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ARTE E ESTÉTICA:uma discussão sobre o belo


a partir da arte de sociedades tribais

Maria Mirtes dos Santos Barros*

Resumo: O tema deste artigo é a arte de sociedades tribais. Mais especificamente sobre
os aspectos sensoriais e simbólicos presentes nela. A literatura sobre arte indígena
brasileira dedica maior atenção sobre os aspectos simbólicos, uma vez que seus estudiosos
buscam compreender a sociedade através de sua arte. Fruir e fazer arte são aspectos
estéticos universais. A diferença reside na maneira como cada sociedade lida com a
estética; qual o seu lugar na vida dos indivíduos e em quais suportes ela se manifesta,
como teremos a oportunidade de conhecer, ao longo desse texto.
Palavras-chave: Arte indígena. Símbolo. Ritual. Estética.

*
Doutora em Sociologia pela UNESP. Professora Adjunta II do Departamento de Artes,
CCH-UFMA. E-mail: zanmaira@uol.com.br.

Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 4, n.1, junho 2006 73


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Maria Mirtes dos Santos Barros

O tema em questão será abordado aqui com a intenção de apresentar


alguns enfoques para subsidiar o debate. Conforme veremos adiante, cada soci-
edade tem concepções, métodos e técnicas que lhe são peculiares. Portanto,
neste texto privilegiaremos as especificidades, por entendermos que essa é uma
maneira de mostrar a riqueza intrínseca ao fazer artístico de cada povo.
Partiremos do pressuposto que entre os indígenas brasileiros a arte é um
elemento sempre presente: no corpo, nos utensílios domésticos, nos instrumen-
tos de caça, na forma da aldeia, em adornos corporais e em objetos rituais. O
Brasil tem o privilégio de contar com exímios plumistas, a exemplo dos Bororo,
Carajá, Kayapó, Kaapor, Oiampy etc. A pintura sobre a pele não é menos inte-
ressante. Cada grupo étnico desenvolveu o seu próprio estilo, bem como a ma-
neira de uso: no corpo todo, só no busto etc. A cerâmica, juntamente com uten-
sílios de madeira, palha e talas recebe esmerada atenção decorativa. Conclui-se
que, entre esses grupos, a arte está presente em ocasiões especiais, mas também
na vida diária. De onde vem todo esse desvelo em torno da arte?
A tese de F. Boas é que o desejo de fruição é uma característica universal
inerente ao ser humano:

Não existe povo por nós conhecido, que dedique toda a sua energia e seu tempo
em busca de abrigo e alimentos. Até as mais pobres dentre as tribos produzem
objetos que são para elas fonte de prazer estético” (1981, p.33, tradução nossa).

Ainda segundo esse estudioso:

[...] por quão diversos possam ser os ideais de belo, em qualquer lugar o juízo
estético apresenta as mesmas características: os rústicos cantos dos siberianos
as danças dos negros africanos as mímicas dos indígenas californianos, as
esculturas em pedra dos neozelandeses, os trabalhos em madeira dos melanésios,
as esculturas do Alasca exercitam sobre aqueles que as produzem um fascínio
não diferente daquele que experimentamos quando ouvimos uma canção,
assistimos a uma dança artística ou admiramos uma obra ornamental, uma
pintura ou uma escultura. O fato mesmo que todas as tribos por nós conhecidas
cultivem o canto, a dança, a pintura, a escultura é a prova do desejo de produzir
coisas que satisfaçam pela sua forma e a demonstração da disposição do homem
para gozá-las. (1981, p.33, tradução nossa)

Nos estudos sobre arte indígena brasileira tem prevalecido a tese de que
ela é simbólica, funciona como um código transmissor de mensagem. Compa-
rando esses estudos com os de Boas, de Edmund Carpenter, de Gerbrands e de
outros, percebemos nesses últimos a tese da fruição presente ora na ação, isto é,
durante o processo, ora no objeto pronto.
Gerbrands (1976) discorre sobre uma série de comportamentos prescri-
tos inerentes á confecção de máscaras rituais. Dentre estes, ele cita que as ferra-
mentas não podem ser vistas por homens não iniciados e por mulheres; são
realizados rituais de oferendas para que, madeira e instrumentos de trabalho,

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estejam imunes aos maus fluídos.


São feitas oferendas aos ancestrais, cuja assistência é indispensável ao
bom desempenho desse trabalho do escultor. Este costuma isolar-se num bos-
que, para evitar que madeira e ferramentas sejam vistas por mulheres e pessoas
não autorizadas mas, também, para melhor refletir sobre o seu trabalho. Isto é,
idealizar, na mente, a máscara que deseja fazer.
Tais cuidados têm, como objetivo, propiciar condições para que o traba-
lho transcorra em harmonia e que o resultado final seja agradável aos ancestrais
e ao público. Do contrário, diz Gerbrands, “não só o trabalho pode malograr,
mas a saúde do artista pode ser afetada” (1976, p. 369).
Finalmente, o autor discute os aspectos estéticos dessas máscaras:

Para uma máscara agradar aos ancestrais, ela deve ser tão bela quanto possível.
As qualidades estéticas dependem da capacidade do artista. O escultor é bastante
consciente de sua responsabilidade pela elaboração de uma bela máscara.
Durante esse trabalho, é comum que ele esteja sempre ansioso, preocupado em
fazer uma máscara bonita para agradar os ancestrais. Uma máscara para ser
bela, necessita ter equilíbrio, simetria, ritmo e “harmonia”. (1976, p.380)

A contribuição de Edmund Carpenter diz respeito ao artista innuit1. Aqui,


optamos por fazer uma transcrição quase completa do texto, para que o leitor
perceba a relação entre arte e artista nessa sociedade. Também porque, muito
do que está aqui, são palavras do artista durante o trabalho de esculpir:

Para o artista Esquimó, a arte é menos um objeto, é um ato de ver, é expressão


de valores da vida; é um ritual de descobertas para que imagens da natureza e
humanos sejam reveladas pelo homem. [...] O escultor toma nas mãos o marfim
em estado bruto, examina-o, enquanto sussurra: - “Quem é você? Quem está
escondido aí?” E exclama “Ah! É uma foca”. Ele raramente se levanta durante
o seu trabalho. Enquanto esculpe vai falando “é uma foca”. Porém, pega o
marfim, examina-o para encontrar a forma escondida e, se ela não está
imediatamente aparente, esculpe despreocupadamente até que a veja. Ele
continua sussurrando ou cantando, enquanto trabalha. Então ele traz para fora,
a foca que estava escondida. Admite que ela sempre esteve lá, ele não criou,
mas libertou-a, dando forças para que ela saísse. O que emerge do marfim, ou
mais precisamente do ato artístico, não é simplesmente uma escultura de uma
foca, mas um ato que explica, com beleza e simplicidade, o significado da vida
para o Esquimó. [...] Os Esquimós estão interessados no ato artístico, não no
produto da atividade. Uma escultura, assim como uma canção, não é uma coisa,
é uma ação. Quando você sente uma canção dentro de você, você a canta;
quando você percebe uma forma emergindo de dentro do marfim você a liberta.
(1976, p. 163-71)

Diante dessas duas abordagens (de Gerbrands e Carpenter) surge um


problema que nos instiga a indagar: por que “misturar” arte tribal africana com

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a arte innuit? Ora, o estudo de Gerbrands mostra que há um zelo extremado em


relação ao processo, produto e uso do objeto (máscara), porque se trata de algo
conexo ao sobrenatural (ancestrais); enquanto que o de Carpenter apresenta um
artista despretensioso a ponto de admitir que cada forma esculpida não foi por
ele idealizada, mas apenas libertada. Esse autor percebeu que o processo é o
momento verdadeiramente importante para o artista innuit. Fazer arte é jogar
com um “personagem“ oculto na matéria. Depois de revelada a sua “identida-
de”, esse “personagem” se torna desinteressante e é abandonado juntamente
com as ferramentas.
Durante os rituais, máscaras, cantos e danças somam-se para dar conti-
nuidade à obra de arte num drama ritual. Nesse momento, todos são, simultane-
amente, espectadores e atores. E, então, não é mais possível separar as emoções
relacionadas ao misticismo daquelas de caráter estético.
Além das máscaras, Balogun (1977) estudou também as estatuetas de
figuras divinas e de animais. Segundo ele, o escultor não reproduz a imagem do
modelo original; cada escultura é um substituto deste, uma evocação mágica da
essência do ser. A eficácia dessas estatuetas depende tanto da habilidade do
artista quanto dos ritos a que estão ligadas. Uma obra mal executada, afastada
dos cânones tradicionais, não será aceita.
As máscaras, assim como as estatuetas, são, ao mesmo tempo, arte e
objetos de uso ritualístico e, para serem aceitas no âmbito do sagrado, essas
estatuetas devem alcançar a perfeição formal.
Esses objetos (máscaras e estátuas) são prioritariamente veículos de co-
municação com o sagrado. Contudo, só o são se as técnicas e os cânones artísti-
cos forem respeitados. Não se pode esquecer que a criatividade é um item im-
portante, pois, meras cópias de outros objetos não são aceitas pelos ancestrais.
Os artefatos produzidos pelas sociedades indígenas brasileiras têm sido ob-
jeto de estudos por parte de diversos pesquisadores, os quais passaremos a citar.
Em “Os Asuriní do Xingu”, Regina Pollo Müller (1993) faz um inventá-
rio dos objetos rituais desse grupo. Como não poderia deixar de ser, esse levan-
tamento vem seguido de interpretações. Os aludidos objetos são: flauta, bastão,
cuia, panela, além da pintura e ornamentação do corpo. Todos estes itens dizem
respeito ao ritual do Turé. O bastão, que, segundo a autora, tem dois metros de
comprimento e cinco centímetros de diâmetro, é um objeto simbólico, além de
ter uma função musical:

O simbolismo está em sua forma alongada, com os cocos numa extremidade e


penas caudais de arara vermelha na outra, semelhante ao órgão sexual masculino,
sendo que os cocos representam os testículos e as penas de arara, o jato de
esperma. (1993, p. 116).

Victor Turner diz que os símbolos rituais dominantes na sociedade Ndembu2


possuem dois pólos: um ideológico e outro sensorial. Sobre o sensorial ele diz o
seguinte:

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No pólo sensorial o conteúdo significante está intimamente ligado à forma exterior


do símbolo. Assim, um significado da Árvore do Leite – o leite humano, seio e
processo de aleitamento – está estreitamente ligado à produção de látex que sai
da árvore (1992, p. 53-54)

A analogia entre bastão e falo; pena caudal da arara e jato de esperma;


cocos e testículos direciona a interpretação do objeto para o pólo sensorial se-
gundo Turner. Ainda, segundo esse estudioso, no pólo ideológico se encontra:

Um conjunto de significata disparati3 que se referem aos componentes de


ordem social e moral da sociedade Ndembu, a princípios de organização social,
a tipos de grupos organizados e às normas e valores inseridos nas relações
sociais. (1992, p. 53)

No que diz respeito à pintura corporal Müller diz:

A ornamentação corporal do turé compreende a pintura e a tatuagem com


jenipapo e adereços ou aplicação de materiais sobre o corpo. Estes elementos
formam conjuntos entendidos como vestimenta ritual, isto é, quando o corpo
em ocasiões especiais é suporte de manifestação simbólica, expressão plástica
do conteúdo do ritual. (1993, p.116)

A autora percebe a pintura e ornamentação do corpo como um sistema


estruturado que tem a finalidade de distinguir os clãs, os grupos de idade, sexo,
proibições, status, grau de parentesco etc,

Na ornamentação corporal Xavante há sinais diacríticos que distinguem grupos


e marcam categorias e status sociais. O pertencimento a grupos de idade, grupos
cerimoniais e clãs, por exemplo, está expresso na pintura”. (1992, p.133)

Em seu trabalho sobre os Asurini do Xingu (1993), ela diz que a pintura
está para o sexo feminino como o xamanismo está para o masculino. Assim
como o jovem deve ser iniciado no domínio dos mitos, cantos e prática ritual
xamanística, mesmo que não venha a exercer esse papel ou a se tornar um xamã,
a menina, também, deve exercitar-se na arte da pintura corporal e da cerâmica.
Sônia F. Dorta desenvolveu pesquisas entre os Bororo, onde realizou um
estudo minucioso sobre a plumária desse grupo étnico. Além de uma classifica-
ção criteriosa desta, construiu sua tese baseada no Pariko. Segundo a autora,
dependendo do tipo e origem das plumas, este é um objeto designativo de cada
clã. Em síntese, o Pariko simboliza a organização social dos Bororo:

[...] a importância do diadema se expressa pela sua função de código transmissor


de mensagens a respeito dos grupos clânicos e suas subdivisões e da posição
social de seus possuidores e portadores. E sendo de uso cerimonial, pertence à
esfera masculina no mundo bororo. (1979, p. 236)

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Maria Mirtes dos Santos Barros

Berta Ribeiro foi, sem dúvidas, quem mais trabalhos produziu sobre arte
indígena. Em “A mitologia pictórica dos Desâna” (1992), a autora colabora com
dois indígenas dessa etnia na elaboração de um trabalho sobre a mitologia do
referido povo. Ela os encorajou a fazer a “transcrição figurativa” do mito da
criação desse grupo indígena. A partir daí, compara o estilo artístico dos dois
indígenas aos petróglifos. Estes últimos são mais esquemáticos. Lamenta, en-
tão, a perda da simbologia original por causa do fim do isolamento e da influên-
cia da catequese que os colocou em contato com imagens de livros, televisão etc
(1992). No entanto, ela reconhece que esse estilo é uma porta que se abre aos
artistas índios, a exemplo do que ocorreu a Tolamãn e Kenhiri.
Não nos parece que o estilo realista das pranchas, representando uma
narração, tenha sua origem na catequese, na escolarização ou em outro meio.
Afinal, eles estão ilustrando um mito, contando uma história através de ima-
gens. Se é verdade que o estilo geométrico dos petróglifos é mais símbolo que
qualquer outra coisa, então esse estilo, que a autora denomina de esquemático,
não se adequaria a essa nova proposta.
Em “Arte Indígena, Linguagem Visual” (1989) aborda diversos aspectos
da arte indígena. Um questionamento interessante: “arte primitiva ou arte étni-
ca?” É o ponto de partida, uma espécie de fio condutor que pretende confirmar
sua tese: “A autodesignação tribal muitas vezes revela essa intenção de transmi-
tir uma individualidade caracterizada por insígnia, um emblema visível que sin-
gulariza os membros de um grupo em oposição a outros.” (1989, p. 13)
Dando continuidade, Barta Ribeiro trata, ainda, a arte indígena enquanto
iconografia por correlacionar forma e significado e por essa arte veicular con-
teúdo mítico.
No universo das culturas indígenas, tanto objetos de uso cotidiano quanto
os de uso ritual comportam duas funções: uma de caráter prático e outra de caráter
estético. É praticamente impossível delimitar um campo de domínio exclusivo do
estético de outro com fins pragmáticos. Qualquer objeto, por trivial que possa
parecer, recebe atenção especial no que diz respeito à ornamentação (1989).
Ela diz, também, que a arte indígena é uma linguagem visual. Os ador-
nos corporais funcionam como marca de identificação étnica e informam a res-
peito de sexo, idade e status: “Neste sentido, a ornamentação corporal reflete a
concepção tribal de pessoa humana. É a maneira pela qual o indivíduo se torna
pessoa, se socializa como membro de uma comunidade.” (1989, p. 80)
Van Velthem estudou o trançado dos índios Wayana (1984). Nesse traba-
lho, ela faz uma análise formal dos motivos empregados na cestaria e os relaciona
ao mito da cobra grande: Tulupêre. Esses indígenas também se inspiram em lagar-
tas, casulos, borboletas, rãs, etc. No artigo “Das cobras e lagartas: a iconografia
Wayana” (1992) indica como os Wayana tomaram da lagarta, kurupêakê, a técni-
ca, a matéria–prima (jenipapo) e os motivos da pintura corporal.
Em “Arte indígena: referentes sociais e cosmológicos” (1992), a autora
toma como objeto a estética direcionada para a compreensão da arte indígena:

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Arte e estética: uma discussão sobre o belo

As representações visuais compreendem um exercício contemplativo o qual


representa uma forma de conhecimento, pois através da arte são transmitidas
referências sobre a vida em sociedade: o sexo, a idade, o grau de parentesco, a
filiação clânica, a metade exogâmica de seus membros e também noções acerca
do mundo não social: a natureza e a sobre-natureza. (VAN VELTHEN, 1992,
p. 87-8)

Lux Vidal (1992) faz um inventário de diversos padrões, técnicas e ma-


teriais utilizados na arte dos Xinkrin, sobre as pessoas que estão habilitadas a
pintar, etc. Vidal percebeu que:

Os motivos decorativos se adaptam a um suporte plástico, o corpo, que por sua


vez é portador de um outro conjunto de significados. Aplicada ao corpo, a
pintura possui função essencialmente social e mágico-religiosa, mas também é
a maneira reconhecidamente estética e correta de se apresentar. Estabelece-se
aqui uma correspondência entre o ético e o estético. A decoração é concebida
para o corpo, mas este só existe através dela. (VIDAL, 1992, p. 144)

e ainda:

A pintura corporal que os Kayapó desenvolveram ao extremo, tanto em nível


ritual quanto do cotidiano, possui as características de um sistema de
comunicação visual rigidamente estruturado, capaz de simbolizar eventos,
processos, categorias e status e dotada de estreita relação com outros meios de
comunicação, verbais e não verbais. (VIDAL, 1992, p. 144)

Começaríamos com um questionamento: é viável uma terminologia que


abarque o fazer artístico e, conseqüentemente, a estética presente em todas as
culturas? Para vislumbrar uma possível resposta, é necessário refletir sobre o
estilo, a forma, o destino e o lugar do belo em cada cultura.
O status de símbolo também é inerente a essa arte, seja ela máscara ou
estátua. O símbolo, segundo Turner,

é a menor unidade do ritual, mas que contém toda a propriedade específica do


comportamento ritual; é a unidade fundamental da estrutura específica em um
contexto ritual. (1992, p. 43). Um dos aspectos do processo de simbolização
ritual consiste portanto em tornar visível, audível e tangível crenças, normas,
idéias, valores, sentimentos e disposições psicológicas que não podem ser
percebidas de modo direto. Associado a este processo de revelação do ignoto,
do inaudível e do invisível é o processo que consiste em tornar público o que é
privado, ou tornar social o que é pessoal. (1992, p. 77)

Uma máscara, por exemplo, está impregnada de uma série imensurável


de significados e valores, capazes de desencadear comportamentos e
performances prescritos e previsíveis num contexto ritual específico.

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Observa-se, no entanto, que nem todo símbolo é resultado do trabalho


humano. “Árvore do Leite”, por exemplo, um dos símbolos dominantes entre os
Ndembu, dá suporte a crenças, normas, valores, comportamentos etc. Podemos
afirmar o mesmo de um cesto cargueiro dos Krikati? Este vasilhame contém
uma série de informações importantes, mas nenhuma que indique ser este obje-
to um símbolo, segundo Turner e Lima.
Para Turner, os símbolos podem ser: “objetos, atividades, relações, even-
tos, gestos e unidades espaciais em uma situação ritual.” (1992, p. 43).
Para Lima, “o símbolo pode ser uma pessoa, gesto, palavra, sinal gráfico
ou objeto material que tenha adquirido um significado específico e represente,
num contexto cultural, um sentimento, ato ou atividade.” (1983, p. 48).
Se nem todo símbolo é arte, e nem toda arte tribal é símbolo, com que
pretexto se discute esse tema num trabalho sobre arte?
Conforme já vimos, nos estudos sobre máscaras e estátuas africanas,
(BALOGUN, 1977; GERBRANDS, 1971) símbolo e arte são permeáveis uma ao
outro. Pode-se dizer que há, de fato, uma fusão tanto no que concerne à feitura,
quanto ao uso. Não há maneira de separar o ético, o estético, o lúdico e o religioso
no objeto em si e na reação do público. Máscara e homem se “fundem” para se
transformar em avatar. Os movimentos cadenciados pelo ritmo dos instrumentos
musicais, somados aos cantos, reacendem crenças, reatualizam valores, normas
etc., mas também despertam a sensualidade, uma vez que a “porta” de entrada da
arte, seja ela plástica, dramática ou musical, são os órgão sensoriais.
Diante do exposto, talvez não seja adequado usar um único termo, seja ele
qual for: “tribal”, “primitiva”, “aborígine”, “indígena” para abarcar esse universo
tão heterogêneo. O mais correto seria referirmo-nos à arte com a autodenominação
de cada povo: arte dos Banto, arte dos Krikati, arte dos Innuit, etc.
A arte, cuja origem se dá numa sociedade tribal específica, é fonte de pra-
zer estético, veículo de comunicação entre as esferas social e sobrenatural, sendo,
desse modo, arte e símbolo, elo de ligação entre passado e presente, cujo papel é
socializar, cultuar, divertir, comunicar. Por isso é um misto de conservadorismo e
inovação, e o que permite sua continuidade é a possibilidade de recriação.
Retomando a linha inicial do texto, ilustrada pelo pensamento de Boas, opta-
mos por inserir esse trecho de uma entrevista de Alberto Giacometti a André Parinaud,
o qual demonstra que arte e estética são inerentes ao ser humano, quer viva ele numa
sociedade tribal ou não. “Não crio para realizar belas pinturas ou belas esculturas. A
arte é apenas um meio de ver. [...] No fundo não trabalho mais senão pela sensação
que tenho durante o meu trabalho.” (PARINAUD, 1992, p. 76)
As palavras de Giacometti neste texto específico sobre arte indígena pode
causar estranheza, por ser ele um artista europeu, portanto de cultura ocidental.
O nosso interesse por ele está relacionado às suas idéias sobre a arte, no que
concerne à diversidade de emoções e sentimentos que ela suscita no homem, em
todas as culturas. Neste aspecto, o fazer artístico de Giacometti e do artista
innuit, por exemplo, não se diferencia, porque a especificidade reside no objeto,
não na ação.

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Arte e estética: uma discussão sobre o belo

A esse respeito, é ilustrativa a semelhança entre o pensamento desse


autor e o de Ribeiro, Boas e Lukács:

[...] a expressão estética indica certo grau de satisfação dessa indefinível vontade
de beleza que comove e alenta os homens como uma necessidade e um gozo
profundamente arraigados. Não se trata de nenhuma necessidade imperativa
como a fome e a sede, bem o sabemos; mas de uma sorte de carência espiritual,
onde faltam oportunidades para atendê-la; e de presença observável, gozosa e
querida, onde floresce (Ribeiro, D. ,1987, p. 29).

Todos os seres humanos, de uma maneira ou de outra, são sensíveis ao prazer


estético e, por mais diferentes que sejam os ideais do belo, em qualquer lugar,
a apreciação estética apresenta as mesmas características: os cantos dos
siberianos, a dança dos negros africanos, a mima dos indígenas californianos,
as esculturas dos neozelandeses, as talhas dos melanésios, as esculturas do
Alasca exercem naqueles que a produzem um fascínio em nada diferente do
que experimentamos quando ouvimos uma canção, assistimos a um espetáculo
de dança ou quando admiramos uma pintura ou uma escultura (Boas, 1988, p.
33)

A arte corresponde a uma necessidade, e a um profundo sofrimento da


humanidade, e a este sofrimento se contrapõe o objetivo real, o mundo
empiricamente inadequado tanto para o artista como para o público.
Conseqüentemente, é preciso justapor a esta realidade “insuficiente” um mundo
que esteja em conformidade com as suas exigências. E a arte é a grande válvula
para a consecução desta necessidade (Lukács. apud Santos Y., 1996, p. 19).

A convergência entre o pensamento desses três autores salta aos olhos.


Ribeiro fala de “uma indefinível vontade de beleza”; Lukács enfatiza a necessi-
dade do belo se contrapor à realidade empírica, a um mundo imperfeito; Boas
diz que nenhum povo, entre todos que se conhecem, vive sem arte. Em outras
palavras, a arte faz parte da nossa vida, portanto é uma necessidade como disse-
ram Lukács e Darcy Ribeiro.
Voltando à nossa questão inicial, podemos argumentar que fruir e fazer
arte são aspectos estéticos universais. E Boas abordou-os de forma singular. A
diferença ocorre na maneira como cada sociedade lida com a estética; qual o seu
lugar na vida dos indivíduos e em quais suportes ela se manifesta, como tivemos
a oportunidade de conhecer, ao longo deste texto.
Entre os indígenas brasileiros, a preocupação com aspectos não pragmáti-
cos de objetos utilitários induz a afirmar que a necessidade de marcar, pela via do
belo, certos artefatos e a própria pele é uma constante. É interessante perceber
como essa prática tem sido tratada pela produção científica a que tivemos acesso.
A idéia de que a arte dos povos indígenas funciona como símbolo, lin-
guagem e distintivo (de status, sexo, idade, parentesco, filiação clânica, código
transmissor de mensagem etc.) tem permeado o discurso sobre arte indígena.

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Maria Mirtes dos Santos Barros

Ora, se ao indígena interessasse a construção de “um sistema de comunicação


rigidamente estruturado, capaz de simbolizar eventos, processos, categorias e
status” (Vidal, 1992, p. 144), por que ele não optou pela construção de um tipo
de escrita? Ou, então, por que o indígena necessita da arte e de certos adornos
para distinguir os gêneros se o próprio corpo já expressa essa diferença? Bem, o
mesmo argumento é valido em relação às classes de idade e outros aspectos da
vida em sociedade.
Esses aspectos acabam se sobrepondo àqueles artísticos, ofuscando o
que, de fato, deve ser ressaltado: a necessidade do belo. Não queremos, com
isso, negar que essa é uma leitura possível, mas queremos dizer que pintar o
corpo, ornamentar utensílios, armas e objetos rituais vai além do que apenas
transmitir mensagem. Nesse sentido, concordamos com Coelho quando diz que:

Quanto aos objetos, os Uaurá coincidiram que a adição de ornamentação


geométrica os embeleza, sem acrescentar-lhe outro valor (de ordem eficaz ou
mágica) que não o estético [...] os motivos geométricos da arte Uaurá parecem
ser mais exercícios formais que mensagens de significados simbólicos. O fato
de que a maioria dos motivos recebe nome de animais não tem maiores
implicações que uma adesão a aspectos geométricos da natureza, e de recursos
mnemônicos para facilitar a visualização e aprendizagem do sistema decorativo.
(1993, p. 603)

Entendemos que, para atuar como símbolo, um objeto não precisa ser,
necessariamente, artístico, conforme salientamos anteriormente. Se os artefatos
feitos pelos indígenas - de uso prático ou ritualístico - estão impregnados pelo
valor estético é porque o belo ocupa lugar de destaque nessas culturas.
O hedonismo estético perpassa todas as culturas, todas as formas de or-
ganização social, conforme vimos na abordagem de vários autores, em diferen-
tes continentes.
A necessidade de realizar, criar ou recriar objetos que, mesmo sendo
confeccionados para fins utilitários ou ritualísticos, devam ser veículos de bele-
za e fonte de gozo estético é universal.
A não conservação de objetos artísticos, entre os Krikati, por exemplo,
tem o propósito de estimular a criatividade (BARROS, 2002). Nessa sociedade
específica, a arte é parceira da vida, está colada nela uma vez que se expressa no
corpo como pintura, adornos, máscaras, em suma, as artes que tradicionalmente
têm o corpo como principal material expressivo: a dramaturgia, a dança, o canto
etc. A opção por não preservar objetos de arte, também nos leva a pensar que ela
é livre, isto é, fora a fidelidade às metades e aos grupos rituais, a arte não está
subordinada a nenhum ditame de ordem religiosa ou política. Sua finalidade
primeira é “alimentar” o “espírito” humano que busca incessantemente o belo.
Nesse sentido, achamos oportuno concluir com uma citação de Osborne: “Se
você menciona o belo, está falando do prazer; porque o belo dificilmente seria
belo se não fosse agradável”. (1970, p.44)

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Arte e estética: uma discussão sobre o belo

Notas:
1
Autodenominação do povo conhecido, mais comumente, por Esquimó.
2
Tribo africana do Zâmbia norte-ocidental, que vive a oeste do Rio Lunga
3
Significação de natureza diferente.

Art and aesthetics: a discussion about the fair from the art of tribal
societies.
Abstract: The subject of this article is the art of tribal societies, more specifically
about sensorial and symbolical aspects present in it. The literature about brazilian
indigenous art dedicates more attention to the symbolical aspects, as its specialists
search to understand society through its art. Enjoying and making art are universal
aesthetic aspect. The difference lies on the way each society deals with aesthetics;
which its place in life of individuals is and in which stands it shows itself, as we
will have the opportunity to observe through this article.
Keywords: Indigenous art. Symbol. Ritual. Aesthetics.

Arte y estética: un debate sobre el belo a parti del arte de sociedades


tribales.
Resumen: El tema de este artículo es el arte de sociedades tribales,
específicamente los aspectos sensoriales y simbólicos presentes en ellas. La
literatura sobre el arte indígena de Brasil dedica mayor atención a los aspectos
simbólicos, una vez que sus estudiosos buscan comprender la sociedad a través
de sus creaciones. Disfrutar del arte y crear son aspectos estéticos universales,
por consiguiente, la diferencia está en la manera cómo cada sociedad concibe la
estética; cuál su lugar en la vida del individuo y en cuáles soportes ella se
manifiesta. Todas esas indagaciones serán contestadas a lo largo de ese texto.
Palabras clave: Arte indígena. Símbolo. Ritual. Estética.

Rerefências:
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