores, por uma questão de escolha, reservava-me o lugar
daquele que por último teria tempo para apresentar sua produção. Não foi difícil, em relação às vezes
passadas, que por conta de ser o último, poucos ouvidos acabavam sempre restando, e aqueles que ainda
resistiam já esboçavam sinais de que se algo por um entrava, por outro saía. Hoje, então, deixo aquele lugar
vago a ser ocupado por qualquer um, na esperança de que outra sorte venha a encontrar.

De forma sistemática, então, preferi, garantida a presença de orelhas aprumadas ainda, confrontar-me
com algumas questões: Sobre o que falar? E para quem falo?

O mal entendido que habita o humano se me impõe e tomo como ponto de início desta reflexão o
descarte do questionamento a respeito de para quem falo, já que quem fala, fala sempre para um outro que
falta. Assim, do ato de minha exclusão brota, inexoravelmente, a solidão que faz atualizar sempre uma mesma
demanda, em última instância demanda eterna de amor, que quando atendida , no possível, persiste e insiste,
definindo a tragédia humana segundo a qual aquilo que se pede é precisamente o que sempre vai faltar. Logo,
entre o céu e o inferno, ponto obscuro de nossa morada, é também o lugar de nossa morte .

Isto posto, um embaraçoso resto é o que me fica: O que tenho para falar? Proposto de um confronto
intrincado do sujeito com aquilo que diz, por estar sempre prestes a fazer um recuo na direção da busca no
outro de uma palavra de aceite. De um mal entender todos nós padecemos. Se todo entendimento é da ordem
do impossível, fica em questão o confronto de cada um com as próprias palavras que o arrebatam ou o
arrebentam. Vivendo sua morte anunciada é pela boca que o homem sempre morre um pouco, mesmo que
fechada ela esteja aí disposta simplesmente a repetir as palavras alheias. Por isso, longe de buscar parcerias
imaginárias, opto pela morte de uma certa maneira, com a exata certeza de que o que digo não interessa a
ninguém, a não ser a contabilidade do meu desejo, o que paradoxalmente me transporta não para dentro de
mim mesmo, mas para o próprio âmago da Psicanálise e assim talvez possa realizar um exercício conseqüente
frente ao desencontro com alguns.

Fica então estabelecido que meu rumo, seguindo pelas águas da Psicanálise, vem a desembocar no
estuário turvo do contexto hospitalar, criando exigências bastante específicas. A dimensão ética e o adequado
mapeamento metodológico tornam-se parâmetros de balizamento mais do que necessários neste percurso, pois
é de um posicionamento ético que se funda o surgimento do sujeito como questão no nosso espaço de
trabalho. Além disso, por não nos restringirmos às possibilidades efetivas de transmissão unicamente, a
experiência da análise e da supervisão, apesar de considerá-las pólos privilegiados para o avanço do trabalho
clínico, é que se torna imperativo precisarmos do ponto de vista formal, a natureza daquilo que pretendemos
produzir com e na nossa práxis.

Tomo, então, como tema para reflexão dos trabalhos apresentados ao longo do semestre que aqui se
encerra, com a expectativa de poder precisar algumas contribuições que procurei lançar em momentos
anteriores.

Em primeiro lugar, não é de menos dizer que o desenvolvimento do nosso trabalho pelo que assinalei
acima, está submetido a uma exigência prévia que coloca em destaque o problema da avaliação clínica do
paciente e da situação de internação. Somente a partir daí é que se pode construir ou não condições para se
produzir um atendimento adequado. Analisar as condições de possibilidade do campo de trabalho com cada
paciente é no mínimo estar atento à indicação de Lacan no sentido de sublinhar que o desejo do analista deve
ser pelo menos prevenido. A intromissão do desejo pessoal destrata pelo simples aparecimento de um sujeito
no lugar em que deve advir um objeto peculiar por fazer acionar um dispositivo de trabalho nos sujeitos. Há
um fato, nesta linha de desenvolvimento, que parece ser freqüentemente esquecido em nossa prática cotidiana,
a saber, não podemos tratar de quem quer que seja a sua revelia. Tal se justifica, exatamente, pela exigência
de comprometimento em nos recusarmos a ocupar a posição psiquiátrica.

Em análise, durante as entrevistas preliminares, tem-se o espaço necessário para se avaliar a verdadeira
demanda do paciente na direção de seu tratamento. Logo de pronto, o sujeito deixa indicativo de sua entrada
em questão na exata medida em que se explicita que alguma reflexão prévia já se acha em curso,
possibilitando-o, inclusive, a caminhar em nossa direção. Em hospital geral, por não se produzir fielmente as
situações observadas em consultório e, principalmente, tendo em vista que nosso aparecimento frente ao
paciente pode ocorrer de forma prévia ao estabelecimento desta auto-avaliação, nossas condições de
possibilidade de trabalho merecem detalhamento pormenorizado. Com esta intenção, arriscaria dizer que o
nosso trabalho inicial, se quisermos estabelecer um contraponto com o tratamento psicanalítico, demandaria,
dadas as suas próprias vicissitudes, a realização do que poderia denominar entrevistas prévias às entrevistas
preliminares, com a intenção precisa de oferecer ao sujeito espaço de isenção para o aparecimento e/ou
construção de tais avaliações, sem as quais nosso trabalho poderia ser considerado puro psicologismo. Por
isto, o contexto dos primeiros contatos com o paciente merece atenção redobrada por parte de quem atende a
leitura pormenorizada por parte daquele que impressiona. Cabe não perder de vista que não se está dentro do
hospital, buscando a realização de aspirações analíticas utópicas que não têm lugar nem dentro do próprio
consultório privado. Pelo fato de estarmos envolvidos com pacientes que não nos procuraram com o intuito de
buscar a legitimação de suas auto-avaliações prévias, enfrentamos um obstáculo adicional comparativamente
à própria Psicanálise e procuramos enfrentá-lo explicitando as condições que permitiriam contorná-lo. É
possível concluir, a partir do referencial psicanalítico, ser impossível tratar de alguém quando uma demanda
específica não esteja estabelecida. Mesmo ao se contar de pronto com uma auto-avaliação prévia, seguida de
uma intenção em se tornar analisante, a tarefa da análise não deve ser empreendida sem um cálculo da
verdadeira demanda que se apresenta e de suas conseqüências. Neste plano, a hipótese diagnóstica serve para
questionar o limite onde se realiza nosso trabalho, sendo este lugar estabelecido exatamente no limite do
possível .

Seguindo em frente e procurando estabelecer uma restrita e precisa relação com o trabalho realizado
em análise, visando depurar o entendimento de nossas questões, poderíamos dizer que, no plano da
Psicanálise as entrevistas preliminares objetivam conclusão operativa a respeito da estrutura do sujeito que
sustenta o pedido de análise. Configurando nosso trabalho como da ordem de "Entrevistas Prévias", desde o
início objetivaríamos saber se há em curso, por parte do paciente, alguma auto-avaliação que justifique um
movimento no paciente para além dos limites da pura queixa-lamentação e viabilize condições para o
despontar de um sujeito, condição esta considerada precípua para nos situarmos sustentando uma escuta que
não seja meramente factual. Pedir para o paciente contar sua história envolve uma condução da entrevista,
contudo isto nos serve somente de mote para constatarmos se há ou não em andamento uma auto-avaliação
estabelecida de forma silenciosa pelo paciente em seu leito. Fatos sobre fatos, de pouco ou de quase nada
valem. Se o sujeito não tem sua morada no campo da linguagem, o interesse da escuta, não desprezando fatos,
se situa em um mais além. O que propicia a avaliação diagnóstica e a posição em que o sujeito aparece em
relação aos seus ditos. O dizer do sujeito se acha implicado com os ditos, mas não são redutíveis a eles. O
sujeito da enunciação se refere "à posição que aquele que enuncia toma em relação ao enunciado" (Miller,
1988). Quando se diz qualquer coisa, de pronto fica em questão se aquilo que é dito é tomado pelo próprio
sujeito como representando uma verdade ou uma mentira, sendo esta a forma mínima possível assumida pelas
infinitas modalizações em relação aos ditos. O sujeito do Inconsciente é a própria posição em que o sujeito se
situa ao sustentar seus ditos, sem contudo poder se assenhorar do lugar que ocupa. Desta forma, na escuta de
uma história os fatos ensejam a oportunidade de se começar a falar, principalmente quando a busca da
legitimação de uma auto-avaliação ainda não é o vetor que dá sustentação aos ditos. Não cabe, portanto,
esperar que (dos fatos) possa advir algo além de situações com o caráter mais ou menos interessante
dependendo do gosto de quem os ouve.

Miller (1988) nos lembra "não há uma só frase, um só discurso, uma única conversa que não traga a
marca da posição do sujeito". Contudo, cabe sublinhar que, reconhecendo a pertinência da afirmação, isto não
é suficiente para se colocar em andamento o próprio dispositivo psicanalítico, quer em sua vertente
metodológica, quer, principalmente em termos da sua dimensão ética. O tratamento analítico é constituído na
exata medida em que há um desejo que dirige o sujeito na direção do confronto com suas próprias palavras
sob a mediatização imprescindível de um outro que prime em tornar sua tolice como instrumento de trabalho,
entretanto sem fazer do fato de ser tolo seu oficio. É oportuno dizer que, no caso, para se ser tolo no sentido
analítico é necessário, não sendo analfabeto, conseguir ler o discurso de trás para frente, e abrir mão da
esperteza narcísica da leitura no sentido usual que busca sucessivas antecipações de um dito que ainda está
por vir. Somente ao se ler da direita para a esquerda, na contramão do fluxo em que se transita no cotidiano, é
que se pode deliberar sobre o que vale a pena ser recortado para uso ou para o descarte.
Mesmo quando se sabe que a via régia para se construir esta posição de trabalho se define no exato limite das
possibilidades abertas pelo trabalho analítico ao qual, aquele que atende, teria se submetido, por livre e crucial
questão, há perspectivas importantes do ponto de vista teórico-clínico que merecem explicitação
pormenorizada, principalmente quando nosso desejo escoa em direção ao hospital geral, conforme tentamos
desenvolver.

As implicações do trabalho no contexto em que abordamos, mesmo tendo que ocorrer sob a égide da
ignorância necessária, não se estabelecem nem se confundem com a ausência de qualquer direção. O
aparecimento do sujeito, como sendo aquele que toma posições em relação aos próprios ditos sem que saiba,
também se configura como algo a ser explorado em nossa prática e por isso vale re-afirmar que seu
surgimento se acha dependente da posição daquele que atende. Sob o mesmo ângulo, é nossa função tornar
produtiva a ignorância que inaugura a chance do paciente saber que do que ele mesmo diz, e que efetivamente
conta por representar sua posição subjetiva, que quase nada sabe. Desta maneira, em qualquer tratamento,
desde que as condições sejam propícias, fazer aparecer a pluralidade dos lugares que perfazem o espaço
subjetivo do sujeito é repor questões passíveis de alguma resposta convicta. Quem fala através de suas
próprias palavras? Em que palavras, percorrendo o território da ignorância, seu desejo faz aposta? São
questões que, mesmo não se situando em um primeiro plano no desenvolvimento de nossas práticas, em
relação a elas é que temos a intenção de produzir algo, pequeno que seja, mas com alguma consistência
passível de gerar novos enfrentamentos pela vida, algo talvez da ordem da introdução de um relativismo,
contanto que se guarde a medida de que nem tudo vale, criado a partir da decisão ética de tomar como sujeito
a própria descontinuidade inerente a todo discurso. Donde se conclui que quem escuta delibera se estará em
jogo um sujeito, uma pessoa, um indivíduo ou qualquer coisa. Por decisão atrelada a uma ética, lança-se uma
posição de tratamento e ao sujeito cabe decidir se pretende perder para no seu percurso experimentar o peso
das palavras, podendo, quem sabe, pagar menos com a carne a partir daí, pelo fato de melhor dizer o que quer.
O efeito de retificação subjetiva faz com que o sujeito decida pela perda da possibilidade de fazer do outro o
objeto de suas lamentações, criando condições para se deparar com suas próprias implicações.

Cabe, para finalizar, resgatar uma frase de Miller (1988) que deve servir para que sejamos mais
avisados:

"O perigo de uma análise, verdadeira, isto é, na direção freudiana formalizada por Lacan, consiste em
aceitar abrir de novo essa falta-a-ser, que talvez tenha sido tapada por uma causa mais ou menos boa".

E dai concluímos:
Se por si só a análise demanda uma ponderação cuidadosa no contexto em que foi criada, fica no ar
respondermos se tal ponderação no contexto do nosso trabalho não estaria a espera de ser produzida
formalmente, dado os riscos evidentes.

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