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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)


Introdução aos Estudos Clássicos I – Prof. Elaine Sartorelli
Gonçalo José de Sousa Junior – Nº USP: 757807
Período noturno – 2/8/2020

Considerações sobre o gênero épico

O gênero literário épico é composto por poemas grandiosos que pretendem ser a memória e o
resumo de grandes episódios da Antiguidade Grega. São versos que narram o encadeamento dos
acontecimentos heroicos e os grandes feitos dos homens superiores, nobre e herois, aqueles cujos
nomes ficarão na posteridade. A épica é uma narrativa que pode ser comparada aos grandes murais
que retratam histórias gigantescas.

O poeta, também chamado de aedo ou rapisodo, declamava os poemas épicos em locais públicos,
como se fosse um verdadeiro ator. Em um contexto marcado pela oralidade, o estilo declamatório
diante de um grupo de pessoas era uma forma de entretenimento. Por isso, epítetos e repetições
acentuam os traços de oralidade dos textos. Nesse contexto, cantar – no sentido de declamar - é o
verbo épico por excelência. “Os poetas serão responsáveis pela fixação, na memória de um grupo,
desses atos divinos realizados por mortais igualmente divinos, os heróis”, escreve a professora
Cristiane de Almeida Azevedo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, no texto “A kléos heroica
como mecanismo de individuação do homem grego”.

A épica é um poema extenso, disposto em versos metrificados. Na épica greco-latina, o verso é o


hexamétrico, repetido ao longo do poema. Ela começa no meio dos acontecimentos (in media res) e
os fatos anteriores são relatados na forma de digressão. A linguagem elevada acentua o efeito
monumental de solenidade. Temas tão edificantes não podem ser narrados por um simples mortal.
Por isso, o poeta se apresenta como inspirado, como a voz de outra entidade. A inspiração do poeta
vem da musa, quase sempre invocada no início dos livros e uma espécie de testemunha dos
acontecimentos. É ela quem canta os versos.

A épica se manifesta em dois cenários principais: guerra e o mar. O primeiro é o cenário perfeito
para o heroísmo, pois feitos realizados nas batalhas são temas genuinamente épicos. As histórias, no
entanto, não se desenvolvem na cronologia humana, mas em um tempo mitológico, onde habitam os
deuses, figuras fundamentais na narrativa épica. Deuses e homens coexistem, e os primeiros podem
interferir nos acontecimentos e promover eventos fantásticos e maravilhosos. Os heróis são
profundamente humanos e só a assistência divina os torna capazes de ações extraordinárias. Essas
características acentuam a épica como um receptáculo da memória de uma civilização.

O poeta grego Homero, que viveu por volta do século VIII a.C., foi o precursor da épica greco-
romana com dois livros: Ilíada e Odisseia. A Ilíada narra os acontecimentos durante e após a Guerra
de Troia, cerco dos aqueus ao muros da cidade grega e as consequências da ira de Aquiles. Embora
trate da guerra, o texto não é belicista ou propagandístico; há também amargura e desesperança.
Aquiles representa o ideal da guerra, mas de modo trágico. O heroi parece se mover em um conflito
particular. Ele deseja imortalizar seu nome por meio de feitos extraordinários. Essa característica se
apresenta já no Canto I, quando Aquiles deve se submeter ao comandante Agamenon e percebe que
ele é o único a lutar pela honra e pela imortalidade de seu nome. Aquiles contém seu ímpeto de
atacar pela intervenção da deusa Atena. Os outros guerreiros lutam pela conquista material, a posse
de escravas sexuais e espólios de guerra.

Aquiles busca a kléos, o ideal de imortalizar o nome. É a bela morte, gloriosa e legitimada pelos
deuses e cercada de feitos heroicos. O ideal da bela morte é motivado por razões metafísicas, pois
traduz o desejo de superação da condição humana. Aquiles quer superar a temporalidade e se
apropriar de certo caráter divino. Essa é a imortalidade possível para o homem. Para Aquiles, a
morte normal seria se equiparar aos seres mortais. Na cultura oral, a imortalidade significa ter a
glória de ver o nome cantado para sempre. O canto de louvor aos seus heróis também se perpetua na
memória coletiva.

Jean-Pierre Vernant explica em “A bela morte e o cadáver ultrajado” que a bela morte deve ocorrer
em combate, quando o homem jovem está no auge da virilidade e da força física. Nesse sentido, o
heroi vence parcialmente a morte ao escolher enfrentá-la ainda na juventude. Como nos afirma
Vernant, “tudo é luz no corpo do guerreiro que é morto em plena juventude. A glória brilhará como
o corpo divino, isso é a bela morte”. Paradoxalmente, a bela morte depende da morte física. No caso
de Aquiles, sua busca por essa eternidade condena-o a uma espécie de morte em vida. Ele é alguém
que já está morto, em certo sentido, pois vive em função desse código de honra que é a obtenção da
glória. Seu sucesso será medido pela sua morte.

Na busca por esse ideal, ele possui apenas um companheiro: Pátroclo, com quem tinha uma
amizade profunda. Patroclo morreu pelas mãos de Heitor, grande herói troiano, ao usar as
vestimentas de Aquiles. Isso deu a bela morte heroica a Pátroclo. Quando ele morreu, uma parte do
próprio Aquiles também pereceu. No texto “A arrogância de Aquiles e a doçura de Pátroclo”, a
professora Alessandra Serra Viegas aponta que “Pátroclo é, na Ilíada, uma espécie de duplo de
Aquiles”. O próprio Aquiles reconhece a identidade com o companheiro:

“... se perdi o meu companheiro querido,


Pátroclo, o melhor de todos os meus parceiros,
o meu cabeça igual...” (Ilíada, XVIII, 80-82)

O heroi grego não conseguiu sua bela morte, pois sucumbiu diante de uma flecha que o atingiu no
calcanhar, seu único ponto de vulnerabilidade. Isso acontece em outro ciclo narrativo, fora da
Ilíada, por Páris. Na Odisseia, outro livro de Homero, Aquiles é retratado no mundo dos mortos,
lamentando sua morte pela kléos.

O segundo cenário marcante da épica é a viagem marítima e, mais especificamente, o retorno para
casa. Desaparecer no mar sem deixar rastros não é viagem. É preciso voltar para contar e
compartilhar. Essa história mítica está retratada na Odisseia, que canta as peripécias de Odisseu
(Ulisses) na tentativa de voltar para Ítaca. Odisseu é um homem astuto, cheio de ardis e protegido
por Palas Atena, deusa da estratégia e da civilização. Ele perdeu sua identidade ao enganar o
Ciclope, filho de Poseidon, com a brincadeira: “meu nome é ninguém”. O ciclope pede vingança.
Com isso, ele foi condenado a vagar no mar por dez anos no mar e na guerra, perto do
esquecimento. Ele vaga pelo mar, que pode ser considerado um “não território”, onde não há pátria.
O mar não é um lar. Esquecer é, em certo sentido, desaparecer. Para que tudo volte a fazer a sentido,
ele precisa retornar. É o herói preso pelo tempo que volta para recuperar seu nome e sua identidade.

Na visão de François Hartog, Odisseu representa o conceito do homem-fronteira. Ao chegar aonde


nenhum homem chegou, ele estabelece a fronteira daquilo que é grego e o limite dos outros
mundos, que só podem existir a partir de suas narrativas. A viagem estabelece a visão que os gregos
tiveram de si mesmos e dos outros (como forma de manter e criar a própria identidade). Sobre
Odisseu, Hartog escreve: “é aquele que viu e aquele que sabe porque viu, indicando, de imediato,
uma relação com o mundo que é o cerne da civilização grega: o privilégio do olho como modo de
conhecimento.

Ele precisa voltar para o mundo civilizado uma vez que representa a figura do homem cultural, que
domou os animais domésticos e a agricultura. Odisseu não é exterminador; ele conhece e aprende.
Viver não é apenas existir, mas também relatar. Esse homem engenhoso inventou vários utensílios,
como o arado e o moinho, além de artesanatos de cerâmica, ouro e prata. Ele come pão, bebe vinho
e presta homenagem aos deuses. Tudo isso é símbolo da civilização. É preciso voltar para transmitir
seus valores e sua terra para seus filhos. Ele representa a cultura que precisa ser transmitida.
Quando Ulisses retorna à Ítaca, é a deusa Atena que o recebe e mostra-lhe sua terra natal. Ela
também vai tramar o plano para que o herói se vingue dos pretendentes, que ocupam e desonram
seu palácio, e se manterá, como sempre, ao seu lado. Todos voltaram de Troia com espólios e
escravas, mas Odisseu voltou apenas com o peso do tempo.

Séculos depois, o poeta Virgilio participa da tradição épica escrevendo, em hexâmetros e em latim,
o mito fundador da civilização romana no livro Eneida. É a épica do povo romano. Virgilio
reinterpreta temas épicos para a realidade dos romanos durante os últimos 12 anos de sua vida (30-
19 a.C.), ou seja, após o estabelecimento do principado de Augusto. Seu fundamento é a lenda
segundo a qual Enéas, um troiano sobrevivente da Guerra de Troia, realiza longas viagens erráticas
e funda uma colônia no Lácio, a fonte da raça romana.

No poema, o filho de Venus simboliza o ideal do homem romano, com a missão de seguir valores
mais altos de respeito com os ancestrais e a própria posteridade. A literatura épica oferecia à
sociedade romana modelos de personagens virtuosos cujas atitudes e comportamentos deveriam ser
emulados pelos leitores. A grandeza do tema impressionou profundamente o povo romano.

Eneias personifica o modelo do código de valores romanos, o mos maiorum, pautado pela
autoridade, pelo olhar do outro, princípios consagrados pelo tempo e pela contradição. Alguns
princípios desse código são a disciplina, o autocontrole, a militarização, a severidade, cumprimento
do dever, respeita aos ancestrais e a perseverança. Ele sobrevive para resgatar os nomes dos que
morreram. Ele se imortalizou como o Piedoso, ou seja, detentor da virtude que aconselha o
cumprimento do dever.

Depois de ter sido acolhido como um deus pela rainha Dido, ele é acusado de ser pérfido, de
quebrar o pacto ao abandoná-la. Mas é pela fides (fidelidade, sentimento de dever) que ele trai seu
amor. Sua fidelidade com os deuses é se manter vivo para seguir o futuro. Em um dos episódios
simbólicos do livro, o duelo com Turno, que guarda semelhança com a disputa entre Heitor e
Aquiles, ele dá mais uma demonstração do dever como guia para suas ações. Não é a fúria cega
(como no caso de Aquiles), mas a piedade (no sentido romano) que o faz mergulhar a espada no
peito do inimigo. Durante seu governo, Enéias conseguiu unir os romanos e os troianos.

Referências bibliográficas

AUBRETON, Robert. Introdução a Homero. São Paulo: DIFEL, USP, 1968.


HARTOG, François. Memória de Ulisses: Narrativas sobre a fronteira na Grécia Antiga.
Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte, UFMG, 2004.
HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin, 2013.
NAGY, Gregory. O herói épico. Trad. Félix Jácome Neto. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2017.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes; organização, apresentação e notas de João
Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2014 (1ª Edição). 896 p.

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