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P-040 - Luta Contra o Desconhecido - Clark Darlton
P-040 - Luta Contra o Desconhecido - Clark Darlton
LUTA CONTRA
O DESCONHECIDO
Autor
CLARK DARLTON
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
A nave Titan é o couraçado espacial mais poderoso do Universo,
apesar disso tem de ocultar-se dos seus perseguidores...
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =
Perry Rhodan — Chefe da Terceira Potência.
Reginald Bell — Que cai na cilada que arma para Gucky.
Thora e Crest — Que depois de uma ausência de treze anos se vêem diante de uma
alteração política fundamental em Árcon.
Ras Tschubai e Tako Kakuta — Cujo surgimento inopinado põe em polvorosa
toda uma nave espacial.
Hemor — Comandante de uma nave espacial de Zalit.
Demesor — Vice-imperador de Árcon e soberano do sistema de Voga.
John Marshall — Um “espião mental” que cumpre uma missão muito importante.
1
— Isto já não é uma nave espacial; é um planeta — disse Bell com a voz ofegante,
deixando-se cair no poço negro do elevador antigravitacional, seguido pelo tenente Julian
Tifflor que fechou apressadamente os olhos e seguiu seu exemplo. — E estamos vivendo
dentro deste planeta.
— O senhor tem toda razão — disse Julian Tifflor, também conhecido por Tiff,
enquanto a queda foi freada automaticamente, transformando-se num suave flutuar. —
Às vezes, chego a pensar que a gente se pode perder neste monstro de nave.
— É justamente por isso que realizamos com constância os alarmas de treinamento
— explicou Bell. — Devemos aprender a orientar-nos neste labirinto.
O vermelho sadio de seu rosto largo tornou-se mais intenso. Os cabelos vermelhos
cortados à escovinha lembravam uma escova que há muito tempo não era limpa. Em seus
olhos azuis-claros, o aborrecimento e o espírito galhofeiro pareciam disputar a
precedência.
— Eu nunca aprenderei! — disse.
Tiff confirmou com um movimento de cabeça, mas não respondeu. Haviam
recebido ordens para dirigir-se ao posto H-35; faltava descobrir onde o tal ficava. A letra
H indicava um hangar; logo, o posto devia ficar junto ao casco do gigante do espaço. O
elevador os fez cair em direção ao casco externo, mas só lhes restava esperar que não
tivessem escolhido o lado errado. Se isso tivesse acontecido, teriam dado uma volta de
pelo menos três quilômetros.
Pararam abruptamente. Tinham diante deles, o corredor muito iluminado e
identificado pela letra H.
“Bem, até aqui está certo”, pensou Bell aliviado e saiu do elevador.
A pouca distância dali, um técnico perambulava à toa e fitou os dois recém-
chegados com um visível interesse.
Bell dirigiu-se a ele.
— Um momento, companheiro. Será que você pode informar onde fica o H-35? É a
primeira vez que andamos por aqui e...
— Ora, Bell! — soou subitamente uma voz vinda do nada, enchendo de
recriminação o corredor cujas extremidades se perdiam numa curva suave. — Desde
quando costumamos trapacear por aqui?
Tiff encolheu-se de susto e procurou desesperadamente pela lente oculta de uma
câmera de intercomunicação, que transmitiria sua imagem à sala de comando. Não
descobriu nada. Um tanto embaraçado, olhou para Bell. Este fez a cara mais inocente
deste mundo quando, acenando violentamente com a cabeça, disse para o ar:
— Perry, você acha justo andar nos espionando? Ninguém consegue orientar-se
neste labirinto de corredores, hangares, elevadores, andares e seções. Acho que, num caso
como este, um truquezinho não tem nada demais. Eu não seria capaz de tomar uma
atitude tão quadrada, Perry, e....
— Acontece que foi exatamente isso que você fez ontem — soou a resposta vinda
do nada, que foi acompanhada de um riso contido, que fez Bell enrubescer de raiva. —
Você estava dirigindo o exercício de alarma. Quando John Marshall não encontrou logo o
lugar que lhe fora indicado, você berrou de tal forma que o coitado quase sofre uma
congestão. Como é que ele poderia imaginar que até nas toaletes há câmeras ocultas?
Tiff sorriu com uma expressão de alívio no rosto, não tanto por causa das câmeras
escondidas nas toaletes, mas porque estava acreditando que Perry Rhodan não levava
muito a sério a pequena trapaça que estavam tentando. Mas Bell continuou furioso.
— O que é que Marshall foi fazer lá na hora do alarma? — disse em tom zangado.
— Qualquer um pode...
— Chega! — interrompeu-o a voz. — Dou-lhes mais dois minutos para encontrar o
setor H-35. Depois disso o exercício estará terminado. Daqui a meia hora, encontramo-
nos na sala de comando. Entendido?
— Está bem! — resmungou Bell e voltou-se para Tiff. — Vamos embora, Tiff.
Seria uma vergonha se não encontrássemos nosso lugar sozinhos. Olhe, aqui já diz H-34.
Não podemos estar longe do lugar que procuramos. Tivemos sorte!
E tiveram mesmo.
Antes que se passasse o prazo que lhes fora concedido, puseram as mãos sobre a
fechadura de uma porta que se abriu com o calor de seu corpo. Nessa porta, lia-se em
letras garrafais a indicação H-35.
Era um hangar.
O enorme compartimento estava tomado inteiramente por uma gigantesca esfera,
que media sessenta metros de diâmetro. Era uma nave espacial do tipo girino.
Desenvolvia velocidade superior à da luz, era extremamente ágil e possuía armamentos
poderosíssimos, sendo protegida por potentes campos energéticos.
— Graças a Deus! — disse Tiff e disse seu nome ao oficial encarregado do controle.
— Chegamos em cima da hora.
— De qualquer maneira, ainda chegamos na hora — constatou Bell muito satisfeito
e também indicou seu nome, embora o oficial já o conhecesse. — Vamos para a sala de
comando. Se não andarmos depressa, morreremos de fome antes de chegarmos lá. O
próximo exercício de alarma deverá ser realizado daqui a cinco horas, se não houver
nenhum imprevisto.
Isto mesmo: o exercício seria realizado, se não houvesse nenhum imprevisto.
E na situação em que se encontravam, era perfeitamente possível que houvesse.
***
Dois monstros inteiramente diferentes um do outro mantinham-se numa imobilidade
aparente em meio ao espaço infinito, que estava tão salpicado de estrelas que em nenhum
ponto parecia ser negro. A quantidade dos sóis oferecia um quadro estranho ao olho
humano acostumado ao céu noturno do planeta Terra. Acontece que o sol Árcon ficava a
34 mil anos-luz da Terra, situando-se em meio ao grupo estelar M-13, no qual mais de
100 mil estrelas se comprimiam num setor do espaço que media 230 anos-luz de
diâmetro. Muitos dos sóis ficavam tão próximos uns dos outros que quase poderiam ser
considerados sóis geminados do mesmo sistema, embora não o fossem no sentido
astronômico.
Árcon ficava praticamente no centro desse grupo estelar. Encontrava-se no
momento a três anos-luz dos dois monstros espaciais, que gravitavam em torno de um sol
gigantesco a uma distância superior a trinta bilhões de quilômetros.
Com um único salto através do hiperespaço, Perry Rhodan fugira da área controlada
pelos arcônidas e esperava que nas proximidades do sol vermelho tivesse tempo de
habituar sua tripulação às peculiaridades da nave gigante de que se apoderara. Na
situação em que se encontravam, o regresso imediato à Terra parecia-lhe muito arriscado.
Aquela nave apresada era um dos monstros espaciais.
Era de formato esférico, tal qual a velha Stardust, mas tinha quase o dobro do
tamanho desta. Esse supercouraçado dos arcônidas, de um quilômetro e meio de
diâmetro, deixava para trás tudo que Rhodan ou qualquer ser humano teria sido capaz de
imaginar. A propulsão e o armamento seguiam, em princípio, o modelo da Stardust, mas
evidentemente suas dimensões eram outras. No Universo conhecido, não havia nada que
pudesse romper os campos energéticos defensivos da gigantesca esfera.
Duas saliências, que circundavam a esfera ao norte e ao sul da linha equatorial,
abrigavam os hangares dos quarenta girinos. Tratava-se de naves esféricas de sessenta
metros de diâmetro, que a qualquer momento poderiam sair das comportas da nave-mãe
para intervir nas ações programadas. Sua tripulação mínima era de quinze homens.
Ao lado dessa gigantesca esfera, a nave espacial Ganymed até parecia um objeto
delicado, embora seu comprimento fosse de 840 metros e, no lugar em que era mais
grossa, seu diâmetro chegasse a 220 metros. Todavia, não era apenas pelo tamanho, mas
também pelo formato cilíndrico que se distinguia da gigantesca esfera, que Rhodan
batizara com o nome Titan.
A bordo da Ganymed, encontravam-se trezentos tripulantes, que ficaram livres dos
treinos de adaptação aos quais tinham de submeter-se as 700 pessoas que se achavam na
Titan, quer gostassem, quer não. É que fazia poucos dias que a Titan se encontrava em
poder de Rhodan.
A sala de controle tinha o dobro do tamanho daquela da Stardust, que permanecera
estacionada na Terra. A profusão inimaginável de instrumentos e painéis de controle
oferecia um quadro por demais confuso. Se Rhodan não tivesse sido submetido ao
processo de aprendizagem hipnótica dos arcônidas, provavelmente nunca chegaria a
compreender sua finalidade. Mas, como sua mente armazenara as informações
necessárias, ele demorou poucos segundos até que a nave obedecesse ao seu comando,
fazendo exatamente aquilo que desejava. Isto deixou bastante contrariado o maior dos
cérebros positrônicos do Universo, que exercia o domínio total do Império da raça
decadente dos arcônidas.
Fora precisamente esta a maior surpresa com que Perry Rhodan se defrontara: não
eram os arcônidas nem o governo real que administravam o maior império estelar da
história do Universo; tais funções eram exercidas por um gigantesco cérebro positrônico.
Só por isso, o Império ainda não se esfacelara.
Encostado ao painel de controle, Rhodan olhava seus amigos e colaboradores que,
depois do exercício, haviam sido convocados à sala de comando para um lanche.
O telepata John Marshall, representante do exército de mutantes e australiano de
nascimento, encontrava-se ao lado de Thora, a arcônida, que vira destruído de forma tão
chocante seu sonho de um regresso triunfal para Árcon. Seu vulto ereto não traía a
amarga decepção que, no íntimo, a deixara arrasada. Pelo contrário. Rhodan tinha a
impressão de que a arcônida de cabelos claros e olhos dourados nunca parecera tão forte
e decidida como agora. E Crest, companheiro antigo de Thora e chefe da expedição
espacial realizada treze anos atrás, e que terminara num pouso forçado na Lua terrana,
parecia ter acordado naquele instante de um sono longo e repousante.
Rhodan sentiu-se aliviado ao constatar a modificação positiva ocorrida com os
amigos. Chegara a recear que a decepção os deixaria aniquilados, mas o que aconteceu
foi exatamente o contrário.
O coronel Freyt, que no momento comandava a Ganymed, também estava presente.
Apresentava certa semelhança exterior com Perry Rhodan, o que lhe provocava um
orgulho infundado e levava Bell a, vez por outra, fazer dele o alvo de suas zombarias.
Bell estava perto de Tiff. O jovem tenente, antigo cadete da Academia Espacial
terrana, conquistara a confiança plena de seu superior mais graduado e já pertencia à
família, segundo a expressão que Bell costumava usar. As ações comuns já realizadas
fizeram com que Tiff e Bell se tornassem bons amigos.
Ainda havia Gucky.
Era um ser de cerca de um metro de altura, coberto de pêlo marrom-avermelhado,
que parecia um enorme rato com o rabo achatado de um castor. Os olhos castanhos de
expressão meiga fizeram com que fosse apelidado de “monstro de olhos fiéis”. No fundo,
Gucky não deixava de ser um monstro, ao menos no que dizia respeito às suas
faculdades. No momento em que esse animal — Gucky gostava de ser designado assim,
pois de forma alguma queria ser considerado um homem — entrou sorrateiramente a
bordo da Stardust, quando esta se encontrava pousada no planeta do sol moribundo, e
recorreu à sua capacidade telecinética para fazer suas brincadeiras, ninguém imaginava
que também possuía o dom da telepatia e da teleportação. Nem mesmo o próprio Gucky
desconfiava disso. Só o aprendizado meticuloso ministrado pelos mutantes de Rhodan fez
com que essas faculdades viessem à tona.
A essa altura, Gucky era um dos melhores amigos de Rhodan e um dos elementos
mais capazes de sua equipe.
Sentado em posição ereta, apoiava as costas contra a parede. O dente roedor
solitário avançava ligeiramente e parecia exibir um sorriso alegre. Nos olhos suaves, via-
se certa impaciência.
Depois de algum tempo, Gucky disse num intercosmo impecável:
— Se não estou enganado, todo mundo já chegou. Por que não começamos? Estou
curioso para saber onde estamos e o que vamos fazer.
Sua voz era aguda e chilreante. Bell sorriu e, discretamente, cutucou Tiff.
— Ainda bem que temos Gucky. Só assim não tive que formular uma pergunta tão
tola.
Rhodan sorriu para o rato-castor e lançou um ligeiro olhar de censura para Bell. Não
era esta a hora para aquele tipo de discussão, que geralmente terminava com a derrota de
Bell.
— Suponho que todos conheçam a situação — principiou em tom objetivo. — A
estrela gigante vermelha não consta dos mapas terranos e ainda falta dar-lhe um nome.
Os cálculos já realizados demonstraram que quinze planetas circulam em torno dela, e
que alguns deles são habitados ou pelo menos ligeiramente colonizados. Não temos
certeza, mas ao quê tudo indica o quarto planeta é o mundo principal do sistema. Por
enquanto nossa presença não foi notada. Aliás, com um tráfego destes, isso não é de
admirar.
— Tráfego? — perguntou Tiff perplexo.
— Isso mesmo, tráfego. Não se esqueça de que nos encontramos no centro de um
enorme império estelar. Os três anos-luz que nos separam de Árcon praticamente não
representam nada. De qualquer maneira, aqui estamos mais seguros do que estaríamos em
algum ponto abandonado da Galáxia, onde nenhuma transição deixaria de ser registrada.
Aqui nossa transição apenas foi uma entre muitas outras. Ninguém notou que aparecemos
neste lugar. Por isso acho preferível que prossigamos aqui com o treinamento da
tripulação, antes de traçarmos nossos planos de regresso à Terra. Se é que o faremos.
Bell adiantou-se. Achou que devia formular uma pergunta que interessava a todos.
— Por que vamos continuar aqui? Não cumprimos nossa missão? Não procuramos
levar Thora e Crest para Árcon? Pergunte a eles mesmos se ainda estão interessados em
permanecer nesta área da Via Láctea, onde formigam a decadência e os cérebros
robotizados.
Thora parecia prestes a dizer alguma coisa, mas permaneceu calada. Rhodan pegou
o fio da meada.
— Acha que já cumprimos nossa missão? Pois eu não acho. O que foi que
descobrimos? Um cérebro construído pelos arcônidas, que já foram um povo muito
capaz, governa este reino estelar com a violência e a lógica mais fria. Se não fosse este
cérebro, o Império já teria deixado de existir, Bell. Acontece que também esse cérebro
pode cometer um engano. Já tivemos uma prova disso; se não a tivéssemos, a esta hora
não estaríamos vivos. O cérebro cometeu um engano. Isso prova que vale a pena
tentarmos um entendimento. Quem nos garante que a esta hora um couraçado não está a
caminho da Terra para destruí-la por ordem do Império dos Arcônidas? É possível que o
cérebro robotizado conheça nossa posição, embora não tenhamos certeza. Se os tais dos
mercadores a revelarem aos arcônidas, todo cuidado será pouco. A alternativa com que
nos defrontamos é muito simples: devemos tentar mais uma vez chegar a um
entendimento com o cérebro, ou será preferível regressarmos à Terra assim que
conheçamos perfeitamente esta nave e estejamos em condições de manobrá-la? Não
temos outras escolhas. Thora disse:
— Não demorará muito para sermos descobertos por aqui. Afinal, esta nave foi
roubada. Não acredite, Perry, que se conformarão com um fato destes sem usarem uma
réplica. Dentro de pouco tempo, o cérebro saberá onde nos encontrar.
— Dentro de quanto tempo?
— Dentro de alguns dias, talvez semanas. Depende do lugar em que começarem a
nos procurar, e também do comportamento dos habitantes do sistema da estrela vermelha.
Aliás, o senhor não precisa dar nome a essa estrela, pois ela já o tem. Costumamos
chamá-la de Voga. Voga tem quinze planetas. O quarto é o mundo principal e seu nome é
Zalit. Os zalitas sempre foram súditos fiéis do Império. Não acredito que isso tenha
mudado.
— Zalit é um mundo de oxigênio?
— É um mundo de oxigênio, como a maioria dos mundos habitados. Zalit foi
colonizado pelos arcônidas há quinze mil anos. Quer dizer que os zalitas são nossos
descendentes diretos. E a grande proximidade de Árcon é uma garantia de sua fidelidade.
Rhodan não deixou de perceber a ameaça que estava implícita nas palavras da
arcônida, pois tratava-se de uma ameaça que não era dirigida a ele.
— Não sabemos o que terá mudado por aqui — disse em tom cauteloso. — Não se
esqueça do que aconteceu em Árcon nos últimos treze anos. A dinastia reinante
desapareceu; a senhora e Crest foram condenados ao ostracismo, porque outra família
assumiu o poder. Será que em Zalit não pode ter acontecido uma coisa semelhante?
— Se tivesse acontecido, Zalit já teria deixado de existir — respondeu Thora.
Crest confirmou com um gesto da cabeça.
— Thora tem razão, Perry. Nesse caso Zalit já não mais existiria.
Bell não agüentou mais.
— Por quê? — indagou. — Não venha me dizer que essa gente mole e decadente de
Árcon teria tido coragem para atacar e destruir um sistema. Os arcônidas preferem ficar
sentados diante dos seus televisores para contemplar figuras coloridas abstratas. A única
coisa que sabem fazer é permitir que o cérebro robotizado faça o papel de governo.
— Essa é uma fala muito perigosa — disse Rhodan com um sorriso muito
significativo. — Acontece que é correta, e é justamente aí que está o problema. Deixam
tudo por conta do cérebro gigantesco dotado de pensamento autônomo que dirige o
Império. E é muito raro que esse cérebro tome uma decisão errada. Sinto muito, Bell, mas
Thora tem razão. O fato de que Zalit existe pode ser admitido como prova de que seus
habitantes são súditos fiéis do Império.
— E daí?
— Isso significa que, se surgir algum contato, teremos de agir com muita cautela.
Antes de mais nada, estou interessado em conquistar a confiança do cérebro robotizado.
Sabemos que age de acordo com uma programação específica bastante antiga e está
perfeitamente informado sobre a situação reinante em Árcon. Logo, sabe que seus
construtores estão em plena decadência e tem interesse em selecionar e despertar os seres
da raça arcônida que ainda sejam capazes de pensar. Comparados com o resto dos
arcônidas, Crest e Thora podem ser considerados jovens impulsivos. Por isso o cérebro os
reconhece, mesmo que não os aceite em definitivo. Tenho certeza de que também eu seria
reconhecido, se conseguisse provar ao cérebro que minhas intenções são honestas.
— Reconhecido como quê? — interveio o coronel Freyt, que até então havia
permanecido em silêncio. — Como arcônida?
Rhodan sorriu.
— Faça-me o favor, coronel! Só poderia ser reconhecido como membro de um povo
auxiliar leal. E isso bastaria. Ao menos poderia conservar esta nave e deslocar-me
tranqüilamente no interior do Império. A Terra não correria mais nenhum perigo e
gozaria da proteção indireta de Árcon.
Freyt parecia aliviado.
— Acho que já começo a compreender onde o senhor quer chegar.
— Fico satisfeito em saber disso, coronel. Realmente, fico muito satisfeito. Já que é
assim, também compreenderá por que estou tão empenhado em que os tripulantes sejam
treinados quanto antes. Quando surgir a decisão, a Titan deverá estar preparada para
entrar em ação. Acontece que ainda não conhecemos esta nave. Sem dúvida é uma réplica
da Stardust, embora tenha o dobro do tamanho e do poderio desta. Mas existem certas
diferenças que não podem deixar de ser consideradas. Ainda ontem o oficial de rádio se
perdeu de tal forma durante um exercício, que levamos quatro horas para localizá-lo num
setor ainda inexplorado da nave. O senhor nem imagina o que representa uma esfera de
um quilômetro e meio de diâmetro. Nela poderíamos abrigar toda a população da Terra,
se a comprimíssemos como sardinhas em lata.
— Isso é uma especulação puramente teórica — resmungou Bell, de longe. — E no
plano teórico você não pode contar com a amizade de um cérebro robotizado.
— De qualquer maneira teremos que tentar, antes que ele tenha a idéia maluca de
enviar ao sistema solar uma nave dirigida por robô. É bem verdade que podemos contar
com os majores Deringhouse e Nyssen, que saberão defender a Terra, mas não temos a
menor idéia das armas com que a mesma será atacada.
— Não acredito que o cérebro conheça a posição da Terra — interveio Thora.
Rhodan ergueu as sobrancelhas.
— Por quê, Thora?
Por um segundo seus olhares se fundiram. Rhodan teve a impressão de que um
calafrio descia pela sua espinha. Como eram profundos os olhos daquela mulher, da qual
não conseguira aproximar-se nos últimos treze anos. Não, não era verdade. Desde que
Árcon se comportara tão mal para com Thora, o contato entre ela e Rhodan tornara-se
mais estreito. De uma hora para outra, transformaram-se em verdadeiros aliados, que
lutavam pelo mesmo objetivo.
A barreira que os separara durante treze anos deixara de existir.
— O cérebro teria tomado outras decisões e nos dispensaria um tratamento
diferente. Talvez teria chegado mesmo a matar o senhor, Perry. Não sei por quê, mas
tenho a impressão de que não pode conhecer a posição da Terra.
— Para nós isso representaria uma vantagem estratégica — constatou o coronel
Freyt.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Isso mesmo, coronel. Aliás, o senhor pode voltar para a Ganymed assim que
tivermos concluído esta conferência. Quaisquer instruções que ainda se tornarem
necessárias serão transmitidas pelo intercomunicador. O uso do mesmo não representa o
menor risco, pois as ondas de rádio comuns levarão três anos para chegar a Árcon.
Voltando a dirigir-se a Thora, perguntou:
— Como são os zalitas?
Thora refletiu por um instante.
— Como já disse, descendem dos arcônidas; logo, são como estes.
— Conheço uma raça que descende dos arcônidas, mas hoje não apresenta a menor
semelhança com seus antepassados.
— O senhor está aludindo aos superpesados, que são a tropa de choque dos
saltadores. Aí a coisa é diferente. Essa raça viveu durante milênios num planeta cuja
gravitação é três vezes maior que a de Árcon. Acontece que neste ponto a diferença entre
Zalit e Árcon é mínima. A única diferença que os zalitas apresentam em relação à nossa
raça é a pele marrom-avermelhada e o cabelo cor de cobre, que às vezes possuem um
brilho esverdeado, que lhe dá um aspecto de oxidação. Esse fato foi causado pela
radiação solar a que estão expostos. São seres muito inteligentes, dominam a arte da
navegação espacial e seu grau de decadência nem de longe atinge o de nosso povo. Zalit
sempre foi considerado a colônia mais leal de Árcon.
Rhodan lançou um olhar atento para Thora. Depois de algum tempo perguntou:
— Parece que há uma contradição em suas palavras, Thora. Se os zalitas não são
decadentes, mas formam uma raça ativa e inteligente, não compreendo como podem ser
os vassalos obedientes de um povo que lhes é inferior.
Uma sombra fugaz passou pelo rosto de Thora.
— Como já disse, Árcon fica a apenas a três anos-luz de distância, e se houvesse
qualquer revolta, o cérebro robotizado não teria a menor contemplação. Os zalitas sabem
disso. Nunca poderão arriscar-se a promover uma rebelião aberta contra Árcon.
— Compreendo, Thora — disse Rhodan, que viu suas suposições confirmadas.
Talvez os zalitas pudessem vir a tornar-se seus aliados.
De repente, John Marshall adiantou-se. Havia uma expressão rígida em seus olhos.
Rhodan logo compreendeu que acabara de receber uma mensagem telepática. De onde
teria vindo? De um dos mutantes que se encontravam a bordo da Titan?
— O que houve, John?
Naquele instante Gucky saltou para a frente e chilreou em tom agudo:
— É a Ganymed. Está se afastando de nós.
Marshall só pôde confirmar as palavras de Gucky com um aceno de cabeça, de tão
surpreso que ficou. Parecia que por um instante se esquecera de que não era o único
telepata que se encontrava na sala de comando.
— O que é isso? — exclamou o comandante Freyt que, como comandante da outra
nave, não podia ignorar que a mesma circulava numa órbita estável em torno do sol
Voga, tal qual a Titan. — A Ganymed não pode afastar-se da Titan enquanto os
propulsores estiverem desligados.
— Acontece que se afasta — insistiu John. — Captei o impulso mental de um dos
oficiais, que se encontra na sala de comando da Ganymed e observou o afastamento. A
qualquer momento deverá entrar em contato conosco.
Realmente não demorou três segundos até que o telecomunicador começasse a dar
sinal.
Com um salto, Rhodan colocou-se diante do aparelho e o ligou. Mais alguns
segundos se passaram até que a tela se iluminasse e o rosto preocupado de um homem
ainda jovem surgisse.
O coronel Freyt colocou-se ao lado de Rhodan.
— O que aconteceu, tenente Martin? Como é que a Ganymed pode afastar-se da
Titan, se...
— O senhor já sabe? — perguntou Martin perplexo, mas logo compreendeu, quando
viu Marshall e Gucky. — Ah, já sei. Será que os meus pensamentos foram tão intensos?
Sim senhor, a Ganymed deve ter saído da órbita; aproxima-se do sol vermelho. Não me
ocorre qualquer explicação. Peço instruções.
— Um momento! — interveio Rhodan e ligou outras telas visuais. — Antes de mais
nada, precisamos saber o que realmente está acontecendo. Talvez seja uma ilusão...
— Não é nenhuma ilusão! — exclamou o tenente Martin, que se sentia desesperado
porque pareciam não acreditar nele. — Não há dúvida de que nos afastamos do senhor.
Rhodan não respondeu. Aguardou até que a fileira das telas se iluminasse, exibindo
o quadro do mundo exterior.
A Ganymed encontrava-se na mesma direção do sistema e afastava-se em
movimento bastante acelerado na direção do sol gigante. Enquanto isso, a Titan
continuava a gravitar na mesma órbita.
— Não tome nenhuma providência — ordenou Rhodan. — Aguarde instruções.
Entendeu?
— Sim senhor — respondeu o tenente Martin, que tinha o aspecto de um homem
que preferia não ter entendido. A atitude de espera não parecia ser a maior das suas
paixões.
Rhodan dirigiu-se a Bell.
— Formule uma indagação ao cérebro de navegação. Queremos saber se a Titan
saiu de sua órbita e, em caso positivo, qual é o desvio? Ande depressa.
— A Titan? — indagou Bell totalmente perplexo. — Acho que você está aludindo à
Ganymed...
— Não, é mesmo a Titan — disse Rhodan em tom insistente. — Já ouviu falar em
ilusão ótica ou erro de relatividade, meu chapa? Não é possível constatar a olho nu se
somos nós ou os outros que se deslocam ou se afastam. E, uma vez que nós nos
deslocamos em direção a Árcon, tenho cá as minhas desconfianças. Entendido?
O silêncio, que de repente se instalou na sala de comando, provou que todo mundo
havia compreendido.
***
Os cálculos provaram de forma inequívoca que alguma força invisível e não
identificável arrastava a Titan para fora do campo de gravitação do sol vermelho. A
Ganymed continuava a gravitar livremente em torno do gigantesco sistema.
Rhodan ligou o intercomunicador assim que Bell lhe apresentou o resultado dos
cálculos positrônicos. Limitou-se a acenar com a cabeça e esperou até que a instalação se
aquecesse. Com alguns movimentos da mão, entrou em contato com todos os
compartimentos da nave. Sua voz seria ouvida em toda parte.
— Atenção, todos os tripulantes — principiou Rhodan. Seu rosto magro com os
olhos cinzentos estava tenso, revelando a vontade férrea de enfrentar não apenas os
inimigos humanos mas, se fosse necessário, também o gigantesco cérebro robotizado. —
Ao que tudo indica, encontramo-nos sob o efeito de fortes radiações de sucção. Uma vez
que nos deslocamos em direção a Árcon, devemos supor que o emissor se localiza nesse
planeta. Transmito-lhes essa informação como esclarecimento. Todos os homens deverão
dirigir-se imediatamente aos postos de combate. É possível que sejamos atacados assim
que nossa posição se torne conhecida. Cinco girinos devem ser tripulados e colocados em
regime de prontidão para decolar. Aguardem novas instruções.
Rhodan desligou e estabeleceu contato audiovisual com a Ganymed.
— É o tenente Martin? Sua posição continua inalterada. Não tome nenhuma
providência. Enquanto o coronel Freyt se encontrar na Titan, o senhor exercerá o
comando da Ganymed. Peço sua confirmação.
— Está bem — soou a resposta lacônica antes que Rhodan interrompesse a
comunicação.
Bell estava acomodado na ampla poltrona do piloto, tendo diante de si os controles
de navegação. Não tirava os olhos da tela que reproduzia as áreas em que ficava Árcon.
Ao que tudo indicava, contava a qualquer momento com o aparecimento de unidades da
frota arcônida.
Thora e Crest pareciam indecisos. O coronel Freyt juntou-se a eles e procurou obter
alguma informação sobre a estrutura do radiador de sucção que captara a Titan.
John Marshall e Tiff conversavam em voz baixa.
Gucky não estava mais por ali. Devia ter saído da sala de comando sem que
ninguém o percebesse, para mais uma vez trilhar seus próprios caminhos.
Com um movimento repentino, Rhodan ativou os propulsores situados ao redor da
linha equatorial da nave. Os gigantescos conversores de impulsos desenvolviam tamanha
potência, que a nave Titan, acelerada à razão de 600 quilômetros por segundo ao
quadrado, era capaz de atingir a velocidade da luz em menos de dez minutos. Graças aos
campos antigravitacionais, que funcionavam automaticamente, não se percebia a enorme
pressão, que corresponderia a sessenta mil vezes a gravitação normal da Terra.
Rhodan foi ativando os propulsores dirigidos para Árcon.
Bell teve trabalho.
O cérebro de navegação foi cuspindo os primeiros resultados. A distância que os
separava do sol vermelho de Voga continuava a crescer na mesma proporção. E isso não
se alterou quando Rhodan deu maior potência aos propulsores, aumentando a força que
trabalhava em sentido contrário a Árcon. Até parecia que alguma coisa neutralizava o
mecanismo de propulsão da Titan.
O rosto de Rhodan assumiu uma expressão mais séria.
Lançou um olhar para Bell. Hesitou por um instante e ligou os propulsores para a
potência máxima.
No interior da gigantesca esfera, cresceu o zumbido e a vibração dos conversores.
Os ouvidos dos homens começaram a ressoar e a palpitação do próprio coração foi
ouvida de forma quase dolorosa, como se fosse a pulsação de um enorme Universo. O
chão sob os pés começou a tremer.
A Titan lutava com todas as forças contra a tremenda energia que se apoderara dela
e pretendia arrastá-la em direção a Árcon.
Bell comprimiu algumas teclas. O cérebro de navegação começou a funcionar com
um zumbido e, poucos segundos depois, empurrou uma fita estreita de metal cintilante
para cima da mesa.
As cifras gravadas na mesma eram claras e inequívocas.
Continuavam a afastar-se de Voga com a mesma velocidade. Rhodan desligou os
propulsores. Sua voz fria interrompeu o silêncio repentino:
— O cérebro robotizado é mais forte que nós. E agora?
O coronel Freyt provou que era dotado de um raciocínio rápido.
— Precisamos saber se os raios de tração atingem apenas a Titan. Sabemos que a
Ganymed está livre de sua influência. Se isso também acontece com os girinos, podemos
pegar alguns deles e voltar à Ganymed.
Rhodan acenou com a cabeça.
— Não há dúvida de que com isso nos salvaríamos, mas perderíamos a nave mais
potente do Universo. Acredito que a Terra ainda precisará da Titan. Devemos desistir
dela por uma simples questão de segurança pessoal?
— O que adianta tudo isso se nos tornarmos prisioneiros de Árcon? — perguntou
Freyt em tom exaltado. — O que conseguiríamos com isso?
— Nada — admitiu Rhodan em tom objetivo. — Não pretendo entregar-me
voluntariamente a uma prisão da qual mal acabamos de escapar. Mas não pretendo
desistir tão depressa. Desta vez também deve haver uma possibilidade de enganar o
cérebro. De qualquer maneira, só pretendo defrontar-me com ele quando dispuser de um
trunfo.
— Trunfo?
— Isso mesmo. Apenas quero que me reconheça.
Freyt não respondeu. Sem dizer uma palavra olhava para as telas e viu que o sol de
Voga já começava a encolher. A velocidade da Titan devia ter aumentado
consideravelmente.
A Ganymed era vista apenas como um pontinho luminoso.
De repente, Tiff começou a falar:
— Será que a radiação emitida pelo cérebro robotizado pode ser medida?
Rhodan lançou-lhe um olhar indagador.
— O que quer dizer com isso?
— Se a mesma puder ser medida e, portanto, constatada, saberemos ao menos se a
mesma age apenas sobre a Titan, ou se é irradiada para o espaço ao acaso e só nos atingiu
sem querer e de forma totalmente difusa.
O rosto de Rhodan iluminou-se. Fez um gesto amável para o jovem tenente e
voltou-se para Bell.
— O que dizem os instrumentos? Refiro-me principalmente aos medidores de
radiações embutidos nas paredes externas.
Dali a dois minutos tiveram a resposta. A intensidade dos raios de tração podia ser
medida; portanto, constatava-se em qualquer tempo ou lugar se as radiações estavam
presentes.
A comunicação com a Ganymed não demorou a ser estabelecida. Um ligeiro exame
revelou que a mesma quantidade de raios de tração agia sobre a antiga nave dos
saltadores, mas sem o menor resultado.
Era este o ponto de partida fundamental.
Rhodan tirou suas conclusões com a lógica que lhe era habitual.
— Muito bem. Já sabemos que só a Titan obedece à vontade do cérebro robotizado;
a Ganymed não é atingida pela mesma. Daí podemos concluir com alguma segurança que
nesta nave deve haver uma ligação especial, que pode ser ativada pelo cérebro até mesmo
a uma distância de três anos-luz. Depois de ativada a chave, e só depois disso, os raios de
tração tornam-se eficazes. Portanto, o problema com que nos defrontamos é o de localizar
e neutralizar a ligação especial — lançou um olhar de desafio ao coronel Freyt. — Então,
coronel, ainda acha que seria preferível abandonarmos esta bela nave e fugirmos para a
Ganymed?
— Podemos fazer o possível para conservá-la — disse Freyt. — Não seria nada
mau.
Rhodan sorriu, mas logo se tornou sério quando Bell lhe forneceu o próximo cálculo
de navegação. A velocidade da Titan duplicara.
— Como é que vamos encontrar esta maldita ligação? — perguntou Bell com a voz
zangada. — Numa nave que é um mundo por si...
— Os conversores não falharam; continuariam a trabalhar sem a menor alteração.
Portanto, a ligação só pode localizar-se entre as salas dos propulsores e o anel externo de
emissão de radiações — retrucou Rhodan. — Com isso o espaço em que devemos
concentrar nossas buscas fica bastante menor — olhou em torno. — Aliás, onde está
Gucky?
Ao que parecia, também os outros só agora se davam conta de que o rato-castor não
se encontrava mais na sala de comando.
John Marshall disse em tom de decepção.
— Não consigo captar seus impulsos mentais; deve tê-los isolado.
— Talvez esteja na... — principiou Bell, mas interrompeu-se em tempo ao ver
Thora.
Sorriu. A imagem daquilo que pretendia dizer era muito esquisita.
— Talvez Anne Sloane possa ajudar-nos — sugeriu Marshall.
Anne Sloane era uma ótima telecineta do exército de mutantes e já provara por
várias vezes que suas faculdades não ficavam atrás das de Gucky. Infelizmente era menos
versada em assuntos técnicos que o rato-castor inteligente.
— Gucky não pode ter desaparecido — disse Rhodan. Finalmente concordou com
um ligeiro aceno de cabeça. — Muito bem, Marshall, vá chamar Anne.
Depois que o telepata tinha saído da sala, Freyt perguntou:
— Por que não chamou Miss Sloane pelo intercomunicador?
— Porque não quero deixar a tripulação nervosa — respondeu Rhodan. — Ainda
não se habituou à nave e não confia na Titan. Isso só mudará depois que tivermos
passado galhardamente pelos primeiros batismos de fogo — olhou para as telas. — Este é
o primeiro.
John Marshall voltou dali a dez minutos. A expressão de seu rosto era de uma
estupidez indescritível. Apesar da seriedade da situação Bell divertiu-se com aquele
quadro, que para ele era extremamente alegre, mas preferiu conservar esta opinião para
si. Rhodan perguntou em tom perplexo:
— O que houve? Até parece que alguém lhe roubou a ração de emergência.
— Anne Sloane não estava mais lá. Gucky a chamou há dez minutos. E também
levou Wuriu Sengu.
Sengu era um japonês que, graças a um dom resultante da mutação por que passara,
enxergava através de matéria compacta. Costumava ser designado como o espia do
exército de mutantes.
— Ah, é? — perguntou Rhodan. Nem parecia muito decepcionado. — Quer dizer
que já se pôs a caminho com Miss Sloane e Sengu para agir por conta própria. Só mesmo
Gucky!
— Como será que ficou sabendo disso? — perguntou o coronel Freyt perplexo. —
Não estava mais na sala de comando quando realizamos as medições.
— Não se esqueça de que é um telepata; deve ter acompanhado nossa conversa. E
resolveu tomar logo as providências que se tornavam necessárias. Não posso deixar de
reconhecer que agiu com muita inteligência ao procurar reforços, sem esquecer o espia.
Bem, acho que podemos aguardar tranqüilos para ver o que vai acontecer. E não
demorará para termos outras informações...
A suposição de Rhodan revelou-se verdadeira.
Bell acabara de levantar-se e estava conversando com o coronel Freyt, quando o ar
agitou-se na sala e os contornos do rato-castor começaram a assumir forma. Sem dar a
menor atenção às demais pessoas que se encontravam presentes, arrastou-se em direção
ao lugar do piloto e com um salto escorregou para dentro da poltrona vazia de Bell. O
dente-roedor emitia um brilho triunfal. Gucky estava sorrindo.
Rhodan aguardou paciente, enquanto ao longe, Bell começou a esbravejar. Depois
ficou calado quando Gucky se virou num gesto de advertência, levantou a pata esquerda e
apontou para o teto. Bell não teve a menor vontade de constatar mais uma vez que um
telecineta é mais forte que o comum dos mortais, mesmo que este tenha passado por uma
ducha celular.
Tranqüilizado, Gucky voltou a encarar Rhodan.
— A ligação ficava junto ao cinturão externo e estava hermeticamente fechada.
Mesmo com os instrumentos mais eficientes e os cortadores de impulso mais potentes
teríamos levado meses para romper as grossas paredes de arconita. Reunindo minhas
forças às de Anne, consegui desligar e bloquear o contato — Gucky continuava a sorrir.
— Só mesmo a telecinese seria capaz de uma coisa dessas. Acho que os construtores da
nave não contaram com esta possibilidade.
— Foi um serviço bem feito — elogiou-o Rhodan, acariciando o pêlo sedoso da
nuca do rato-castor. — Às vezes, chego a acreditar que nunca conseguiria arranjar-me
sem você.
Gucky parou de sorrir. O dente roedor desapareceu num instante. Num gesto quase
humilde o pequenino sujeito inclinou a cabeça e colocou o rosto sobre as mãos de
Rhodan, que puxara para junto de si.
Depois voltou a levantar-se e virou-se.
— Bell, logo lhe mostrarei quem de nós é o maior hipócrita. Você merece outra
lição.
Antes que alguém pudesse impedi-lo, Gucky desceu da poltrona, caminhou em
direção a Bell e desapareceu juntamente com o homem tomado de surpresa, que não
soube controlar seus pensamentos.
Gucky teleportara-se com ele para outro lugar.
O coronel Freyt parecia perplexo.
— O que é isso?
Rhodan sorriu e deixou que o controle de navegação começasse a funcionar.
— O senhor terá de acostumar-se a isso, coronel. Gucky e Bell são os melhores
amigos deste mundo; apenas, não querem confessá-lo. Pelo que conheço do rato-castor, o
mesmo dará uma lição àquele atrevido, para ter sossego por alguns dias. Ah, o resultado...
— segurou a fita e fez um gesto de satisfação. — Apenas desenvolvemos a velocidade
resultante da massa da nave. Será fácil modificar isso.
Mais uma vez os conversores de impulsos começaram a uivar, mas dessa vez sua
atividade não ficou sem resultado. Dentro de poucos segundos o vôo vertiginoso da Titan
em direção a Árcon foi neutralizado e a nave começou a deslocar-se em sentido contrário.
Dali a dois minutos, voltaram a avistar a Ganymed.
Pelas novas medições concluiu-se que os raios de tração do distante cérebro
robotizado continuavam a agir com a mesma intensidade; apenas, não encontravam mais
nenhum ponto de apoio. Com isso ficou provado que sua posição não era conhecida, e
que só por acaso foram atingidos pelas radiações emitidas ao acaso.
Quando a Titan se encontrava novamente perto da Ganymed e voltara a descrever a
órbita anterior, Gucky apareceu na sala de comando. Quando perguntaram por Bell, fez a
cara mais inocente deste mundo e não deu qualquer resposta.
Só quando Bell deixou de comparecer à conferência seguinte, Rhodan começou a
preocupar-se. Não estivera em seu camarote. Será que resolveu dar mais algumas voltas
para explorar a nave? A repugnância que o tamanho da esfera lhe causava era bem
conhecida; logo, também não devia contar com essa possibilidade.
Gucky permaneceu calado. E Marshall não conseguiu descobrir nada, já que o rato-
castor bloqueou seu cérebro.
Só dali a seis horas um dos técnicos, que estava fazendo uma ronda pelos corredores
do segmento interior da esfera, ouviu batidas estranhas vindas de um setor da nave onde
até então ninguém havia pisado. Seguiu a direção do som e, em sua imaginação, já se via
diante de monstros desconhecidos que deviam habitar as profundezas da gigantesca
esfera.
As batidas vinham da área em que ficavam as instalações sanitárias.
As mesmas foram entremeadas por um terrível uivo, igual ao que seria emitido por
alguém que não sabia se devia dar preferência à raiva ou ao desespero.
O técnico viu-se diante de uma porta trancada. A fechadura, que era muito simples,
só podia ser acionada pelo lado de fora, caso não tivesse sido trancada por dentro.
Afinal, os construtores da Titan eram apenas humanos.
O técnico também. Sentiu compaixão, mesclada com um heróico arrojo de
descobridor.
Puxou a arma e abriu a porta. Teve a cautela de saltar para trás e levantar a arma,
mas logo a baixou quando viu a miserável figura humana que, depois de seis horas de
espera, finalmente pôde sair do compartimento que não fora dimensionado para uma
permanência tão longa.
Não era outro senão Bell, há tanto tempo desaparecido. Ninguém sabia como
poderia ter entrado num compartimento fechado por fora. Só Rhodan e as pessoas que
com ele se encontravam na sala de comando tinham suas desconfianças.
Além de Bell, só uma pessoa sabia o que realmente havia acontecido. Era o rato-
castor, que fitava o mundo com os olhos mais ingênuos que se poderiam imaginar.
Mas tanto este como Bell preferiram calar a boca.
2
***
***
Dali a meia hora, quando subiram no elevador até a sala de comando da Titan, o
coronel Freyt já os aguardava. Parecia muito nervoso. Thora e Gucky estavam sentados
num sofá. A mão delicada da arcônida acariciava o pêlo do rato-castor, que a intervalos
regulares soltava um grunhido de satisfação e parecia ter esquecido todos os problemas.
Quando Rhodan e seus acompanhantes entraram, levantou-se, lançou um olhar
ligeiro para Marshall, classificou os pensamentos do mesmo e chilreou em tom
indiferente:
— Apresente seu relatório, John. Eu tenho tempo — voltou a recostar-se e fechou os
olhos. Thora não teve outra alternativa senão reiniciar a atividade que interrompera
apenas por alguns segundos.
Rhodan cumprimentou Freyt e fez um gesto de recusa quando este se dispôs a falar.
— Um momento, coronel. Antes de mais nada quero formular algumas perguntas a
Marshall. Durante a viagem não me atreveria a fazê-lo, porque estávamos sendo mantidos
ininterruptamente sob observação telepática. Então, Marshall, que impressão lhe causou o
Zarlt? Falou a verdade?
— O senhor se admirará; disse a verdade. Não lhe ocultou nada, e não mentiu em
nenhum ponto de sua palestra.
Rhodan parecia decepcionado, mas nem tanto.
— Muito bem. Já sabemos a quantas andamos. O Zarlt quer conquistar o governo do
Império decadente. Seu povo é mais capaz e ativo que o de Árcon, e por isso não haveria
nenhuma objeção. Mas tenho minhas dúvidas. O pensamento dos zalitas move-se em
dimensões provinciais, e não sei se serão capazes de desenvolver um pensamento
cósmico. Quando tentam governar o Império, só vêem sua vantagem. Não é isso,
Marshall?
— É isso mesmo; tive a mesma impressão. Mas será que isso não se modificaria
quando alcançassem o poder?
Rhodan sorriu.
— Nunca! Alguém que está acostumado a pensar em moldes muito restritos não se
transformará num cosmopolita do dia para a noite. Talvez isto fosse possível, mas tenho
uma sensação desagradável. Gostaria de saber por que não consigo confiar no Zarlt. Não
mentiu para mim, mas ainda assim sou de opinião que não diz o que pensa.
— Consegui controlar este ponto — ponderou Marshall. — Disse exatamente o que
estava pensando.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— É estranho, muito estranho — encarou o coronel Freyt. — Então, onde está
apertando seu sapato? Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu muita coisa! — esbravejou Freyt e seu rosto mudou de tonalidade. —
Meu pessoal se faz de louco. Ou pelo menos parte dele.
— Como?
— Isso mesmo. É verdade que ficaram completamente inofensivos, mas não
deixaram de ser loucos. Fazem alguma coisa absurda, e quando a gente pergunta o
motivo, dizem que não sabem mais nada. Encontrei verdadeiros sonâmbulos.
— Sonâmbulos? — Rhodan parecia muito pensativo. Gucky levantou-se no seu sofá
e exibiu o dente-roedor. O rato-castor esboçou um sorriso zombeteiro.
— Isso mesmo. Quando a gente fala com eles, acordam. Há algo de errado em tudo
isso.
Rhodan olhou para Gucky.
— Por que está rindo, Gucky? Se souber alguma coisa, fale logo.
Gucky escorregou do sofá para o chão e marchou em atitude grave até o centro da
sala de comando, onde se deixou cair confortavelmente sobre a traseira, equilibrando-se
com o rabo. Este lhe servia de apoio.
— Ninguém me perguntou — anunciou sem parar com o sorriso insolente, que
deixou Bell furioso. — É claro que só podem ser os moofs.
— Cheguei a imaginar isso — confirmou Rhodan. — Mas gostaria de saber mais
alguma coisa. Eles tentam hipnotizar-nos, Gucky?
— Sim, mas não passam da tentativa. Os zalitas são objetos mais compreensíveis;
dos seus esforços.
Rhodan sentiu um sobressalto.
— O que está dizendo, Gucky? Os zalitas? Não compreendo. Em nossa opinião os
zalitas mantêm os moofs como uma espécie de mascote ou cão de fila. Quando entramos
no palácio, um moof tentou desarmar-nos por via sugestiva.
— É bem possível! — chilreou Gucky alegremente, como se tudo aquilo o deixasse
muito satisfeito. De repente, o dente-roedor desapareceu. Tornou-se sério e muito atento.
— Nestas últimas horas tive oportunidade de estudar os moofs. Afinal, tentam
ininterruptamente influenciar-nos. Consegui espreitar um deles e descobri muita coisa.
Não são os zalitas que dominam os moofs; é exatamente o contrário. Foram eles que
derrubaram o Zarlt e fizeram com que Demesor assumisse o poder. Com o auxílio deste,
pretendem destruir o cérebro robotizado estacionado em Árcon e dominar todo o Império.
São os moofs que querem assumir o lugar dos arcônidas; os zalitas apenas acreditam que
o farão.
Rhodan fitou Gucky por muito tempo. Ninguém falou. Crest mordia nervosamente o
lábio inferior, procurando disfarçar o nervosismo.
De uma hora para outra, a situação modificara-se por completo.
Rhodan percebeu-o num instante. Se até então estava indeciso, ficando sem saber se
o domínio dos zalitas sobre o Império representaria uma vantagem para as numerosas
raças que viviam no mesmo, a essa altura tinha certeza absoluta de que a ascensão ao
poder das medusas-monstro significaria o fim de todas as raças humanóides.
Não foi difícil tomar uma decisão.
— Os zalitas sabem que não passam de bonecos? Têm alguma idéia da influência
que os moofs exercem sobre eles?
— Não têm a menor idéia. Acreditam que são donos de seu sistema. Consideram os
moofs uma espécie de animais domésticos. Oficialmente são intérpretes aos quais
recorrem quando se encontram com raças desconhecidas que não dominam o intercosmo
ou não sabem falar. É então que intervém os moofs.
Rhodan percebeu o nervosismo de Crest. Sorriu.
— Não se preocupe, Crest. Nossa decisão só pode ser uma: num caso todo especial
como este apoiamos integralmente o cérebro robotizado. Nunca permitiremos que os
homens sejam governados por uma raça não-humana. Por isso o Zarlt é um duplo traidor.
Orientaremos nossa ação de acordo com esse fato. Por enquanto nosso regresso à Terra
caiu na água — ergueu as sobrancelhas. — Gostaria de saber como os moofs foram
conceber a idéia de subjugar o Império. Gucky, o que vêm a ser esses moofs?
O rato-castor havia assumido uma posição mais cômoda. Acomodou-se numa
poltrona. Cônscio da sua importância, não deixou passar a oportunidade.
— Dificilmente existirão seres mais estúpidos que os moofs — revelou às pessoas
que o escutavam ansiosamente. — Como não sabem falar, são telepatas de nascença.
Mais tarde desenvolvem o dom da sugestão, mas, como já acentuei, este permanece
bastante atrofiado. Os zalitas, que são fáceis de influenciar, foram os seres indicados para
a tentativa de revolta. Têm dificuldades quando se defrontam com homens normais, isso
sem falar nos mutantes. Esse fato os deixa bastante confusos.
— Os moofs são bobos? — perguntou Bell em tom de espanto.
Gucky, muito sério, confirmou com um aceno de cabeça.
— Isso mesmo, são estúpidos, e isso não me deixa nem um pouco admirado.
Também existem homens estúpidos, que querem governar outros homens e não querem
reconhecer que só o homem inteligente, e às vezes o forte e o implacável, foram feitos
para exercer o poder. Mas conforme já disse, quanto mais estúpido é um ser, maiores são
seus complexos e sua sede de poder.
Depois desse sermão um tanto ambíguo voltou a dirigir-se a Rhodan:
— Os moofs não têm a menor noção da tecnologia e a navegação espacial é um
mistério para eles, mas são encontrados a bordo de todas as naves dos zalitas. Os
verdadeiros soberanos do sistema de Voga são os moofs, não os zalitas.
— Não sei o que aconteceu nos últimos treze anos — disse Thora, intervindo no
debate. — É claro que já conheço os moofs só por histórias. Viviam num planeta situado
no Império. Nós os deixamos em paz, pois não sabíamos o que fazer com eles. E agora...
— Ao que tudo indica, apareceu alguém que sabe o que fazer com eles — disse
Rhodan.
De repente, Gucky pôs as orelhas de pé. Ergueu-se em sua poltrona e fitou Rhodan
com seus olhos inteligentes. O dente-roedor voltou a aparecer. Gucky sorriu.
— Saber o que fazer com eles...? — disse, esticando as palavras num silvo agudo
tão dissonante que Bell tapou os ouvidos. — Rhodan, acho que com estas palavras você
encontrou a solução do problema.
Ninguém ficou mais espantado com esta observação que o próprio Rhodan, mas este
preferiu não formular outras perguntas.
4
O Zarlt sentiu-se muito satisfeito quando no dia seguinte Rhodan o procurou e lhe
submeteu sua proposta.
— Conheço o segredo da barreira arcônida — disse, jogando seu trunfo mais forte.
Além disso, ao fugir, consegui enganar o cérebro que, segundo dizem, seria infalível. Isso
prova que o homem é mais forte e inteligente que o cérebro positrônico que governa o
Império. Mas, para desferirmos um golpe decisivo contra o cérebro robotizado
precisamos realizar preparativos meticulosos. É bem possível que até aqui simplesmente
tenha tido sorte, e não podemos confiar na sorte. Quero conhecer melhor minha nova
nave, à qual dei o nome de Titan. Quero que me conceda algumas semanas para treinar
minha tripulação. Depois disso poderemos partir para o ataque conjunto.
O Zarlt balançou a cabeça.
— Por que me oferece uma ajuda maior que a que lhe solicitei? Qual é o interesse
que tem no Império? Onde fica seu planeta?
— Meu planeta não pertence ao Império — disse Rhodan, respondendo em primeiro
lugar à última das perguntas. — De qualquer forma, quando voltar a entrar em contato
com o Império, gostaria que o mesmo fosse governado por um homem, não por robôs.
Esta explicação o satisfaz?
Desta vez o Zarlt acenou com a cabeça.
— Sim, parece bem plausível. Quer dizer que me ajudará?
— Ajudarei. Não tenha a menor dúvida de que farei tudo que estiver no interesse do
Império. Diga-me uma coisa: quem são os moofs?
A surpresa conferiu uma expressão sombria ao rosto do soberano.
— Já sabe alguma coisa a respeito dos moofs?
Rhodan sorriu.
— Vejo-os em toda parte, Demesor. Por que faz tanto luxo com eles, se por sua
natureza não podem viver neste mundo? De onde foram importados?
— Nossas expedições encontraram-nos num planeta solitário. São telepatas e nos
servem como intérpretes. E também como detectores de mentiras, quando isso se torna
necessário. Poderia, por exemplo, conferir todas as suas palavras por meio de um moof.
Como vê, eles nos prestam serviços extraordinários.
— Não tenho a menor dúvida — disse Iihodan, levantando-se. — Espero contar nos
próximos dias com sua visita à Titan. Deve estar interessado em conhecer a nave dos
arcônidas.
— Terei o maior prazer. Não deixarei de visitá-lo.
***
Na Titan, havia andares inteiros que ainda não tinham sido explorados. O fato de
que o gigante espacial representava uma ampliação quase exata da conhecida Stardust
trazia certo alívio. Apesar disso Rhodan não dispensou os exercícios de alarma, que
dariam aos tripulantes a oportunidade de familiarizar-se com a Titan.
Constatou-se que as armas de que dispunha a nave seriam suficientes para, de várias
maneiras diferentes, destruir um sistema solar numa questão de segundos.
Também havia um arsenal cuidadosamente trancado em que estavam escondidas as
temíveis bombas gravitacionais. Tratava-se de uma arma à qual os arcônidas ainda não
haviam recorrido. Era capaz de arrancar todo um planeta da estrutura espaço-temporal de
quarta dimensão, fazendo-o desaparecer.
O que aconteceria se os moofs conseguissem pôr as mãos numa arma como esta?
Não era difícil encontrar a resposta, e foi ela que decidiu o curso que tomariam as
ações de Rhodan.
Enquanto Bell fazia os oficiais e tripulantes correr de um canto da nave para outro,
dando prazos cada vez mais curtos para encontrar as posições designadas a cada um, na
sala de comando estava sendo realizada uma conferência. Além de Thora e Crest,
também os mais eficientes dentre os mutantes estavam presentes. Especialmente aqueles
aos quais se poderia recorrer para a realização da ação planejada.
Ainda participavam da conferência o coronel Freyt, o tenente Tifflor e o Dr.
Haggard, um médico que acumulava suas funções com as de biólogo.
— Quer dizer que a situação é a seguinte — principiou Rhodan, lançando um olhar
para seus apontamentos. — O Zarlt apoderou-se do governo pela força. Provavelmente
ainda não contava com o auxílio dos moofs. Como soube, estes vieram depois. Desde o
início teve a idéia de depor o imperador e assumir o governo do Império. Para isso teria
que neutralizar o cérebro robotizado. E o plano de destruir o cérebro foi o único fator que
fez com que certos zalitas se tornassem seus amigos. Isso é um fator que depõe a favor
desse povo, pois demonstra que não desejam a luta apenas para conquistar o poder. O que
acontece é que não querem ser governados por uma máquina.
— Para falar com franqueza, também não gosto que o Império se encontre sob o
domínio de um robô — confirmou Crest em tom tranqüilo. Thora concordou com um
aceno da cabeça. Ambos tinham bons motivos para não se sentirem satisfeitos com a
situação atual.
— Até aí, muito bem — confirmou Rhodan. — Infelizmente existem outras
circunstâncias, que tornam nossa situação mais difícil. Temos que fazer de conta que
pretendemos dar todo apoio ao Zarlt, a fim de ganhar tempo. Mesmo que queiramos
ajudar o cérebro e, portanto, o Império, o primeiro ainda é nosso inimigo, e continuará a
sê-lo até que consiga reconhecer logicamente nossas verdadeiras intenções. E não deixará
de reconhecê-las, se conseguirmos restabelecer as condições normais em Zalit. Isso só
será possível se eliminarmos os moofs, que governam o planeta por meio de um processo
de sugestão. Nenhum dos nativos desconfia disso; nem mesmo o Zarlt.
O coronel Freyt sacudiu a cabeça; parecia preocupado.
— Quantos moofs existem neste mundo?
Rhodan deu de ombros.
— Não sabemos, mas devem ser milhares. É um número suficiente para controlar
oito bilhões de zalitas.
Gucky mexeu-se. Rhodan logo notou. Nos últimos dias, notara que o rato-castor
dispunha de um volume surpreendente de conhecimentos. Quando resolvia falar,
geralmente havia alguma coisa no ar.
— Acontece que não conseguiram de todo — chiou com a voz fina. — Alguns
zalitas ainda pensam nos velhos tempos que se foram e querem vingar-se. Continuam
fiéis ao Império e chegam mesmo a aceitar a tutela exercida pelo cérebro robotizado.
Acham que o mesmo é mais sensato que Demesor, o novo Zarlt.
— Este detalhe é muito interessante — disse Rhodan e pôs-se a refletir. —
Oportunamente teremos que interessar-nos por esses zalitas. Devem possuir uma
resistência mental maior que os outros.
— Os moofs interessam-se principalmente pelas camadas dirigentes — explicou
Gucky. — Se conseguirmos neutralizá-los, Zalit será um mundo livre.
Haggard levantou o braço. Uma sombra passou pelo seu rosto, sempre gentil.
— Neutralizá-los? Como poderíamos eliminar essas medusas? Estão encerradas em
recipientes pressurizados de grande resistência e, pelo que descobrimos, vivem numa
mistura de gases venenosos, formada principalmente por metano.
Rhodan lançou um olhar para John Marshall.
— O Dr. Haggard tem razão. Devíamos pensar na maneira de liquidá-las. Não há
dúvida de que morrerão se o recipiente pressurizado for destruído. Mas não podemos
penetrar em todas as naves e fazer detonar esses recipientes. E isso sem falar nos milhares
de moofs que estão espalhados pelos quatro cantos do planeta.
— Já pensei nisso — disse Gucky em tom triunfante.
— Também já imaginei — disse Rhodan. — Foi por isso que trouxe Tama Yokida?
— Você já aprendeu a ler pensamentos? — perguntou o rato-castor, fingindo
surpresa. — Tama é o homem de que precisamos.
— Um telecineta? — perguntou Frank Haggard em tom de dúvida.
Rhodan sorriu como quem já havia compreendido tudo. Imaginava quais seriam os
planos do rato-castor, embora ainda não compreendesse por que Gucky complicava as
coisas a esse ponto.
— Tama não é apenas um excelente telecineta — explicou, dirigindo-se ao Dr.
Haggard. — Também provou que sabe cooperar com Gucky. É bem verdade que não sei
quais são exatamente os planos de nosso pequeno amigo, mas não há dúvida de que dois
telecinetas serão capazes de um desempenho bem maior. Um telecineta só sabe agir numa
direção, isto é, pode usar uma força de tração ou de pressão. Já em dois, podem fazer
ambas as coisas ao mesmo tempo.
Lançou um olhar indagador para o rato-castor.
— Será que você poderia ter a gentileza de explicar com mais detalhes quais são
mesmo suas intenções?
Gucky fez uma mesura acompanhada de um sorriso zombeteiro.
— É simples, chefe. Localizo o moof por via telepática. Depois pego Tama e salto
para o respectivo lugar. Se exercermos uma tração telecinética em direções opostas, o
vidro deixará passar o gás. O metano escapará, e o moof partirá deste vale de lágrimas. É
só isso. Não haverá explosões, nada que chame a atenção.
Todo mundo compreendeu. Ninguém teve a menor objeção. Apenas Ras Tschubai
disse com um ligeiro ressentimento:
— E nós? O que vamos fazer? Será que assistiremos a tudo de camarote?
Gucky sorriu da forma como só um rato-castor é capaz de sorrir.
— O que é isso, Ras? Vocês terão trabalho, e muito trabalho.
— Que trabalho é esse?
— Participem dos exercícios de alarma. Já está na hora de conhecerem nosso
barquinho. Não estou com a razão?
Rhodan preferiu não emitir opinião. Não queria magoar ninguém.
— Os zalitas logo perceberão que alguma coisa está errada — objetou o tenente
Tifflor. — Se os moofs morrerem um atrás do outro...
— Faremos com que acreditem numa epidemia que se alastrou entre esses seres —
interveio Gucky.
— Eu lhe dou carta branca — disse Rhodan, dirigindo-se a Gucky, que se
empertigou de orgulho. — Mas faço questão de que a ação seja levada a efeito de tal
forma que os zalitas não desconfiem de nada. Este detalhe é muito importante.
— Sei disso — chilreou Gucky. — De resto, se vez por outra um dos recipientes
explodir, isso não constituirá nenhum erro. Apenas introduzirá um pouco de variedade no
panorama. Vamos embora, Tama, vamos começar. Deixaremos os zalitas sem seus lindos
totozinhos.
Sem esperar resposta, Gucky escorregou para fora da poltrona, saltitou em direção
ao japonesinho, segurou-o pela mão e saiu da sala. Ras Tschubai olhou-os com uma
expressão de inveja.
— Quanto a nós, vamos preparar-nos para a visita do Zarlt — disse Rhodan,
encerrando a conferência. — Virá em companhia de um oficial que é o elemento de sua
maior confiança. Já o conhecemos. Seu nome é Hemor.
***
A eliminação dos moofs que se encontravam no cruzador zalita MRO não correu
exatamente segundo os planos. O acaso interveio e fez com que surgisse uma surpresa
que se revelou muito interessante, mas não para Gucky e Tama.
Os dois mutantes se materializaram à meia nau e, sem serem percebidos,
conseguiram penetrar na cúpula de observação situada na parte superior do cruzador,
onde costumavam ser guardados os moofs. A sala estava vazia, com exceção da abóbada
de vidro, sob a qual o moof se mantinha vigilante, dando livre jogo aos seus
pensamentos, a fim de vigiar a tripulação da nave que realizava um vôo de rotina,
renovando as ordens transmitidas por via sugestiva sempre que isso se tornava
necessário.
Gucky soltou Tama, que não sabia teleportar-se sem auxílio de outrem, motivo por
que dependia do rato-castor. Aproximaram-se do recipiente de metano e contemplaram o
monstro.
— Então, meu chapa — disse Gucky baixinho ao moof, retribuindo o olhar vidrado.
— Você pode fazer seu testamento.
Era claro que o moof não tinha a menor idéia do que seria um testamento, mas
Gucky não se deu ao trabalho de bloquear seus pensamentos. O moof leu com toda
nitidez as intenções concebidas no cérebro daquele ser estranho. Estava disposto a
defender-se.
Tama foi o primeiro a sentir a onda de ameaça brutal e procurou erigir suas defesas.
A ameaça logo se tornou menos intensa e cessou por completo. A força sugestiva do
moof não era suficiente para romper o bloqueio mental.
Gucky era ainda mais resistente. Deu uma risadinha e exibiu o brilho de seu dente-
roedor.
— Não se esforce inutilmente — chilreou. — Tem algum desejo?
A essa altura o moof já devia estar percebendo que sua energia era pouca. Recorreu
à ameaça.
— Quem é você, desconhecido? — com uma tremenda resolução na voz,
prosseguiu: — Se fizer mal a um moof, você sofrerá um tremendo castigo.
— Quem poderá punir-me? — perguntou Gucky.
Finalmente encontrara um moof mais loquaz que os outros.
— Quando você souber, será tarde. Mais uma vez a onda sugestiva investiu contra
os dois mutantes, e mais uma vez revelou-se ineficaz.
— Por que pretendem conquistar o Império, e por que os zalitas têm de fazer o
trabalho por vocês?
A primeira impressão foi de espanto. Mas logo surgiu o impulso inconfundível:
— Vocês já sabem? Nesse caso também devem saber que para nós os zalitas são
exatamente a mesma coisa que nós somos para os senhores.
Gucky pôs as orelhas de pé, embora não houvesse necessidade disso.
— Os senhores? Que senhores são estes?
— Ah, vocês não sabiam?
Logo o moof isolou-se, dando a impressão de que já revelara demais e receava
causar um desastre ainda maior. Gucky procurou extrair outras informações do monstro,
mas viu que seus esforços eram inúteis. Furioso, afastou-se do recipiente e fez um sinal
para Tama.
O que já sabia permitir-lhe-ia fazer alguma coisa com os outros moofs, que seriam
pegados desprevenidos.
Tama e Gucky concentraram-se simultaneamente no mesmo ponto do recipiente
pressurizado. Seus fluxos mentais telecinéticos desenvolviam-se em sentido oposto. Na
parede do recipiente surgiu um ponto rarefeito, por onde escapou o gás mantido sob
pressão, que representava a atmosfera necessária à vida do moof.
A medusa começou a debater-se. Gucky captou impressões de pânico, que logo se
tornaram mais fracas. Por uma única vez o ser tentou levantar-se, mas logo caiu sobre si
mesmo. Parecia uma medusa que tinha dado à praia. Tinha um aspecto repugnante e nada
imponente.
Gucky segurou a mão de Tama.
— Vamos dar o fora. Este veneno não é bom para nossos pulmões.
O ar tremeluziu, e o moof moribundo viu-se sozinho.
No mesmo instante, o primeiro-oficial da nave MRO teve a impressão de que até
então sentira uma dor de cabeça que cessara de repente. Espantou-se ligeiramente de
nunca ter pensado nisso, mas sentiu-se satisfeito e aliviado.
Dando sua ronda habitual, entrou na sala de observação dez segundos depois de
Gucky e Tama se terem desmaterializado.
Pôs a mão no bolso e tirou uma caixinha. Nela havia rolinhos feitos de plantas
aromáticas, muito parecidos sob todos os pontos de vista com os cigarros usados pelos
terranos. Do outro bolso tirou o isqueiro elétrico.
Farejou o ar. Havia um cheiro estranho, como de tocos de árvores apodrecidas. O
moof parecia estar dormindo. Encolhido na sua caixa de vidro, não se movia.
Sacudindo a cabeça, o primeiro-oficial enfiou o cigarro entre os lábios e acionou o
isqueiro. A faísca elétrica saltou sobre o pavio molhado com lassita, uma pequena chama
subiu. No mesmo instante uma força irresistível atirou o oficial pela porta, que felizmente
apenas estava encostada. Uma língua de fogo bramiu por cima dele e bateu contra a
escotilha mais próxima.
Meio confuso, o oficial continuou deitado por alguns minutos. Quando o calor
diminuiu, levantou-se. Nada se quebrara. Apenas seu uniforme estava chamuscado.
Afinal, o que havia acontecido? Uma explosão? Lembrou-se do isqueiro. No
momento em que o acendeu, uma forte língua de fogo atirara-o para fora da sala de
observação. Se os gases incendiados não tivessem escapado pela porta...
Nem quis imaginar as conseqüências. A cúpula teria rachado, e ele seria atirado para
o espaço juntamente com o moof.
O moof!
Ouviu passos. A escotilha foi aberta e alguns homens entraram correndo, ajudando o
oficial a levantar-se. Poucos minutos depois sabiam. O moof estava morto e no recipiente
foi encontrada a atmosfera normal. Não havia o menor vestígio de metano. A parede do
recipiente não apresentava qualquer vasamento.
Era um fenômeno incompreensível. Não encontraram explicação para o mesmo.
O comandante imediatamente entrou em contato com as outras naves e soube que na
maioria delas os moofs haviam morrido pela mesma forma inexplicável. Sempre
morreram sufocados, já que nos recipientes não existia mais a atmosfera de que as
medusas precisavam para viver. O gás escapara, sem que houvesse qualquer vasamento.
O metano e o oxigênio formam uma mistura explosiva. Dessa forma conseguiram
explicar ao menos a explosão ocorrida a bordo da MRO.
Mas quanto ao resto, o fenômeno continuou a ser um mistério.
***
Em Zalit ninguém imaginava que uma batalha violenta estava sendo travada.
Zarlt imaginava-o menos que qualquer outra pessoa. Impaciente, aguardava a
decisão de Rhodan, mas achou preferível não continuar a insistir junto ao mesmo. Um
tanto contrariado, viu-se obrigado a permitir que Rhodan e seus homens andassem
livremente pela superfície de Zalit e estudassem seus habitantes. Também não imaginava
que, ao proceder assim, Rhodan visava a uma finalidade bem definida.
John Marshall conseguira localizar os primeiros zalitas ainda não influenciados
pelos moofs. Um ligeiro exame telepático revelou que eram dotados por um débil campo
defensivo, que os protegia da influência dos moofs.
Quando Marshall e André Noir, o hipno do exército de mutantes, se puseram a
caminho para procurar o grupo que exercia uma oposição clandestina, a ansiedade de
Rhodan quanto às medidas que o cérebro robotizado poderia tomar tornou-se mais
intensa.
Bell procurou tranqüilizá-lo.
— Não acredito que poderia vir a atacar a Terra. Thora é de opinião que nossa
posição astronômica ainda lhe é desconhecida. Os saltadores não têm o menor motivo
para revelar essa posição aos arcônidas, que são seus inimigos mortais. Com isso apenas
prejudicariam a si mesmos.
— Quando não podem possuir uma coisa, querem destruí-la — disse Rhodan em
tom de dúvida. — Não podem possuir-nos, mas também não podem destruir-nos. Logo,
deverão ficar muito satisfeitos se um outro nos destruir.
Thora e Crest trocaram um olhar.
— Não nos abandone numa emergência destas — implorou a arcônida. — O
Império está em crise. Nem mesmo o cérebro robotizado imagina que o inimigo está
diante de suas portas. Os zalitas podem entrar em Árcon quando quiserem, enquanto não
provocarem nenhuma suspeita, e o Zarlt é muito inteligente para fazê-lo. Se perder a
paciência a ponto de não querer esperar mais, recorrerá à violência e à astúcia. E é bem
possível que consiga realizar seu intento.
— Quando isso acontecer, os moofs que o assessoram terão deixado de existir.
— Não se esqueça de que não são apenas os moofs — advertiu Crest. — Outras
naves de Zarlt já estão a caminho para trazer novas levas de moofs. O trabalho de Gucky
e Tama, por mais rápido que seja, não conseguirá neutralizar os reforços. A solução não é
esta.
— Vamos aguardar para ver o que Marshall conseguirá. Talvez o Zarlt possa ser
derrubado por seu próprio povo.
— E daí? Os moofs encontrarão um substituto. Será uma luta sem fim, e o senhor
não terá tempo para participar dela. Não se esqueça da Terra.
Rhodan sorriu.
— Muito obrigado por ter chamado minha atenção para isso. Bell, vamos enviar
uma mensagem a Deringhouse. Prepare o telecomunicador e codifique a mensagem. Será
um impulso concentrado, conforme combinamos. Temos que assumir o risco.
O rosto de Crest assumiu uma expressão preocupada.
— Isso não seria uma leviandade, Perry? Sabemos perfeitamente que os arcônidas
possuem instrumentos de localização extremamente sensíveis. Quando Deringhouse
expedir sua resposta, saberão determinar precisamente a localização do emissor. E isso
lhes fornecerá a posição da Terra.
— Já pensei nesse detalhe — respondeu Rhodan em tom indiferente. — A resposta
de Deringhouse não será expedida da Terra, mas de algum ponto da Via Láctea situado
ao menos a dois mil anos-luz da mesma. E por lá o cérebro robotizado procurará em vão
pelo nosso mundo.
Era a vez de Crest esboçar um sorriso.
— Acho que o senhor não se esqueceu de nenhum detalhe, não é, Rhodan?
— Tomara que não me tenha esquecido. Tomara mesmo!
Bell dirigiu-se à sala de rádio e preparou a mensagem. A outra porta abriu-se, e
Gucky e Tama entraram. Os dois pareciam exaustos, o que face ao trabalho pesado que
haviam realizado não era de admirar.
O rato-castor sentou no chão o recostou-se na parede. Tama acomodou-se numa
poltrona.
— A epidemia dos moof está se alastrando — disse Gucky com a voz cansada. —
Morrem como se fossem moscas. Mas alguns deles não morreram em vão.
— Ah, é? — disse Rhodan, sem disfarçar a curiosidade. — Por quê?
— Descobri alguma coisa, ao menos com os moofs que tinham medo de morrer.
Infelizmente não puderam contar mais do que sabiam.
— Continue — disse Rhodan, dirigindo-se ao rato-castor, que intercalou uma pausa
para aumentar o efeito de suas palavras.
— Os moofs querem que os zalitas ataquem o Império e neutralizem o cérebro
robotizado. Depois disso, Zarlt assumiria o cargo de imperador. Evidentemente só faria
aquilo que os moofs ordenassem, se bem que o próprio Zarlt nem desconfia disso. Mas as
coisas são ainda mais complicadas. Os moofs, por sua vez, apenas executam as ordens de
outros seres, que se mantêm ocultos. É por eles que mandam os zalitas para a luta. Os
moofs são apenas os elementos de ligação entre os zalitas e os verdadeiros manipuladores
do jogo, os chamados senhores.
— Era o que eu imaginava — disse Rhodan. — O que é que uma raça desamparada
como os moofs poderia fazer com o império estelar? Quem são esses senhores?
O rosto de Gucky assumiu uma expressão desolada.
— Infelizmente não conseguimos descobrir. Ao que parecia, os próprios moofs não
sabiam. Talvez estivessem submetidos a um bloqueio hipnótico; não consegui apurar esse
detalhe. De qualquer maneira, não passam de instrumentos manipulados por mestres
muito poderosos.
— E esses mestres logo saberão que em Zalit as coisas não estão correndo pela
forma que planejaram — disse Rhodan em tom pensativo. — Quando isso acontecer,
talvez saiam do seu esconderijo, revelando sua identidade.
— É possível, mas não é provável — disse o rato-castor, sacudindo a cabeça peluda
com tamanho vigor que as orelhas balançavam de um lado para outro. — Nem mesmo os
moofs chegaram a ver um dos tais senhores, tanto que não conseguem descrevê-los. Não
acredito que agirão com tamanha falta de cautela.
Bell entrou na sala, trazendo um bilhete e entregando-o a Rhodan. Lançou um olhar
de esguelha para Gucky, sorriu e fez um gesto com a mão.
— Pelo que vejo, temos uma pausa na batalha.
— Aguarde até que chegue sua vez — resmungou Gucky em tom ameaçador e
fechou os olhos, como se não suportasse a visão do velho amigo. Na verdade, estava
apenas cansado demais para brigar com Bell.
Rhodan leu o texto:
***
Quando Rogal entrou no pequeno subterrâneo, a maioria dos seus amigos já estavam
reunidos. Cumprimentou-os e reconheceu em seus rostos o brilho de confiança que por
tanto tempo estivera ausente.
— Os moofs estão morrendo — disse alguém com a voz alta e clara. — Estão
morrendo em toda parte, e ninguém sabe por quê.
— Pois eu sei — disse Rogal com um sorriso. — Dentro de pouco tempo deixarão
de representar um perigo.
— Acontece que as naves transportadoras que deverão trazer os reforços já se
encontram a caminho. O governo não conseguirá manter-se sem os moofs telepáticos.
Perderia o controle sobre o povo. A quantidade de pessoas que aderiu ao nosso
movimento aumentou consideravelmente depois que os moofs começaram a morrer.
— Isso não é de admirar — disse Rogal. — Quando os traidores desaparecem,
também desaparece o temor dos indecisos.
Não sabia que havia outros motivos para o repentino afluxo de adeptos. Libertados
da influência sugestiva dos moofs, só agora os habitantes começaram a compreender o
perigo que ameaçava o sistema. Queriam depor o Zarlt, e não havia mais nenhuma
constrição mental que os impedisse de realizarem seu intento.
— Será que aqueles desconhecidos têm alguma coisa a ver com isso? — perguntou
alguém.
Rogal lançou um olhar para a pessoa que acabara de falar.
— Os desconhecidos? Quem são eles? Afinal, são hóspedes do Zarlt. Além disso,
roubaram uma nave do Império. Acho que não poderemos contar com eles. Muito menos
acredito que tenham alguma coisa a ver com a morte dos moofs.
— É possível que o senhor esteja enganado — disse uma voz forte vinda da entrada.
— Não nos julgue antes de conhecer-nos.
As cabeças viraram-se abruptamente. Todos os olhos fitaram os dois homens que,
de pé na porta, retribuíam tranqüilamente os olhares. Usavam um uniforme discreto e
traziam algumas armas estranhas no cinto.
Rogal reconheceu-os. Muitas vezes vira sua imagem na televisão.
Eram os desconhecidos...
Por um instante o pânico ameaçava apoderar-se dele. Estariam perdidos? Se sua
suposição a respeito dos desconhecidos fosse correta, estariam. Acontece que o
desconhecido acabara de dizer que talvez estivesse errado.
Decidiu jogar tudo numa única cartada. De qualquer maneira, não tinha nada a
perder. Se os desconhecidos haviam localizado o grupo, era porque conheciam seus
planos.
— Por que veio até aqui? — perguntou, dominando a emoção.
— Talvez seja para ajudá-los — disse John Marshall, lendo a dúvida e uma vaga
esperança nos pensamentos de Rogal. André Noir, que se encontrava a seu lado, começou
a avaliar a resistência dos homens que ali se encontravam reunidos. Levou poucos
segundos para descobrir que não teria a menor dificuldade em impor-lhes sua vontade, se
as circunstâncias o obrigassem a isso.
— Ajudar em quê?
— Queremos ajudá-los a voltar a transformar Zalit num mundo em que valha a pena
viver. Pelo que vê, estou usando de toda a franqueza. Não quer usar a mesma franqueza
conosco?
— Como soube dos nossos planos? Afinal, são gente estranha neste planeta, e são
inimigos do Império, tal qual o Zarlt. Como poderemos confiar nos senhores?
— É que as aparências enganam, Rogal. Para todos os efeitos, o senhor também é
considerado um súdito leal de Demesor, mas na verdade é seu inimigo. Por que não
poderíamos ser amigos do Império, embora sejamos considerados seus inimigos?
Rogal achou que esses argumentos poderiam ter algum fundamento. Acenou
lentamente com a cabeça.
— Qual é a prova de sua suposição?
Marshall sorriu.
— Os senhores são apenas um dos muitos grupos de resistência espalhados por
Zalit. Em geral, não há nenhuma ligação entre os grupos, pois todo mundo tem de cuidar-
se por causa dos moofs. Estou disposto a promover o contato entre os grupos, a fim de
reunir e fortalecer a resistência. Isso basta para provar minha lealdade e boa vontade?
— Não poderíamos admitir que o senhor pretende entregar todos os grupos ao Zarlt?
— Para isso não precisaria negociar com os senhores. Conheço todos os grupos e
seus chefes. Se quisesse, já estariam presos. Acontece que nosso objetivo consiste em
substituir o ditador Zarlt pelo sucessor legítimo do soberano assassinado. E o objetivo dos
senhores não é outro.
Rogal percebeu que o desconhecido não estava mentindo. Ainda um tanto indeciso,
caminhou ao seu encontro e estendeu-lhe a mão.
— Quero confiar no senhor. Se unirmos nossas forças, talvez cheguemos mais
depressa ao nosso objetivo. Mas, o que acontecerá com os moofs?
Marshall não tinha a intenção de informar seu interlocutor sobre a verdadeira
natureza dos moofs.
— Os moofs são aliados do Zarlt. Ajudam-no a controlar os pensamentos de seus
súditos. São traidores; logo, têm de ser eliminados. Já começamos a executar essa tarefa.
O rosto de Rogal iluminou-se.
— Então é graças a vocês que está havendo essa mortandade entre os moofs. Digam
como conseguem fazer isso, pois queremos ajudá-los. Nossa luta só poderá ser bem
sucedida quando não houver mais nenhum moof.
— Deixem os moofs por nossa conta. Vocês terão outro tipo de trabalho — disse
Marshall e fez um sinal para André Noir. — Vocês permitem que eu participe de sua
reunião? Encontraremos um caminho...
Rogal concordou com um aceno de cabeça e dirigiu-se para um ponto mais elevado
do subterrâneo, de onde abriu a conferência.
***
Se quisesse ser sincero para consigo mesmo, Rhodan teria que confessar que um
peso lhe saíra de cima do coração. O cérebro robotizado de Árcon ainda não havia
tomado nenhuma providência contra a Terra. Ao que tudo indicava a suposição de Thora
era correta, se bem que ainda não fora provada. De qualquer maneira, a expedição de
Rhodan dispunha de tempo para preparar sua missão com toda calma.
Metade da Titan encontrava-se num hangar subterrâneo e a metade superior foi
camuflada. Dessa forma, as naves que o cérebro robotizado enviasse à procura do
couraçado roubado teriam poucas possibilidades de localizá-lo.
Isso se ninguém lhe contasse o que realmente estava acontecendo em Zalit...
Não se poderia confiar no Zarlt. Era bem verdade que ainda se encontrava sob o
efeito retardado das ordens sugestionadas pelos moofs, mas no fundo de sua mente, seus
próprios pensamentos não diferiam muito daqueles que lhe haviam sido impostos. Os
moofs não poderiam ter escolhido um instrumento melhor que este. Os objetivos que
perseguiam eram os mesmos, embora os métodos talvez fossem diferentes.
Se Zarlt Demesor achasse conveniente prestar um serviço ao cérebro robotizado
para obter o reconhecimento do mesmo, não hesitaria um instante em trair Rhodan. Por
um instante, Rhodan pensou em influenciá-lo através de seus mutantes, mas logo desistiu
da idéia. As novas levas de moofs poderiam chegar a qualquer hora, e se os mesmos
percebessem que o outro lado também dispunha de sugestores, a situação se tornaria
ainda mais complicada. Os desconhecidos que recorriam aos moofs e aos zalitas para
conquistar o Império não deveriam conhecer a força do inimigo.
O operador de rádio já se havia retirado. Bell estava realizando um dos treinamentos
de alarma que tanto apreciava. Thora entrou na sala sem que ninguém o notasse. Por um
instante parou na porta, contemplando Rhodan que estava sentado na poltrona,
mergulhado em pensamentos.
Durante treze anos esse terrano a segurara, impedindo o regresso para Árcon, pelo
qual tanto ansiava. Estava plenamente convencida de que nunca poderia permitir esse
tipo de comportamento. Mas a esta hora, já não tinha tanta certeza.
O regresso para Árcon transformara-se numa amarga desilusão.
Thora não gostava de lembrar-se disso. As recriminações que pretendia jogar ao
rosto de Rhodan nunca chegaram a ser formuladas em voz alta. Reconheceu que Rhodan
tivera toda razão ao dizer que os arcônidas eram uma raça decadente e incapaz. A atitude
de confiar a responsabilidade pelo império estelar a um cérebro positrônico bastara para
definir sua opinião.
Sem virar a cabeça, Rhodan rompeu o silêncio:
— A senhora não me perturba, Thora. Chegue mais perto. Quero falar com a
senhora.
Thora aproximou-se lentamente. A figura altiva caminhava bem ereta e em seu rosto
havia uma expressão indefinível. O cabelo quase branco emoldurava uma cabeça estreita
e formava um contraste estranho com a pele morena. Os treze anos durante os quais a
mesma ficara exposta à ação do sol terrano deixaram seus vestígios. Em seus olhos
dourados havia um brilho que Rhodan nunca havia notado.
— Quer dizer que nossas intenções estão em conflito — murmurou Thora.
— Ainda bem que isso não acontece com nossas opiniões; ao menos tenho esta
impressão — respondeu Rhodan. — Faça o favor de sentar, Thora. Aliás, a senhora
estava com a razão. O cérebro robotizado não enviou nenhuma nave à Terra. Será que
agiu assim por sua livre vontade, ou será que ainda não conhece a posição de nosso
planeta?
— A hipótese verdadeira é a última — disse Thora, acomodando-se numa poltrona.
— Se conhecesse sua posição, a Terra estaria praticamente perdida. Não tenho a menor
dúvida. Um cérebro robotizado não tem sentimentos.
— Mas pensa logicamente; ao menos espero que o faça. Devia reconhecer que não
sou nenhum inimigo do Império.
— Por enquanto o senhor não lhe forneceu nenhuma prova disso. Qualquer
indivíduo que não obedeça às suas ordens é considerado um inimigo do Império. E o
senhor chegou a roubar-lhe um couraçado.
— Acontece que fiz isso para servir ao Império.
Thora esboçou um sorriso de dúvida.
— O senhor terá que provar isso ao cérebro. Não acha que será muito difícil, quase
impossível fazê-lo?
Rhodan sacudiu a cabeça.
— De forma alguma. Os moofs surgiram no momento indicado. Se conseguirmos
fazer com que Zalit volte a ser um mundo plenamente leal a Árcon, isso deverá constituir
prova de nossa lealdade para com o Império.
O sorriso de Thora aprofundou-se.
— Para mim seria, Perry. Não duvido de suas boas intenções. Mas será que o
cérebro pensa da mesma forma?
— A senhora pensa logicamente, Thora, e o cérebro também. Logo, as conclusões
deverão ser iguais. Bem, vamos aguardar. Aliás, eu queria conversar sobre outro assunto.
Depois de ligeira hesitação, disse em tom resoluto:
— Quais são seus planos para o futuro?
O sorriso desapareceu do rosto de Thora como se uma mão invisível o tivesse
apagado.
— Meu futuro...? — uma dúvida a atingiu. — Que futuro poderei ter em Árcon?
Minha dinastia praticamente foi extinta. Crest e eu estamos condenados ao ostracismo, se
bem que de forma indireta acabaram por reconhecer-nos. Para ser sincera, Perry... se hoje
me visse colocada diante da alternativa de continuar a ser uma arcônida ou transformar-
me numa terrana, não teria nenhuma dificuldade em fazer a escolha.
Era uma afirmativa surpreendente para quem se lembrasse do orgulho que a
arcônida costumava exibir e do desprezo que votava aos bárbaros terranos. A reviravolta
era compreensível, mas para Rhodan foi rápida demais. Desconfiou de que houvesse
alguma cilada.
— Gostaria de ser uma terrana? — disse em tom pensativo, contemplando sua
interlocutora. Esta retribuiu o olhar sem o menor constrangimento. Havia nele uma certa
súplica, que Rhodan não compreendeu. — Os terranos não são seres muito inferiores à
senhora, Thora?
— Hoje não são mais, Perry. Às vezes chego a pensar que é exatamente o contrário.
O imortal não afirmou coisa parecida?
O imortal...! De repente Rhodan pensou que sabia qual era o verdadeiro motivo da
atitude de Thora. O misterioso imortal, um ser incompreensível feito de energia, que
vivia num planeta artificial, denominado Peregrino, recusara aos arcônidas a ducha
celular revitalizadora. A mesma só fora concedida a Rhodan e a Bell.
Por serem terranos!
O sorriso de Rhodan estava marcado pela amargura.
— Compreendo, Thora, mas não sei se conseguirá convencer o imortal.
Thora recuou.
— Perry, não pense assim a meu respeito. Não é só a perspectiva da vida eterna que
me atrai. Árcon representou uma decepção tão amarga para mim que quase não desejo
continuar a viver, quanto mais viver para sempre. Tive mais de um decênio para conhecer
os terranos. Vi que em treze anos criaram uma coisa na qual levamos vários milênios. Já
refleti sobre a prosperidade que o Império poderia experimentar se não fosse governado
pela raça decadente dos arcônidas ou por um cérebro robotizado, mas sim pelos terranos.
Rhodan não respondeu. Sentiu que a arcônida estava dizendo a verdade. O novo
curso que estavam tomando os pensamentos da mesma pareceu-lhe tão formidável, que
precisou de alguns longos segundos para compreender. Mas as dúvidas logo começaram
a surgir de novo.
— Nesse caso sua raça teria que ceder sua posição dominante — ponderou. — A
senhora é uma arcônida. E claro que no papel a senhora poderá transformar-se numa
terrana, mas no fundo do coração continuará a ser o que sempre foi: uma arcônida. Será
que esta situação a deixaria feliz?
Mais uma vez, um sorriso esboçou-se no rosto de Thora. Desta vez foi um sorriso
mais feminino. Uma expressão suave brincava em torno de sua boca, e seus olhos
iluminaram-se.
— Feliz? Por que não poderia ser feliz? — perguntou, olhando para além de
Rhodan.
Naquele instante, uma mão forte parecia comprimir o coração dele. Teve a
impressão de que uma venda caía de seus olhos. Teve que fazer um esforço tremendo
para não deixar perceber o que sentia. Examinou discretamente seu rosto, seus olhos. Mas
não viu neles nenhuma confirmação de sua tremenda suposição, da qual sabia que era
muito mais que uma simples hipótese.
Esteve a ponto de dar uma resposta, quando a porta se abriu com violência e Bell
entrou ruidosamente na sala. Por dois segundos, ficou sem fala quando viu Thora e
Rhodan, juntinhos, sentados em suas poltronas. Mas logo se controlou.
— O exercício de alarma foi concluído! — disse num tom exageradamente militar.
— O próximo treino foi marcado para hoje de noite. Os tripulantes já conhecem a
Titan como suas algibeiras.
Rhodan parecia despertar de um sonho. Numa atitude ausente fitou Bell e acenou
com a cabeça.
— Está bem, Bell. O próximo exercício será realizado hoje de noite.
Bell ficou parado.
— Houve alguma coisa? — perguntou em tom preocupado.
Rhodan sorriu.
— Não, não houve nada; ao menos, não houve nada que pudesse preocupar você.
— Ah! — disse Bell, que não estava compreendendo coisa alguma.
Lançou um ligeiro olhar para Thora, sacudiu a cabeça e saiu. A porta foi fechada
abruptamente. Seus passos ecoaram pelo corredor.
Rhodan voltou a dirigir-se a Thora. A disposição de pouco antes esvaecera-se. Sua
boca estava dura como sempre e em seus olhos já não havia o brilho luminoso que
fornecera a primeira indicação a Rhodan. Voltara a ser a Thora que conhecera. Mas sabia
que existia outra Thora, da qual teria que cuidar.
Era uma Thora que possuía um coração.
***
***
***
Bell ficou muito triste ao saber que teria de ficar na Titan. Rhodan explicou-lhe que
a nave não poderia ficar desprotegida. Ele, Bell, conhecia todos os recantos da mesma, e
por isso seria o homem indicado para assumir o comando, se houvesse algum imprevisto.
Essa explicação representou um pequeno consolo para Bell. Suas queixas tornaram-
se menos violentas, embora não cessassem de todo. Rhodan agiu com a maior cautela ao
escolher as pessoas que o acompanhariam. Além de Thora, Crest e o Dr. Haggard, levou
os mutantes John Marshall, Ras Tschubai e André Noir. Eram sete pessoas ao todo.
O teleótico Ralf Marten descansava em seu camarote, enquanto seu espírito se
encontrava no palácio vermelho. Assumiu o corpo de um certo Milfor, que figurava como
responsável pelo armamento da frota de Zalit. Vendo e ouvindo pelos olhos e ouvidos do
inimigo, participava da festa e, se necessário, avisaria Bell assim que surgisse qualquer
novidade.
Rhodan, Thora e os mutantes acomodaram-se no primeiro carro. Frank Haggard e
Crest tomaram o segundo carro. Os dois homens sentiam-se ligados por uma forte
amizade, cuja origem talvez residisse no fato de que fora Haggard quem há treze anos
salvara Crest da morte certa pela leucemia. O médico australiano era especialista em
doenças do sangue e descobridor do soro que curava a terrível doença, que já não
apavorava a população da Terra.
O fato de irem sós no carro não era um simples acaso. Crest providenciara para que
isso acontecesse, e pouco lhe importava que isso provocasse ou não alguma desconfiança
em Rhodan. Thora também estava muito interessada em que Crest ficasse a sós com
Haggard.
O carro de Rhodan partiu; o outro carro seguiu-o.
Crest disse em inglês:
— Quero falar com o senhor, Frank. Na nave, dificilmente teria oportunidade para
isso. Mesmo aqui teremos que ter cuidado, pois é possível que Marshall nos esteja
vigiando. Peço-lhe que isole seus pensamentos. Gostaria de formular-lhe uma pergunta
cuja resposta significa muita coisa para mim e para Thora.
— Que introdução solene! — gracejou Haggard, contemplando o céu crepuscular de
Zalit. Ali estavam eles, a 34 mil anos-luz da Terra, desenvolvendo sua atividade num
planeta estranho a fim de impedir que o cérebro robotizado de Árcon fosse destruído. Era
uma situação intrincada, que certamente só Rhodan poderia compreender. — Pode falar;
sou todo ouvidos.
— Não se espantará com minha pergunta? — certificou-se Crest, cauteloso.
— De forma alguma. Pergunte.
Crest deixou que alguns segundos se passassem. Sua lembrança recuou ao instante
terrível em que se viu juntamente com Rhodan diante do imortal, pedindo a dádiva da
vida eterna. Há milênios a lenda do planeta da vida eterna corria por Árcon, e a lenda
acabou por transformar-se em realidade no momento em que ele, Crest, e Rhodan
descobriram o planeta.
Foi então que o imortal, um ser surgido da espiritualização de toda uma raça,
declarou que a vida eterna estava reservada exclusivamente aos terranos. Os arcônidas,
acrescentou, já tinham a vida atrás de si, e não serviram para nada. Para que aumentar o
tempo de vida natural de alguém que nada soubera fazer de sua existência? Ele, o imortal,
não via nenhum motivo para isso.
Naquela oportunidade, Crest conformara-se com o veredicto sem esboçar a menor
reação, embora seu orgulho tivesse sofrido um forte arranhão. Com Thora, as coisas não
foram diferentes. O dom da imortalidade relativa só fora concedido a Rhodan, o terrano,
e ainda a Bell, para quem nada era sagrado.
Crest falou. Como se gemesse:
— Frank, o senhor acredita que com os recursos de que dispõe poderia iniciar e
levar avante uma renovação geral das células do corpo humano?
O Dr. Haggard reclinou-se no assento o lançou um olhar perscrutador para Crest.
Naturalmente os acontecimentos do planeta Peregrino já eram do seu conhecimento.
Também sabia que Rhodan estava em condições de conferir o dom da imortalidade
relativa a qualquer terrano, desde que o apresentasse ao imortal. Mas os dois arcônidas
haviam sido excluídos do benefício.
Por quê? Thora e Crest não haviam provado suficientemente que não foram
atingidos pela degenerescência geral de sua raça e possuíam quase a mesma força de
vontade e atividade dos terranos? Talvez ainda teriam uns cinqüenta ou cem anos de vida,
mas o que representava isso quando a história dos próximos milênios estava em jogo.
De repente, Haggard compreendeu como deve sentir-se uma pessoa condenada à
morte. Mas não era verdade que todo homem está condenado à morte desde o momento
em que nasce?
— Por que faz essa pergunta, Crest?
— Apenas quero saber se existe essa possibilidade, Frank. Há um meio de dispensar
a colaboração do imortal?
Haggard contemplou a traseira do carro que ia à frente.
— Com isso não só estaríamos dispensando a colaboração do imortal, mas
passaríamos Rhodan para trás. Já se deu conta disso?
— Não. Apenas queremos alcançar a imortalidade pelos caminhos da medicina, não
como uma dádiva de um ser inconcebível feito de bilhões de outros seres. Se
conseguirmos descobrir o segredo da renovação celular, não estaremos passando
ninguém para trás. Aquilo que conquistarmos com o nosso trabalho é nosso.
— Desde quando está pensando nessa possibilidade? — perguntou Haggard.
Crest fechou os olhos.
— Há bastante tempo. Para falar exatamente, desde o momento em que o sargento
Harnahan encontrou numa das luas do sol Tatlira um ser que tem um milhão de anos.
Haggard confirmou com um gesto. Estava lembrado.
— Não sabemos absolutamente nada a respeito desse ser que tem o aspecto de uma
esfera e se alimenta com a luz das estrelas. Talvez não tenha uma estrutura orgânica,
motivo por que os pressupostos...
— Sabemos que é mais velho que qualquer das civilizações hoje existentes — disse
Crest com uma estranha ênfase. — Ainda sabemos que sobreviverá a nós e às nossas
civilizações. Será que isso não basta?
— O que quer dizer com isso?
— O que quero dizer é que talvez não seja tão mesquinho como o imortal. Afinal,
pediu nosso auxílio. Poderíamos dá-lo em troca de um preço. Esse preço seria o segredo
de sua imortalidade. Não acha que seria uma proposta razoável?
Haggard acenou lentamente com a cabeça.
— Já compreendi o que quer dizer. É possível que nos revele seu segredo, mas não
saberemos fazer nada com ele, pois somos seres orgânicos. O senhor seria capaz de
alimentar-se com a luz do sol?
— Não — disse Crest em tom triste, mas seus olhos emitiam um brilho estranho. —
Mas sei que sem essa luz não viveria mais. Talvez exista alguma ligação.
Haggard viu o funil vermelho do palácio que surgia à distância. Holofotes coloridos
mergulhavam-no num fogo frio, envolvendo-o como gigantescos diademas.
— É possível — confessou num cochicho. — Ainda teremos que conversar a
respeito. Talvez haja uma esperança para o senhor. Para o senhor e para Thora.
***
***
***
A bomba que se encontrava na mão de Rogal estava engatilhada. Apenas uma
ligeira pressão de seu polegar sobre o detonador impedia sua explosão. Se Rogal fosse
morto, o efeito da bomba seria tamanho que seu matador o acompanharia para a morte.
Dois dos seus companheiros haviam aniquilado o guarda que se encontrava à
esquerda da entrada. Um deles ocupou o lugar do morto. Do lado direito já havia um
rebelde que montava guarda.
Os rebeldes entraram no palácio sem que ninguém os impedisse. Não havia nenhum
moof que pudesse denunciá-los. Os zalitas não eram telepatas.
Mais dois guardas foram dominados numa ação silenciosa. Já se ouvia bem ao longe
o murmúrio de vozes vindas do salão de festas que ficava ao nível do solo. Alguém
estava fazendo um discurso.
Rogal esboçou um sorriso frio, enquanto fazia um sinal aos seus seguidores e
continuou a avançar. Penetraria no salão e pediria aos desconhecidos vindos de um outro
sistema solar que se retirassem imediatamente do palácio. Depois disso soltaria a bomba.
Zalit voltaria a ser um mundo livre.
No corredor notou-se um movimento. Um vulto saiu da porta que dava para o salão.
Sem demonstrar o menor receio, aproximou-se dos rebeldes.
Rogal reconheceu André Noir, mas a pessoa que se encontrava a seu lado lhe era
totalmente estranha.
O rebelde parou e esperou. O corredor estava bem iluminado, de modo que se viam
perfeitamente os desconhecidos. O homem que se encontrava ao lado de Noir despertou
todo o interesse de Rogal. Aquele vulto alto e esguio insuflou em Rogal um respeito que
ele mesmo não soube explicar, e que tentou espantar com um gesto da mão. Não
conseguiu.
E não havia nada de extraordinário nesse homem. Não havia dúvida de que os olhos
em que ardia um fogo frio e cinzento chamavam a atenção, da mesma forma que a boca
com os lábios estreitos. E, mais que tudo, os movimentos tranqüilos e dominadores com
que se aproximou, sem dar a menor atenção à perigosa bomba que se encontrava na mão
do rebelde.
Noir parou a alguns passos de Rogal.
— Meu chefe quer conhecê-lo, Rogal. Este é Rogal, Perry Rhodan.
Rogal já ouvira o nome dos lábios de Noir e Marshall. Rhodan era o chefe da
expedição que roubara a nave dos arcônidas. Aparentemente era um inimigo do Império,
mas Marshall ressaltara que no íntimo estava ao lado dos zalitas livres.
Fosse como fosse, Rogal não dava muito valor à diplomacia. Seu punho cerrou-se
em torno da bomba. Uma expressão teimosa desenhou-se em seu rosto.
— Vim para fazer justiça — disse com a voz dura, fitando os olhos cinzentos de
Rhodan. — O Zarlt deve morrer.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— É claro que deve morrer, mas não hoje, Rogal. A hora ainda não chegou. É bem
possível que outros terminem a obra que você iniciou. Se o Zarlt morrer hoje, o mesmo
processo se repetirá dentro de poucos anos.
— Por quê?
Rhodan não pretendia transmitir suas suposições ao zalita. Afinal, Rhodan não sabia
nada sobre a tarefa dos moofs. Nem sobre aqueles que se encontravam por trás deles.
— Mais tarde explicaremos, assim que tiver chegado o momento de agir. Vá para
casa, antes que o Zarlt fique sabendo do atentado que está sendo planejado. Neste
momento, não posso fazer nada por vocês.
Rogal hesitou.
— Como foi que o senhor soube?
Rhodan sorriu.
— Acontece que soubemos, Rogal. Cumprimentou-o com um gesto amável e deu-
lhe as costas. Sem prestar a menor atenção àquilo que acontecia atrás de suas costas,
caminhou em direção ao fim do corredor e voltou a entrar no salão de festas.
Noir ficou a sós com o outro. Estava disposto a usar seu dom, mas preferiu esperar
até que isso se tornasse absolutamente necessário.
Rogal olhou para a bomba. Ao seu lado encontravam-se os companheiros, que não
recuariam diante de nada. Em suas mãos brilhavam armas mortíferas.
— Então? — perguntou Noir. — Querem usar de inteligência e esperar, ou preferem
colocar a violência antes da inteligência?
— Inteligência? — resmungou Rogal. — Quer que desistamos, agora que
conseguimos eliminar os guardas? Não seria uma covardia? Não sei quando teremos
outra oportunidade como esta. Não, meu caro, ninguém nos deterá. Dou cinco minutos a
você e aos seus amigos, para que saiam do prédio. Depois disso a bomba vai explodir. O
Zarlt precisa morrer.
Noir percebeu que sua força de persuasão havia chegado ao fim. Nem mesmo
Rhodan conseguira. Portanto, não teve outra alternativa senão colocar um bloqueio pós-
hipnótico nos rebeldes, que os faria esquecer tudo que havia acontecido.
Foi assim que apenas vinte segundos depois Rogal e seus amigos bateram em
retirada, numa retirada que não saberiam explicar a ninguém, muito menos a si mesmos.
No dia seguinte, quando começou a correr a notícia do assassínio dos guardas do
palácio, ninguém se espantou mais com isso que o próprio Rogal.
***
***
***
— Isto não é uma nave espacial, mas um planeta — voltou a fungar Bell espavorido,
deixando-se cair no elevador antigravitacional. O tenente Tifflor seguiu-o, conforme era
seu costume. Enquanto a queda era freada pelos campos energéticos invisíveis, falou:
— O senhor não disse isso há alguns dias?
Bell aterrizou e dirigiu-se ao corredor. A voz de Rhodan soou de um dos alto-
falantes:
— Alarma de combate! Guarnecer todas as posições. Ensaio de alarma. Ocupar
imediatamente todas as posições.
Bell resmungou:
— Nossa posição é D-135. Sei lá o que quer dizer isto. Fica neste andar, a uns
oitocentos metros daqui. Vamos andando.
Correram por um corredor que descrevia uma curva ligeira para a esquerda, já que a
fita transportadora não estava funcionando. Tifflor praguejou baixinho. Bell soltou um
palavrão e lembrou-se de suas funções de dirigente dos alarmas anteriores. Ali a coisa foi
muito mais divertida.
Um vulto aproximou-se, vindo da esquerda.
Era Ras Tschubai.
Bell respirou aliviado.
— Ei, Ras. Não quer dar-me uma ajuda? Poderia levar-me ao D-135, que também é
seu posto.
— Isso não seria justo — gritou Tiff e passou correndo por Bell.
Bell parou.
— Então, Ras? Sempre fomos bons amigos. Você é um teleportador e poderá estar
lá num segundo. Já eu com estas pernas curtas...
— Pernas tortas — disse uma voz vinda de cima.
Bell praguejou e pôs-se a correr. Ras seguiu-o com um olhar de espanto. Sacudiu a
cabeça, lançou um olhar assustado para o pequeno alto-falante embutido no teto.
Desmaterializou-se e saltou para o setor D-135, onde aguardou tranqüilamente a chegada
de Bell.
Este chegou após cinco minutos, fungando e gemendo. Lançando um olhar zangado
para Tiff, que já estava agachado atrás, dos controles do desintegrador, ocupou seu lugar.
Ouviu-se um estalido, e a voz de Rhodan disse:
— Excelente. Dentro de dez minutos conseguimos colocar a nave em posição de
combate. Amanhã conseguiremos em nove minutos.
Depois de uma ligeira pausa, prosseguiu:
— A gente devia ser um teleportador, não acha, Bell? Especialmente quem tem
pernas tão curtas...
— O principal é que sejamos felizes — resmungou Bell sem entrar no assunto.
Sabia perfeitamente o que o aguardava.
No dia anterior, durante o primeiro alarma, proibira aos teleportadores que fizessem
uso de seu dom. E quando Gucky, que detestava andar, foi o último a atingir o lugar que
lhe fora destinado, Bell debochou do mesmo, culpando suas pernas curtas pelo insucesso.
Dessa forma a gente paga tudo que faz, e não apenas na Terra.
Se o rato-castor soubesse do incidente e ouvisse que o próprio Bell confessara...
Não! As conseqüências seriam inconcebíveis.
Naturalmente Gucky soube...
***
**
*
Os astronautas da Terceira Potência conseguiram enganar
o gigantesco cérebro positrônico que governa Árcon, e ainda se
encontram de posse da Titan, mas A Luta Contra o
Desconhecido representou uma prova flagrante de que é muito
importante ser amigo, não inimigo do cérebro positrônico...
Como será que Perry Rhodan consegue isso? Em O Aliado
do Gigante, título do próximo volume, Perry Rhodan revela a
resposta.