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Diretoria da Educação Infantil da Rede

Municipal de Jaraguá do Sul – 2015

4.8 O PAPEL DA BRINCADEIRA NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA

A atividade lúdica é […] uma das formas pelas quais a criança se apropria do
mundo e pela qual o mundo humano penetra em seu processo de constituição
enquanto sujeito histórico (ROCHA, 1994, p. 48).

Leontiev, Vigotsky e Elkonin foram os teóricos da Psicologia Histórico-Cultural que


aprofundaram a pesquisa sobre o brincar da criança em idade pré-escolar 1. O brinquedo para
Vigotsky constitui-se no mais alto nível de desenvolvimento. Para Leontiev, a atividade lúdica
é a atividade principal da criança em idade pré-escolar considerada dentro das condições
sócio-históricas da contemporaneidade. Mas... como surgiu o brincar de faz de conta?

Elkonin mostra o aparecimento e o desenvolvimento do jogo como resultado do


afastamento da criança das atividades produtivas e um adiamento de sua inserção no universo
do trabalho adulto. Ou seja: “[...] nas culturas por ele consideradas primitivas, nas quais os
sujeitos de tenra idade participam das atividades ligadas à subsistência de seus membros, não
se registra nada que se possa identificar como jogos de papéis” 2 (apud ROCHA, 1994, p. 42).
O surgimento dos objetos lúdicos está relacionado com as alterações históricas. Na trajetória
de transformação dos objetos lúdicos aparecem primeiro aqueles que são uma cópia dos
instrumentos utilizados pelo homem no trabalho, com redução de tamanho. Paulatinamente, a
relação entre instrumentos de trabalho e objetos lúdicos vai se tornando mais indireta,
surgindo nesse distanciamento a constituição de duas categorias bem distintas: objetos feitos
para o trabalho e objetos para brincar 3. Disso decorre que as ações necessárias e o produto,
resultado da interação com os objetos de brincar, tornem-se cada vez mais simbólicos,
constituindo-se, assim, as condições necessárias para o aparecimento do jogo de papéis.

Desse cenário, destaca-se uma questão imprescindível para a Educação Infantil na


contemporaneidade. Dadas as condições histórico-contemporâneas,

1 Idade pré-escolar é subentendida neste documento como a criança em fase de Educação Infantil diferente de
Pré-escola, última etapa da Educação Infantil.
2 O jogo protagonizado, segundo Elkonin, 1998, as crianças ao serem separadas do mundo do trabalho dos
adultos iniciaram a necessidade de brincar de faz de conta, como forma de se apropriar da cultura e do mundo
dos adultos. Vigotsky refere-se ao jogo protagonizado como jogo de papéis.
3 Ibidem, idem, p. 42.
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[…] em que a variedade de atividade laboral é enorme, envolvendo


procedimentos e instrumentos de trabalho diversos, em que a infância é socialmente
constituída, com as especificidades e particularidades de cada cultura, quais as
mediações, os objetos e as ações que podem ser apontados como fundamentos do
brincar? (ROCHA, 1994, p. 43).

Para Elkonin, a pré-história das ações lúdicas é a história das relações da criança com os
objetos, através de ações e aquisições sensório-motoras4, que vão sendo moduladas na cultura
em que ela se desenvolve5 . Esses primeiros contatos, no entanto, para Elkonin, não podem ser
chamados jogo de papéis. A não coincidência entre apropriação utilitarista 6 do objeto e as
atividades de significação desse mesmo objeto constitui dois tipos de atividades distintas. É
dessa segunda que deriva o jogo simbólico. Elkonin esclarece que não é durante o jogo
simbólico que a criança vai conhecer as propriedades dos objetos. Isso acontece ainda na
etapa da exploração e investigação.

No jogo, os objetos são assimilados fundamentalmente em sua significação. As ações com


os objetos de maneira independente pela criança dão-se pela forma como foram utilizados na
atividade conjunta com os adultos. Isto é, o uso do objeto pela criança dá-se semelhante ao
modo como viu o adulto fazendo uso dele, principalmente se a criança pode compartilhar da
ação. Em prosseguimento, pela significação e mudanças que ocorrem desse uso, vários
deslocamentos vão se tornando possíveis, dando novos rumos à operação inicial7.

4 Segundo a teoria dos estágios de desenvolvimento piagetiana, o estágio sensório-motor compreende a idade de
0 a 2 anos.
5 Ibidem, idem, p. 43.
6 A apropriação utilitarista do objeto significa manusear o objeto conforme a finalidade para que ele foi criado.
Por exemplo, uma xícara serve para tomar café; um pente, para pentear. Esse uso pode ser feito pela criança
quando ela ainda não está na fase do jogo de papéis.
7 Enquanto que por volta dos três a quatro anos a criança utiliza, pelo jogo simbólico, o significado do objeto
advindo do significado que os adultos lhe atribuíram, com a passagem do tempo ela poderá acrescentar novas
funções a esses objetos e recriar situações que antes não eram possíveis.
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Diferentemente dos bebês, nas crianças pequenas, por volta dos três e cinco anos, o jogo
de papéis é a atividade principal. Mas não porque é quantitativamente predominante e sim
porque é uma atividade com a qual ocorrem as mudanças mais importantes no
desenvolvimento psíquico do sujeito e no interior da qual se desenvolvem processos
psicológicos superiores8 que preparam o caminho em direção a um novo e mais elevado nível
de desenvolvimento e a novos tipos de atividades.

Leontiev afirma que a motivação da atividade lúdica se diferencia de uma ação real. Nesse
ponto vale frisar que as práticas pedagógicas com crianças dessa faixa etária não encontram
respaldo na concepção de que o adulto (professor/a) ensina e a criança aprende 9,
semelhantemente como acontece nos níveis posteriores da educação básica. A ação lúdica é
independente de seu resultado objetivo porque a motivação não reside no resultado. Os
motivos de brincar concentram-se no processo e não no produto da atividade. Esta é a
diferença em relação ao trabalho e outras atividades. Os ganhos em termos psicológicos não
operam de maneira intencional, do ponto de vista da criança (ROCHA, 1994). Porém, para os
estudiosos da Teoria Histórico-Cultural a atividade lúdica tem grande impacto no processo de
constituição do sujeito, como por exemplo, operar transformações entre o campo perceptual e
o comportamento da criança; construir a capacidade para aquisição das formas de
representação do mundo, incluindo a leitura e a escrita; invocar a formação da consciência e
da capacidade imaginativa.

O jogo de papéis, que tem suas próprias regras 10, apesar de não estarem estabelecidas e
formalizadas anteriormente, abre o caminho para a criança brincar com o jogo de regras11,

8 Dentre as funções psicológicas superiores estão a memória, a consciência, a percepção, a capacidade de


planejar e fazer previsões, a atenção.
9 A aprendizagem é o motor do desenvolvimento. E o desenvolvimento na Educação Infantil decorre da
ampliação das vivências e das experiências das crianças e não de situações em que o professor toma para si o
papel de ensinante e a criança o de aprendiz. Ambos aprendem e se desenvolvem como seres humanos,
permeados pelas interações.
10 As regras estão implícitas de acordo com os papéis que os atores sociais assumem no convívio social. Por
exemplo, quando as crianças imitam a cena familiar, o papel do pai, o papel da mãe e o papel do filho
apresentam-se com características específicas. Essas características são as regras que as crianças respeitam
durante o jogo de papéis (jogo simbólico/jogo protagonizado/faz de conta).
11 O jogo de regras é a brincadeira que possui regras previamente definidas, que têm de ser conhecidas por todos
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que, ao contrário do jogo de papéis, tem suas regras explicitadas e seu grau condicionante é
cada vez maior para a criança. Segundo Leontiev (1989, p. 139), “Dominar as regras significa
dominar seu próprio comportamento, aprendendo a controlá-lo, a subordiná-lo a um
propósito12 definido”13. Pelo jogo de regras a criança passa à autoavaliação de seu
comportamento, no que se refere a sua destreza, habilidades e progressos, bem como, a
alcançar um desenvolvimento moral decorrente de ou facilitado por essa modalidade de jogo.

Para Elkonin, o papel no jogo simbólico apoia-se em brinquedos que possuam um


conteúdo e que sugerem um sentido humano às ações realizadas. Parece que o brinquedo
facilita o processo de assumir um determinado papel. O “cenário temático” é tanto mais
importante quanto menor for a criança. Crianças mais velhas conseguem sustentar seu papel
de maneira relativamente independente dos objetos (ROCHA, 1994, p. 56). Por isso, os
teóricos que estudaram o brinquedo afirmam que o percurso da atividade lúdica segue esta
sequência: ações (exploração dos objetos), papéis (os personagens que assume), temáticas (o
que escolhe brincar: casinha, motorista, mercadinho...).

Mesmo a criança já estando na pré-escola, quando o jogo de regras é predominante e ela já


é capaz de abstrair a função dos objetos, apesar não os ter presente, o jogo de papéis continua.
Por isso é importante que os ambientes permaneçam com “cantinhos” para que ela continue
brincando de faz de conta.

De que forma o real penetra na atividade lúdica? As ações reais são substituídas, os
objetos são usados com outros significados, acontece o desempenho de papéis e a situação é
imaginária ou temática. Todo objeto lúdico tem de comportar a ação lúdica 14. Por isso “nem

para poder brincar, por exemplo brincar de roda, brincar de ovo choco, brincar de jogos de tabuleiro (xadrez,
ludo, memória, entre outros). O jogo de regras geralmente tem um mediador mais experiente, fazendo com que
essa brincadeira seja conhecida como uma brincadeira dirigida. Outro aspecto importante a ressaltar é que o jogo
de regras é do interesse da criança mais velha, quando ela já adquiriu mais consciência sobre suas capacidades,
seu autocontrole e reconhecimento da sua competência para o jogo.
12 O propósito é de assumir o papel do jogo protagonizado.
13 Apud ROCHA, 1994, p. 51.
14 O objeto que é escolhido pela criança conserva o mínimo de suas características. Então, se ela escolher
telefonar, poderá utilizar-se de um objeto que seja semelhante ao telefone, como por exemplo um controle de
televisão fazendo o papel de celular; um balde de areia pode servir como capacete.
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tudo pode ser tudo”15. Os objetos devem comportar um mínimo de correlação com seu uso
pelos adultos. O real também é inserido na atividade lúdica pela esfera imaginária porque no
desempenho de papéis a criança escolhe as ações possíveis que se ajustam às regras de
comportamento do papel desempenhado. As temáticas que as crianças escolhem para suas
brincadeiras também se originam de parcelas da realidade que elas observam e ou
experimentam em sua vida cotidiana16.

Durante o jogo, a linguagem oral (fala) ganha papel preponderante. As possíveis


alterações na brincadeira ou na forma de as crianças brincarem estão atreladas ao uso da
linguagem. O “outro” atribui significados à atividade lúdica, apresenta outras intenções, o que
estimula a capacidade dos envolvidos. Quanto à linguagem da própria criança:

• primeiro ela nomeia a ação que executou. O objeto é falado segundo o que vai
representar;

• com a experiência, o significado nomeado é que vai determinar as ações;

• a criança denomina quem ela é no jogo de papéis e depois passa a agir de acordo com
o que cabe ao papel.

A linguagem torna-se um dos elementos fundamentais no processo de regulação das


interações. Perguntar à criança do que ela está brincando ajuda-a a nomear a temática,
favorecendo-lhe a consciência sobre a situação lúdica como um todo, diz Rocha (1994).

À medida que o desenvolvimento prossegue, o processo de nomeação tende a se


deslocar cada vez mais para o início do jogo. Esta antecipação decorre de
alterações na competência linguística da criança e permite que sua atividade lúdica
seja controlada cada vez mais pelas ideias, seja cada vez mais planejada (ibidem, p.
62).

Num jogo de papéis existe a permanente alternância. Nem pura fantasia, nem pura

15 Ibidem, idem, p. 59.


16 Ibidem, idem, p. 59.
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realidade transposta17. Objetos são usados com novos significados; objetos são usados com
significados reais. As ações são generalizadas e substitutivas; ações concretas, literais. Tudo
isso exige da criança a capacidade de ignorar determinadas características de um objeto; ao
mesmo tempo em que é necessário considerá-las para que a ação substitutiva seja possível 18.
O imaginário não é condição para a criança brincar; é consequência das ações lúdicas19.

A criança, ao selecionar, ao representar e ao estar desobrigada de reproduzir literalmente o


que representa, pode produzir uma nova síntese sobre o que já existe e pode projetar o novo,
aquilo que ainda não está dado. E a linguagem é o grande propulsor para ampliação e
conservação das experiências20. A palavra surge como instrumento que possibilita à criança
criar e agir com objetos ausentes, sem nenhum suporte material compor personagens que na
verdade estão ausentes do jogo e relacionar-se com eles coordenando ações que podem apenas
ser indicadas.

Vigotsky explica que à medida que a criança cresce, o jogo de regras ocupa um espaço e
importância cada vez maiores e há um declínio do jogo de papéis.

17 Quando a criança brinca de faz de conta pinça fragmentos da realidade, não transpondo-a em sua totalidade
para a brincadeira. Na verdade, é possível perceber na brincadeira dados da realidade em que a criança vive
como também cria situações. Segundo Oliveira (2011, p. 32), as crianças constroem, jogam, completam,
modificam papéis.
18 Ibidem, idem, p. 63.
19 Uma das funções psicológicas superiores, que se constrói pela interação durante as brincadeiras de faz de
conta, é a imaginação. Por isso, apesar de a brincadeira desenvolver a imaginação, ela não é condição prévia para
brincar.
20 Ibidem, idem, p. 67.

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