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Resumo: O tema deste artigo é a arte de sociedades tribais. Mais especificamente sobre
os aspectos sensoriais e simbólicos presentes nela. A literatura sobre arte indígena
brasileira dedica maior atenção sobre os aspectos simbólicos, uma vez que seus estudiosos
buscam compreender a sociedade através de sua arte. Fruir e fazer arte são aspectos
estéticos universais. A diferença reside na maneira como cada sociedade lida com a
estética; qual o seu lugar na vida dos indivíduos e em quais suportes ela se manifesta,
como teremos a oportunidade de conhecer, ao longo desse texto.
Palavras-chave: Arte indígena. Símbolo. Ritual. Estética.
*
Doutora em Sociologia pela UNESP. Professora Adjunta II do Departamento de Artes,
CCH-UFMA. E-mail: zanmaira@uol.com.br.
Não existe povo por nós conhecido, que dedique toda a sua energia e seu tempo
em busca de abrigo e alimentos. Até as mais pobres dentre as tribos produzem
objetos que são para elas fonte de prazer estético” (1981, p.33, tradução nossa).
[...] por quão diversos possam ser os ideais de belo, em qualquer lugar o juízo
estético apresenta as mesmas características: os rústicos cantos dos siberianos
as danças dos negros africanos as mímicas dos indígenas californianos, as
esculturas em pedra dos neozelandeses, os trabalhos em madeira dos melanésios,
as esculturas do Alasca exercitam sobre aqueles que as produzem um fascínio
não diferente daquele que experimentamos quando ouvimos uma canção,
assistimos a uma dança artística ou admiramos uma obra ornamental, uma
pintura ou uma escultura. O fato mesmo que todas as tribos por nós conhecidas
cultivem o canto, a dança, a pintura, a escultura é a prova do desejo de produzir
coisas que satisfaçam pela sua forma e a demonstração da disposição do homem
para gozá-las. (1981, p.33, tradução nossa)
Nos estudos sobre arte indígena brasileira tem prevalecido a tese de que
ela é simbólica, funciona como um código transmissor de mensagem. Compa-
rando esses estudos com os de Boas, de Edmund Carpenter, de Gerbrands e de
outros, percebemos nesses últimos a tese da fruição presente ora na ação, isto é,
durante o processo, ora no objeto pronto.
Gerbrands (1976) discorre sobre uma série de comportamentos prescri-
tos inerentes á confecção de máscaras rituais. Dentre estes, ele cita que as ferra-
mentas não podem ser vistas por homens não iniciados e por mulheres; são
realizados rituais de oferendas para que, madeira e instrumentos de trabalho,
Para uma máscara agradar aos ancestrais, ela deve ser tão bela quanto possível.
As qualidades estéticas dependem da capacidade do artista. O escultor é bastante
consciente de sua responsabilidade pela elaboração de uma bela máscara.
Durante esse trabalho, é comum que ele esteja sempre ansioso, preocupado em
fazer uma máscara bonita para agradar os ancestrais. Uma máscara para ser
bela, necessita ter equilíbrio, simetria, ritmo e “harmonia”. (1976, p.380)
Em seu trabalho sobre os Asurini do Xingu (1993), ela diz que a pintura
está para o sexo feminino como o xamanismo está para o masculino. Assim
como o jovem deve ser iniciado no domínio dos mitos, cantos e prática ritual
xamanística, mesmo que não venha a exercer esse papel ou a se tornar um xamã,
a menina, também, deve exercitar-se na arte da pintura corporal e da cerâmica.
Sônia F. Dorta desenvolveu pesquisas entre os Bororo, onde realizou um
estudo minucioso sobre a plumária desse grupo étnico. Além de uma classifica-
ção criteriosa desta, construiu sua tese baseada no Pariko. Segundo a autora,
dependendo do tipo e origem das plumas, este é um objeto designativo de cada
clã. Em síntese, o Pariko simboliza a organização social dos Bororo:
Berta Ribeiro foi, sem dúvidas, quem mais trabalhos produziu sobre arte
indígena. Em “A mitologia pictórica dos Desâna” (1992), a autora colabora com
dois indígenas dessa etnia na elaboração de um trabalho sobre a mitologia do
referido povo. Ela os encorajou a fazer a “transcrição figurativa” do mito da
criação desse grupo indígena. A partir daí, compara o estilo artístico dos dois
indígenas aos petróglifos. Estes últimos são mais esquemáticos. Lamenta, en-
tão, a perda da simbologia original por causa do fim do isolamento e da influên-
cia da catequese que os colocou em contato com imagens de livros, televisão etc
(1992). No entanto, ela reconhece que esse estilo é uma porta que se abre aos
artistas índios, a exemplo do que ocorreu a Tolamãn e Kenhiri.
Não nos parece que o estilo realista das pranchas, representando uma
narração, tenha sua origem na catequese, na escolarização ou em outro meio.
Afinal, eles estão ilustrando um mito, contando uma história através de ima-
gens. Se é verdade que o estilo geométrico dos petróglifos é mais símbolo que
qualquer outra coisa, então esse estilo, que a autora denomina de esquemático,
não se adequaria a essa nova proposta.
Em “Arte Indígena, Linguagem Visual” (1989) aborda diversos aspectos
da arte indígena. Um questionamento interessante: “arte primitiva ou arte étni-
ca?” É o ponto de partida, uma espécie de fio condutor que pretende confirmar
sua tese: “A autodesignação tribal muitas vezes revela essa intenção de transmi-
tir uma individualidade caracterizada por insígnia, um emblema visível que sin-
gulariza os membros de um grupo em oposição a outros.” (1989, p. 13)
Dando continuidade, Barta Ribeiro trata, ainda, a arte indígena enquanto
iconografia por correlacionar forma e significado e por essa arte veicular con-
teúdo mítico.
No universo das culturas indígenas, tanto objetos de uso cotidiano quanto
os de uso ritual comportam duas funções: uma de caráter prático e outra de caráter
estético. É praticamente impossível delimitar um campo de domínio exclusivo do
estético de outro com fins pragmáticos. Qualquer objeto, por trivial que possa
parecer, recebe atenção especial no que diz respeito à ornamentação (1989).
Ela diz, também, que a arte indígena é uma linguagem visual. Os ador-
nos corporais funcionam como marca de identificação étnica e informam a res-
peito de sexo, idade e status: “Neste sentido, a ornamentação corporal reflete a
concepção tribal de pessoa humana. É a maneira pela qual o indivíduo se torna
pessoa, se socializa como membro de uma comunidade.” (1989, p. 80)
Van Velthem estudou o trançado dos índios Wayana (1984). Nesse traba-
lho, ela faz uma análise formal dos motivos empregados na cestaria e os relaciona
ao mito da cobra grande: Tulupêre. Esses indígenas também se inspiram em lagar-
tas, casulos, borboletas, rãs, etc. No artigo “Das cobras e lagartas: a iconografia
Wayana” (1992) indica como os Wayana tomaram da lagarta, kurupêakê, a técni-
ca, a matéria–prima (jenipapo) e os motivos da pintura corporal.
Em “Arte indígena: referentes sociais e cosmológicos” (1992), a autora
toma como objeto a estética direcionada para a compreensão da arte indígena:
e ainda:
[...] a expressão estética indica certo grau de satisfação dessa indefinível vontade
de beleza que comove e alenta os homens como uma necessidade e um gozo
profundamente arraigados. Não se trata de nenhuma necessidade imperativa
como a fome e a sede, bem o sabemos; mas de uma sorte de carência espiritual,
onde faltam oportunidades para atendê-la; e de presença observável, gozosa e
querida, onde floresce (Ribeiro, D. ,1987, p. 29).
Entendemos que, para atuar como símbolo, um objeto não precisa ser,
necessariamente, artístico, conforme salientamos anteriormente. Se os artefatos
feitos pelos indígenas - de uso prático ou ritualístico - estão impregnados pelo
valor estético é porque o belo ocupa lugar de destaque nessas culturas.
O hedonismo estético perpassa todas as culturas, todas as formas de or-
ganização social, conforme vimos na abordagem de vários autores, em diferen-
tes continentes.
A necessidade de realizar, criar ou recriar objetos que, mesmo sendo
confeccionados para fins utilitários ou ritualísticos, devam ser veículos de bele-
za e fonte de gozo estético é universal.
A não conservação de objetos artísticos, entre os Krikati, por exemplo,
tem o propósito de estimular a criatividade (BARROS, 2002). Nessa sociedade
específica, a arte é parceira da vida, está colada nela uma vez que se expressa no
corpo como pintura, adornos, máscaras, em suma, as artes que tradicionalmente
têm o corpo como principal material expressivo: a dramaturgia, a dança, o canto
etc. A opção por não preservar objetos de arte, também nos leva a pensar que ela
é livre, isto é, fora a fidelidade às metades e aos grupos rituais, a arte não está
subordinada a nenhum ditame de ordem religiosa ou política. Sua finalidade
primeira é “alimentar” o “espírito” humano que busca incessantemente o belo.
Nesse sentido, achamos oportuno concluir com uma citação de Osborne: “Se
você menciona o belo, está falando do prazer; porque o belo dificilmente seria
belo se não fosse agradável”. (1970, p.44)
Notas:
1
Autodenominação do povo conhecido, mais comumente, por Esquimó.
2
Tribo africana do Zâmbia norte-ocidental, que vive a oeste do Rio Lunga
3
Significação de natureza diferente.
Art and aesthetics: a discussion about the fair from the art of tribal
societies.
Abstract: The subject of this article is the art of tribal societies, more specifically
about sensorial and symbolical aspects present in it. The literature about brazilian
indigenous art dedicates more attention to the symbolical aspects, as its specialists
search to understand society through its art. Enjoying and making art are universal
aesthetic aspect. The difference lies on the way each society deals with aesthetics;
which its place in life of individuals is and in which stands it shows itself, as we
will have the opportunity to observe through this article.
Keywords: Indigenous art. Symbol. Ritual. Aesthetics.
Rerefências:
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