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Introdução

o que queremos dizer quando falamos de "arte primitiva"? Des-


conheço qualquer outro termo na antropologia ou na história da arte que
tenha sofrido tantos ataques irritados por parte de pessoas que achavam
que deviam desligar-se dele mas que gostariam, ao mesmo tempo e em
algum nível, de acreditar na sua legitimidade. O resultado é um grande
número de definições atravancadas por longas explicações. C. A. Bur-
land, por exemplo, tendo em mente os argumentos que haviam sido le-
vantados após a Segunda Grande Guerra contra o rótulo "primitivo", per-
maneceu, apesar disso, fiel ao termo, proclamando que ele "é confuso e
inexato, mas seu uso constante o fez significar algo que é amplamente
compreendido" (Hooper e Burland, 1953, p. 19). Uma discussão acadê-
mica sobre o termo foi aberta com a observação: "Penso que todos sen-
timos um mal-estar ao ler ou ouvir falar de 'arte primitiva'" (Claerhout et
aI., 1965, p. 432), e um número considerável de críticos parece compar-
tilhar do mesmo desapontamento de René Huyghe, da Academia Fran-
cesa, o qual assinalou que o termo, embora "parcialmente justificado
(...) não está mais na moda" (1973, p. 67). Até mesmo no final dos anos
1980, muitos autores simplesmente não conseguiam abandonar nem o
termo em si nem as conotações evolucionistas que o permeiam. A His-
tória da Arte de H. W. Janson, amplamente utilizada e com revisão de
1986, é um exemplo típico:
A palavra "primitivo" é um tanto infeliz (...) Ainda assim, nenhum outro termo pode irmãos menores, geneticamente correlatos e genealogicamente iguais,
nos servir melhor. Continuemos, então, a usar primitivo como um rótulo prático
mas que ainda não aprenderam a controlar seus impulsos naturais em
para um modo de vida que passou pela Revolução Neolítica mas não dá mostras
conformidade com as regras do comportamento civilizado.
de evoluir no rumo das civilizações "históricas". (1986, p. 35)1
Objetos produzidos antes da Primeira Guerra Mundial dentro de tradi-
Começo apresentando dois conjuntos de definições de "arte pri-
ções artísticas não representadas nos museus de arte até o final da Pri-
mitiva". O primeiro representa formulações com origens autenticadas; o
meira Guerra .Mundial. (Ou seu corolário: Objetos produzidos antes da Pri-
segundo, de caráter mais independente, tem a intenção de assinalar as
meira Guerra Mundial dentro de tradições artísticas não representadas
sugestões que estão por trás do emprego atual do termo, introduzindo
nos livros de História da Arte até o final da Primeira Guerra Mundial.)
algumas das preocupações deste livro.
Qualquer tradição artística de data posterior à Idade Média para a qual
os museus não identificam os artistas das peças expostas. (Ou seu coro-
lário: Qualquer tradição artística de data posterior à Idade Média para a
"Estamos lidando com criações artísticas de pessoas de escasso conhe-
cimento mecânico - os povos sem rodas" (Hooper e Burland, 1953, p. 20). qual os museus indicam as datas dos objetos expostos em séculos e
não em anos).
"A arte primitiva é produzida por pessoas que não desenvolveram ne-
A arte de povos com idiomas normalmente não ensinados nas universi-
nhum tipo de escrita" (Christensen, 1955, p. 7).
dades.
"Propriamente falando, é a arte daquelas pessoas que permaneceram
até recentemente em estágios tecnológicos iniciais, cujo modo de vida Qualquer tradição artística na qual o objeto, ao ser retirado do seu am-
tem sido orientado para o uso de ferramentas e não de máquinas" (Dou- biente cultural de origem, tem seu valor de mercado automaticamente
glas Newton, citado em Kramer, 1982, p. 18). inflacionado, alcançando um preço dez ou mais vezes maior.

"Hoje o termo (...) vem referir-se simplesmente, na falta de outro melhor,


Ao longo das páginas seguintes, tentarei estimular uma reavaliação
à arte das sociedades sem classes" (Moberg, 1984/1985, p. 23).
crítica de certos conceitos que são parte das noções ideológicas mais
básicas na nossa sociedade. Alguns deles são tão familiares que pare-
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cem uma simples questão de bom senso; outros são metáforas que
Qualquer tradição de arte visual produzida por seres humanos adultos constituem uma espécie de código para se referir à unidade e à diver-
mentalmente equilibrados, freqüentemente analisada no contexto com- sidade dos seres humanos. Quando me refiro a esses conceitos como
parativo de desenhos feitos por macacos, crianças e loucos. artefatos específicos da nossa herança cultural Ocidental, represento-os
Qualquer arte capaz de evocar no público ocidental imagens de rituais com letras maiúsculas: "as Grandes Civilizações", "a Arte Primitiva", "a
pagãos - particularmente canibalismo, possessão espiritual, ritos de ferti- Família Humana", e assim por diante. Dentro desta convenção, "Oci-
lidade e formas de divinação baseadas em superstição. dental" assinala uma associação a pressuposições culturais de origem
européia, seja no pensamento de uma pessoa de Nova York, Tóquio ou
Qualquer arte produzida por pessoas que, no imaginário metafórico oci-
Lagos.2
dental da família humana, são vistas com o carinho dispensado aos

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Este livro baseia-se principalmente em material colhido na França e idéias de uma pessoa em particular não pretendem portanto ser uma
nos Estados Unidos - em parte porque estes países foram meu lar crítica à sua profissão, disciplina acadêmica, classe, ideologia política
durante o período de pesquisa e escrita, mas também porque cada um ou nacionalidade. Evitei ao máximo apresentar reflexões confrontando
deles representa um importante local de encontro entre o público Oci- pontos de vista, como franceses em oposição a americanos, antropó-
dental e os artefatos não-Ocidentais, oferecendo assim grande riqueza logos em oposição a historiadores da arte, e curadores de museus em
- tanto no nível popular quanto no acadêmico - para as questões que oposição a marchands. Também resisti à tentação de, seguindo a suges-
me proponho explorar. Não constitui uma tentativa de apresentar um tão de um colega, caracterizar as opiniões citadas de fontes americanas
estudo sistemático ou uma comparação da situação da Arte Primitiva como sendo o produto de uma "inclinação mental pré ou pós anos 1960".
em diferentes partes do mundo Ocidental. Tampouco trata em detalhes Esta decisão genérica certamente trará dificuldades aos leitores que
da economia do mercado da Arte Primitiva. Os marchands, colecionado- gostariam de ter alguma base para dissociarem-se de princípios que
res e curadores que conversaram comigo sobre seu mundo, ensinaram- julgarem mal informados, antiquados ou ideologicamente objetáveis.
me certas coisas a respeito do importante papel das leis fiscais na França Amigos e conhecidos cujas identidades situam-se de algum modo nas
e nos Estados Unidos (e como tais leis são dribladas), das várias práticas categorias de "crítico de arte", "antropólogo", "curador de museu", "inte-
empresariais dos diversos intermediários, das implicações práticas da lectual" ou "liberal" protestaram vez por outra, alegando que deter-
escala móvel entre "restauração" e "falsificação" de objetos de arte, da
minada opinião por mim criticada pertence a um outro grupo que não o
rivalidade entre os marchands e os funcionários de museus, das intrigas
deles, e que não posso, de modo justificável, deixar de precisar a fonte
de bastidores dos leilões, e de muitos outros aspectos desse comércio
das tendências que estão sendo discutidas. Contudo, estou convenci da
que contribuem para sua estrutura financeira. Contudo, sei que aquilo
de que uma análise das diferenças de opiniões entre estas categorias se
que me foi mostrado não é mais que a ponta desse iceberg.
mostraria bem mais complexa do que muitos imaginam, com sutis in-
As páginas seguintes também não examinam, não classificam, nem fluências cruzadas que tornam difícil perceber o caráter particular de ca-
julgam os diversos nichos disciplinares e ideológicos dos quais surgiram
da uma, e com as experiências de vida de cada indivíduo levando-o a trans-
essas ou aquelas opiniões. Da mesma forma como um interessado em
cender e contradizer de modo idiossincrático o conhecimento transmitido
arte arruma sua estante, simplesmente coloquei, lado a lado, sem qual-
no qual foi iniciado pela sua educação formal. As implicações deste tipo
quer intenção de classificação, opiniões tão diversas sobre Arte Primitiva
de distinção constituiriam claramente uma área de investigação legítima
como as adotadas por Nelson Rockefeller, Franz Boas, Ladislas Segy,
e esclarecedora, mas seriam tangenciais a meu objetivo principal.
Frank Willett, William Rubin, Raymond Firth e John Povey. Isto porque
minha experiência sugere que, esteja tal estante na sala de um psiquiatra Em última análise, o objetivo deste livro é elucidar a compreensão
ou de um dentista, de um empresário ou de um advogado, de um antro- cotidiana que Ocidentais educados, entusiastas, porém não-especia-
pólogo ou de um historiador da arte, de um rico colecionador ou de um lizados, têm a respeito da Arte Primitiva. Em vez de analisar o conheci-
freqüentador de museus, ela tende a ser utilizada como um recurso mento primário sobre este tema, o livro explora o desenvolvimento de
cultural generalizado - ou seja, sem uma insistência em diferenciar as uma opinião de segunda mão a seu respeito - opinião que emerge do
credenciais específicas de seus vários autores. Minhas discussões das conhecimento e das idéias de acadêmicos, curadores e marchands pro-

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fissionais, mas que reformula e ressitua suas conotações culturais e so- dades com uma forma de arte pouco valorizada que foi apelidada de
ciais no contexto de filmes, programas de entrevistas, críticas de jornais, femmage 3 - um tipo de idéia irmã da colagem/assemblage da Arte
revistas populares e conversas sociais. Em resumo, trata de algumas Moderna. Esta idéia rende homenagem à arte de incontáveis mulheres
das nossas pressuposições culturais mais básicas e não questionadas - que, ao longo da história, dedicaram sua energia criativa a livros de recor-
o "conhecimento transmitido" - sobre as fronteiras entre "nós" e "eles". tes, aplicações, álbuns de fotos e tecidos em patchwork (inventando, no
processo, cartões de amor feitos à mão) muito antes do interesse de
Em parte, este livro fala da condição de objetos que, em todo o mun-
Picasso ou Braque por esta técnica particular de expressão artística. Por
do - de certo modo como os africanos que foram capturados e trans-
outro lado, a mesma natureza composta da minha apresentação poderia
portados para terras desconhecidas durante o tráfico de escravos -,
estar igualmente relacionada à experimentação pós-modernista na
foram descobertos, tomados, mercantilizados, despojados de seus
literatura etnográfica, que envolve "não um amontoado, mas uma calcu-
vínculos sociais, redefinidos em novos cenários e reconcebidos de modo
lada justaposição de contextos, pastiche talvez, mas não desordem"
a corresponder às necessidades econômicas, culturais, políticas e
(Strathern, 1987, p. 265 e 266). Na verdade, porém, a estrutura dos
ideológicas de pessoas de sociedades distantes. Embora a devastação
capítulos seguintes representa uma escolha muito pessoal, baseada na
provocada pelo tipo de imperialismo cultural do século XX seja inteira-
natureza do tema do livro e na minha própria opinião sobre ele. O que
mente diferente daquela promovida pelo do tráfico de escravos prece-
proponho não é uma resposta pronta para os vários, complexos e sutis
dente, avilta, da mesma forma, as comunidades que são suas fornece- problemas inerentes à compreensão Ocidental das artes dos não-Oci-
doras. Para compreender este fenômeno, devemos começar voltando dentais. Meu desejo é simplesmente levantar algumas questões a
nossa atenção, não para os objetos em si, nem para as pessoas que os respeito das cômodas idéias preconcebidas que geralmente ditam o
produziram, mas, em vez disso, para aqueles que definiram, criaram e lugar da arte "exótica" na nossa sociedade, e, no processo, expor uma
defenderam a internacionalização da Arte Primitiva e para as suas visões pauta cultural e política que é, nas palavras de Pierre Bourdieu (1979, p.
raciais, culturais, políticas e econômicas. Sob esta perspectiva, nosso 60), menos inocente do que poderia parecer.
problema central, para adaptar uma frase de Ortega y Gasset (1925),
Na última cena do filme provocativo e lingüisticamente nômade de
passa a ser a desumanização da Arte Primitiva e dos seus criadores. Os Raul Ruiz, The Roof of the Whale, os dois últimos indígenas yagan que
capítulos seguintes tentam ilustrar os múltiplos mecanismos - das es- restaram no mundo no ano 2000 estão conversando num ponto qualquer
tratégias de coleta às estruturas de interpretação - que serviram para do pampa na Terra do FogO.4 Enquanto serviam como informantes ao
executar e validar tal processo. antropólogo que registrava sua língua para a Ciência, foram também
Escrito por uma acadêmica de carteirinha para amantes de arte de colocados sob a proteção de sua diligente e bem-intencionada esposa,
qualquer procedência, este livro alterna discussões acadêmicas e po- que os iniciou no hábito do chá e outros prazeres Civilizados, anterior-
pulares sobre o assunto. Após o texto ter sido escrito, um leitor comentou mente inacessíveis a eles. Sentados eretos em cadeiras retas, trajando
que o modo como ele justapõe evidências de diversas fontes (recortes ternos impecáveis, eles discutem (um falando um alemão extremamente
de jornais, anúncios de revistas, pronunciamentos acadêmicos, etiquetas refinado, o outro um inglês igualmente erudito) os méritos de Beethoven
de museus, cenas de filmes, contatos turísticos e outros) mostra afini- e Mozart, fazendo alusões bem informadas à estrutura da música e à

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última viagem de Mozart a Praga. Quando a discussão finalmente termi-
na, eles chegam à sóbria e mutuamente satisfatória conclusão de que
Mozart é o melhor dos dois. O fator decisivo - o atrativo exercido pelas ca-
pas de seus respectivos discos - é um lembrete gentil de que o entendi-
mento transcultural é freqüentemente uma questão bastante espinhosa.
Com a contínua homogeneização dos modos de vida em todo o
mundo, cada vez mais os membros das nações dominantes simples-
mente agarram-se firmemente ao seu próprio modo, mesmo quando
vivem grandes oportunidades (através da mídia e das viagens) de co-
nhecer e de se deixar influenciar por outras culturas. As próximas pági-
nas abordam um pequeno aspecto deste profundo e assustador dilema.

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Copyright © by Sally Price
Publicação original: Primitive Art in Civilized Places. The University 01 Chicago Press,
Sumário
Chicago e Londres, Paperback edition, 1991.
Ficha Catalográlica elaborada pela Divisão de Processamento Técnico - SIBI/UFRJ
P946 Price, Sally.
Arte Primitiva em Centros Civilizados/Sally Price;
tradução de Inês Alfano; revisão técnica de José Reginaldo Santos Gonçalves.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.
200 p.; 14 x 21 cm
1. Antropologia 2. Arte 3. Estética I. Título.
CDD:301
ISBN 85-7108-225-1

Capa
Janise Duarte Lista de ilustrações 7
Edição de Texto Prefácio à edição brasileira 9
Maria Teresa Kopschitz de Barros
Revisão Agradecimentos 15
Cecília Moreira
Introdução 19
Maria Teresa Kopschitz de Barros
Projeto Gráfico e A mística do conhecedor de arte 27
Editoração Eletrônica
Janise Duarte
O princípio da universalidade 46
Foto da Capa: Fred R. Conrad, NYT Pictures O lado noturno do homem 63
Guerreiro Maori no Metropolitan Museum 01
Art, por ocasião da exposição Te Maori.
Anonimato e atemporalidade 87
Jogos de poder 102
Universidade Federal do Rio de Janeiro Objetos de arte e artefatos etnográficos 120
Forum de Ciência e Cultura
Editora UFRJ Da assinatura ao pedigree 143
Av. Pasteur, 250/sala 107 - Rio de Janeiro
CEP: 22295-900 Um exemplo 154
Tel.: (021) 295-1595 r. 124 a 127
Posfácio 175
Fax: (021) 542-3899 e 542-4901
E-mail: editora@editora.ulrj.br Notas 178
Apoio: dJr Fundação Universitaria Referências bibliográficas 189
111 José Bonifácio

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