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Crianças, barbáries e terrorismos: conversando com Walter Benjamin

entre imagens e poesia

A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,


Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo...
(Mario Quintana, 2005)

Com todos os caminhos do mundo abertos e várias companhias, vou me jogando


nesse texto, buscando com Walter Benjamin, com imagens e com poemas tecer
reflexões acerca das infâncias. Na tentativa de melhor entender as concepções de
Benjamin, uma constelação de imagens foi aparecendo ao longo das conversas com o
autor. O primeiro conjunto de imagens surgiu na exposição J. Carlos: originais,
realizada no Instituto Moreira Salles e é formado por propagandas da década de 1940 da
marca de creme dental Kolynos. As demais imagens são fotografias jornalísticas
publicadas em reportagens sobre as ações militares nas favelas do Rio de Janeiro. Em
alguns casos, as imagens dialogam diretamente com trechos do poema Para que poetas
em tempos de terrorismos?. Poema que, assim como as imagens, cruzou minhas
conversas com Benjamin, já que narra, interpela e faz refletir situações que me
trouxeram algumas das inquietações presentes neste trabalho.
Voltando às imagens, não necessariamente preocupei-me em descrevê-las no
texto ou fazer referência direta a elas, entendendo que compõem aquilo que quero dizer.
As imagens aqui podem ser reflexões e complementações do que eu tenha escrito. Por
isso, não tenho como estabelecer uma única forma de trabalho com elas.
E não é por acaso que as imagens fazem parte desse trabalho. Aprendo com
muitos pensadores sobre elas, e Walter Benjamin também me ajuda nesse processo. Ele
me leva a dialogar com outras maneiras de estar no mundo e buscar outras formas de
tentar entendê-lo, narrá-lo. O conhecimento Moderno, do pensamento abstrato e formal,
da razão, que entende como verdade aquilo que é produzido exclusivamente pela
ciência e que se vale apenas daquilo que está escrito, inferioriza a memória, a imitação,
a repetição, as imagens, a oralidade. Nesse bojo, enfraquece a capacidade humana de
fantasiar e fabular (Matos, 2010:132). Desqualifica outros conhecimentos tecidos
cotidianamente fora do projeto da Modernidade. Isso ocorre, entre outros motivos,
porque há uma disputa de projetos, de valores.
A Modernidade – e a ciência que nela surge – vincula moderno e progresso em
oposição ao passado associado ao atraso. Esse sistema busca romper nossa ligação com
a narrativa, a fala, o provérbio, esvaziando os conhecimentos práticos cotidianos. A
concepção de conhecimento Moderno relaciona-se com a verdade única e universal, o
que é diverso, múltiplo, divergente é desprezado.
Nesse contexto, a imagem é destituída do lugar de produção de conhecimento,
de seu valor epistêmico tal qual a imaginação e a memória. E isto nos é muito caro,
afinal, somos marcados por uma formação social, histórica e cultural com base nas
tradições orais e rituais de nossos povos originários e dos africanos escravizados que
para cá foram forçados a vir. A escrita, no projeto da Modernidade, ocupa o lugar
central da produção do conhecimento.
A imagem é artefato de criação, de invenção. Ao contrário do que previa a
tradição das belas artes que ensinava a lê-las, com as imagens produzimos saberes que
não demandam conhecimentos prévios, formais, estruturados. A imagem comunica, ao
menos, aos videntes. As imagens estão aqui, ali, estão postas, são produzidas, postadas,
publicadas, compartilhadas. As imagens podem ser o lugar do possível, do real, da
ilusão, da mentira.
As imagens estão aí e, contemporaneamente, também são campo de disputa. E o
capital se apropriou dela, criando seus conglomerados de mídia para tentar o controle do
que se produz, do que se comunica. No cinema, na tv, nas redes sociais, nos serviços de
streaming, na propaganda. Afinal, não só é burguesa a formação tradicional, como
também a cultura de massas que a substitui; em suma, o processo de modernização
como um todo (Bolle, 2000:149 apus Mitrovitch, 2011:65).
As imagens produzidas pelo grande capital estão postas, disputando o sentido de
viver, buscando impor também suas verdades. Ao mesmo tempo e principalmente nos
espaçostempos1 virtuais, seguimos todes2 produzindo e disputando a comunicação das
histórias, narrativas, informações, verdades.

1
Dentre os processos de criação da ciência na Modernidade, está a fragmentação e a hierarquização de
termos que entendo como indissociáveis. Dessa maneira, para marcar essa superação, em alguns
momentos escreverei juntando esses conceitos, colocando-os em itálico.
2
O uso de termos que não demarcam masculino ou feminino está na necessidade de superar o binarismo
cis-hetero-normativo tão opressor às pessoas que não se incluem nas regras desse sistema. Venho
aprendendo essa maneira de subverter tais imposições, especialmente, com os movimentos sociais. Ao
longo desse processo, já utilizamos o “@” e o “X”, atualmente, escrevendo a letra “E” no lugar da vogal
que designa o gênero em nossa língua, dessa forma, facilitando também a leitura. Outras palavras podem
assim aparecer escritas, mas como nosso código também tem seus limites, nem sempre é possível fazer tal
subversão.
Das crianças e infâncias em tempos de terrorismos e barbáries

Figuras 1: Imagens de propagandas da marca de creme dental Kolynos. Brasil, década de 1940. A primeira imagem
foi retirada da internet. As duas seguintes foram fotografias que fiz na exposição J. Carlos: originais, no Instituto
Moreira Salles.

Em geral, quando falamos de infância, tratamos de um ser humano ideal,


abstrato, universal. Essa fala recorre ao conceito da burguesia e do projeto que esta tem
para sua prole. É na infância que a burguesia projeta seu futuro. É o seu espelho
narcísico de continuação do seu patrimônio e de seus ideais. É um projeto ligado
normativamente ao patriarcado e ao capitalismo.
Essa infância é estabelecida, então, como algo puro, cristalizado e inocente, um
projeto de futuro almejado, como algo a ser construído. No projeto burguês, a criança
precisa ser protegida, instruída e, ao mesmo tempo, incluída nos contextos sociais que
asseguram seu pertencimento de classe, vindo gradativamente a reproduzir seus valores
e modos de ser e de estar no mundo. Evidentemente a burguesia possui o seu sistema
educacional (Benjamin, 2009:112).
Em um de seus textos, Benjamin (2009:122) afirma que a burguesia encara a
sua prole enquanto herdeiros; os deserdados, porém, a encaram enquanto apoio,
vingadores ou libertadores. E continua, fazendo-nos pensar também sobre o conceito de
família: a criança proletária nasce dentro de sua classe. Mais exatamente, dentro da
prole de sua classe, e não no seio da família.
O autor nos leva a pensar que a vida das crianças e que as infâncias podem ser
exatamente, como disse o poeta Quintana, um fugir de casa. Para Benjamin, as crianças
não são um projeto de futuro, algo inacabado, mas pessoas que existem socialmente e
atuam nos espaçostempos em que vivem, constituindo suas experiências. As infâncias
são espaçostempos de viver o mundo como ele é, de explorar a realidade,
contextualizando o que se vive na história da humanidade e com muitos “espaços
vazios”, de brechas para a tessitura de outras experiências. E isto fica evidente não
apenas em seus “textos teóricos”, mas no modo como estabeleceu diálogos com as
crianças em seus programas de rádio. Desta maneira, as infâncias são compreendidas
como potência. Por isso, para as crianças, é fundamental que não sejam censurados os
fatos da vida cotidiana, mas que lhes garantam uma acessibilidade possível. Pois,

as crianças querem evidentemente conhecer tudo. E se os adultos


só mostram a elas o lado bem comportado e correto da vida, elas
logo vão querer conhecer o outro lado por si mesmas. (Benjamin,
2015:99)

A cidade, por exemplo, é espaçotempo fundamental para a vida das crianças.


Nela também nos constituímos. É nas ruas que encontramos os nossos e os diferentes, o
Outro. Becos, ruas, ruelas, avenidas, travessas. Nesses caminhos estão inscritas a
diversidade e as adversidades do mundo. Pois, em meio ao emaranhado de teias e
labirintos, mosaico e ruínas, o cenário da vida moderna, a cidade, é palco tanto de
conflitos sociais e revoltas, quanto de espaços lúdicos, labirintos do inconsciente
(Mitrovitch, 2011:71).
Assim, também, são os ofícios e as habilidades que os adultos desenvolvem em
suas atividades e que as crianças vão vivendo e aprendendoensinando as artes de fazer.
Para Benjamin, as conversas com as crianças poderiam e deveriam falar sobre
qualquer assunto. Ele fala das técnicas e das tecnologias. Religião, ciência, drogas,
literatura, artes, diferenças, desigualdades. Assim, ele o fez em seus programas de rádio.
Falava para crianças sobre os erros do sistema, fazendo-nos aprender a necessidade de
questionar:

Uma das coisas mais


espantosas que se vê na
história é o fato de que
foram necessários mais de
200 anos até os doutores da
lei perceberem que uma
confissão sobre tortura não
tem qualquer sentido nem
efeito legal. (Benjamin,
2015:136)

Figura 2: Foto de Marcia Foletto/O Globo. Soldados do Exército


revistam crianças na entrada da favela Santa Marta. Rio de Janeiro, 1994.
Benjamin viveu algumas das feridas expostas, sangrando, da Modernidade, do
capitalismo, dos valores burgueses. A bestialidade e a barbárie das guerras, situação
crítica de um Estado comprometido com ideais da burguesia.
Mas e nós? Será que precisamos viver esse extremo? Será que, na atualidade,
não é esse extremo que vivem nossas crianças de rua, nossas crianças nas ruas? Não
seria a realidade vivida por moradores e moradoras das favelas com os militares e seus
tanques de guerra nas entradas de becos e ruelas? Precisa o Estado hoje declarar guerra
quando permaneceu historicamente massacrando pobres, indígenas, negres, mulheres,
LGBTs e outros grupos que ficam à margem do sistema? Como nos fala Benjamin
(2016:13), a tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que
vivemos é a regra. O sentimento de guerra, o pânico, a violência apenas reafirmam a
ação do Estado na repressão da luta contra o sistema e pelos direitos humanos e sociais
e no massacre essencialmente do povo pobre, majoritariamente negro e, num recorte
etário, infantil e jovem. Em 1994, o Estado revistava crianças uniformizadas na entrada
da favela. Eram, as crianças, O outro, os terroristas.
o outro, quem quer que seja o outro,
o outro mesmo, o tido como o mais distante,
é trancafiado do lado de fora, bombardeado
e, antes, fabricado para ser exatamente o outro
a ser atacado, para dizer que o ato do outro
fabricado é um ato de guerra, um act de guerre,
an act of war, contra isso que nós somos (Pucheu, 2017:21, 22).

Nesse viés se constitui o discurso midiático. Vamos à guerra! A cidade do Rio


vive em estado de guerra! A guerra está anunciada para esconder o ódio de classe, para
criminalizar a pobreza. A polícia militar ocupa favelas com suas armas de guerra e seus
caveirões. É do som de suas metralhadoras que as crianças tapam os ouvidos.
Ainda assim, o estado
do Rio, como publicado na
reportagem “Afinal, o Rio está
ou não em guerra?” – de María
Martín, no Jornal El País – pede
ajuda à união e recebe 8.500
componentes das Forças
Armadas. Mais militares.

Figura 3: Foto da AFP. Ação militar nas favelas do Rio de Janeiro. Março
de 2014.
it’s war, baby, c’est la guerre, mon amour
la france est em guerre, america is at war,
vamos tomar um champanhe com os diretores
da samarco, da billiton, da vale do rio doce.
do jornal o globo, comprar todos eles,
a maioria dos políticos e sair o quanto antes
com a petrobrax (e com o que mais der)
debaixo do braço, c’est la guerre, ma cherie,
it’s war, Darling, nós, os civilizados,
declaramos “guerre aux barbares”,
gozemos então sinistramente com as mortes
dos outros (...) (Pucheu, 2017:22).

Foi assim que projetaram na cidade os Jogos Pan-Americanos, a Copa do


Mundo, os Jogos Olímpicos. Nos acordos com as empreiteiras, na especulação
imobiliária, no gasto do dinheiro público, que encheu os bolsos de nossos políticos e
empresários. Enquanto isso, as crianças das favelas da cidade seguiam suas vidas
cerceadas em direitos, com as vidas militarizadas e vigiadas.
Em meados deste agosto de 2017, colegas, docentes da rede municipal
denunciam que as escolas da área do Jacarezinho, no Rio, seguem impedidas de
funcionar. Não há condições de segurança. Segue a mídia, em seu pacto com o sistema,
produzindo o terror, legitimando o uso da força.
é guerra. é guerra, declara o estado, no mesmo
impulso colonialista de sempre, é guerra, declaram
os estados, favorecendo-se irresponsavelmente
a si mesmos, forjando um laço interessado
com a opinião pública midiática, quando, no fundo,
coloca-se, com a mídia, autoritário, entre uma pessoa
qualquer e outra, entre uma pessoa qualquer
e si mesma, escondendo-se ali e ali atuando,
eis a guerra, o espetáculo de hoje, o rompimento
de todos os laços sociais e de intimidade. eis a guerra.
é guerra por lá, é guerra declarada por aqui
(Pucheu, 2017:22, 23).

As crianças pobres seguem vivendo essa realidade, enquanto a burguesia segue


com seu projeto ideal de vida para seus herdeiros, artificializando a realidade,
(re)produzindo – como é de se esperar – o status quo de uma elite dominante, que tenta
ainda impor uma única infância – a sua, evidentemente – a todas as realidades vividas.
A realidade material define a vida das crianças. Então, quais dessas vivências
não fazem parte das infâncias? O que se fala para crianças? O que se cala? O projeto
burguês de infância centra-
se em cuidar, tutelar,
proteger e, para isso,
esvazia a realidade. A ideia
de especificidades das
infâncias cria um mundo
especializado para as
crianças, uma realidade à
parte. Em torno das
Figura 4: Foto de Apu Gomes (AFP). Forças Armadas participam de crianças, inúmeros tabus
operação em Niterói. Agosto de 2017.
são criados, porém, a
realidade bate à porta. Os tabus não impedem as vivências.
Por que afinal devemos contar estas coisas às crianças? Devemos
falar a elas sobre impostores e criminosos que desrespeitam as leis
para fazer uma fortuna em dólares e, pior, assim conseguem
alcançar seu objetivo? Sim, esta é uma questão que deve ser
colocada, e eu ficaria com a consciência pesada, se simplesmente
chegasse aqui e ficasse contando histórias com tiros de pistola
disparados para todos os lados. (Benjamin, 2015:209)

Experiência para outra barbárie


Uma foto uma foto
Estampada numa grande avenida
Uma foto uma foto
Publicada no jornal pela manhã
Uma foto uma foto
Na denúncia de perigo na televisão

A placa de censura no meu rosto diz:


Não recomendado à sociedade
A tarja de conforto no meu corpo diz:
Não recomendado à sociedade

Pervertido, mal amado, menino malvado, muito


[cuidado!
Má influência, péssima aparência, menino
[indecente, viado!
(Não recomendado, Caio Prado)3

Figura 5: Esta imagem apareceu para mim através da postagem de uma amiga numa rede social. Apesar do esforço
para encontrar mais informações sobre ela, não consegui. A partir da conversa que ela suscitou na rede social,
suponho que seja um registro recente das ações militares – e no caso, dos meninos – nas comunidades do Rio.
3
Caio Prado é um artista que vem se destacando no cenário da música. Sua obra é facilmente encontrada
na internet. Porém, não consegui nenhuma fonte “oficial” da letra da canção. Deixo aqui um link onde é
possível ouvir a obra e ver a performance de Caio: https://www.youtube.com/watch?v=aq5yOS_XtNU.
A população que mora nas favelas – e penso, especialmente, nas crianças e nos
jovens – vive numa sociedade capitalista, com seus produtos e fetiches, mas sem ter
acesso adequado à saúde, educação, saneamento básico e outras condições que dão à
vida algum conforto e dignidade. Essas pessoas vivem cerceadas dos espaços públicos
dos lugares em que moram por força das ações militares que invadem seu território. Não
vivenciam os demais espaços da cidade em plenitude, pois para frequentá-los precisam
enfrentar os limites impostos pelas políticas de afastamento que vão do transporte
público ao se sentir estranho, estrangeiro, em determinados lugares e situações. São os
não recomendados à sociedade, os meninos malvados, de péssima aparência, são más
influências: cuidado! Convivem ainda com rajadas de metralhadoras, revistas que
invadem seus corpos, tanques atravessando seus caminhos. O sangue que escorre, as
balas que em nada são perdidas, a morte sempre presente. Fugir, correr, se esconder,
tapar os ouvidos, fechar os olhos. É barbárie, a barbárie do sistema. Esse é o cenário que
não permite experiências, é do fim das narrativas.
Ainda assim, crianças e jovens vão resistindo e encontrando maneiras de burlar
os muros do sistema. Inventam cotidianamente suas táticas. Irrompem com sua
criatividade a ordem. Pensado na imagem 5, que inicia esta parte do texto, e fazendo um
paralelo com o que Benjamin (2012:125) fala sobre as obras de Paul Klee, é possível
trazer o autor afirmando que a expressão fisionômica dessas figuras, diria eu que a
expressão dos meninos que aparecem na foto, com os movimentos de seus corpos e, em
especial, os gestos de suas mãos, obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, mais
que à interioridade: é isso que as torna bárbaras. Experiência é aquilo que se diz de
dentro das coisas e das coisas de dentro. É nesse movimento de por em ruína a barbárie
do sistema catalisando nossa própria barbárie que vamos seguindo. Toda ruína indica
barbárie, mas também é potência para o novo, como um recém-nascido nas fraldas
sujas da nossa época.
Nesse contexto, é preciso resgatar o conceito de experiência desenvolvido por
Benjamin. Pensando com Larrosa (2002:27), a experiência nos afeta e, por isso, pode
nos provocar. Experiência é o que nos desloca, permitindo e possibilitando o que está
por vir. Por isso, é potência de vida, aquilo que é capaz de dar sentido ao acontecer do
que nos acontece. Experiência é o que nos passa; não é o que se foi, mas o que
permanece. Porém, não no sentido com o qual o velho torna menor o que é vivido pelo
novo – tal qual faz o filisteu, de maneira cinzenta e prepotente (Benjamin, 2009:24). É,
sim, a capacidade de diálogo do velho para afetar o novo, muitas vezes, valorizando as
tradições, as memórias. Ou vice-versa. Nada é mais odioso ao filisteu do que os
“sonhos de sua juventude” (Benjamin, 2009:24). A experiência não é o conselho dado,
mas a sabedoria partilhada. E, ainda que partilhada, é única, pessoal.

O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante [o pirata]


que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso,
pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua
ocasião. (Larrosa, 2002:25)

A experiência se define pela possibilidade do encontro, pela ruptura daquilo que


é ordinário. Nas comunidades invadidas pela força militar, a experiência ainda existe
como espaçotempo de resistência. É exatamente o tempo das possibilidades do encontro
que as ações militares roubam não só das crianças que vivem nesses lugares, mas de
todas as pessoas de diferentes faixas etárias. A experiência não se funda na razão, mas
no afeto, no sentir, na sensibilidade. Por isso, o tempo da experiência não é medido pelo
relógio, não é o tempo cronológico.
As crianças e jovens, o povo negro, indígenas, pobres, as mulheres, LGBT’s não
são o novo, sempre estiveram silenciades e invisibilizades, são periféricos, ficam à
margem. Esses e demais excluídes são capazes de explodir o que está posto, de tornar a
barbárie do capital uma ruína. São os periféricos que nos guiam por outros caminhos
com suas experiências, verdadeiras potências contra o sistema.
É preciso tirar o olhar romântico da infância. Entendê-la como múltipla, diversa,
marcada pelas desigualdades sociais. Afinal, não é com frequência que encontramos
uma criança que tenha crescido com tanta harmonia e felicidade em uma cidade
grande (Benjamin, 2015:48).
Uma criança alvejada por 3 tiros. 3 tiros não são balas perdidas. Em geral,
nenhuma bala é perdida. Assim morreu, em março deste 2017, Maria Eduarda Alves, 13
anos, estudante da Escola Municipal Daniel Pizza, em Acari, zona norte do Rio. No dia
seguinte, 13 escolas, 5 creches e 7 espaços de desenvolvimento infantil não
funcionaram, segunda a Secretaria Municipal de Educação, deixando mais de 9.500
estudantes sem aulas.
sobrevivemos, de algum modo, então, como os índios
como os garotos do tráfico, como os homens-bomba,
como os enlameados, como os mortos
pelo tráfico, como os mortos pelos homem-bombas,
como os mortos e desabrigados pelas mineradoras...
mas nunca como os donos do tráfico, das indústrias
bélicas, dos estados, dos que levam os homens-bombas
a se tornarem homens-bomba (afinal,
ninguém nasce homem-bomba
como ninguém nasce poeta).
(Pucheu, 2017:26).
Crianças e jovens permanecem transgredindo e vivendo suas experiências.
Resistem. Outros bárbaros, sejamos os novos doces bárbaros, porque é preciso
barbarizar os cotidianos, a história e o projeto de futuro da burguesia, é preciso
barbarizar o sistema. De certa maneira, já somos todos terroristas para esse Estado, para
o capital.
Barbárie? Sim, de fato. Dizemo-lo para introduzir um conceito
novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro
dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para frente, a
começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com
pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.
(Benjamin, 2012:125)

A barbárie há de ser nossa, contra a mão do progresso que nos empurra, nos
esmaga. Esse progresso enquanto projeto nos descaracteriza, nos inferioriza e se coloca
hegemonicamente com suas normatividades. Nossa barbárie vai tomar os tesouros da
mão da história e escová-la a contrapelo (Benjamin, 2016:13). Com efeito, a
humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais
importante: ela o faz rindo. Talvez o riso – igual ao daqueles meninos da última foto –
tenha aqui e ali um som bárbaro (Benjamin, 2012:128).

Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: O anjo da história. 2ª ed.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016:7-20.
_________________ A hora das crianças: narrativas radiofônicas de Walter
Benjamin. Rio de Janeiro: Nau Ed., 2015.
_________________ Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras Escolhidas vol 1) 8ª Ed. revista.
São Paulo: Brasiliense, 2012:123-128.
_________________ Experiência. In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e
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_________________ Programa de um teatro infantil proletário. In: Reflexões
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2009: 111-119.
_________________ Uma pedagogia comunista. In: Reflexões sobre a criança,
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BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de


experiência. Revista. Brasileira de Educação. 2002:20-28, n.19. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782002000100003&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso
em 1 ago 2017, às 14h.
MARTÍN, María. “Afinal, o Rio está ou não em guerra?”. Jornal El País, 18
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https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/17/politica/1503007115_454270.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM Acesso em 18
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MATOS, Olgária Chain Féres. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo
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MITROVITCH, Caroline. Experiência e formação em Walter Benjamin. São
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PUCHEU, Alberto. Para que poetas em tempos de terrorismos?. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue Editorial, 2017:21-27.
QUINTANA, Mario. A cor do invisível. São Paulo, Globo, 2005:50.

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