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Sumário
Clarabóia ..................................................................................................................... 8
Só me chame de Sr. Farias ........................................................................................ 18
Relâmpago................................................................................................................. 27
Démodé, Delivery, Dresscode ................................................................................... 38
Sermão I .................................................................................................................... 50
Síntese ....................................................................................................................... 51
Panorama .................................................................................................................. 53
Sermão II ................................................................................................................... 54
Em geral..................................................................................................................... 55
Sagrado...................................................................................................................... 56
Sem querer ................................................................................................................ 57
Sermão III .................................................................................................................. 58
Síncope ...................................................................................................................... 59
Do todo para as partes .............................................................................................. 67
Gergelim ................................................................................................................... 75
- com Melina Gonçalves

Credo ......................................................................................................................... 83
#Publi......................................................................................................................... 84
Jantar ......................................................................................................................... 85
Transportada ............................................................................................................. 86
Hora de dormir .......................................................................................................... 87
Correção .................................................................................................................... 88
Spoiler ....................................................................................................................... 89
Indignado................................................................................................................... 90
Carga Humana ........................................................................................................... 91
Compra-se esteiras elétricas ..................................................................................... 96

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‘’Rosas,
é fácil pintar as flores,
difíceis são as folhas.’’
-
Masaoka Shiki

‘’O pior naufrágio é não partir.’’


-
Amyr Klink

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Aos que olham para o que está errado, subvertem as ordens e se recusam
a reconhecer os papéis, vão as palavras dessas histórias.

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Clarabóia
Uma vez tirada a foto, o momento é capturado. A criança
continua gritando no retrato, o goleiro permanece no ar, o recém
faixa preta é congelado no momento em que toca o tijolo, só
quebrando-os de fato na vida real. A imagem é só um momento
sequestrado, limitada em alcance e contexto, insuficiente
enquanto abandonada.
A clarabóia sobrevoava o quarto, e ela, na cama, dormia
num dia de calor insuportável. Seu colchão só faltava pingar,
encharcado, era o quarto mais quente de Belo Horizonte naquele
momento, com toda a certeza de quem expõe dados que não
existem. Até para isso existia aquela abertura no teto (não para
expor dados que não existem, para refrescar o cômodo),
excentricamente disposta, o que chamamos no país de ‘’coisa de
rico’’. E ricos eram. Aquela região da cidade onde as imagens de
satélite mostram casas com piscinas clarinhas e telhados
laranjíssimos.
- Ah! – acordou, assustada.
Sentou-se, o quarto com a cama no meio, coisas nas
paredes, escrivaninha e abajur de peixinhos iluminando. Bettas,
palhaços e dourados iam e vinham dentro da água simulada,
projetando o azul do mar para quadros de filmes antigos. Ia
também para o alto, a luz, onde a clarabóia e sua tímida abertura
permitiam que o ar circulasse.
Não permaneceu na onda pós-despertar por muito tempo, já
estava situada, encarando coisas e condenando a temperatura. A
capital de Minas Gerais não costumava ser assim nas madrugadas,
quanto mais em seu bairro, aqueles lugares onde há mais

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preocupação com uma súbita chuva de granizo furando Civics do
que com balas perdidas atravessando pessoas.
Saiu da cama e viu no aquário: 4:02. Sabia que não ia
conseguir dormir, pois já era dificuldade o suficiente deitar às
vinte e duas, conseguir dormir à meia-noite, imagine então re-
dormir, às quatro? Abriu a porta e desceu as escadas, a família
roncava em algum dos quartos.
A cozinha, espaçosa e repleta de inox, iluminou-se com sua
presença (não metaforicamente falando, mas pelo detector de
movimento). Encostou-se na bancada, aquele lugar grande e
arrumado por quaisquer mãos que não fossem as suas, ou de seus
pais, ou de pessoas que morassem naquele bairro, ou perto
daquele bairro. Agarrou uma garrafa de café já velho,
provavelmente frio.
- Hm.
Com a xícara na mão, despejou o líquido escuro, tão
açucarado, sem fumaça nenhuma. Teria um gosto horrível, e, sem
ligar, levou à boca.
Engasgou-se de tão quente. Quase gritou.
- MAS QUE...
Num suspiro, colocou o copo na pia. Não entendia nada.
Ainda com a língua de fora, queimada, estendeu a mão e despejou
a bebida por cima dos dedos. Estava fria.
- Eu devo estar ficando doida – fazia sentido, de certa
forma, pois conversava sozinha.
O próximo gole já foi de um café morno, nada como o
vulcão cuspindo lava de instantes atrás. Resolveu que ficaria com
ele e subiu de volta ao quarto.
A casa - como seus pais fizeram por toda a vida - não lhe
deixava sentir medo. Acendia luzes ao pisar dos pés, os cômodos
distantes se iluminavam parcialmente e mesmo eles não

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levantavam vultos ou distorciam os sentidos pela visão periférica.
Uma casa segura, além dos muros e câmeras, uma casa segura até
para os medos mais primitivos do ser humano.
Lá no quarto, o ranger do piso de madeira lhe recebeu. As
luzes do aquário agora estavam desligadas, diferente do celular,
que se mantinha com a tela brilhando em direção ao teto, deitado
na cama. Parou por lá, só então se perguntou por que diabos bebia
café numa madrugada de tanto calor.
Tcc!
O aquário ligou mais uma vez, nesse barulho de interruptor
sendo pressionado. O coração quase subiu para a garganta, então
segurou o celular e mirou a luz em direção do objeto. Outra coisa
que não fazia sentido, já que, ligado, o aquário possuía uma luz
para chamar de sua.
Luz...
- Ué – só então se lembrou que sempre dormia de luz
acesa.
Voltou a luz para a parede, o dispositivo da lâmpada
automática estava corretamente pressionado. Ligou e desligou,
nada de voltar a funcionar.
- Será que isso queimou? Não é possí...
O aquário e o celular perderam seu brilho imediatamente.
A clarabóia, por sua vez, se tornou uma grande bola de luz azul,
disparando um canhão que se construía e dissipava em milésimos
de segundo, repetidas vezes. Sentiu o corpo perdendo o controle,
aí foi puxada para o teto da forma menos confortável possível.
Seu corpo se chocou com o teto, sem fazer barulho, mas fazendo
doer cada músculo do corpo. Desceu mais uma vez,
acompanhando a intensidade do feixe de luz, aí subiu de novo,
rolando no teto até bater a cabeça na clarabóia. Gritou de dor, ia e
vinha numa violência horrenda, consumida pela luz azul que lhe
engolia. Tão forte foi puxada que a janela se quebrou. Saiu com o

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rosto cortado e voou para o céu, onde uma sombra maior que sua
casa lhe esperava.
Ouviu o barulho de algo se abrindo, como uma porta
automática, aí a força que lhe carregava desapareceu
completamente. Abriu os olhos com dificuldade, mas o corpo –
apesar da dor – não estava imóvel. Se levantou, sem gritar,
perguntar o que estava acontecendo ou qualquer reação de pânico
parecida. Era tão irreal que a mente ainda não havia processado.
A nave era repleta da mesma luz azul de antes, agora
menos ameaçadora, se contentando a, apenas, iluminar. Nada de
puxar e lançar pessoas contra obstáculos. Com ela, viu que estava
em um lugar completamente reto, o teto e as paredes sem
protuberâncias, vazio de móveis. Não conseguia definir ao certo a
cor do lugar, parecia algo muito branco, mas não tinha certeza se
era. Podia ser cinza. Podia ser prata. A mesma cor das grades que
lhe rodeavam.
Primeiro ouviu o barulho dos passos, movimentos
extremamente leves que não passavam de um som semelhante a
um plástico fino sendo apertado na mão. Depois viu as duas
criaturas, seres de três metros de altura, as pernas e os braços
finos, longos, se movimentando para lá e para cá como se
estivessem debaixo d’água. O rosto era sereno, humanóide, um
sorriso quase imperceptível e sem movimento, com olhos que
piscavam calmamente. Os cabelos loiros, quase brancos, batendo
nos ombros.
Ela gritou.
- NÃO! – se afastou para trás, bateu nas grades. – ME
TIREM DAQUI!
O desespero consumiu seus pilares, mas não importava
para onde ia, sempre encontrava grades. As criaturas paradas,
seres idênticos, observavam seu desespero. Quem são vocês? –
ela gritava, repetidas vezes – correndo como um animal

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desesperado, desnorteado, um filhote de gato que acaba de chegar
à casa do dono.
Aí eles jogaram as fotos para dentro.
As imagens voaram, várias delas, lançadas por dedos finos
de homens gigantes. Suas roupas brancas tremulando, tudo
parecia estar em câmera lenta. Cessou o surto.
Ainda que não gritasse e clamasse por socorro, caminhou
com medo até as fotografias. Se abaixou. Parecia que sabia
exatamente qual delas devia pegar.
- Mas...
Lá estava a foto de quem fora o seu avô, um homem duro,
de semblante fechado e cabelos brancos. No colo, ela sorria
gigante em contraste ao senhor, uma alegria de criança que se
perde em muitos de nós quando o tempo passa. Era sempre essa a
sensação de olhar fotos antigas, essa coisa de que algo se perdeu
em algum momento, seja a forma mais ingênua de enxergar o
mundo ou a forma como amava seus parentes antes de atingir
idades mais avançadas.
- O que significa isso? – disse, tirando forças sabe Deus de
onde.
Não responderam, continuaram parados lhe encarando,
naqueles sorrisos paradoxais e sombras projetadas pela luz azul.
Um deles, então, se movimentou. O dedo emitiu um brilho
crescente. Tudo ficou branco.
Após o flash, a moça abriu os olhos em um quintal. Estava
ao lado de uma árvore, mirou a esquerda, a direita, e as vistas
embaçadas normalizaram.
- V... Vovô?
De lá, viu o seu avô sentado numa cadeira, e ela, enquanto
criança, inquieta em seu colo.
Click – tiraram a foto.

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- E então eu falei pra ela parar de mexer nos meus lápis!
- Falou? – respondeu o velho.
- Falei! Eu já tinha emprestado outra vez, sabe? Mas ela
quebrou o prateado! O prateado, vovô!
- O prateado é bem boni...
- O MAIS BONITO!
Ela sorriu. Veio caminhando, sem entender, tomada pelo
sentimento de nostalgia, consumida pela saudade. Amava muito
aquele homem difícil, e não era a única, sofreu muito quando um
ataque do coração lhe levou. Dono de multinacional, nome grande
da indústria de roupas, não aguentou a vida que construíra para si.
Viu a si mesma indo brincar, se jogando num escorregador
e conversando com outras crianças, como se fosse sua líder. Coisa
de criança rica. Encarou o avô por um momento, aquele
presidente, aquele homem de cara fechada, sentia falta dele.
Talvez nunca havia conhecido alguém tão gentil e correto. Sua
mãe conversava com o pai bem ao lado, toda vestida com roupas
da época, cabelo da época, coisa que lhe fez rir bastante por
dentro e pouco com o corpo.
Ouviu um telefone tocar.
O flash cresceu dentro dos olhos mais uma vez, o cenário
da infância se consumiu e estava de volta à nave. Agora, os
homens gigantes lhe observavam frente a frente, separados pela
grade. Sequer sabia o que sentia.
- O... O que tá acontecendo?
Continuaram parados, gigantes em seus maxilares, imersos
pelos sorrisos estáticos.
- Por favor...
O corpo de um deles se moveu, os cabelos continuavam se
se mexendo da forma mais estranha possível. Parou o rosto em
frente ao dela, inclinado em um corpo que continuava firme,

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conseguiu ver as feições: o mesmo sorriso, uma pele tão lisa que
dava a impressão de impossibilidade de ser ferida. O que mais lhe
aterrorizava era a similaridade que possuía com os seres humanos,
mas ao mesmo tempo tão diferente, tão alheio a qualquer regra
que estivesse escrita. Se tivesse tentáculos, se não tivesse olhos,
cílios e boca, talvez sentisse uma vontade menor de pular de uma
janela. Poderia ser tudo, tudo, coisa de televisão e cinema, mas
era humanóide.
Olhou para mais uma foto que estava no chão. O flash
cresceu.
Agora ouvia gritos de ordem, milhares de pessoas
marchavam ao seu lado. A foto na mão, ao lado de outras pessoas,
ela erguia cartazes que evocavam a urgência de mudanças, o tanto
que as coisas estavam erradas, coisas do tipo. Estava de volta à
esse dia, seus colegas da faculdade gritando, todos imersos num
sentimento de conecção quase tão forte quanto um show.
- A GENTE NÃO ACEITA MAIS ISSO!
- NÃO-É-JUSTO! NÃO-É-JUSTO!
- VERGONHA!
Bem... Dá pra ver o quanto que aquele aumento na
mensalidade de medicina mexeu com a cabeça dos jovens. Viu a
si mesma.
A moça caminhava com coragem, gritava, suava, levantava
seu cartaz com um grande X no logo da faculdade. Tinha certeza
das coisas, naquela época, mas não agora quando se enxergava
em terceira pessoa. Parecia completamente ridícula.
O protesto acontecera há um mês.
Outro flash comeu seus olhos, caiu de bunda no chão com
o baque. Sentiu vontade, muita vontade de chorar, só que não
chorou, pois os sentimentos de terror se misturavam, formando
uma terceira substância que não fazia descer lágrimas dos olhos.

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Agora, a grade da nave estava aberta.
Levantou, os seres não guardavam mais seu cativeiro.
Caminhou pra fora, olhou para a esquerda, onde um corredor sem
saída estava. Olhou para a direita, onde, frente à uma porta, os
dois caminhavam em pernas gigantes.
- EI! – gritou.
Olharam por sobre o ombro e atravessaram a porta. Correu
atrás deles. O corredor sem protuberâncias lhe tornava
claustrofóbica, os pés escorregavam mas ela não caía, não fazia
sentido algum. Empurrou a porta com toda a força que guardava.
Ao bater a porta, encontrou o próximo cômodo, um lugar
repleto de janelas, em um dos últimos andares de um prédio. Via
a cidade de São Paulo pelo vidro.
- Não! Meu Deus! – a voz de seu avô.
Virou o rosto imediatamente, já jurando que as criaturas
estavam lhe agredindo. Mas como se agride algo que já se foi?
- Meu Deus, eu já não disse pra você não se comportar
assim com a imprensa? – viu o velho com a mão na cabeça,
vermelho, falando no telefone.
- Vovô...
- Você tem que saber falar com eles... Sim... Mas e daí?
Eles nunca vão conseguir provar, é só mais uma denúncia de
jornalzinho fuleiro, eles vão fazer o quê? Ir até a China pra provar
isso? Eu conheço o dono de lá, porra!
Gelou. Não se lembrava de ter ouvido o senhor falando
daquele jeito.
- Sim, e é isso. Eu chamo ele pra jantar, negocio e acabou.
O jogo é assim, quantos dos que conheço daqui, da China, da
Europa, de qualquer lugar que não fazem o mesmo? Nenhuma
denúncia de trabalho escravo sobrevive a um jantar.
- O... O que? – disse para si mesma.

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Não era assim que se lembrava dele, em todas as
memórias, em toda a construção da sua cabeça. Seu avô era o
homem dos presentes, das doações, de promover campanhas para
hospitais. Havia feito tantas coisas boas...
- É isso e é isso. Liga pro contato lá, orienta todas as
pessoas sobre como se comportarem e eu trato do resto. Vê se não
tem mais gente morrendo e descobre quem denunciou, manda
todo mundo pra rua se for preciso, ou pelo menos ameaça, tem
muita gente naquele país, contratamos outro em um segundo.
Pronto. Vou pra coletiva fazer cara de triste e injustiçado –
gargalhou. – Sim... Sim... Abraço!
Seu mundo caiu. Era uma imagem falsa, só podia ser uma
imagem fals...
- OI VOVÔ!
A criança chegou pela porta, tirando fotos da mesa, das
janelas e do próprio avô, com uma polaroid que ganhara mais
cedo. O velho ergueu a menina, enquanto ela, mais velha,
finalmente se lembrava da foto que estava em sua mão.
- Não...
Ela que se sentia suja, ela que teve pôneis e brinquedos e
video-games, e que ia em protestos e que visitava um responsável
por trabalho escravo sempre que o Dia de Finados chegava. Ela
que ainda devorava os frutos de crianças famintas e adultos
suicidas, do outro lado do mundo.
Logo que os seres reapareceram, atrás de seu avô, esticados
até o teto, correu em sua direção. Precisava descontar o ódio,
atacá-los por ter feito uma coisa tão horrível como tirá-la de sua
ignorância. Segurou um cinzeiro, e, ao puxá-lo, outro igual
continuou no mesmo lugar. Lançou contra os dois, inútil, pois
desaparecera no ar em pedaços menores que grãos de areia.
- POR QUÊ? – berrou, atacando com as mãos que
atravessavam os dois corpos – POR QUÊ?

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O último flash surgiu, então saltou da cama em desespero,
os peixes da luminária nadando e o quarto com a luz ligada.
Chorou. Chorou de gritar.
- O que foi!? – seus pais entraram no quarto.
- Eu não sei...
As lágrimas desciam, e não sabia de nada, não se lembrava
de nada, quão estranho era acordar e desabar em choro. Algo
novo. Algo que fazia pela primeira vez.
Na imensidão do espaço, numa nave que cortava a
escuridão, os seres se mantinham lado a lado, atentos à uma tela.
- Criaturas interessantes, sem dúvida – dizia um. –
Criaturas muito interessantes.

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Só me chame
de Sr. Farias
- Acena pro policial, filho!
O menino loiro balançou a mãozinha para o soldado,
mesmo sem saber exatamente por que fazer isso. Só lhe
mandaram fazer, então fez. Sujou-se com a casquinha de baunilha
e chocolate.
- E aí rapaz! – respondeu, de dentro da viatura, enquanto os
dois iam embora.
Soldado Silva havia matado o quarto na noite anterior (nem
todos necessariamente contabilizados oficialmente). Não era mais
como a primeira vez - coisa que roubara algumas noites de sono e
lhe fizera morrer de medo -, agora era mais estranho, uma
sensação de ter feito e de não ter feito.
Seu companheiro finalmente voltou da padaria, trazia
salgados e uma coca-cola de quinhentos ml.
- Eu não sei o que acontece, pra te dizer a verdade – disse
ele. – Acredita que me mandaram mensagem dizendo pra voltar
pra delegacia?
- Agora? – Silva ligou o carro.
- Sim. Querem que eu explique alguma coisa de ontem ou
coisa assim, sendo que nem lá eu estava.
- Que merda.

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- Deve ser a mensagem que eu mandei no telefone, algum
filha da puta se apavorou e mostrou, com certeza. Mas não é nada
suficiente, se for isso.
- Olha... Não vai envolver mais gente nisso, ein? Esse povo
é rancoroso como a desgraça.
- E eu entrei aqui ontem, Silva? – a boca cheia de
refrigerante.
- Só tô dizendo pra não emocionar.
- Não vou. Agora me deixa lá pra resolver isso logo.
Ligou a viatura e seguiu caminho, atravessaram diversas
ruas daquele bairro, subindo e descendo ladeiras tão difíceis que o
carro poderia se jogar para trás a qualquer momento. Era o início
da noite, quando pais gritam crianças para voltarem para dentro
de casa e pessoas cansadas confundem as chaves nos molhos.
Alguns caras jogavam bola na rua.
- Olha lá...
Como é de tradição, ao ver o carro passando, todos os oito
saíram da rua para deixá-lo passar. A coisa é aquilo que sabiam,
que a polícia também tinha tradições, mais sinistras e sem sentido
que a de correr para as calçadas. Consideraram que a delegacia
poderia esperar.
- PAREDE! PAREDE!
Um deles gritou isso, enquanto o outro vociferava
histericamente um ‘’Bora, bora, bora!’’. Os caras se assustaram,
mas o triste é que estavam acostumados, acontecia pelo menos
algumas vezes por ano. Sempre com eles, sempre da mesma
forma.
- Você tá com alguma coisa aí? – Silva chutou, abrindo as
pernas do rapaz de um lado para o outro.
- Não, não tô com nad...
- Maconha?

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- Nã...
- Cocaína?
- Eu não tô com nad...
- Se tiver com alguma coisa eu vou te meter o tapa, ein?
E não estava com nada. Os vizinhos observavam a geral
com zero sorrisos nos rostos enquanto os policiais gritavam.
Gritavam. Gritavam. Parecia que estavam fazendo aquilo pela
primeira vez, pois excluíam da mente que já conheciam aqueles
rapazes, aqueles caras sempre inocentes de qualquer acusação, em
todas as duras que deram. Podia-se entender que, mais que honrar
a instituição, a regra maior para aquela profissão parecia essa:
excluir da mente.
- Não tá tarde pra homem feito ficar jogando bola na rua? –
gritou o outro, como se não tivesse que chegar logo na delegacia.
- São seis horas, senhor.
- Tu acha que ele não tem relógio, caralho? – vociferou o
Silva.
Mais uma vez, nenhum deles tinha nada. Tinham mesmo
era outra coisa, outra bem específica que ensinavam na formação
dos policiais militares. Um porte que não dava para abandonar.
Um que Silva também tinha.
2
- CALA A BOCA!
Foi o grito que ouviu, anos atrás, rastejando no chão
enquanto o homem branco, de patente maior, lhe ensinava como
ser um soldado.
- Vocês tão fazendo isso aqui é pra proteger as pessoas, tão
me ouvindo? Se precisar dar tapa, vai dar. Se precisar jogar no
chão, vai jogar. Esse país não é propaganda da barbie, porra!
Àquela época, ainda pensava sobre como agredir bêbados e
civis seria uma forma de proteção. Àquela época ainda pensava.

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Poucos saíam da formação com a mesma cabeça, eram pessoas
com olhares diferentes no final, mais similares à apresentadores
de jornais de fim de tarde do que a adultos saudáveis. O trabalho,
ali, era anular a sensibilidade. Percebeu isso nos primeiros tapas,
percebeu nas primeiras punições, percebeu por último quando
ameaçado de prisão ou expulsão. Então parou de perceber. O tapa
não significava mais induzir dor ou humilhar, o tapa carregava
certa filosofia – como dizia o chefe -, quando se batia, se batia por
uma ideia. Uma ideia contra o corpo, que era menos que uma
ideia, apesar de carregá-la. ‘’O revólver é, primeiro, uma arma de
causar medo. não de matar. Ele mata se o medo não for
suficiente.’’ Essas palavras nunca saíram de sua cabeça, aquela
cabeça que, na verdade, só conheceria o que era medo naquele
dia.
3
Chegaram na delegacia cerca de dez minutos depois,
quando a mensagem bateu no telefone de seu parceiro. ‘’Não
precisamos mais de você aqui’’ – dizia.
- É sério isso?
- Parece que tem alguma coisa no Mangabeiras – disse ele.
– Briga de família ou coisa assim. Querem que a gente vá.
- Sem avisar no rádio?
- Pois é.
- Se é pra ir...
Acelerou e partiu para o tal bairro. Demorou muito para
chegar até lá, mais do que esperava, pois acontecia um festival no
centro e os desvios não estavam sendo suficientes. Subindo, as
casas ficando cada vez maiores, os prédios mais novos e as ruas
mais limpas, finalmente chegaram. Eram casas enormes sem
ninguém, rodeadas e próximas de uma serra. Provavelmente, os
donos eram empresários gigantes, traficantes de cocaína,
senadores ou tudo junto.

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Após atravessar uma casa guardada por homens armados,
chegaram a um portão que se abriu sozinho. Era lá. Os jardins
imensos, à guisa de Versalhes, findavam numa mansão
igualmente enorme.
- Boa noite! – gritou o Silva, com o carro parado.
Um porteiro saiu.
- O trem tá feio lá na frente – ele disse.
- Feio como?
- Feio gente gritando e tacando coisas.
- Hm... – olhou.
Acelerou a viatura e seguiu até a casa. Estacionou. Nenhum
barulho saía de lá, nem grito, nem porcelana quebrando, nem
nada. Fora do carro, bateram a campainha.
- Ô de cas...
A porta se abriu violentamente, onde um homem velho,
branco e de um metro e meio de altura lhes olhava de cara
fechada.
- O que vocês querem aqui? – praticamente gritou.
- Boa noite. Recebemos uma denúncia, estamos conferindo
se está tudo c...
- Quem deixou vocês entrarem? Eu vou matar aquele...
Olhou pra cara do velho.
- Você nos dá licença? – disse o Silva, levantando o pé para
entrar.
- Você? Não me venha com você. Só me chame de senhor
Farias.
Engoliu seco, os olhos fechados por um instante, o ar sendo
tomado.
- O senhor nos dá licença? Se houve denúncia, é nosso
dever conferir se está tudo certo.

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- Não tem nada aqui – conversava cuspindo.
Os dois soldados entraram logo, quase empurrando o
velho, que vinha atrás em passos de pernas excessivamente
abertas. Andaram de um lado para o outro, parecia tudo bem.
- Estava acontecendo uma briga aqui ou coisa parecida? –
disse o parceiro.
- Não. Eu já disse que não. Imagino que você não é surdo.
- Não senhor.
Uma raiva cresceu dentro do Silva, mas era estranho,
porque ao mesmo tempo que crescia, rapidamente se dissipava. A
voz do homem – de homens como aquele - soava parecida com a
de seus superiores, por algum motivo. A revolta sempre ia embora
religiosamente, e se calava como um cachorro recebendo um
espirro de água no rosto.
- Bem... Se diz que não há nada aqui, acreditamos no
senhor.
- Hm.
Viraram, os dois soldados, e caminharam de volta, passos
lentos de quem carrega uma arma na cintura. Acontece que havia
alguma coisa nos olhos daquele homem, esferas que não
piscavam, fixas e secas. Essa imagem fez Silva olhar para trás
num último momento, quando já estava na porta.
- Calma – disse ao parceiro, se virando.
Bem ali no fundo, naquela casa colossal, haviam coisas
pontudas e pequenas no chão. Cacos. Metade para dentro e
metade para fora de uma porta.
- Ainda não estão satisfeitos? – disse o Farias.
- Se o senhor permite... – e já saiu caminhando.
O piso lambeu os coturnos em dois, três, quatro, cinco
passos. O velho vinha atrás, meio nervoso, como se fosse dar voz
de prisão a qualquer instante.

23
- Eu não permito! – repetia, caminhando de pernas abertas -
Eu não permito!
Continuaram caminhando.
- Se o senhor não deve nada...
Chegando à porta, um bode decapitado dançava por cima
de um círculo, carregando a própria cabeça nas mãos. Silva e o
parceiro congelaram, só agora conseguiam ouvir o barulho dos
cascos batendo no chão. Saltava e saltava, sem nunca sair de lá.
Havia muito sangue em um canto do cômodo.
- DESGRAÇADOS!
O grito do velho precedeu os cinco tiros que atingiram o
parceiro, jatos de sangue saltaram para a parede. Silva acordou, e
antes que também fosse atingido, alvejou o quinto de sua vida,
reduzindo o velho rico a um corpo no chão. Gritou pelo nome de
seu amigo, se deitou para ajudá-lo. Já era tarde.
- Meu Deus... Meu Deus... - enquanto sussurrava,
aterrorizado, percebeu que o barulho dos cascos parara.
Agora o bode estava estático, com o corpo virado em sua
direção. Desesperou-se, arrastando o corpo do amigo em direção
da saída. Perdendo a visão do cômodo, percebeu o bode saindo do
círculo, forçou os músculos de tanto medo, arrastou mais rápido,
marcando sangue por todas as cerâmicas do chão.
- DESGRAÇADO! - A mão do velho segurou seu
tornozelo, se levantando. Silva afundou o rosto do homem com
um chute.
Já na porta, o vagaroso bode decapitado finalmente chegara
ao cômodo principal. Segurava sua própria cabeça na altura do
peito. Silva já abria a viatura quando a criatura atingiu a porta,
observando-o de cima, dizendo:

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- Você deve obedecer ao senhor Farias – a voz grossa,
mística, profunda como um abismo. Os olhos desconectados do
pescoço.
Silva estava lançado num limbo, um terremoto que acabara
com todas as noções de realidade que possuía. Tomado por
terrores, a mente quebrada, acelerou o carro e fugiu enquanto seu
amigo sangrava no banco do lado.
- Jesus...
O porteiro já havia fugido de medo dos tiros, deixou o
portão aberto, desesperado em sua corrida. Já havia visto coisas
na casa do Senador, coisas o bastante.
‘’O que eu faço? O que eu faço?’’ – repetia o Silva para si
mesmo - ‘’Tudo deu errado’’.
Como se o celular tivesse lido sua mente, a mensagem
chegou bem na hora. Leu pelo preview:
‘’E aí, já resolveu aquilo?’’
4
Não era assim que imaginava que ia acabar. Não era para o
parceiro morrer daquele jeito, afogado no próprio sangue no
banco da carona. Era de outro jeito. Lhe pegariam, seria preso,
usariam sua foto por toda a televisão.
- Não! – deu tapas na própria cabeça e virou o carro.
Acelerou como não devia, cortando carros e saindo da
cidade. Continuou se agredindo, implorando para que a dor física
lhe fizesse esquecer o que vira naquele dia e o que estava prestes
a fazer. Parou o carro em um lugar alto, esperou, percebeu que a
frequência de automóveis não passava de um a cada cinco
minutos.
- Merda – socou o volante e puxou a arma.

25
Saiu para fora e puxou o parceiro de dentro do carro. Pobre
parceiro que sabia demais num lugar que é melhor não saber de
nada, pobre Silva, que agora sabia mais ainda do que ele.
- Me... Ajuda... – dizia o homem, banhado em sangue, e foi
lançado no acostamento, arrastado pelo soldado para dentro do
mato.
Tinha pressa. Tinha muita pressa. Se pensasse mais um
pouco ia fazer o mesmo a si, ou deixar de fazer com o outro, o
que faria com que outros fizessem com os dois.
Puxou a arma. Executou o parceiro.
Correndo, deixando o homem morto para trás, Silva
continuava atacando a própria cabeça com socos e tapas. Nem
sabia o que havia visto ou por que fazia aquilo, além da própria
sobrevivência, não sabia de nada. Sujo de sangue, jogado na
viatura, respondeu no celular que fizera o que lhe mandaram
fazer. Parado no carro, esperou uma resposta que nunca veio.

26
Relâmpago
Irmã Arlinda colocou o terço no criado-mudo, fez o sinal
da cruz e segurou forte o que levava no pescoço. Pela janela,
aquela noite, aquela cidade que ela não reconhecia mais, tomada
pelas coisas mais deploráveis que a humanidade já construíra.
Não é que essas pessoas tenham saído de bueiros, Irmã Arlinda
sabia. Elas sempre estiveram lá, escondidas, reunidas entre si
bebendo cerveja artesanal e comendo petiscos nos quintais uns
dos outros, apenas aguardando que alguém virasse a chave. E
viraram. Agora era aquilo, aquelas ruas repletas dessa gente,
aquelas bandeiras e símbolos que criavam ânsia de vômito
instantaneamente em qualquer um que ainda guardasse o mínimo
de decência dentro de si.
- Vamos.
Pegou a mochila e seguiu, vestida com as roupas de
sempre, os trajes que se camuflavam com a noite.
- Irmã Arlinda. – lhe cumprimentaram.
- Irmã Bete.
- Irmã Arlinda – mais uma.
- Irmã Plínia – respondeu.
Estavam as três paradas em frente à porta. Todas com
mochilas nas costas, meio que tirando parte do peso que o hábito
carregava. Alguém, de longe, poderia facilmente dizer que eram
freiras indo acampar.
- Boa noite, senhoras.
A voz que saiu do outro cômodo era a de Irmã Clara, do
alto da segunda metade de sua vida, onde todas as outras
companheiras também estavam. Lhe deram a boa noite.

27
- Não estão esquecendo nada? – perguntou.
Fizeram que não com a cabeça.
- Então vamos - fizeram o sinal da cruz e saíram porta a
fora.
A rua era enfeitada por postes coloridos pela própria luz
amarela, as calçadas vazias e as árvores só não compartilhavam o
mesmo tom porque a noite era mais forte. Em fila, todas em seus
hábitos, caminhavam com um foco que evaporava do corpo, como
se tais vidas consagradas a Deus lhes protegessem de qualquer
mal. Um carro rasgou a rua, brilhando faróis vermelhos e gente
gritando dentro.
- É uma noite bonita – disse Irmã Bete.
- Com certeza, uma noite bonita.
Pegaram o ônibus, esse que chegou bem rápido e vazio,
como todos daquela região. O motorista estava de fones, ouvindo
uma música tão alta que chegava a fugir da própria privacidade.
Atravessaram as catracas.
Havia apenas uma pessoa lá dentro. Um moço careca,
branco, de jaqueta preta, mergulhado no próprio celular, como
todo mundo, como era essencial para tudo o que aconteceu ter se
efetivado. Falava alto:
- Tem que fazer isso mesmo! Isso... Isso... Não foi o que eu
te falei? Foi o que eu te falei! Sim, sim... Certo, a gente se fala
daqui a pouco – bip.
- Boa noite, moço.
O careca deu um pulo no próprio banco, meio que
assustado com a figura da freira que acabava de surgir, meio que
aterrorizado por existir vida fora de uma tela de sete polegadas.
- Boa noite...
- Você se importa se a gente fazer uma oração pra você?

28
Não era daquelas situações que simplesmente se pode
negar, pois ia ser bem deselegante. Essas coisas aconteciam
sempre no ônibus, afinal, apesar daquela não ser a religião
predominante nos transportes públicos, ou a doutrina que detia o
poder no momento.
- Claro.
- Que Deus abençoe o irmão...
...
- Felício.
- Felício – e continou a reza, até acabar e agradecer.
Feito isso, foram todas para o fundo, Irmã Arlinda digitava
no celular, letra a letra:
F E L Í C I O.
- Não é mesmo uma noite linda? – disse Irmã Plínia, na
janela. - As estrelas parecem bem organizadas, não tem uma
nuvemzinha tampando. Mas é lua nova, né? Se fosse lua cheia ia
ser mais bonita ainda.
O aplicativo continuava pesquisando.
- Sim, mas eu acho mais bonita aquela que fica na metade,
sabe? Como é mesmo o nome?
- Quarto minguante.
- Isso mesmo. Imagina.
- Acho que ia destoar – respondeu Irmã Bete.
- Mas é essa a razão mesmo. Um céu perfeito com uma
coisa nada a ver no meio.
Bip – Interrompeu.
- E aí?
O cara voltara a falar alto no celular.
- Confirmado.

29
Dita essa palavra, o semblante das freiras alterou-se
completamente, como se trocassem informações apenas pelos
olhos. Esperaram.
Alguns minutos depois, o homem puxou a corda e
aguardou o ônibus parar. As irmãs se levantaram, na outra porta, e
fizeram o mesmo. Quando ele desceu, elas desceram. Quando ele
tomou o caminho da direita, elas lhe seguiram.
Foram em silêncio, nem mesmo os passos (também pela
distância estratégica) conseguiam ser ouvidos. As mochilas já
pesavam nas costas das quatro.
Ele virou para uma rua vazia, de um único poste amarelo,
e, mesmo de lá, era possível ouvir:
- Já estou aqui. Você se atrasa toda vez, ein? – o barulho de
mensagem enviada logo depois – É impressionante, cara
irresponsável...
Parado no meio, cercado por muros, saltou para trás
quando viu os quatro vultos amarelados no lugar de onde tinha
vindo. Tentou enxergar direito, se recuperando.
- O senhor deixou cair isso no ônibus! – gritou Irmã Clara,
balançando algo que não podia ser visto de lá.
Bateu nos bolsos, não parecia faltar nada. Elas já vinham
em sua direção.
- O... O que eu deixei cair?
Os rostos das mulheres estavam sorridentes, tranquilos,
centrados, então o homem se acalmou consideravelmente. Freiras
fazem isso mesmo – pensava. A tal coisa que Irmã Clara
balançara nas sombras agora estava presa dentro da mão fechada.
Chegaram.
- Quando você desceu a escada – ela disse. – Caiu isso.
- Acho que as senhoras se enganaram, não parece faltar
nada.

30
- Não... – ela insistiu. – A gente não se enganou.
Repentinamente, Irmã Clara abriu os dedos e uma arma de
choque saltou para fora, se prendendo na barriga do homem sem
chances para qualquer reação. Os olhos esbugalharam, faltaram
estourar, então caminhou para trás, gritando de terror, esmagando
o próprio estômago.
- MAS QUE...
Irmã Plínia, Irmã Arlinda e Irmã Bete jogaram as mochilas
no chão, lhes abriram com toda a velocidade de quem já havia
feito aquilo antes. O homem tremia em pé, enquanto o choque
começava a perder a força.
Clara saiu do caminho, e, envolta por sombras que
pareciam acompanhar as vestimentas, Irmã Arlinda trazia um
mangual.
- NÃO! – gritou o homem.
A bola de ferro cravou-se no estômago do rapaz,
espirrando sangue para tudo quanto era lado. Depois foi puxada
para fora, jorrando mais ainda, deixando-o de joelhos,
completamente sem ar. Bete fez o mesmo, segurava uma lança
que acabara de ser encaixada. Sem ligar para os pedidos quase
inaudíveis de clêmencia, enfiou a arma na coxa direita, depois na
esquerda, e, então, começou um rodízio de ataques junto à
parceira. Só pararam quando a cabeça e as roupas do homem
estavam completamente cobertas de sangue. Cuspiram.
O rapaz se arrastava, puxando terra, tentando se levantar,
mas só conseguiu depois de várias tentativas frustradas.
Finalmente de joelhos, olhou para as três com terror nos olhos,
contemplando as armas pingando de sangue, os olhares de nojo.
Percebeu que faltava alguém.
- Agora – disse Clara.

31
A flecha de Irmã Plínia saiu do escuro diretamente para a
cabeça do homem. Antes que o morto batesse no chão, outra
estourou um dos olhos. Caiu.
- Escória – disse Plínia, cuspindo.
Clara desceu até o corpo e puxou a manga direita da
camisa. No pulso, tatuada, a suástica nazista confirmava o que já
haviam suspeitado. Era um deles. Como tantos eram naquele
tempo. Riscaram-na com a lança, guardaram as armas nas
mochilas e foram embora, deixando o nazista no chão. Realmente,
é uma noite bonita – disseram, e a pessoa que estava atrasada
finalmente chegou, encontrando o parceiro desfigurado no chão.
Lá longe, viu as quatro sombras virando a esquina.
2
Era a noite do outro dia.
- Você coloca muita manteiga na batata, por isso o purê
fica com esse gosto – disse Irmã Plínia.
- Mas se eu coloco pouca também fica estranho, parece só
batata – retrucou.
- Mas é só batata.
- Sim, você entendeu! Tô dizendo que não parece a...
- Textura?
- Isso, a textura.
- Mas eu não acho que a textura seja o problema – Irmã
Bete disse. – O problema é o sal.
- O SAL? Mas eu coloco sal nisso até cansar!
- Você cansa rápido...
- Cala a boca!
A conversa era agradável, comiam ao lado de janelas
grandes e fechadas, onde viam a luz dourada da rua colorindo o
vazio.

32
- Freiras matando nazistas – Irmã Clara riu, de repente. –
Se me dissessem isso vinte anos atrás...
- Olha... É de se impressionar, mas se me dissessem vinte
anos atrás que só quatro freiras agiriam contra esses monstros...
- Não culpe as Irmãs – disse Plínia. – Elas tem medo.
- Medo? Medo tem é quem está sendo arrastado pelo
pescoço agora, só por ser quem é – Arlinda continuou. – Esse
medo delas é tomar lado. Agora estão todas lá no tal retiro,
provavelmente rindo, achando que a gente tá varrendo e tirando
poeira.
- Não seja boba, imagina esse tanto de senhoras saíndo por
aí com espadas? – interviu Irmã Bete. - Pegariam a gente em uma
semana. Está bom só nós quatro, já cumpre o propósito.
- Bem... – Clara estava calma, para uma situação daquelas.
– É verdade que demorou bem mais que uma semana, mas
aparentemente nos pegaram.
- O que? Como assim?
- Vejam – e apontou para a janela.
Juntas, lá do alto, observaram cinco homens saindo de um
carro gigante. Tinha que ser gigante. Armas gigantes. Carros
gigantes. Músculos gigantes. Essa gente carrega uma estranha
obsessão – gigante - por coisas gigantes.
Os cinco patetas se organizaram lado a lado, sombras
iluminadas pelo ouro dos postes. Pareciam cinco palermas -
porque eram cinco palermas -, todos enfeitados com jaquetas
pretas, faixas com suásticas nos braços e burrice. Um deles tremia
as pernas.
- Então é isso, vieram até a gente – Plínia parecia
desinteressada.
- Vai dar muito trabalho limpar essa casa.
3

33
- SAIAM DAÍ, SUAS – xingou qualquer coisa, pareciam
animais. Nem uma única janela de vizinhos acendeu a luz.
- Elas não vão sair, cara.
- Atira na janela.
- Eu não, atira você.
- Eu não.
- Tô com frio.
- DÁ PRA PARAR? – gritou um deles – Elas mataram o
Felício! Vou quebrar essa porta e não quero nem saber.
Àquela altura, todas as janelas se fecharam. As luzes do
pequeno convento se apagaram, dando certeza aos invasores que
as irmãs haviam ouvido os gritos. O homem que acabara de gritar
segurou um taco de baseball e correu sozinho em direção da
porta. PÁ! PÁ! – Até o som de seus golpes era ridículo. Quando
os amigos chegaram, enfiou mais dois ataques na madeira, até
perceber finalmente que estava aberta o tempo todo.
- Ah – entraram.
O primeiro andar estava muito escuro, tentaram ligar as
luzes e tudo continuou igual, o que fez com que dois deles
ligassem as lanternas dos celulares.
- APAREÇAM, SUAS...
Um único chiado de rádio fora o bastante para calar a boca
do nazista. Assustados, enfiaram as luzes dos celulares para tudo
quando é lado, percebendo finalmente as caixinhas de som presas
nos cantos do teto.
- Salve rainha...
Era interessante como aquele lugar repleto de imagens
sacras, crucifixos e tudo o que pudesse afastar o mal, inspirava,
no fim, terror. Os santos encaravam os invasores olho no olho,
sofrendo, enquanto o Jesus crucificado, na parede, gigante, lhes
oprimia até caírem no chão.

34
- Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa,
salve...
- APAREÇAM! – e saíram correndo pelos cômodos,
enquanto a gravação, um coro, continuava.
- A vós bradamos os degradados filhos de Eva. A vós
suspiramos, gemendo e chorando nesse vale de lágrimas...
Enfiaram tacos em mesas, começaram a bagunçar tudo,
esperando que aparecessem para conter a confusão.
- Quebrem tudo! Quebrem tudo!
E as vozes continuavam tomando tudo.
- Eia, pois, advogada nossa: esses vossos olhos
misericordiosos a nós volvei...
Subiram para o segundo andar, continuaram quebrando
coisas, gritando, fazendo o diabo, agindo como agem.
- E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto
do vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce e sempre Virgem
Maria...
- Elas fugiram! Não tem ninguém aqui! – gritou um deles.
- Não é possível! – respondeu de volta.
- Rogai por nós Santa Mãe de Deus, para que sejamos
dignos das promessas do teu filho Jesus Cristo...
Como numa ventania de fim dos tempos, a porta da entrada
estourou em uma pancada, se fechando novamente.
- Amém.
O que estava no segundo andar correu para as escadas, os
que estavam em outros cômodos correram para as portas, jogaram
as luzes em direção do barulho, onde, cessada a oração, lá
estavam elas.
Eram quatro freiras com armas medievais, paradas em
frente à uma porta fechada, encaradas por cinco nazistas que
faziam muita, muita força para não borrarem as calças. Mal

35
iluminadas, nem os rostos apareciam, mas a lança, o arco, o
mangual, a espada e o hábito brilhavam. Apareceram como
fantasmas, mas não eram fantasmas, estavam longes de enfeitar
aquele mundo apenas como uma presença omissa, transparente.
Eis a competência dos que agem, eis a doutrina dos que se
levantam: contrariar até o mais sagrado de suas vidas para que um
mundo doente saiba que nunca se contaminará completamente.
O mais maluco dos cinco (o que era um feito e tanto)
correu imediatamente em direção delas. A flecha de Irmã Plínia
lhe atravessou a perna, caiu no chão rolando, bateu na parede.
Derrubado, foram cada uma para um.
- VOCÊS MATARAM ELE! – gritou o da escada.
- Menos seis – disse Irmã Clara.
O homem desceu ao seu encontro, tentando atingir o taco
na cabeça. Tropeçou nas próprias pernas, caiu todo torto,
distorcido e com o nariz sangrando.
- Vocês não servem nem pra isso – e enfiou a espada na
coxa, deixando a arma lá mesmo. Gritou de dor.
- AJUDA!
Arlinda enfiou a bola de ferro no queixo do nazista, de
baixo pra cima, um golpe lindo que arrancou dois dentes. Caiu
murmurando, gaguejando, engasgado, sem chances de defesa,
assim como o outro que, no mesmo momento, recebia uma flecha
em cada perna.
Vendo a queda de todos os parceiros, o de Irmã Bete tentou
fugir. Jogou a arma para cima dela, para que lhe atrapalhasse o
movimento, e rumou em direção de uma janela. Recebeu uma
lança inteira na panturrilha.
Foi fácil assim. Agora eram cinco homens gemendo,
chorando, morrendo de dor, se arrastando e sujando tudo de
sangue enquanto as freiras guardavam suas armas.

36
- Nossa...
- Que foi? – fechou a mochila, guardando o revólver que os
nazistas não conseguiram usar.
- O trabalho que isso vai dar, pegou até na parede.
- Elas vão demorar para chegar ainda, dá tempo.
Gritos e gritos.
- Então, vamos?
- Vamos.
Pegaram os tacos e desmaiaram um por um. Os vizinhos
bocejavam, naquele momento.
4
Primeiro, escutou um barulho de maquinário, coisas
subindo, jogando fumaça, engrenagens, ferro e batidas. A visão
continuava desfocada, mas percebeu que estava dentro de uma
espécie de porão.
- NÃO, POR FAVOR! – o companheiro de cela gritava.
Quando os olhos finalmente se normalizaram, o terror do
companheiro contaminou a sua mente. Lá fora, as quatro freiras
se organizavam em focos de trabalho diferentes.
- Não... – disse, se levantando para as grades. – Não...
Uma delas descascava uma perna, tomando cuidado para
não atingir o osso, enquanto o corpo de um deles jazia morto e
mutilado no chão. Uma mão queimava em chamas, numa espécie
de panela ou caldeirão, junto a uma boa quantidade de ferro
derretido.
- Será uma bela adaga – disse Irmã Arlinda. – Será
realmente uma bela adaga.

37
Démodé,
Delivery,
Dresscode
- Isso, você tem que tentar influenciar o pessoal na votação,
até aqueles lá que não gostam de nós dois. A gente ainda é
minoria, ora.
O deputado José Filho caminhava de um lado para o outro
no banheiro do shopping, sua imagem surgia e desaparecia,
conforme um espelho acabava e começava outro, em pequenos
intervalos na parede.
- O problema é que a gente não tem como obrigar esses
cabaços, né? Mas foi prometido mu... – parou. – Você tá no viva
voz?
- Tô não – a voz do celular.
- Foi prometido muita coisa pra gente se isso passar, coisa
de ficar de boa até a próxima eleição sem esquentar muito a
cabeça.
- Ótimo, ótimo... Vou fazer de tudo.
- É isso, abração meu parceiro. Até, até!
Bip

38
Quando a chamada desapareceu da tela, eram pelo menos
duzentas mensagens esperando resposta. Colocou o aparelho
perto da pia e se olhou no espelho, puto da vida, acabado, se
perguntando por que diabos se metera naquela vida.
- Porra...
Era muito mais fácil quando só era um cidadão comum –
pensava -, tempos bons onde ameaçava moradores de rua,
comerciantes pequenos e qualquer pessoa que não pudesse ser
amparada pela justiça. Quando era só um repórter famoso, afinal,
rapaz sério que levava as reportagens de bandidos mortos e
policiais assassinados às mesmas pessoas citadas logo agora.
Bip
‘’Deputado, o senhor não compareceu ao...’’
Bip – desligou.
- Eu nem vou escutar - falou sozinho.
Era um silêncio sepulcral, uma solidão naquele banheiro,
como se houvesse algum tipo de isolamento acústico. Não tinha
um único ‘’a’’ sendo dito fora dali, nem mesmo o cheiro da praça
de alimentação se misturava ao eucalipto do banheiro. Era cheiro
de nada. Barulho de nada.
Depois de jogar uma água na cara e meter uns três ou
quatro tapas nas bochechas - como se isso fosse resolver o fato de
estar dormindo três horas por noite -, andou em direção da porta.
Então, um homem verde entrou.
José Filho parou quieto, não era como se fosse um
personagem de castelo do terror, era um verde real, uma pele
verde, um tom de gripe horrível. Ele sorria simpático, de terno
branco, um simpático de ‘’finalmente te achei’’, não simpático de
‘’bom dia, boa tarde, boa noite’’. Assustado, o deputado saiu
caminhando rápido, passou ao lado da criatura e atravessou a

39
porta. Sem explicação aparente, surgiu mais uma vez no ponto de
partida, frente a frente com o homem verde.
Olhou para um lado e para o outro, já ofegante, o coração
disparado e a pele fria. Apesar de não estar em frente a nenhum
dos espelhos, os três reflexos mostravam o homem verde, sempre
sorrindo, coberto pelas lâmpadas longas e finas de led que
tomavam o banheiro.
- Q... Quem é você?
- Boa noite, Deputado José Filho. Você me chamou.
2
- É um absurdo a tranquilidade que esses bandidos tem, Dr.
Carlos – não era doutor de verdade. – Eu estou aqui, veja só...
Anos atrás, com o microfone na mão, o então repórter José
Filho apontou para o corpo dentro do carro. Enquanto as pessoas
gritavam e mães se jogavam no chão chorando, a câmera
mostrava os mortos perfurados às seis e meia da tarde, para todo o
estado.
- Qual bairro é esse aí, José? – perguntou o tal Dr. Carlos,
apresentador, militar, responsável pelo programa policial.
- Nova Marta, Dr.
- EU JÁ VENHO FALANDO... – a tela encheu de Dr.
Carlos – Que Nova Marta está lançada ao léu, a-ban-do-na-da
pelo poder público. ORA! Onde estão as autori...
José Filho colocou o microfone na cintura, já fora do ar.
Fitava os gritos da pessoas e sentia vontade de morrer, enquanto
os policiais organizavam o cenário e ajudavam os moradores.
Estava mergulhado, olhando para tudo aquilo muito, mas muito
deprimido. Não no sentido da exploração de sofrimento que
realizava, era mais sobre a tristeza das famílias, aquela gente que
perdia filhos, como se não ter saneamento básico, como se dividir
casas com ratos não fosse o suficiente. No programa, naquele

40
instante, o apresentador Dr. Carlos dançava ao lado de moças de
biquini, literalmente dois minutos após ter mostrado um corpo
baleado.
- Ei – não olhou. – Ei, José.
- Hum?
- Ocorrência na Vila Jota, vamos entrar ao vivo dentro do
carro. Bora.
Dentro do carro... Geralmente isso só acontecia quando o
assunto era sério. Aliás, só entrara ao vivo dessa forma duas
vezes: quando um vereador resolveu correr pelado pelo centro e
quando um famoso da cidade sofreu tentativa de assassinato. A
barriga gelou.
- O que é? – perguntou, batendo a porta da van muito mais
forte do que deveria.
- Um cara se matou.
- Famoso?
- Não, só um cara.
- Ué.
O carro acelerou e o câmera se jogou no ângulo certo,
pareciam querer começar aquilo o mais rápido possível.
3.
2.
1.
- ESTAMOS AO VIVO com o nosso repórter José Filho,
fala José!
- É isso mesmo Doutor, temos informações de que um
homem se matou na Vila Jota e estamos correndo para lá, sempre
trazendo a notícia em primeira mão para todos os nossos
telespectadores.

41
A imagem de José Filho estava bem escura, mas se
iluminou quando o celular tocou. A chamada dizia ‘’Mãe’’.
- Que coisa triste, José!
Desligou o telefone, ligou o silencioso às pressas.
- Muito triste, Doutor, vamos voltar com as imagens daqui
alguns minutos.
- Estamos na espera – disse, sério, e subitamente mudou de
expressão – Mas agora... Com vocês... OS DRAGÕES DO
ARROCH...
- Eu não sei o que falar – disse dentro da Van. – Não tem
absolutamente nenhuma informação pra poder encher linguiça?
- Nada... Só sabemos que é um homem.
- Que coisa.
Não percebeu que sua mãe continuava tentando lhe ligar.
- Chegamos.
José Filho levou a mão à maçaneta do automóvel, um
produtor segurou seu braço.
- Calma – disse ele. – Vamos ao vivo com você saindo.
- AO VIVO EM 3...
2...
1...
- Estamos aqui no local do suicídio, Doutor Carlos,
exclusivo – abriu a porta.
Lá fora, uma multidão rodeava o corpo. Estavam em frente
à um prédio de quatro andares. Nem precisaram falar nada,
quando viram que era a televisão automaticamente abriram
caminho, parecia até mesmo que respeitavam mais aquilo do que
a própria polícia.

42
- Ali, ó... – a tela dividida entre Dr. Carlos e o repórter –
Você vê os populares, é tanta gente que não dá nem pra ver o
corpo, vamos esperar eles saírem.
E continuaram caminhando, até que o caminho total se
abriu.
- Ali, ó, vem...
Então percebeu que todas as pessoas da equipe lhe
observavam com uma cara triste, meio envergonhados, meio
sabendo o que iria chegar. Ao sair do último curioso, José Filho
viu que o corpo morto nos paralelepípedos era o de seu irmão.
Assim foi a reportagem que rendeu o maior número de
acessos naquela semana, a cara do repórter em choque, sem saber
o que dizer, caindo chorando para cima do corpo de seu próprio
irmão. Fora o ápice do programa de Dr. Carlos, e também sua
ruína, pois a opinião pública não se agradara com o acontecido.
Aquele tiro pela culatra enterrou de vez a carreira do
apresentador, substituído, meses depois, pelo agora líder de
audiência José Filho, deputado eleito no ano que veio.
3
- Eu... Te chamei?
- Mas é claro que chamou. Pela internet, lembra? –
disse o homem verde.
Agora tudo fazia sentido, mas não era motivo para sentir
menos medo. Nem esperava que aquilo funcionasse de verdade.
- Olha, José... – uma cadeira nasceu das cerâmicas, onde
se sentou – A gente simplesmente não faz um pedido de magia
pela internet, digo, você sabe... Tem muita gente que pode te
passar a perna.
- Se... – suava. - Se você veio então é porque funcionou.
- De certa forma sim.
- De certa forma?

43
A voz da criatura verde era bem serena e séria, parecia um
homem de negócios que sabia o que estava fazendo. Seu rosto,
seu corpo todo chegava aos olhos de José com uma falta de foco
tremenda, todo borrado.
- De certa forma, pois funcionou, mas não estou aqui
para te ajudar. Venho para debater a relação.
- Debater a relação?
- Sente-se, deputado, repita menos o que eu digo e
converse mais por si mesmo.
Uma outra cadeira surgiu do chão, José caminhou, mesmo
com as pernas trêmulas. Sentou-se. Uma mesa surgiu no meio.
Ficaram se encarado.
- Bem... Não vai falar nada?
- Eu não diria que essa é a situação mais confortável da
minha vida.
- É... – sorriu o homem verde – Você tem razão.
- Então?
- Então o que... Sei lá, o que você tinha em mente
quando pediu um ritual online?
- Eu... Merda, eu não conhecia ninguém que pudesse fazer.
- Não no sentido da burrice, no sentido da intenção.
José lhe olhou com certa raiva, ofendido, aí lembrou que
era uma entidade multidimensional de pele verde e que faz
móveis surgirem do chão.
- Eu suponho que você sabe.
- Sei, mas é legal ouvir.
- Puta que...
- Olha a boca.
- Certo – bateu os dedos na mesa como um cavalo trotando.
– Alguém pode entrar aqui, nos ver, nos ouvir, qualquer coisa?

44
- Há uma pequena chance de acontecer, mas o azarado
enlouquece num milésimo. Diga sem medo.
- Eu disse que não conhecia ninguém que faria o serviço
pessoalmente, mas na verdade conheci uma vez. Ele fez uma
coisa pra mim.
- Aquele que morreu um ano depois?
- Sim – estava claramente impaciente, era como explicar
como se faz adição para um professor de matemática. – Precisei
de novo de uma coisa e foi a única forma. É isso.
- Pois é, eu quem fui o responsável naquele tempo. O
que acontece é que o que você pede dessa é... Bem... Anti-ético
até para você.
- Ética? Que ética meu Deus...
- Ética. Ética tipo a que vocês tem aqui no ocidente, tipo
a outra que o pessoal tem no oriente, tipo qualquer sociedade.
Não é diferente com a gente, sabe? Mesmo estranhos desse
jeito – olhou para o espelho, voltou para José. – O que acontece
é que não há jeito fácil de voltar alguém dos mortos. Vai
contra a nossa ética.
José ficou calado, também tentou olhar para o espelho que
estava ao seu lado, mas viu o homem verde. Voltou.
- Então é só não fazer, ora – disse. – Não me importo com
o dinheiro que gastei. Deixe pro tal mago e acabou.
- Eu adoraria poder fazer isso, mas não é tão simples.
Uma vez que está feito, está feito. Sou obrigado a atender.
- Então ele vai voltar...
- Certamente, como outras pessoas já voltaram outras
vezes. Gente que teve essa mesma conversa comigo.
O rosto de José se iluminou, não pelas luzes do banheiro,
mas pela alegria ingênua de quem não entende o que está
acontecendo.

45
- Então qual o problema? Não parece haver contras.
- São justamente essas as situações onde existem mais
contras, quando não parece ter contras. Pense comigo, José,
você já viu alguém voltar da morte?
- Não – coçou a cabeça, impaciente – Nunca vi.
- Exatamente – apontou o dedo indicador para o deputado,
que, por um momento, viu o rosto completo da criatura. – Só há
uma única forma de atender o pedido de voltar alguém dos
mortos, que é colocar em outra realidade quem solicitou.
- O... O que?
- Te colocar em outra realidade.
- Eu... Eu entendi, mas como assim?
- Não tem o que explicar, é basicamente isso – um papel
e uma caneta surgiram da mesa. – Eu sou o responsável pelo
serviço de te colocar em outra realidade onde a pessoa ainda
está viva.
- Eu... – se levantou da mesa. – Eu não quero isso!
- Não importa o que você quer, importa o que você quis.
Está feito.
- Não... – começou a se afastar.
- Cara, não corre em direção da port... – viu o deputado
surgindo de novo, aterrorizado. – Não tem o que fazer, José. E
eu nem terminei de te contar ainda.
- Não tem nada que eu possa fazer? Meu Deus... – bateu a
mão na parede.
- Nada. E ainda vai ter que matar o seu eu do passado.
- O que!?
- Matar o seu eu do passado.
- Puta que...

46
A criatura flutuou rápido pelo banheiro, como um lençol
verde. Parou ao lado do deputado, com a mão em seu ombro.
- Não se desespere. Vai acabar vendo que assassinar seu
antigo eu é uma das coisas mais prazerosas que existem –
olhou para trás. – Venha.
Num segundo, estavam mais uma vez sentados nas
cadeiras. José levou as mãos à cabeça.
- Como pode ver, aqui está todo o procedimento
registrado – mostrou o papel, José nem olhava, perdido. – Você
possui o direito de escolher o momento em que te colocarei na
outra realidade, onde o sujeito continuará vivo e tudo o mais.
Caso demore muito, estou autorizado a te transportar
compulsoriamente. Nessa realidade em que estamos agora, o
deputado José Filho será substituído por outro José Filho que
acabará morrendo em dez anos.
- Meu Deus... – desabou chorando.
- Remorso é complicado, mas é isso aí, o seu pedido será
atendido.
- CALA A BOCA, DESGRAÇADO!
- Desgraçado? – Gargalhou o homem verde. – Você
armou a morte do próprio irmão para assumir um programa
policial escroto.
- PARE!
A criatura se levantou, jogou a mesa e as cadeiras nos
espelhos, que lhe atravessaram. José caiu de joelhos.
- E ainda traiu seu aliado, que também se lançou ao
suicídio após não suportar o linchamento. ‘’Era o seu irmão?
Como assim era o seu irmão?’’ – imitou a frase que Dr. Carlos
dissera anos atrás – Ora... Olhe para você! Realiza um ritual
para um apresentador de televisão voltar à vida e nem se
lembra do próprio irmão.

47
- Você não sabe de nada – levantou-se, cara a cara, firme,
ainda que repleto de lágrimas.
- Eu sei quantas gotas de suor já desceram de sua testa,
desde que nasceu. Eu sei cada minuto de sua vida, cada
palavra que saiu da sua boca, sem esquecer uma sequer.
- Foda-se! Foda-se você, eu vou para o passado, eu vou
para essa realidade maldita que você quer! Mas não vou matar só
o meu eu do passado, vou procurar alguma...
- Maneira De matar você – disseram juntos.
- Eu sei o que você vai dizer, também. Até o último
segundo da sua última vida.
Calou-se.
- Pegue isso – uma faca materializou-se no ar. - Mate com
ela e faça o que quiser depois.
Assim, tudo desapareceu.
4
A primeira coisa que vira fora o seu antigo quarto, na
cidade em que morava, em tempos de Dr. Carlos. O José daquela
época estava de costas, sentado na cama, pensativo e atormentado
enquanto tentava decidir se faria uma ligação.
- Merda... – ele dizia.
Faltavam lágrimas nos olhos do José do futuro, secos,
aterrorizados. Precisa matar a si mesmo, mas não conseguia se
mover. Nem fazia sentido aquela angústia toda, ninguém morreria
além de um José que já existira, para um José diferente se colocar
no lugar. Mas, de repente, a sensação mudou. Já não era justo
dizer que não gostava daquilo. Gostava, até. A faca tremia nas
mãos, uma lâmina embaçada como o homem verde, brilhando
entre o cheiro de cerveja do cômodo, serena pelas telas de pintura
à óleo e seus céus que nunca veria por ali, pois prédios tapavam.
A melhor e mais bonita das hipóteses residia num azul estranho,

48
pouco vívido e sem substância, erguido lá no alto, paraíso
excluído de horizontes. Mas não queria a ilusão. Não queria
lembrar de cores e céus e tempos onde bastava dar dois passos
para fora e reconectado estava mais uma vez à força-primeira,
essa energia inexorável que construiu cachoeiras e árvores e a
terra vermelha que suja os pés das crianças, pois adulto não suja o
pé, adulto gosta mesmo é de lembrar sobre como era bom sujá-
los, ainda que nada lhes impedisse de fazer o mesmo, hoje, a
qualquer momento. Fato é que precisava fazer aquilo, e corrigir as
coisas que lhe destruiam por dentro há tanto tempo, e se encantar
com o mundo mais uma vez. Tanta coisa se perdeu. Vieram
assinaturas rígidas, sérias, letras com terno e gravata, sabe? Pois
era preciso escrever com terno e gravata, ainda que nada real lhe
impedisse de criar curvas. Gritou para dentro de si. Não queria
esse espaço dentro do coração, esse brilho na memória, pois sabia
de fato que não era tão bom assim. Mais que homem, era um
pêndulo entre o real e o ilusório, o sutil e o grito, mal se lembrava
há quanto tempo se via assim. Essa coisa sempre no meio, nunca
‘’ali’’, nunca ‘’lá’’, sempre e sempre e sempre suspenso entre o
que queria ser e o que desejava se tornar de novo. Sentia saudades
de quê, afinal? De quem foi ou de quem seria? Certo é que
esquecia, finalmente, de quem era naquele dia, envolto pela
última sexta feira treze de um dos anos mais quentes já sentidos
pelo planeta Terra. Enfiou a faca em seu eu do passado, que não
pareceu sentir dor, mas desapareceu como se nunca tivesse
existido. Seu irmão continuaria vivo, Dr. Carlos continuaria vivo,
mas ele, entretanto, não fazia ideia do que lhe aguardava naquele
mundo.

49
Sermão I
- Você não pode fazer isso!
Disse o pastor, mas viu que ele sorria, lembrando de alguma coisa
no fundo dos olhos.

50
Síntese
- Todo mundo tá sozinho - ela disse para a outra, e algo
entrou no bueiro enquanto caminhavam na calçada.
- Isso é papo bobo, coisa que todo mundo fala - a outra
disse para ela, e um quarto mistério escapou do mesmo bueiro.
- É fato – dizia. - Tem maisquemilhões de pessoas nessa
cidade, e ninguém olha pra ninguém. Se um carro pega fogo dois
tiram fotos e dois acendem um cigarro nas chamas.
- Papo bobo de novo - a outra respondeu. - Não aguento
essa conversinha triste de jovem adulto, não dá pra colocar as
pessoas em caixinhas, não haveria tantas no mundo.
- Não é colocar em caixinhas - desviou de um moço. - É
experiência mesmo, vai dizer que você está aqui há
maisqueduasdécadas e a conclusão é positiva?
- Vou – teimou. - Temos bem mais pelo que agradecer do
que reclamar.
- Meu Deus... – insistiu. - Isso é coisa que a minha mãe
mandaria numa mensagem de bom dia, que decepção.
- Você se decepciona fácil, aparentemente, vai ver por isso
que tá tão amarga.
- Eu não tô amarga.
- Sim, eu é que tô.
- Você tem 12 anos?
- Tenho, e você? Tem 16, Schopenhauer de franja?
- Cala a boca.
A discussão pseudo agressiva seguia pelo corredor de
prédios, os homens e mulheres da rua, sentados na sujeira,

51
acompanhavam o ir embora das duas para bairros distantes e mais
limpos, onde a polícia dava bom dia e perguntava por favor.

52
Panorama
Os braços abertos, lançados ao panorama, os prédios de
uma cidade distante se tornando meros detalhes frente à
imposição da natureza. A lua e o sol no mesmo céu, acima dela,
tomada pela terra, nos dois sentidos da expressão que só se
afastam por letras maiúsculas e minúsculas. Mais fácil assim, ela
que não queria ser espírito preso, na sensação de liberdade que a
natureza dava e que a vida urbana tirava, em contato com a força
ancestral que sempre regeu o movimento das águas e das folhas.
Mas era assim que todos se sentiam. Era assim que agiam frente à
cachoeiras, era assim que se arrepiavam com o sol se escondendo
no mar, coisa que em lugares como a China só se via por telões de
led. Mais fácil assim, aproveitar logo, antes que as carruagens das
multinacionais tomassem também o seu país, e que a água fosse
transmutada em ácido e as árvores apodrecessem. Mais fácil se
apodrecessem sozinhas, na entropia que também era o sentido da
vida, e não pela contaminação do solo ou pelo poder de um fogo,
também, não natural. Mas era só uma voz naquela distância, ainda
que todos sentissem a mesma conecção com a natureza, nem
todos queriam ou possuíam ânimo para enxergar o que acontecia.
Difícil era ver o processo, enxergar um caminho até então
irreversível. Mais fácil manter a saúde no lugar, cuidar da cabeça,
numa vida que tanto cobra e que inevitavelmente cobraria mais e
mais. Não há pelo que culpar os simples, é pelo simples que se
sentia o todo e pelo todo que se via o simples, ali, no panorama,
ou em qualquer parte de um planeta tão maltratado quanto suas
forças de trabalho.

53
Sermão II
- Você não pode fazer isso!
Disse o militar, mas viu que ele escondia alguma coisa no bolso
direito.

54
Em geral
Todos os filmes e músicas falam sobre drogas. Todos os
blogueiros e blogueiras tentam vender shake de emagrecimento, e
ter dinheiro pra pagar lipoaspiração. Toda foto tem filtro. Nenhum
monarca existiu. Fãs de armas tem medo de armas. Endorfina,
ocitocina, dopamina e serotonina controlam corpos e mentes.
Flashes na tela distruibuem os comportamentos e escrevem os
roteiros. Deuses antigos e novos regem o universo. Há mais
planetas que palavras para nomeá-los. Há quem goste de escrever,
pintar, tocar e produzir arte, e há quem goste de dinheiro e
influência. Poesia não serve pra nada, porque não precisa possuir
um propósito. A última parte foi um plágio. Todo plagiador
plagiou um plágio. O papel do artista é, historicamente, ao mesmo
tempo, importante e superestimado. O Brasil nunca nasceu. Tudo
é caótico e ameaçador, belo e milagroso. Todo ser humano resiste
a tudo, desde que o mundo é mundo, e até que o mundo acabe.

55
Sagrado
A árvore cheirava muito, e muito bem, um tronco forte e
velho com folhas e flores que não sabia exatamente do que era.
Nunca vinham frutos, era só o cheiro tomando a casa, algo que
lhe agradou muito nos primeiros meses em que se mudou, mas
que tornou-se um tormento ao bater do primeiro ano. Ficara
insuportável, a fragrância doce e enjoada brilhava os olhos de
todos os que visitavam a casa vez ou outra, mas ele, entretanto,
chegava a segurar o vômito em certas horas do dia.
Decidiu cortar a árvore. Não dava mais. E sentia uma pena
imensa, talvez fosse até crime, pois aquele obelisco magnifico
nunca que teria menos de um século. Talvez fosse mais velha que
toda a sua família. Os pássaros e toda a vida que lhe usava,
lagartas e casulos, infelizmente teriam que dar adeus e se
mudarem para algum outro lugar. Chegando o dia, a serra elétrica
nas mãos de trabalhadores sofridos e mortos de calor, sentia que
não deveria fazer aquilo. Tinha algo de errado, além do crime,
algo que fugia de sua compreensão limitada, e enquanto os dentes
destruíam a árvore, mordeu os seus próprios. Ela resistiu por um
momento, balançando, ameaçando despencar para o lado errado,
mas finalmente foi para o chão. Caiu, e o estrondo aniliquilou seu
coração humano, sabendo imediatamente que matara algo
sagrado.

56
Sem querer
Um homem gripado, andando de ônibus, espirrou na
própria mão e segurou na barra.
Por ano, mais de 700 pessoas morrem de gripe no Brasil.
O homem gripado nunca saberá que cometeu um
homicídio.

57
Sermão III
- Vocês não podem fazer isso!
Disse finalmente para o pastor e para o militar.

58
Síncope
- Nossa!
Os olhos maravilhados de Rafaela pareciam saltar para
fora, escondidos pelos óculos escuros. As pernas que acabavam
de sair do ônibus finalmente encontravam espaço para se mover,
circular sangue, pular no colo do noivo.
- Ei, assim você vai entortar as minhas costas!
- Como se a poltrona já não tivesse feito isso.
- É verdade – e se beijaram.
As senhorinhas com galões de leite na cabeça encaravam
os turistas como... Bem... Como quem encara turistas. Era só mais
um casal visitando Fé, a cidade mais bonita de Minas Gerais
(segundo sua própria placa de boas vindas).
Não eram os únicos visitantes. Aos lados, diversas famílias
passavam com suas malas pelos paralelepípedos. De boca aberta,
encaravam as serras que rodeavam a cidade.
O motivo da visita em massa era simples: a procissão das
velas. Uma vez por ano, cerca de duas mil pessoas caminhavam
de um extremo ao outro da cidade, à noite, segurando velas e
cantando músicas católicas. A tradição já comemorava mais de
cinquenta anos, mas sua popularização acontecera somente
quando viralizada por um post online, da forma mais inesperada
possível. Nesse caso específico, os filtros não escondiam ou
simulavam beleza, as fotos refletiam exatamente como era a
procissão.
Rafaela e Tomé observaram a sexta-feira, todas aquelas
pessoas vendendo frutas e verduras sem veneno. Os cachorros
corriam soltos, as crianças brincavam longe, era o tipo de lugar

59
que fazia nascer a vontade de se mudar. Todo mundo vivia muito
tempo ali, talvez por respirar ar consideravelmente puro, por não
ter que pegar dois ônibus para chegar em casa ou qualquer coisa
assim.
Ainda não é o momento de se falar sobre o resto do dia.
2
Rafaela e Tomé repousavam mortos no beco, imersos em
faixas de sangue que desciam da parede e tomavam maior
proporção no chão, em poças e pequenos rios nas rachaduras. Em
frente aos dois, a figura correu.
Do escuro do beco, surgiu no brilho das velas. As milhares
de pessoas cantavam em um só som, excluindo qualquer barulho
que pudesse vir de fora. Tentou gritar, pedir ajuda, ‘’Mataram
aquelas pessoas!’’ - gritava, mas o som da reza era mais alto.
Estava jogada no meio da multidão, as senhoras idosas desviando
de seu rosto aterrorizado, o véu que tapava o rosto mas não tapava
ao mesmo tempo.
- AJUDA!
Ninguém respondeu, um imenso transe onde tudo o que
poderia ser escutado era a reza coletiva. Os turistas tiravam fotos,
flashes intermináveis do alto das casas alugadas, uma festa
belíssima que não seria interrompida por dois mortos. Também
ela não queria ter visto aquilo, maldita hora em que decidiu
procurar silêncio para atender uma ligação. Pobres jovens, mortos
daquele jeito, jogados num beco enquanto algo tão bonito
acontecia.
Pensou, então, que ela mesma deveria agir. Voltaria.
Ligaria para os policiais. Esperaria lá do lado. Depois correria
para casa, onde os dias consumiriam essa memória. Atravessou as
velas, perpassou as cruzes, tirou bandeiras com esferas vermelhas
da frente de seu rosto. Pouco tempo depois, lá estava de novo. As
luzes do beco não funcionavam direito, como se estivessem sendo

60
sugadas, presas e libertas, piscando. Sozinha com os mortos,
bateu os dedos no teclado.
3
- Jesus... O que aconteceu aqui? – disse o policial.
A procissão já estava razoavelmente longe naquele
momento, o homem demorou a chegar no beco justamente por
razão dela. Não esperava, entretanto, encontrar morta a mulher
que fizera o contato.
4
Voltando da celebração, os religiosos se mantinham num
sentimento belíssimo, concepções de fé renovadas, uma paz
interior que só fora destruída pelo policial morto no beco.
5
Rafaela e Tomé estavam juntos há cerca de cinco mil anos,
mas só decidiram noivar há bem menos tempo, quando passaram
a usar esses nomes. Uma parcela de suas longas existências não
partiam da noção de vida terrena, eram forças que rodeavam
civilizações muito, muito antigas, perdidas no tempo que se
passou. Por muito eram disformes, ela não era ‘’ela’’, ele não era
‘’ele’’, até que outros povos chegaram e passaram a desenhar
coisas, completar desenhos que já estavam sendo feitos. Sempre
estiveram lá, eram como tantas outras criaturas, adormecidas,
esperando o chamado inevitável. Com o tempo, depois de muito
trabalho, finalmente estavam livres para viver como bem
entendessem. Os povos que lhe cultuavam desapareceram, foram
dominados ou atingidos por desastres, então não possuíam
nenhuma obrigação com mais ninguém.
- Isso ainda vai te matar – disse Tomé, vendo a noiva na
janela da pousada.

61
Rafaela fumava, acompanhando a noite que já subia na
cidade. Seus olhos azuis refletiam os postes lá de baixo, coisa que
só ele conseguia ver.
- Ia ser engraçado... Um cigarro ser o que vai acabar me
matando.
- Uma lança já atravessou seu rosto e não deu em nada, eu
fumaria tranquilo no seu lugar.
Ela sorriu, a fumaça saindo dos dentes brancos enquanto
chamava o noivo para a janela. Ele veio.
- Veja lá, isso sim que é engraçado – apontou para a rua,
onde dezenas caminhavam. – Essas pessoas só estão vivendo mais
um dia, tranquilos, enquanto duas criaturas multi-milenares falam
sobre isso dois andares para cima.
- E nunca saberão.
- Nunca.
Apesar dos diálogos estarem evidenciados aqui, Rafaela e
Tomé mal abriam a boca para falar. Era uma comunicação
estranha quando estavam a sós, onde o primeiro som já dizia a
frase inteira.
- Talvez um deles vai saber, por um milésimo de segundo
que seja – disse o moço.
- Agora?
- Não é perigoso, eu acho.
Ela apagou a brasa na janela, então, se transformaram em
suas formas originais. Lá de baixo, ninguém conseguia ver aquilo,
eram só duas pessoas paradas, encarando o movimento, como
qualquer turista fazia. Logo escolheram uma pessoa aleatória no
meio da multidão.
Era um cara como qualquer outro, porém, naquele
momento, teve muito mais azar do que qualquer pessoa na cidade.
Os dois levantaram as mãos (se sequer podiam ser chamadas

62
disso) e em um instante o homem desapareceu, surgindo dentro
do quarto. Levitava, aterrorizado, tentando gritar. Antes de
desmaiar e ser consumido dos pés à cabeça pelas criaturas,
enxergou coisas como luzes infinitas e cegantes num formato
humanóide, onde um braço era maior que o outro, uma perna
tomava todo o quarto e a cabeça pendia para fora da barriga. Dois
seres idênticos em suas bizarrices.
6
- Então você correu?
- Eu corri, senhor – disse para o policial, oprimido pelas
luzes da delegacia – Não dava para ficar lá fingindo ser corajoso,
eu poderia morrer.
- Foram corajosos por você, aparentemente.
- Sim – encarou. – E dois morreram por isso. Não sou
menos grato por ter fugido, como tanta gente fugiu... Muito mais
gente do que os que reagiram. O meu azar foi ter aparecido nessas
câmeras.
No canto, em uma televisão, a filmagem do momento
passava em loop, com alguns policiais anotando coisas ao redor.
Nas imagens, duas senhoras andavam na procissão e subitamente
paravam. No segundo seguinte estavam atacando pessoas com as
cruzes que levavam nas mãos.
- Digo... Duas velhinhas fazerem isso, sabe?
- Sei, senhor – disse a testemunha. – Mas como eu poderia
te ajudar? Eu só sou um cara correndo – e apontou para a tela, lá
ele realmente corria.
- Você já ajudou como pôde – disse o policial, conformado
- Volta pra casa direto, tá bom? Se não o povo pode ficar
conversando sobre você ter saído da delegacia, sei lá. Sabe como
é, né?
- Sei sim, senhor.

63
- Então é isso.
7
- É ela?
- É ela.
A senhora estava amarrada na cadeira, ainda vestida com
as roupas da procissão. Os olhos esbugalhados procuravam o que
não existia, se balançando junto com o corpo numa força
descomunal para seus setenta anos de idade, tanta que foram
necessários cinco policiais para lhe segurarem no fatídico dia.
Grunhia alto, palavras incompreensíveis.
- Responde! Por que vocês fizeram aquilo? – gritou o
policial.
A mulher gritou de volta, mais alto ainda, aterrorizando
todos os policiais que tentavam lhe interrongar. A cadeira
começou a pular, arranhar o chão, e só por um milagre as cordas
não se romperam.
- Meu Deus do céu...
Os berros aumentaram, as palavras se diversificaram, cada
vez mais complexas num dialeto medonho e perdido. Os homens
se jogaram no chão, a cadeira começou a se mover, girando,
arranhando o chão sem qualquer explicação lógica.
- Jesus Cristo... Jesus Cristo...
Quando voltou ao ponto inicial, os grunhidos pararam e a
cabeça desmoronou. Até o mais leigo saberia que ali descansava
uma mulher morta.
Um círculo exato havia sido arranhado no chão.
8
O enterro da senhora contou com poucas pessoas, a causa
mortis acabou sendo algo relacionado ao coração. Demorou
bastante para os policiais se safarem daquilo.

64
A família não entendia direito o que havia acontecido,
sempre tão generosa aquela velhinha, sempre tão fraca em seus
movimentos, como saltara por cima de uma pessoa se sequer
conseguia tirar as plantas da parede? O pior era não saber.
Logo o caixão estavam recebendo a terra, uma pá de cada
vez, até não faltar mais nada. Lá em baixo de sete palmos, o corpo
morto tentava escapar.
9
A cidade recebeu tempestades horríveis nos dias que se
seguiram, com telhas se quebrando no meio da rua e casas em
construção que logo aumentariam a previsão do fim da obra. Foi
num dia desses que o quarto 62 da Pousada Quatro Irmãos recebia
um advogado, responsável por fazer os piores reviews online que
o estabelecimento já recebera.
‘’Barulho demais!’’
‘’A janela quase se quebrou com a chuva!’’
‘’Alguém ficou batendo na porta de madrugada.’’
‘’O telefone tocou umas sete vezes dizendo que eu havia
ligado na recepção pedindo informações. Eu nem sequer precisei
de informações.’’
Os donos ficaram bastante chateados, se lembravam
daquele homem, do dia em que se hospedara, de como nada de
especial havia acontecido e ainda assim o bendito xingou Deus e
o mundo.
10
Cerca de um mês depois do acontecido, a cidade ficou sem
energia. Nenhuma lanterna iluminava o bastante, nenhum flash de
celular conseguia muita coisa. Zero estrelas no céu. Nuvens
tapando a lua.

65
Naquele dia, os corajosos disseram ter visto um clarão num
beco, possivelmente a única fonte de luz em toda a cidade.
Ninguém ousou se aproximar.
A noite passou lenta, pesada, como se um grande peso
rodeasse a cidade. Crianças choraram dizendo ter visto coisas,
adultos ligaram para a polícia, dizendo que pessoas dançavam em
seus quintais, que velhos escalavam suas paredes, que pássaros
gigantes passeavam no breu.

66
Do todo para
as partes
Havia aquele refrigerador no meio do lote abandonado, e as
crianças criaram uma lenda entre si que, quem abrisse, morreria
na hora. Se por ventura, jogando bola, um chute jogasse a bendita
para lá, não havia um único corajoso o suficiente que aceitasse a
missão de buscá-la. O caso é que chegou uma criança nova, um
dia.
A primeira visão que tiveram de Manuel, naquela cidade
pequena, fora o momento em que chegara. Menino rico, pais
médicos, playstations sendo carregados do caminhão de mudança
para a casa. Os meninos e meninas observavam o movimento dos
homens com a mão na cintura, boa parte deles estavam descalços,
os pés pingando sujeira. Manuel chegou de sapatos e boné do
desenho favorito do momento, então lhe odiaram na hora, mas
isso não durou por muito tempo. Era uma criança legal, pra falar a
verdade. Não tentou se enturmar de forma forçada, não saiu com
uma bola original da copa do mundo de dentro de casa – ou coisa
parecida -, vestiu roupas simples logo no segundo dia. Em alguns
dias, já eram todos amigos.
2
- TOCA! - passaram a bola.
Renato driblou um, driblou dois e meteu a bola pra dentro
dos chinelos.
- Ó o carro! Ó o carro! - foram todos para as calçadas.

67
- Toca a bola pra mim também, se não eles vão ganhar a
coca, doido – disse um do outro time.
- Mas eu tô tocando.
- Não tá é nada.
- Vou tentar então. Renato tá acabando com o jogo.
- Mas é lógico, ele tem dois anos a mais que a gente.
Biip Biip
Os meninos voltaram para a rua, tocando bola e correndo,
pingando suor, se sujando e tomando sol quente nas costas. Não
passavam tantos carros por ali, então o jogo rolou por muitos e
muitos minutos. Sem time de fora, vencia quem ganhasse cinco
partidas de três gols. Estava 4 a 1.
- VAI MANUEL!
O novato chutou com toda a pouca habilidade que tinha, a
bola bateu na perna de um zagueiro (que também era atacante, e
volante e lateral) e voltou mais uma vez, quando levou uma
bomba mais forte ainda.
- GOL! – gritou o Manuel, que acabava de tornar o placar
total um 4 a 2.
Mas só Manuel comemorava. Virou sorrindo, esperando os
tapinhas nas costas, mas todos estavam parados. Quebraram o
silêncio apenas num longo e forte viiiiiiiiiiish.
- Que foi? – ele disse.
- Manuel, meu filho... Cê chutou no lote.
- Lote? Que lote? Quê que tem?
- Ali, ó.
Lá estavam os muros que dividiam a rua do lugar
abandonado. Quem viu a curva que a bola fez, diretamente lá pra
dentro, diria com toda a certeza do mundo que aquilo não
acontecera por acaso. Sinistro real.

68
- Não te falaram ainda? – perguntou o Renato.
- Não – e se assustou, pois até o menino mais velho estava
sério. – É vizinho chato? Eu converso com ele, não tem problema.
- Não... Não... É caso de bicho, de monstro. Ninguém nem
sabe quem é o dono desse lugar. Ali, Manuel... – apontou o dedo.
– Tem um refrigerador.
- Tem o quê? – gargalhou. – Cês tão me gastando, vou lá
pegar.
- É sério mesmo, doido – disse outro. – Você não sabe
porque não morava aqui na época, mas um menino abriu esse
refrigerador quando foi pegar uma bola e morreu. Morreu de
verdade. A família dele nem tá aqui mais, se mudou no outro dia.
- Caras... Cês não acreditam mesmo nis...
- Então vem ver.
Mal pôde responder e já estava sendo puxado por eles. Se
sentiam tanto medo daquele lugar, por que então ir em direção do
muro? Só podia ser mentira. Se amontoaram, ajudaram uns aos
outros a subir na parede chapiscada e, num segundo, estavam
todos em cima.
- Ali ó.
Manuel arregalou os olhos. O refrigerador estava no meio
do lote, rodeando por galhos, folhas, todo tipo de sujeira e...
Bolas. Várias bolas. Eram pelo menos umas trinta, trinta que
foram chutadas e ninguém teve a coragem de ir pegar.
- Pera – disse o Manuel. – tem esse tanto de bolas aqui e
ninguém foi pegar?
- Só uns meninos do ensino médio, uma vez. Pegaram
umas dez.
- E o que aconteceu com eles?
- Nada.

69
- Então vou lá pegar – cravou o Manuel, saltando para o
lado de dentro.
- Não, caramba! – gritou o Renato.
- Por que não? Eu que chutei, o Paulo vai me matar se eu
não pegar, não é, Paulo?
- Cara... Eu não me importo, tenho outra. Pode deixar isso
quieto – respondeu o Paulo.
- Importa sim – retrucou. – Essas coisas não existem, gente.
Começou a correr, os cacos de vidro lá de dentro
desviavam de seu pé descalço. A cada passo, o refrigerador se
aproximava, enferrujado, ferido pela chuva, pelo sol, abandonado
bem ali.
- PEGA ISSO LOGO, MANUEL! – gritou um menino.
- É A QUE TEM UM PÊ!
Viajou os olhos pela infinidade de bolas, várias com
iniciais desenhadas, mas nenhuma com o tal pê. Não se atreveu a
chutar nenhuma, diminuiu o passo, e, apesar de não acreditar na
lenda, evitava olhar para o sinistro eletrodoméstico.
- Aqui! - agarrou a bola no chão e botou debaixo do braço.
– Tão vendo? Tô vivo!
Os meninos gritavam para que ele voltasse logo, não viam
nenhuma coragem naquilo, mas ignorância, insensatez. Manuel
sorria.
- Vocês duvidam que eu abro? – apontou para o
refrigerador.
- NÃO! NÃO! NÃO!
Caminhou em direção, passos lentos.
- CARA, NÃO FAZ ISSO.
Finalmente chegou. O refrigerador imenso, maior que ele,
fechado e sujo. Botou a mão na porta.

70
- PARA!
Virou de volta e disse:
- Tô zuando.
3
Apesar da brincadeira, Manuel ficou com aquilo na cabeça.
Não transpareceu aos amigos quando o fizera, claro, mas aquele
toque na porta lhe fez muito mais do que frio nas impressões
digitais. A coisa era que havia algo a mais. Sentia uma
curiosidade tremenda, uma vontade de sentir aquele perigo mais
uma vez, coisa da natureza da espécie, aquele limbo entre querer
o perigo e fugir dele o mais rápido possível. Naquele dia
perderam o refrigerante para o time do menino mais velho, mas
não deixaram barato. Precisava haver uma revanche.
- Toca!
Manuel passou a bola para o amigo, esse que dessa vez
chutou para longe, raspando no vidro de um Uno.
- EU VOU FURAR ESSA BOLA DE NOVO EIN! –
gritou um velho, agarrado nas grades de sua casa, com olhos de
quem assiste uma briga de rua.
- Foi mal!
- FOI MAL NADA, EU VOU CONTAR PROS SEUS
PAIS E DAÍ...
Tudo que o moço disse depois foi ignorado
instantaneamente, então só ficou balbuciando coisas, o que
emulou certa sensação de torcedor enquanto os meninos jogavam.
Depois de ensinar uns quatro ou cinco palavrões para as crianças,
voltou pra dentro de casa, onde chorou olhando para a foto de sua
falecida esposa.
Mais um gol cravou o 4x4. Finalmente estavam próximos
de vencerem Renato, o menino mais velho. Suados, ofegantes,

71
alguns com os dedos machucados, correram para o centro da rua e
arrumaram os chinelos.
- VAI!
Renato passou, e tocaram a bola uns para os outros por
mais alguns minutos. Vários gols saíram, mas não teve jeito,
perderam a coca-cola mais uma vez.
Logo se organizaram todos numa calçada, os que perderam
bebendo a água da casa de alguém e os vencedores enchendo o
sangue de açúcar. Manuel estava quieto, olhando para o muro
com o copo na boca.
- Ou... – ofegou o Manuel – Vocês nunca se perguntaram o
que tem lá dentro?
- Dentro de onde?
- Do refrigerador.
- Manuel, para com isso. Já num basta aquele dia.
- Pois é! – exclamou. – Aquele dia. E eu tô aqui vivo.
Todos já estavam rodeando o menino, tomados pelo sol de
fim de tarde que precedia os gritos das mães. Pareciam prestar
atenção de verdade.
- É sério. Como vai ter alguma coisa? Isso nem existe.
- O outro menino morreu, né? – respondeu o Renato. –
Acho que já basta de prova.
- Morreu como?
- Morreu. Nunca mais apareceu aqui. Nem ele, nem os
pais.
- Ele pode ter se mudado, ué.
- Pensamos que era isso também, mas quando a gente
correu atrás do carro os pais dele disseram pra gente nunca chegar
perto de lá, que o filho deles tinha morrido quando abriu e por
isso tavam se mudando.

72
- Correr atrás do carro?
- É, da mudança. A gente queria despedir dele, mas ele já
tinha morrido.
- Eu duvido. Vou lá abrir – e saiu caminhando.
- Quê?! – disseram todos, quase em conjunto.
- Vou sim.
- Manuel, não, não faz isso! – acompanhavam o passo dele.
– Você vai morrer igual ao nosso amigo, e sua família vai ter que
ir embora.
- Meu pai fala que eles só se mudaram mesmo, que
ninguém morreu – disse um dos meninos.
- Não vem com essa história de novo! – investiu o Paulo. –
Morreu sim! Eles que não acreditam.
Quando a breve discussão acabou, Manuel já estava em
cima do muro, subindo com uma agilidade superior à da primera
vez.
- Cara...
- Eu não acredito nessas besteiras, vocês vão ver que é
conversa. Tipo mula sem cabeça. Tipo saci.
- Saci não existe? – perguntou um menorzinho,
desacreditado.
Quando se deram conta, Manuel já caminhava lá dentro.
Foram todos em cima do muro, assistindo a corajosa odisséia
enquanto apertavam as próprias pernas e comiam unhas.
- Ele vai morrer... – disse o Paulo. – Ele vai morrer
todinho.
Manuel caminhou rápido, dessa vez tomando cuidado com
os cacos de vidro. Estava decidido do que ia fazer. Não era
possível que existisse coisas como aquela, afinal, pois seus pais
lhe falavam bem claramente sobre o que era real e o que não era.

73
Bobeira. Besteira. Impossível. Mas estava gelado, gelado demais
a cada passo que dava.
Por fim, estava frente a frente ao refrigerador. A sombra
estranha se projetando, aquela sujeira e ferrugem que saltava para
fora como uma doença. Mas ia abrir. Ia abrir aquela porta SIM! E
não tinha menino em muro gritando que o fizesse desistir.
Respirou fundo, cerrou os olhos, levou a mão para lá. Abriu.
Os ossos da criança despencaram lá de dentro, envoltos
pela carne podre que tomava todo o interior, liberando o pior
cheiro que sentiria naquela vida.
Gritou.
Correu.
- O QUE FOI, MANUEL? – gritavam os meninos, lhe
ajudando a subir.
Seus olhos estáticos, tremendo, demoraram noites e noites
para dormirem mais uma vez.

74
Gergelim
com Melina Gonçalves

Aqueles meninos americanos que vemos nos filmes,


brincando num dia de neve. A maioria se chamava coisas
similares à Thomas, Matthew, mas o que figurava, de fato, eram
os apelidos - coisa que não importa tanto para a história, então
nem merecia ser citado como foi.
Os gorros e luvas, as casas de subúrbio organizadas lado a
lado em gramados e campainhas eram só enfeites ao lado de
crianças que jogavam bolas de neve aos gritos de ‘’BOLA DE
FOGO!’’ e montavam bonecos batizados de ‘’o poderoso
matador de dragões’’. Seria uma batalha e tanto para o coitado.
- Corre!
O menino desviou da bola de fogo e esquivou-se de outras
duas mais, correndo para dentro do próprio quintal enquanto os
outros iam atrás. PÁ! – uma lhe explodiu na cabeça, e caiu no
chão como um guerreiro derrotado.
- Morreu! – gritou um.
- Morri nada! Eu tenho um escudo na minha cabeça!
- Como você tem um escudo na sua cabeça?
- Tendo – disparou. – Eu... Ganhei de natal!
- Balela.
- Não é, é verdade!
- Então a minha bola de fogo era diferente, se for assim.
Era uma bola de fogo que atravessa escudos de cabeça.
- Mas... Mas assim não vale!
- É claro que vale, eu ganhei de natal.

75
- Humpf – bufou, e jogou-se no chão, aceitando o triste
destino.
Naturalmente, se cansaram da brincadeira depois de alguns
minutos e, com a chegada de um outro que carregava um trenó
(esse de fato ganhara do papai noel), decidiram que o melhor
caminho seria brincar disso. Só que não tinha morro nenhum
naquele bairro, de tão reto e padronizado, nem mesmo com a
neve.
Se colocaram, então, em direção de um outro lugar, mais
longe, mas ainda nos limites estabelecidos pelos pais e mães de
onde poderiam ir sem tomar uma surra. Era depois de uma série
de árvores de folhas fininhas, sempre liberando neve para baixo
pois o peso não suportava muita coisa. Lá, por algum motivo, a
neve se mantinha alta, com ladeirinhas, uma espécie de mega-
rampa para menores de oito anos. Naquele lugar brincaram,
desceram a ladeira que traria uma surpresa bem, bem grande.
Foi correndo, seguindo um deles que o trenó bateu numa
árvore. No momento só restavam três que não haviam enjoado da
brincadeira, tirando energia sabe Deus de onde. O moleque foi
jogado longe com o impacto, só por muita sorte não encontrou um
toco pela frente. O rastro de seu corpo, na neve, lembrava um
personagem de desenho após levar uma pancada poderosa.
- Você tá bem? – gritaram, indo até ele.
- Ai... - Estava bem, mas tonto como o diabo. Tentava se
levantar, mas a mão afundava na neve, fazendo-o cair mais uma
vez.
- Me ajudem!
- Calma, a gente já tá in...
Os meninos pararam de repente, duas figuras empacotadas,
roupas de frio azuis num mar branco.
- Ai...

76
- Ei, cara, não olha pra trás – disse um deles.
Obviamente olhou.
2
O menino ferido girou o corpo e deu de cara com um
homem morto. Sua boca pendia para o lado, quase todo
congelado, uma vez que usava apenas um suéter e uma calça.
A criança se levantou num grito aterrorizante e,
esquecendo a dor, partiu logo para perto dos amigos.
- Jesus... – um deles colocou a mão no gorro.
Era um homem estirado, esticado de braços abertos e
muito, muito pálido. A boca rachada e aberta, ferida, um rosto
tapado por um gorro enquanto o resto do corpo formava um
terrível anjo de neve. Viam cada ferida na pele, cada fio de
cabelo, cada sujeira nas unhas, era como se aquelas crianças
houvessem acabado de ligar um otimizador de sentidos, onde a
visão beirava o super-heroísmo.
- Ele tá morto? – um deles quase chorou.
- Será? Nem tá sangrando...
- É claro que tá morto, a gente tem que sair daqui e
procurar ajuda.
E não estava errado, pois de fato viam um morto jogado no
chão, congelado e sem uma única gota de sangue descendo dos
machucados. Aquilo certamente não era papel de homem vivo,
então concordaram e correram pela neve, com muita dificuldade,
deixando o defunto para trás.
Depois de alguns minutos, já cansados, a chegada se
limitava a passos lentos e respirações pesadas. De certa forma,
compartilhando espaço com o terror, havia um sentimento dentro
deles de novidade, de que revelariam uma coisa nova, tão
assustadora que toda a vizinhança falaria por meses. Residia certa
empolgação com eles - apesar de um homem morto -, então

77
imagine que surpresa tiveram quando se depararam com todos os
pais, desesperados, saíndo às pressas.
- Volta pra casa! – gritou a mãe de um dos que acabavam
de chegar.
- Por... Por qu...
- Volta!
As legiões de pais caminhavam agasalhados, um mais
preocupado que o outro, enquanto as mães permaneciam tentando
chamar os pequenos para dentro. Um verdadeiro caos.
- O que aconteceu? – gritou para outra criança, sem
entender nada.
- A gente achou um corpo!
- Ué – parou. – A gente também.
Então percebeu que os pais iam para todos os lados, não só
para uma ou duas direções. Não era que haviam achado dois
corpos – eles e o outro menino -, era que todas as crianças do
bairro haviam achado um morto para chamar de seu.
3
O pequeno bureau de madeira maciça no canto do quarto
coruscava as tímidas cores do sol que passavam pela janela. Foi a
primeira coisa que viu logo que abriu os olhos, o móvel destoava
do restante da decoração mas ali resistia, como reminiscência de
um lugar do passado que há muito não é revisitado.
Calçou os chinelos e seguiu em direção ao banheiro, a
semana precisava começar. Os dentes limpos e a pele esfoliada, o
marido estirado na cama.
- Amor, acorda! Você vai se atrasar pra reunião.
Balbuciou algumas sílabas indecifráveis, se moveu uns
centímetros na cama e voltou a inércia.
Ela então seguiu em direção à última porta do corredor,
essa que, aberta, revelou um pequeno samurai já desperto com sua

78
katana de plástico em punho, prontíssimo para a batalha. Não foi
amor à primeira vista como lhe haviam prometido. Quando ele
nasceu, com aquele pequeno e desengonçado boneco de carne
envolto por braços igualmente desengonçados, nasceu também o
medo do desconhecido.
- Mãe, olha só o que eu achei ontem na casa da vovó!
- O que é isso? – disse enquanto tentava significar aquele
amontoado de moedas e pedras empoeiradas guardadas num
pequeno baú.
- O tesouro dos netos dos piratas que viveram na casa da
vovó. Eles enterraram no jardim pra ninguém encontrar, mas eu
encontrei.
- A vovó deixou você trazer isso pra cá?
- Ela não vai usar…
- Ok. Bora comer?
- Faz leite com cereal pra mim?
- Faço.
- Eu posso ir brincar lá fora com os meninos depois do
café? Por favor, a gente tem uma missão importante hoje!
- Pode, com uma condição.
- Qual?
- Só se o extraordinário samurai que está na minha frente
cumprir a missão de tirar da cama o samurai dorminhoco do
quarto ao lado - os pés infantis saíram trotando em fúria na
direção de sua primeira incumbência do dia.
A cozinha fazia jus as dos cenários de filmes pós-
apocalípticos, as caixas de pizza da noite anterior ainda jaziam na
mesa, as louças da pia rogavam por um pouco de água e
detergente, os boletos do plano de saúde pregados na geladeira
pareciam ter desistido de seu destino final.
- Tinha esquecido da bagunça que fizemos aqui ontem.

79
- Quando eu voltar limpamos juntos, amor.
- Ainda tô de ressaca daquele filme.
- O melhor filme da Angelina Jolie.
- E da Winona também.
- “E… quer um conselho? Não aponta o seu maldito dedo
pra gente doida.”
Gargalharam juntos.
Tomados os cafés, dessa vez, os pés infantis vinham da
sala em direção a diversão que a rua prometia. Progenitor e
rebento se empacotaram nos trajes apropriados para o clima,
então saíram.
4
Mais de uma hora havia ido embora quando o burburinho
da vizinhança começou a incomodar seus ouvidos. Chegou o
corpo até o alpendre, viu o caos instaurado, as crianças narravam
aos pais o que seus olhos inebriados presenciaram. Vendo o
movimento desesperado dos adultos, ela correu para fora.
- Aconteceu alguma coisa? – Se aproximou de uma mãe.
- Aconteceu. Eles tão dizendo que encontraram corpos.
- C... Corpos?
- Sim, já tem um tempo que foram atrás ver se é verdade.
- Eles não inventariam uma coisa des... THOMAS!
Correu em direção do filho, enquanto os amiguinhos eram
puxados pelas orelhas.
- O que aconteceu? Você tá bem?
- Eu... Eu tô, mãe. Mas a gente viu uma coisa.
- Que coisa?
Então os pais surgiram, voltando da expedição. Alguns
ferviam de muita raiva, outros riam uns das caras dos outros,

80
dizendo ‘’Como acreditamos nisso, ein? Parece até que nunca
tivemos essa idade!’’.
- Era verdade? – a vizinha do lado gritou.
- Não! – respondeu o marido.
- Oh... Graças a Deus...
- Mãe... – ela olhava para o nada, ainda assustada – Mãe, a
gente viu mesmo.
- Algum deles foi até onde vocês estavam? – ela voltou o
olhar, um completamente diferente da manhã daquele dia.
- Foi, eles encontraram a gente no meio do caminho e
trouxeram pra cá.
Não disse nada.
- M... Mãe?
- Olha, eu sei que deve parecer divertido pra vocês verem a
gente cair nessas brincadeiras, mas não é engraçado. Com esse
tipo de coisa não se brinca!
- Não é mentira, eu vi!
- Não insiste, Thomas, não insiste em mentir pra mim.
- Eu juro que vi, mãe!
- CHEGA! Você tá proibido de colocar os pés pra fora
dessa casa até o final das férias. E quando seu pai chegar vamos
ter uma conversa séria, ok?
5
A noite havia sido longa e o dia acordou inquieto. Era
sempre difícil falar ‘’essas coisas não existem’’ para ele, aquele
samurai, mago, criança que é criança, mas teve que falar daquela
vez. Thomas ouviu tudo calado, sob falas duras que não eram
gritos, mas que doíam, pois uma vez que fantasiava a realidade,
fantasiava também os diálogos, os olhares, as bocas e
sobrancelhas. ‘’Você precisa ter responsabilidade com os seus
pais’’ virava ‘’Você não tem responsabilidade!’’, enquanto

81
‘’Você deve pensar sobre o que fala’’ logo se transformava num
‘’Fale só quando tiver certeza!’’. O caso é que ele tinha certeza, e
pensou que a tinha, convicção exata de ter enxergado um corpo
morto na neve, repleto de flocos caindo sob o corpo.
Num paradoxo, os pés infantis desobedientes acabaram
obedecendo a necessidade de ter certeza advertida pelos pais. Saiu
cedo, escondido, pés que seguiam aplumados em direção a cena
do crime, determinados a provar o que havia visto. Os sinos que
ornamentavam a guirlanda foram cúmplices da fuga, a maçaneta
permaneceu calada, mas a bronca da noite anterior permanecia
forte, frases e frases voltando na cabeça:
sófalequandotivercertezaessascoisasnãoexistemsófalequandotiver
certezasófalequandotivercerteza.
Ele então buscou confirmar o que seus olhos juravam ter
visto, atravessou o bairro, chegou às arvores de folhas fininhas,
desceu e subiu até onde o homem morto deveria estar. Lá, viu que
não estava.
Não entendia como era possível, via as bordas, os braços,
as pernas, mas aquilo não era morto, era só um anjo de neve.
Tudo, de repente, para ele, virou um ‘’só’’. Era só uma pedra, era
só um paralelepípedo torto, era só uma árvore seca, agora tudo o
que via eram bolas de neve, toda lâmina era de plástico, todo
dragão não existia.

82
Credo
- Você está com frio, meu amor? Suas mãos estão tão
geladas...
Disse para o morto.

83
#Publi
Sem maquiagem, encolhida no canto da Queen Size, a
blogueira chorava enquanto os likes subiam.

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Jantar
- Essa comida tá com um gosto estranho...
- Devo ter exagerado no alho – disse o canibal.

85
Transportada
Tentou abrir a gaveta de facas, só encontrou flores.
Tentou socar a cara do inimigo, fez carinho.
Tentou puxar o revólver, puxou um cartão de aniversário.
- PUTA QUE PARIU! – indignou-se – Eu tô em uma
poesia ruim?

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Hora de dormir
Decidiu cobrir-se dos pés à cabeça, pois tinha medo de que
um monstro lhe pegasse.
Descobriu que tinha claustrofobia.

87
Correção
Quem diz a frase ‘’O Rock morreu’’ está errado, o correto
é ‘’O Rock morreu, graças a Deus.’’

88
Spoiler
Falando em parábolas, tipo Jesus, voando em céus de
blues. B.B. King, John Coltrane, do morto ao vivo, de zero à cem
por hora, rumo ao futuro, de cara pro além.
Não atrasa lado, não tenta isso em casa, papo de cuidados
mútuos, que conversa é essa de enxergar vultos? Nada de tesouras
com pontas (na presença de adultos).
Brinca com fogo, passa o dedo na chama, abre a gaveta de
facas, faz todas as coisas erradas que eu tô te falando. E eu tô ou
não tô te falando? Quando eu falo não parece mais romântico?
Engraçado o poder dessas palavras, né? Dizendo o que você já
sabe, dizendo o que você não precisa aprender. É fácil saber a
hora, o pulo do gato, a virada na história, a parte que se perde na
memória.
Não faz coisa errada. Não atende o ferro quente ao invés do
telefone. Não esquece seu próprio nome: homem que sabe que
sabe. Dos desenhos de mamutes aos tablets, sempre controlado
pelas forças exteriores, produzindo e assassinando mestres, troca
as peles, placas de aço, nada de novo sob o sol de março. Nele,
todo o mundo quer bater sua asa, então não cai no mesmo delírio,
não tente isso em casa.

89
Indignado
- Puta que pariu em vocês, ein? Parece que eu tenho que
fazer tudo!
Disse Deus, morrendo de vontade de tacar um raio.

90
Carga Humana
Após acomodar as bolsas no compartimento de cima,
sentou-se na poltrona e respirou fundo. Quase se atrasara, já que o
taxista parecia mais preocupado em contar sobre seu jogo de
Bocha do que em chegar no aeroporto. Provavelmente
arrancariam sua pele se não chegasse no dia certo em Nova
Iorque, então o alívio de finalmente estar ali preencheu todo o seu
peito.
- Quanto aos cintos, é importante mantê-los afivelados
durante todo o voo. Para abrir, basta puxar a parte superior.
Verifique se a sua mesa de refeições está fechada e travada.
Informamos que é permitido o uso de aparelhos eletrônicos
portáteis somente na função modo avião. Equipamentos que não
possuem modo avião devem permanecer desligados durante todo
o voo. Durante a decolagem, smartphones devem ser
acomodados, enquanto notebooks devem ser desligados. Em caso
de emergência, máscaras de oxigênio cairão automaticamente. Se
houver uma criança ao seu lado, primeiro coloque a máscara em
você e só então na criança. Localize a saída mais próxima em
caso de emergência. Mais informações podem ser encontradas no
compartimento bem à sua frente. Muito obrigado, desejamos uma
ótima viagem!
- Esse texto não muda, né? – disse para o homem do lado,
sorrindo. O sujeito forte, provavelmente um bodybuilder, sorriu
de volta.
- Sim, mas também né? Não tem como enfiarem coisa
nova!
Uma voz chiada, mas audível e simpática, começou:

91
- Senhoras e senhores, boa noite, bem vindos ao voo 1964,
aqui é o piloto Jonas Carlos Martinelli, partindo do Aeroporto
Internacional de Guarulhos, com destino ao Aeroporto
Internacional John F. Kennedy. Nossa tripulação está preparada
para atender qualquer dúvida ou solicitação feita pelos senhores
e pelas senhoras. No mais, desejo uma ótima viagem a todos e
uma maravilhosa estadia.
2
De repente, acordou saltando da cadeira, respirando fundo
e olhando para lá e para cá.
- Desmaiou, ein companheiro? – disse o vizinho de
poltrona.
- Eu... Eu dormi?
- Pois dormiu.
- Que horas são?
Tirou o celular do bolso com dificuldade, amassando notas
de dinheiro e entortando cartões de crédito. Eram onze horas da
noite.
- Jesus...
- Relaxa que você não perdeu nada – disse o fisiculturista. -
Queria eu conseguir dormir nessas viagens.
Logo a cabeça estava no lugar mais uma vez, respirou
fundo e decidiu ir ao banheiro. Passou pelo bodybuilder com
dificuldade, as pernas se firmaram. Lá fora, a noite escura passava
sem protestos, tomando toda e qualquer visão que se pudesse ter.
Hipnotizado, assustou-se quando voltou os olhos ao corredor.
- Algum problema, senhor? – um comissário surgiu.
- N... Não. O banheiro é para aquela direção?
- Para a outra.
Sua cabeça deu um nó. Tinha certeza que era para aquele
lado, afinal entrara pelo lado que o comissário apontou. Mas não

92
tinha pelo que ficar questionando, se era por aquele lado, era por
aquele lado e fim de história, sua impressão sendo verdadeira ou
não.
Indo para lá, reparou naquelas tantas pessoas que
compunham o voo. Sujeitos de ternos grandes, mullets, mulheres
de brincos grandes e rabo de cavalo alto, lateral. Riu
internamente. Mesmo a tripulação tinha roupas mais coloridas
que o normal.
Abriu a porta do banheiro e fez o que queria fazer.
3
Voltando, encontrou o fisiculturista dormindo, quase
babando. Parou no meio do corredor quando reparou aquele rosto
que agora ostentava um bigode imenso, grosso, quase tapando os
lábios superiores. Antes que pudesse reagir, percebeu a aeromoça
no final do corredor, seu cabelo de Brigitte Bardot, o lenço e o
terninho. Os outros passageiros, agora, vestiam-se completamente
diferentes de minutos atrás.
Sentou-se com os olhos congelados.
A primeira coisa que pensou fora pegar o celular e se olhar
na câmera frontal, mas celular não havia, nem tela na poltrona da
frente, nem nada. Olhou para as janelas, o escuro invencível do
lado de fora, a taquicardia chegando. Enfiou as unhas nas próprias
coxas.
- Ei, ei cara – balançou o fisiculturista. – Ei, acorda pelo
amor de Deus.
O que dormia se levantou num pulo, assustado, o outro
rumou para a janela.
- What the fuck are you doing? – xingou.
Vendo o homem virando para dormir de novo, sem mais
praguejar, jogou-se na poltrona e se manteve olhando para a
frente.

93
- Eu estou sonhando... - é o que todos dizem.
De fato sonhou, depois, quando desabou de novo. Viu
prédios, casas e cabanas, máquinas gigantes de minas de ferro,
carros populares e carroças. Depois algo que poderia ser um
empresário, que virou um fazendeiro, que virou um macaco.
Jogado naquele transe, expulso do próprio controle de acordar e
dormir, viajou entre as luzes que a mente lhe trazia, feixes
multicoloridos, orbes, arco-íris e tons de cinza que enrolavam o
seu corpo e lhe carregavam para cima, para baixo e para os lados.
Era como se estivesse descolado de alguma coisa que não
conseguia definir bem o que era, e tão vívido se apresentava que
não era, enfim, como se estivesse dormindo. Era parte da viagem,
como uma música de espera, como uma tela de carregamento em
um site muito, muito pesado. Então sua mão ia embora, então sua
perna voltava, então via uma infinidade de pessoas atravessando
seu corpo, comendo pão com manteiga, derramando café em
ternos e chapéus cada vez mais diferentes. Pessoas voltavam,
percebeu. Começavam velhas, muito velhas, frágeis como
crianças, depois iam regredindo até se tornarem crianças de fato.
Então se transformavam em algo muito pequeno com uma luz
cegante sobrevoando, essa esperava com grande ansiedade o
futuro nascimento.
4
♪ Mas que nada,
sai da minha frente
eu quero passar
pois o samba está animado
o que eu quero é sambar ♪
Quando abriu os olhos, estava de pé em um aeroporto. As
coisas eram diferentes, as pessoas falavam outras línguas, mas
essa última que tocava em um rádio ele ainda conhecia. As
mulheres usavam luvas, vestidos de bolinhas, lenços, os homens

94
pareciam todos iguais com ternos exatamente como o que ele
agora ostentava.
- Os porta-vozes desses mesmos partidos dizem que o
Brasil está sob um golpe de estado – vinha outro rádio, mais alto,
com um sotaque muito carregado.
- Q... Que? - Falava outra língua, quando percebeu levou
tão forte as mãos à boca que quase se machucou.
Agora era um homem caminhando com as mãos na cara,
correndo, entendendo tudo o que aquelas pessoas aparentemente
muito ricas falavam. Invadiu algo, uma loja, assustando as
pessoas com um rosto horroroso de medo. Jogou-se para a frente
de uma geladeira, agarrou um calendário que lá estava, então
finalmente viu:
‘’Novembro de 1964’’
Gritou, correu, fora agarrado por guardas logo quando
colocou os pés para fora da loja. Enquanto era arrastado, sua
mente parecia derreter, incapaz de assimilar qualquer coisa que
estava acontecendo.
♪ Mas que nada
um samba como esse tão legal
você não vai querer
que eu chegue no final ♪

95
Compra-se
esteiras elétricas
♪ Não posso sair do Salgueiro,
estamos em Fevereiro,
você quer me levar pra Copacabana,
quer me ver toda bacana,
mas já tenho um pandeiro ♪
Os homens de paletó estavam sentados em frente ao bar,
alguns de bigodinhos e chapéus enquanto outros ostentavam
penteados muito fixos parecidos com pequenas ladeiras,
caprichados na navalha.
- Bom dia pra senhorita... – tirou o chapéu branco. A moça
grávida sorriu e continuou o seu caminho.
- Essa mulher já não está grávida há uns onze meses? -
disse um deles, vendo ela distante.
- Não sei... Está?
- Não há como – interferiu um terceiro. – A gravidez é por
nove meses, não mais que isso.
- É lógico que eu sei disso, rapaz, digo é que está há muito
tempo, parece grávida de anos.
- Não sei... Não fico reparado muito nisso nã...
- Iiiih... – um entrou na frente. – Veja lá se não chegaram
os figurões.
Do nada, todos os rapazes se levantaram das cadeiras.
Todas as moças pararam de caminhar. Até os cachorros se

96
interessaram, pois, mais uma vez, Geraldinho Pereira e Osvaldo
Penteado se encontraram nas ruas de Vila Isabel.
- Boa coisa não vai ser...
- Eu é que não vou puxar canivete da mão de ninguém.
Bem... Geraldinho Pereira e Osvaldo Penteado eram
sambistas conhecidos na região (não muito fora de lá, é verdade),
músicos respeitados em todos os momentos, exceto quando
estavam em um mesmo ambiente, dividindo oxigênio. A
rivalidade era conhecida em todo o bairro, literalmente, não havia
um que não assistira alguma briga, um violão sendo quebrado no
coco ou tentativas de estrangulamento. Tudo começou quando
Geraldinho e Osvaldo se esbarraram em uma calçada, daí foi
‘’Você pisou no meu sapato!’’ e ‘’Eu? Você é quem pisou no
meu, canalha!’’ para tudo quanto é lado.
- Veja só quem está aí! – Osvaldo cuspiu no chão.
- Não quero briga hoje, ein – respondeu o Geraldinho.
Carregava um violão. – Não tou com tempo pra você.
Toparam cara a cara.
- E é você quem escolhe? E se EU quiser brigar?
- Vejam aí! Vejam aí! – gritou. – Depois SOU EU o
errado! Eu nunca lhe fiz nada!
- O QUÊ? – Osvaldo levantou o terno, mostrando a
cicatriz. – Você me esfaqueou!
- Você esfaqueou ele! – gritou um cara na platéia.
- Eu... É que... EU ESTAVA BÊBADO!
- Ora seu...
Osvaldo pulou para cima de Geraldinho, já acertando um
direto entre seus olhos. Mesmo atordoado, respondeu ao golpe
com uma violãozada nas costelas, sendo atingindo por mais
quatro socos na cara, logo após. Muito sangue escorreu.
- Você vai matar o homem!

97
- Menos um fazendo peso!
Na mesma hora tomou uma cabeçada no pescoço e uma
cotovelada no escutador de rádio. Se afastaram, ambos melados
de sangue em seus ternos de classe média.
- Parou, rapazeada.
- PAROU NADA! – gritou o Geraldinho.
- É! PAROU NADA! – concordou o Osvaldo Penteado, em
uma estranha união contra o inimigo em comum.
Quando se preparavam para mais uma rodada, não só eles
pararam, como a rua toda. Ouviram passos na calçada lá da frente,
alguém corria.
Todas aquelas pessoas da década de 40 pareceram
congelar. Os dois sambistas ensaguentados, os homens dos bares,
as moças nas calçadas, qualquer um que estava ali serviu de
platéia para a moça que vinha correndo. Vestia tênis coloridos,
calça legging, uma regata de corrida e... Bem... Fones de ouvido.
Não parecia muito preocupada com quem estava lá do lado, no
jeito estranho que eles se vestiam, da mesma forma que, para eles,
ela é que era a aberração. Sumiu quando virou a calçada.
Os populares olharam uns para os outros, embasbacados.
Não era só algo diferente, engraçado ou curioso, era destoante da
realidade. Sentiam na própria saúde que havia algo fora do lugar.
Algo errado. Desequilibrado.
2
- Achei que você já tinha parido à essa altura.
- Pois é, mas está perto. Quando chegam os últimos meses
sempre parece que estamos grávidas há anos.
- Sim...
A barriga estava enorme, jogada para fora enquanto a
grávida que lhe carregava se mantinha jogada na cadeira, de
frente para a janela.

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- Veja lá como os trastes ficam – disse a amiga, com a mão
em seu ombro.
- O quê?
- Mexendo com as moças, bebendo o dia todo... Até parece
que são ricos.
- E não são? Sempre pensei que eram.
- Bem... Um deles é – disse deseinteressada. – Aquele
loirinho.
- O resto é parasita?
- O resto é parasita – apontou. – Aquele é o Carlos Viana, o
loirinho, que fica pagando cachaça pro resto o dia todo, sabe-se lá
por que. O batendo canivete do lado dele é o João Carlos, os
outros dois Paulo Matos e Clifford Ree... Como é? Reeves! Isso,
um americano que gostou mais daqui do que de lá.
- Um homem de juízo.
- Certamente.
- Mas me diga, como você sabe o nome de todos? –
perguntou a grávida.
- Eles fazem questão da gente saber, veja lá.
Era aquilo, um bando de bobos gritando com mulheres na
rua. Desde antes do mp4, desde antes dos Walkmans e dos fones,
os homens não suportam a companhia de outros homens sem se
revelarem completos perturbados.
- Então eles ficam gritando a própria profissão? Que
interessante...
- Para não dizer vergonhoso.
O barulho lá de baixo era ridículo, e nem moravam tão
perto do boteco assim. Eram coisas como ‘’VEM CÁ, SOU
ADVOGADO!’’ e similares. A zorra parou de repente, então.
- Ué.

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- Ah, essa moça... – disse a grávida.
- Que moça?
Então a mulher dos fones de ouvido, calça legging e tênis
de corrida passou em seu exercício matinal, calando a boca de
todos os homens.
- Que roupas... – disse a amiga.
- Deve ser americana.
- Americana? Deve ser Marciana.
Gargalharam enquanto um dos ‘’malandros’’ caía
desmaiado após a moça virar a curva.
3
- Eu acho que você deveria bater com menos força.
- Mas aí fica menos real.
- Mas aí dói menos – rebateu.
- Relaxa, Geraldinho, a gente logo fica famoso de verdade
e não precisa mais disso. No bairro funcionou.
- Sim... Mas de toda forma essa é a minha vez de bater.
- É?
- É. Vamos seguir aquele primeiro ensaio, ninguém vai se
lembrar mesmo, já faz muito tempo.
- Feito.
Osvaldo e Geraldinho infelizmente não encontraram
nenhum dos bêbados naquele dia. Tiveram que fingir cara feia e ir
embora, uma vez que era impossível seguir o roteiro sem o grito
dos bobos na rua.
4
- A gente tem que ir atrás dela.
- Tá doido?

100
- O que são aquelas coisas no ouvido, hein? E aqueles
sapatos? Essa mulher tá tramando alguma coisa, ninguém nunca
ouviu falar dela aqui.
- Eu não vou.
- Nem eu.
Todos negaram. Quais as chances daquilo dar certo? O que
há para dar certo, afinal? Carlos Viana, o loirinho advogado, teria
que ir sozinho nessa, pagasse cachaça de graça para os amigos ou
não.
- Então fica assim, vou sozinho! Mas não reclamem
quando eu sair no jornal depois de desmascarar isso.
- Vá firme – riu um deles. – Só não seja preso e tá jóia.
Logo a moça surgiu correndo. Mais uma vez os tênis
coloridos e os fones lançaram suas expressões para os pilares da
Terra. Virou a esquina.
Carlos engoliu seco, pois apesar de aterrorizado pela
sensação, não podia amarelar na frente dos puxa-sacos. Ajeitou o
chapéu na cabeça e saiu caminhando rápido, atravessando a rua
sem qualquer medo de ser atropelado.
- Maluco – disse um dos caras, e bebeu a cachaça.
- E como...
5
Quando Carlos virou a esquina, todos os bêbados
desapareceram. Não houve pirotecnia, não se transformaram em
poeira, nem brilharam, nada do tipo. Só desapareceram, como se
um botão acabasse de ser apertado. Os copos giraram solitários,
os cigarros caíram, a caneta do dono do bar despencou no chão.
O moço disparou quando viu a mulher na próxima esquina.
Chegando no fim da rua, aconteceu mais uma vez. E outra. E
outra. Depois, só depois, completamente molhado de suor, lhe
encontrou parada em frente à uma casa.

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- Jesus Cristo... – vomitou.
Era um mal estar inacreditável, como se possuísse uma
alergia fortíssima ao que seus olhos viam. A mulher – que ainda
não vira o rosto – tentava girar uma chave. Carlos limpou a boca e
caminhou em sua direção, apesar de cada instinto de seu corpo
dizendo para fazer o contrário. O calor aumentava a cada passo, a
visão embaralhava e voltava ao normal, as formas geométricas da
rua, das grades e dos muros esticavam e contraíam.
Quando a moça abriu o portão, ele foi atrás.
6
A grávida teve a sorte de desviar o olhar bem quando os
bêbados desapareceram, mas era curiosa, teimosa demais, jurava
que acabava de ter visto um bando de homens desaparecerem.
- Ué.
Desceu as escadas às pressas e, saindo da porta, encontrou
Geraldinho Pereira e Osvaldo Penteado indo embora quase lado a
lado, o que deixava a situação mais estranha do que já estava. Era
muito raro não ter uma única alma naquela rua, ainda mais no dia
da criação, tão cheio de gente querendo resolver pendências dos
outros seis.
Daí veio a vontade incontrolável, termo que usou para
contar a história até o fim de sua vida, quando morreu de
pneumonia. A boca ficou seca, tão rachada que sangrou. Se podia
ser comparada a algo, era como uma sede.
O horizonte brilhou. Entre as casas, aquela alguma coisa
que não era nem dourada, nem prateada, nem vermelha e nem
amarela lhe chamava pelo caminho. A barriga, gigante em todos
os seus meses, doeu.
A luz tomou seus olhos, que agora não eram castanhos
(nem dourados, nem prateados, nem vermelhos, nem amarelos),
assim como o céu também abandonara o azul, os tijolos sua

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tonalidade usual e o vestido branco transmutara em outra cor
desconhecida, por qualquer motivo que não fosse sujeira.
Caminhou.
O chão afundava, como se descesse mais escadas, mas
andava em linha reta na vida real. A calçada cobria a sua cabeça,
as casas se juntavam e saíam correndo de mãos dadas, estrelas
mortas caíam em sua frente da forma como as enxergava de
longe, e não como eram de fato, tudo isso enquanto um pequeno
som acompanhava o caminho, soando como cinco garfos riscando
o fundo de um prato. Quando essa música parou, deu de cara com
a casa.
Percebeu Carlos Viana correndo para dentro do casarão,
seus olhos naquela cor que não era uma, nem outra. Tentou abrir a
boca, mas não conseguia dizer nada, era como se sua única função
fosse experenciar.
Um Honda Civic 2009 atravessou seu corpo.
Acompanhando o movimento do automóvel, tão diferente
de todos de sua época, percebeu que as paredes também iam e
vinham, as ruas, as casas surgindo e se tornando outras coisas.
Sua mão, uma hora jovem, outra repleta de rugas e veias azuis, a
sensação de estar viva, depois morta, depois saudável, depois
doente. A vontade incontrolável lhe fez ir para dentro.
Na casa, não era diferente. A moça dos fones de ouvido e
roupas estranhas (que ela sabia o que eram, depois não sabia, e
depois sabia) era observada por um Carlos Viana em transe. A
jovem parecia nem saber que eles estavam ali.
- Claro mãe, posso passar aí sim – disse num quadrado de
ferro iluminado, encostado na própria orelha. – Só vou terminar
alguns trabalhos antes, depois do almoço apareço aí, ok? Certo, te
amo!
Ela sentou-se no nada, os dedos se moviam como se faz em
máquinas de datilografia. Sua barriga doeu mais uma vez.

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Carlos agora flutuava pelo quarto, separado em todos os
membros de seu corpo. O braço sobrevoando, as pernas girando
no teto como ventiladores, tudo sem um pingo de sangue. Algo
havia tirado a lógica daquele rapaz, de vez em quando mais
lembrava uma folha de papel do que um homem propriamente
dito. Nesse momento, sua barriga doeu definitivamente. A cor
sem definição deu lugar a um breu completo.
Quando acordou, estava no chão, bem em frente àquela
casa. Pessoas conversavam, passavam panos em sua testa, um
homem de branco sorriu ao lhe ver consciente.
- Ela está bem! Ela está bem! Veja!
O médico trazia algo em sua direção, algo grande e que
chorava. Lhe colocaram sentada, lhe deram nas mãos.
- É uma menina! É uma linda menina!

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