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Dentre os processos de criação da ciência na Modernidade, está a fragmentação e a hierarquização de
termos que entendo como indissociáveis. Dessa maneira, para marcar essa superação, em alguns
momentos escreverei juntando esses conceitos, colocando-os em itálico.
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O uso de termos que não demarcam masculino ou feminino está na necessidade de superar o binarismo
cis-hetero-normativo tão opressor às pessoas que não se incluem nas regras desse sistema. Venho
aprendendo essa maneira de subverter tais imposições, especialmente, com os movimentos sociais. Ao
longo desse processo, já utilizamos o “@” e o “X”, atualmente, escrevendo a letra “E” no lugar da vogal
que designa o gênero em nossa língua, dessa forma, facilitando também a leitura. Outras palavras podem
assim aparecer escritas, mas como nosso código também tem seus limites, nem sempre é possível fazer tal
subversão.
Das crianças e infâncias em tempos de terrorismos e barbáries
Figuras 1: Imagens de propagandas da marca de creme dental Kolynos. Brasil, década de 1940. A primeira imagem
foi retirada da internet. As duas seguintes foram fotografias que fiz na exposição J. Carlos: originais, no Instituto
Moreira Salles.
Figura 3: Foto da AFP. Ação militar nas favelas do Rio de Janeiro. Março
de 2014.
it’s war, baby, c’est la guerre, mon amour
la france est em guerre, america is at war,
vamos tomar um champanhe com os diretores
da samarco, da billiton, da vale do rio doce.
do jornal o globo, comprar todos eles,
a maioria dos políticos e sair o quanto antes
com a petrobrax (e com o que mais der)
debaixo do braço, c’est la guerre, ma cherie,
it’s war, Darling, nós, os civilizados,
declaramos “guerre aux barbares”,
gozemos então sinistramente com as mortes
dos outros (...) (Pucheu, 2017:22).
Figura 5: Esta imagem apareceu para mim através da postagem de uma amiga numa rede social. Apesar do esforço
para encontrar mais informações sobre ela, não consegui. A partir da conversa que ela suscitou na rede social,
suponho que seja um registro recente das ações militares – e no caso, dos meninos – nas comunidades do Rio.
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Caio Prado é um artista que vem se destacando no cenário da música. Sua obra é facilmente encontrada
na internet. Porém, não consegui nenhuma fonte “oficial” da letra da canção. Deixo aqui um link onde é
possível ouvir a obra e ver a performance de Caio: https://www.youtube.com/watch?v=aq5yOS_XtNU.
A população que mora nas favelas – e penso, especialmente, nas crianças e nos
jovens – vive numa sociedade capitalista, com seus produtos e fetiches, mas sem ter
acesso adequado à saúde, educação, saneamento básico e outras condições que dão à
vida algum conforto e dignidade. Essas pessoas vivem cerceadas dos espaços públicos
dos lugares em que moram por força das ações militares que invadem seu território. Não
vivenciam os demais espaços da cidade em plenitude, pois para frequentá-los precisam
enfrentar os limites impostos pelas políticas de afastamento que vão do transporte
público ao se sentir estranho, estrangeiro, em determinados lugares e situações. São os
não recomendados à sociedade, os meninos malvados, de péssima aparência, são más
influências: cuidado! Convivem ainda com rajadas de metralhadoras, revistas que
invadem seus corpos, tanques atravessando seus caminhos. O sangue que escorre, as
balas que em nada são perdidas, a morte sempre presente. Fugir, correr, se esconder,
tapar os ouvidos, fechar os olhos. É barbárie, a barbárie do sistema. Esse é o cenário que
não permite experiências, é do fim das narrativas.
Ainda assim, crianças e jovens vão resistindo e encontrando maneiras de burlar
os muros do sistema. Inventam cotidianamente suas táticas. Irrompem com sua
criatividade a ordem. Pensado na imagem 5, que inicia esta parte do texto, e fazendo um
paralelo com o que Benjamin (2012:125) fala sobre as obras de Paul Klee, é possível
trazer o autor afirmando que a expressão fisionômica dessas figuras, diria eu que a
expressão dos meninos que aparecem na foto, com os movimentos de seus corpos e, em
especial, os gestos de suas mãos, obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, mais
que à interioridade: é isso que as torna bárbaras. Experiência é aquilo que se diz de
dentro das coisas e das coisas de dentro. É nesse movimento de por em ruína a barbárie
do sistema catalisando nossa própria barbárie que vamos seguindo. Toda ruína indica
barbárie, mas também é potência para o novo, como um recém-nascido nas fraldas
sujas da nossa época.
Nesse contexto, é preciso resgatar o conceito de experiência desenvolvido por
Benjamin. Pensando com Larrosa (2002:27), a experiência nos afeta e, por isso, pode
nos provocar. Experiência é o que nos desloca, permitindo e possibilitando o que está
por vir. Por isso, é potência de vida, aquilo que é capaz de dar sentido ao acontecer do
que nos acontece. Experiência é o que nos passa; não é o que se foi, mas o que
permanece. Porém, não no sentido com o qual o velho torna menor o que é vivido pelo
novo – tal qual faz o filisteu, de maneira cinzenta e prepotente (Benjamin, 2009:24). É,
sim, a capacidade de diálogo do velho para afetar o novo, muitas vezes, valorizando as
tradições, as memórias. Ou vice-versa. Nada é mais odioso ao filisteu do que os
“sonhos de sua juventude” (Benjamin, 2009:24). A experiência não é o conselho dado,
mas a sabedoria partilhada. E, ainda que partilhada, é única, pessoal.
A barbárie há de ser nossa, contra a mão do progresso que nos empurra, nos
esmaga. Esse progresso enquanto projeto nos descaracteriza, nos inferioriza e se coloca
hegemonicamente com suas normatividades. Nossa barbárie vai tomar os tesouros da
mão da história e escová-la a contrapelo (Benjamin, 2016:13). Com efeito, a
humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais
importante: ela o faz rindo. Talvez o riso – igual ao daqueles meninos da última foto –
tenha aqui e ali um som bárbaro (Benjamin, 2012:128).
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: O anjo da história. 2ª ed.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016:7-20.
_________________ A hora das crianças: narrativas radiofônicas de Walter
Benjamin. Rio de Janeiro: Nau Ed., 2015.
_________________ Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras Escolhidas vol 1) 8ª Ed. revista.
São Paulo: Brasiliense, 2012:123-128.
_________________ Experiência. In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e
a educação. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009: 21-25.
_________________ Programa de um teatro infantil proletário. In: Reflexões
sobre a criança, o brinquedo e a educação. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34,
2009: 111-119.
_________________ Uma pedagogia comunista. In: Reflexões sobre a criança,
o brinquedo e a educação. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009: 120-125.