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Da Dinamite

Rafael de Freitas e Souza1

Introdução

Na história da ciência e da técnica relacionada ao mundo do trabalho a dinamite


ocupa lugar privilegiado. Inventada em 1867 pelo químico sueco Alfred B. Nobel, foi
resultado do progresso de uma série de pesquisas no campo científico, principalmente da
química. Seu alto poder de destruição acelerou o ritmo do trabalho de maneira nunca vista.
Rodovias, ferrovias, pontes e outras grandes obras de engenharia ganharam grande impulso
reduzindo os prazos e custos de sua execução.
No contexto do desenvolvimento das relações sociais de produção, o alto custo da
dinamite acentuou o processo de alienação do proletariado quando as empresas efetivaram o
controle sobre os meios de produção e ampliaram a extração da mais-valia relativa. Embora
onerosa, foi depois de sua introdução que a produtividade e a demanda por mão de obra
sofreram aumentos consideráveis em todos os ramos produtivos que dela faziam uso.
Na mineração aurífera, a dinamite foi usada pela primeira vez em Minas Gerais
pelas companhias de capital inglês que adentraram no setor extrativo a partir de 18242.
Diferentemente da fase anterior (século XVIII), a mineração conduzida por estas empresas ao
longo do século XIX, caracterizou-se pela gradual introdução das invenções oriundas da
Revolução Industrial. Esta nova tecnologia dava-lhes a capacidade de atingir a rocha matriz
do ouro localizada a grandes profundidades que as técnicas e instrumentos “afro-lusitanos”
não tinham tocado no século anterior.
Isto só foi possível graças a um conjunto de fatores: a contratação de experientes
mineiros ingleses e alemães, ampliação do contingente da força de trabalho escrava e livre
(nacionais e imigrantes), a organização empresarial, avultado capital e a introdução dos
principais avanços tecnológicos do período em maquinário, ferramentas, equipamentos,
eletricidade e explosivo (a dinamite).

*
Doutor em História Social (USP). Professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Sudeste
de Minas Gerais/Campus Rio Pomba.
2
Ano em que o inglês Edward Oxenford, então residente na Imperial Cidade de Ouro Preto, foi autorizado por
decreto do governo imperial a atuar na mineração. Oxenford organizou em Londres uma companhia denominada
Imperial Brazilian Mining Association com capital de 350.000 libras esterlinas que adquiriu quatro minas, dentre
elas a de Gongo Soco situada perto de Caeté.
O objeto central de nossa pesquisa será uma destas empresas estrangeiras que se
instalaram em Minas Gerais na segunda metade do século XIX, a The Ouro Preto Gold Mines
of Brazil Limited (conhecida como Mina da Passagem). Situada no distrito de Passagem de
Mariana, desenvolveu suas atividades entre 1883 e 1927.3
Em primeiro lugar, discorreremos sobre a rotina de trabalho dos mineiros no
subsolo para que tenhamos uma visão aproximada de sua relação direta com a dinamite.4 Em
seguida, apresentaremos os casos de óbitos provocados, direta e indiretamente, por este
explosivo nesta companhia a partir de 1891 quando iniciaram os registros de óbitos no
Cartório de Registro Civil de Passagem de Mariana. O recorte se encerra em 1927, quando a
mina deixou de pertencer aos ingleses. Num terceiro momento, apresentaremos os múltiplos e
inusitados empregos da dinamite pelos mineiros e moradores do distrito de Passagem e da
cidade de Mariana, ultrapassando os limites de sua função técnica na empresa.

Inovação Explosiva

O emprego da dinamite na mineração revolucionou o processo extrativo ao


facilitar a fragmentação das rochas e, assim, acelerar o avanço diário das galerias.5 A
aceleração do desmonte possibilitou que maiores toneladas de rocha fossem elevadas à
superfície para serem trituradas. Por conseguinte, o número de trabalhadores nos diversos
setores da mina teve que ser ampliado para acompanhar esta nova dinâmica extrativa.
Por outro lado, para os mineiros, significou o manuseio e convívio diário com um
recurso técnico de alta periculosidade. No subterrâneo, as explosões os expunham aos riscos
de desmoronamentos e inalação de gases tóxicos aumentando o número de acidentes de
trabalho.
Veremos adiante que a localidade de Passagem de Mariana também sofreu os
impactos da presença deste explosivo em seu meio e não somente os trabalhadores que a ele
estavam diretamente expostos no local de trabalho.

3
A companhia inglesa operou até 19 de maio de 1927. Neste ano foi vendida ao grupo Ferreira Guimarães,
banqueiros e industriais de Minas, pertencente ao coronel Benjamim Ferreira Guimarães, finalizando a fase de
proprietários europeus.
4
A principal fonte utilizada foi FERRAND, Paul. O ouro em Minas Gerais. Trad. de Júlio C. Guimarães. Notas
de João Henrique Grossi, Friedrich E. Renger. Belo Horizonte: Sistema Estadual de Planejamento;Centro de
Estudos Históricos e Culturais. Fundação João Pinheiro. 1998. Coleção Mineiriana.
5
Para que se tenha boa ideia desta transformação, cumpre lembrar que antes do emprego deste explosivo
adotava-se a alternância frio/calor, ferramentas manuais (broca e malho) e a pólvora na fragmentação das rochas.
No subsolo, os trabalhadores do desmonte (os broqueiros e, depois, os operadores
de perfuratrizes) faziam os orifícios na rocha e recebiam de 3 a 6 cartuchos de dinamite. Cada
metro cúbico à razão de 3 toneladas de rocha desmontada exigia 6 cartuchos, o que
representava “2 cartuchos por tonelada desmontada”.6
Para acender os pavios, que tinham de 0,10m a 0,15m, amarrava-se uma mecha de
algodão embebida em petróleo em sua extremidade. Isto permitia “acender rapidamente
diversos lances em uma mesma frente de lavra” (FERRAND, 1998: 243). Rapidamente, pois
era preciso abandonar o local antes das explosões por razões de segurança. A Tabela 1 traz a
escala das detonações entre os turnos de trabalho na companhia:

Tabela 1 – Escala de Detonações na The Ouro Preto Gold Mines of Brazil Limieted (1893)

Turnos
1º 2º
Início Término Intervalo Início Término Intervalo
6h 14h Detonações 17h 01h Detonações
Fonte: Adaptado de Ferrand (1998, p. 243).

As detonações eram feitas entre o término de um turno e inicio do outro para que
se dissipassem “os vapores nocivos produzidos pelas explosões”. Além disso, havia a
precaução de “deixar transcorrer o intervalo de um turno antes de deslocar homens para uma
frente onde houve explosões” (FERRAND, 1998: 243). É neste momento que os choqueiros7
entravam em ação. Porém, duvidamos que estes prazos fossem rigorosamente obedecidos.
A tabela 2 sintetiza os casos de acidentes de trabalho inquestionavelmente
ocorridos na Mina da Passagem direta ou indiretamente relacionados ao uso da dinamite.
Alguns registros frisam inclusive que o acidente ocorreu: “na mina da Companhia The Ouro

6
Esta informação não é meramente técnica, pois aquisição da dinamite era um dos custos mais elevados para a
companhia e, no cômputo final, forçavam a redução dos salários dos mineiros influindo negativamente em sua
condição de vida.
7
Sua tarefa era verificar a iminência da queda do teto da mina. Portando comprida haste de ferro, tocava os
pontos suscetíveis de ruir sobre os trabalhadores. Às vezes, era apanhado pelo repentino desabamento que
tentava evitar. Nas minas de carvão na Europa, função similar era exercida pelo Penitent - mineiro encarregado
de prevenir as explosões de grizu portando uma tocha incandescente. Assim como seu companheiro de risco,
também era vitimado pela explosão que tentava prevenir. Esta função era, sem sombra de dúvidas, uma das mais
perigosas e mortais realizadas no subsolo. Cf. SÉBILLOT, Paul. Les travaux publics e les mines dans les
traditions e les superstitions de tous les pays. Paris: J. Rothschild Éditeur. 1894.
Preto n'este districto” ou “falleceu neste districto da Passagem em a galeria numero oitocentos
e vinte da mina da The Ouro Preto Gold Mines of Brazil Limited”.8
Todos os departamentos da mina tinham sua carga de insalubridade e perigo.
Muitos dos acidentados que não morreram no local de trabalho, sucumbiram em sua própria
casa ou no hospital da Companhia. Mas, os registros de óbito indicam que morrer junto aos
parentes foi o mais frequente.

Tabela 2 - Acidentes de Trabalho na The Ouro Preto Gold Mines


of Brazil Limited (1891-1927)

Acidentes No.
Fratura/esmagamento do crânio 13
Hemorragia/congestão cerebral 20
Choco 1
“Shock traumático” 12
Acidente/desastre 3
Explosão de dinamite 1
Esmagamento por pedras 1
Outros (asfixia, ferimento do abdômen, etc.) 7
Total 58
Fonte: Arquivo do Cartório de Registro Civil de Passagem de Mariana.
Livros de Óbitos 1 a 4.

É evidente que entre 1891 e 1927 (36 anos) não aconteceram apenas estes 58
casos. A ausência e a imprecisão da terminologia usada para definir a causa mortis, a
ilegibilidade e a falta da profissão da vítima na documentação compulsada impediram a
detecção precisa de outros acidentes no local de trabalho.
Por este motivo, foram excluídos do levantamento os casos de acidentes
envolvendo operários que, pela generalidade do registro, podem ter acontecido em qualquer
outro lugar.
Os registros dos acidentes que constam no Arquivo do Cartório de Registro Civil
de Passagem de Mariana são incompletos, imprecisos e genéricos na maioria dos casos. Por
exemplo: as hemorragias e fraturas do crânio podem ter sido causadas por diversos fatores,
como o “chôco”, o esmagamento por pedras, os acidentes e os “shocks traumáticos”; o

8
Arquivo do Cartório de Registro Civil de Passagem de Mariana. Livro de Óbitos n. 2, f. 86v e Livro 3, fls. 56v
e 57.
esmagamento por pedras e a explosão de dinamite são formas diferentes de desastres; a
explosão de dinamite pode ter sido a causadora do “choco”, do “shock traumático” e do
esmagamento por pedras; congestão cerebral ou hemorragia podem também ser causadas por
vários fatores. Embora apenas um seja inequívoco, todos podem estar diretamente
relacionados com a explosão da dinamite.
O termo “Choco” deriva do barulho seco produzido pela queda das rochas do teto
da mina. Isso foi o que ocorreu com o mineiro Pedro Zadra, austríaco da Província de Tirol
que faleceu às 10h do dia 25 de agosto de 1898:

devido a uma cazualidade de que sobreveio e lhe deo a morte em um dos


alargamentos da Companhia deste districto no lugar denominado Rolim, cujo
incidente foi devido um chouco (sic) que lhe caio cazualmente no dicto lugar. Como
ficou provado por depoimento de testemunhas de toda fé que prezenciarão o facto
cazual e ficou demonstrado ser verídico.9

A explosão da dinamite podia ocorrer ainda quando o operador da perfuratriz


introduzia a broca num buraco que já continha o explosivo provocando a detonação. Este tipo
de acidente era denominado pelos mineiros de “fogo falhado”. Vale citar, horribile dictu, o
infortúnio do mineiro austríaco casado, Jacob Atercoli, que faleceu aos 40 anos vitimado por
“explosão de dinamite” às 21 horas do dia 16 de junho de 1903.
Importa destacar que a imprecisão dos registros está relacionada ao interesse de
ocultação dos fatos pelos médicos da companhia responsáveis pelos registros e das
autoridades encarregadas dos exames de corpo de delito.
A frequência dos acidentes de trabalho nas companhias auríferas inglesas
(explosões descontroladas, chocos, queimaduras, esmagamentos e outros) é muito maior que
se pensa e não se encontram nos relatos dos viajantes, médicos, delegados, superintendentes,
governantes e demais autoridades por diferentes razões. Primeiro, porque fatos relacionados à
vida de trabalhadores comuns, de maneira geral, não eram dignos de nota; segundo, porque
era corriqueiro; terceiro, porque o foco de observação era outro: a riqueza e a técnica; quarto,
porque isto, quando ocorre, deve ser ocultado; e, por último, no século XIX a noção de direito
e proteção do trabalhador era muito vaga ou nula.
Entretanto, coeficientes numéricos “frios” são pouco significativos quando se
perscruta as circunstâncias destes acidentes fatais ou os desdobramentos da vida dos mineiros
que ficaram gravemente feridos ou àqueles que escaparam ilesos, assim como para suas
famílias. A natureza terrífica de todos estes acidentes fazia o cotidiano do trabalho na mina
9
Arquivo do Cartório de Registro Civil de Passagem de Mariana. Livro de Óbitos nº 2, f. 18.
ser marcado por episódios chocantes onde os sobreviventes presenciavam a dilaceração dos
corpos dos amigos e parentes. Cenas que ficavam marcadas para sempre em suas memórias.
Suas mulheres e filhos carregavam consigo a constante incerteza do retorno dos pais e irmãos.
Para a história social do trabalho, a análise do avanço das forças produtivas
introduzido na mineração de Minas Gerais pelos ingleses só faz sentido em sua estreita
relação com as mudanças verificadas nas condições do trabalho e destas com as condições de
vida e os índices de mortalidade dos trabalhadores. É no seu local de trabalho que o mineiro
fazia, cotidianamente, a experiência de sua finitude e de seus colegas. Quem trabalhava
cercado pelo perigo, pensava, via e sentia a morte rondando a cada instante. Neste sentido,
Marie José Devillard argumenta que “la permanencia del peligro revieste el lugar de trabajo
con una aureola de indeterminación” (DEVILLARD, apud GARCÍA, 2002: 24).
Desastres de grandes proporções são mais anti-econômicos que acidentes
ocasionais de indivíduos ou de pequenos grupos. Os chefes ingleses zelavam minimamente
pela segurança de seus operários para não prejudicar o bom andamento do trabalho; sua
preocupação maior e primeira era evitar acidentes que pudessem interromper os trabalhos
durante longo tempo comprometendo os investimentos e os lucros - daí a necessidade de fazer
escoramentos, drenagem, ventilação e outras medidas de segurança no local de trabalho.
Engels (1985, passim) atribui a responsabilidade por todas as doenças, mortes
trágicas e miséria social à ganância e egoísmo dos proprietários das minas. Para ele, todos
esses fatos devem ser inscritos “no passivo da burguesia”. A resposta que esclarece um dos
motivos da frequência de tantos acidentes pode ser encontrada nas palavras de Launay sobre a
mineração no Transvaal, válida também para a Mina da Passagem e outras: “o caráter geral da
exploração é a preocupação dominante de andar depressa e de remunerar no menor prazo
possível o capital empregado”.10 Em outras palavras, é o que Engels denominou de egoísmo
da burguesia ao negligenciar a adoção das mais simplórias medidas de segurança em nome do
lucro rápido.
Este tipo de veredicto só poderia partir da pena de um comunista como Engels ou
qualquer outro indivíduo, com o mínimo de bom senso, ao observar as condições de trabalho
nas minas também chegaria a esta mesma conclusão?
Exemplifiquemos então com a insuspeita opinião de Paul Ferrand sobre o acidente
ocorrido na Brazilian Company Limited no ano 1844 que deixou 30 trabalhadores sob seus

10
Revista Industrial de Minas Geraes. 30 de março de 1897, Anno IV, n. 22, p. 284.
escombros.11 Nesta mina, diz ele, as escavações eram deixadas “sem preenchimento e com
madeirame restrito aos pontos perigosos”. Por isso, num certo momento, uma das paredes
desabou. Essa queda “foi devida a duas causas: a economia nos trabalhos e um mau método
de explotação (sic).” (FERRAND, 1998: 185). Economia nos trabalhos nada mais é que
eufemismo para a negligência ditada pela ganância.
A formação geológica da Mina da Passagem é de rocha estável. Além disso, minas
de ouro não produzem grizu (metano em mistura com o oxigênio). Portanto, ao longo do
período estudado, as explosões e desmoronamentos registrados estão relacionados com a falta
ou insuficiência dos escoramentos devido à negligência dos engenheiros e/ou contenção de
despesas e ao uso da dinamite.
Felizmente, para os ingleses, Licurgo viveu no século III a.C., pois, quando o
ganancioso Diphilus pretendeu se enriquecer e retirou os pilares de sustentação das velhas
galerias das minas de Esparta, foi condenado à morte por este legislador e seus bens foram
distribuídos entre os cidadãos.
A face mais perversa de qualquer forma de exploração econômica é quando ela
atinge a eliminação física dos trabalhadores no seio do processo produtivo. A alienação
alcança então seu máximo grau privando-o não somente da vontade e da riqueza produzida,
mas da própria vida.
Estas fatalidades acrescentavam fortes ingredientes à atmosfera infernal do
trabalho no mundo subterrâneo: os gritos de desespero, choro, medo e apavoramento.
Acontecimentos que reforçavam no “imaginário” de africanos, brasileiros e europeus sua
sincera crença na mina como “comedora de homens”, povoada por entidades que exigiam sua
dieta diária de carne humana para permitir que lhe arrancassem suas artérias douradas.
No mundo do trabalho, a ficção imitou a vida e as lendas das entidades que
exigiam holocaustos para ceder o ouro de suas entranhas se confirmaram também em
Passagem de Mariana onde a morte apagou a lanterna da vida de centenas de mineiros. Sua
boca insaciável e os dentes das máquinas pediam, cada vez mais e indistintamente, a carne de
negros, brancos e mestiços.
Em resumo, desde os primórdios da mineração em Minas Gerais até o período
final abarcado por este texto, houve pouca ou nenhuma regulamentação e/ou fiscalização

11
A Revista Industrial de Minas Geraes registra outro acidente ocorrido antes de 1830 que “enterrou grande
numero de mineiros”. Afirma que no acidente de 1844 “trabalhavam mais de cem mineiros” (1893. Anno I, n.3,
p. 67).
quanto à segurança dos trabalhadores. As escassas regras que vieram à luz permaneceram
letra morta.

Fins Inusitados

Equipamento caro e perigoso, a dinamite era guardada em local apropriado


distante das principais instalações da mina. No entanto, isto não impediu que houvesse
comércio clandestino deste poderoso elemento de destruição no município de Mariana e em
Passagem. Chegando às mãos de diferentes compradores foi usada com objetivos de
divertimentos, festivos e criminosos. O fácil acesso a um explosivo poderoso e letal é uma das
características que singularizam também a tipologia criminal das comunidades mineiras e isto
somente foi possível devido à presença das companhias que tinham grande demanda por este
produto e à relativa facilidade de acesso para além dos muros da companhia.
De maneira geral, nos crimes passionais ocorridos no século XIX as armas
geralmente empregadas eram facas, porretes, armas de fogo, veneno e outras.12 Mas, em
Passagem de Mariana, por ser uma localidade mineradora, alguns criminosos recorreram à
dinamite como poderosa arma para a completa e eficaz eliminação de suas vítimas. Assim
ocorreu no caso do assassinato do italiano Pedro Chiôdo por José Boggione em agosto de
1888. A vítima foi encontrada em seu quarto com uma fratura na cabeça “a ponto de derramar
os miolos para fora do craneo, que os encontrarão espalhados por diversas partes do quarto
em que habitava o morto”. A causa imediata do óbito foi “um tiro de dinamite (...) e
incêndio”.13
As autoridades perguntaram a Boggione por que razão “elle respondente comprou
na companhia uma roda de estupim de dinamyte, não sendo elle empregado da mina?” Ele
respondeu que “de facto comprou a roda de estupim para matar formigas, como tem feito, e
que nunca teve em seu poder metralha e dinamyte.”14 O questionamento traz implícita a idéia
que era comum aos mineiros possuir dinamites, daí o estranhamento em relação a Boggione
possuir o explosivo visto que ele era comerciante. A justificativa dada não convenceu, pois
não era habitual eliminar saúvas com o auxílio de dinamite.

12
Sobre este tema veja FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed.
São Paulo: Edusp, 2001. Principalmente o item Os Instrumentos do crime, p. 110ss.
13
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Crimes. 1º Ofício. Códice 358, auto n. 7907 (1888), p. 3ss.
14
Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Crimes. 1º Ofício. Códice 358, auto n. 7907 (1888), p. 13.
Em sua defesa, Boggione argumenta que, contrariando o libelo do Promotor
Público, provaria que “elle réo comprando o estupim na Companhia da Passagem, não foi
para do mesmo (ilegível) elemento de qualquer crime e se este fosse o seo projecto não o
traria a vista de todos, nem o compraria na própria companhia, visto que tinha outros meios de
havel-o, sem causar suspeitas quando tivesse concebido a idéia de qualquer crime
commeter”.15 Fica claro então que a própria companhia comercializava o explosivo e que,
além disso, havia formas ilícitas de adquiri-lo.
Como anteriormente destacado, basicamente todo grande empreendimento
empresarial no século XIX recorreu à força de trabalho imigrante. O mesmo ocorreu com a
construção da via férrea que chegou a Ouro Preto e Mariana na segunda metade do século
XIX.
A presença de trabalhadores de diferentes nacionalidades em terra estranha fazia
aflorar rivalidades com vestígios de xenofobia. Em abril de 1896 ocorreu grave incidente
envolvendo portugueses que trabalhavam na construção da estrada de ferro que chegara a
Passagem. O fato foi narrado pelo jornal O Estado de Minas na edição de 15 de abril de1896
em matéria de primeira página que indagava: “Crime?”

Na noite de ante-hontem para hontem, numa cafua de turma dos trabalhadores


empregados no prolongamento da E.F. Central perto da Passagem deu-se a explosão
duma bomba de dynamite que matou tres portugueses e mutilou horrivelmente
outros dous. Attribuem essa desgraça a italianos. 16

Nos anos subsequentes à proclamação da República, o dia 15 de novembro tornou-


se data comemorativa em todo o país. Em 1899, durante os festejos dos dez anos deste feito,
os organizadores “estouraram alguns dynamites”17pelas ruas da cidade de Mariana.
Passados apenas dez anos de proclamação da República, as rivalidades entre
monarquistas e republicanos ainda não haviam sido superadas. Em julho de 1899 a dinamite
foi usada como meio de intimidação contra o redator do jornal D. Viçoso, órgão oficial da
diocese de Mariana “ao arrebentarem a porta de sua residência com uma dinamite na noite de
23 para 24 do corrente”.18

15
Arquivo da Casa Setecentista de Minas Gerais. Crimes. 1º Ofício. Códice 358, auto n. 7907 (1888), p. 67ss.
16
O Estado de Minas. Ouro Preto, 15 de abril de 1896. Anno VII, n. 452, p.1. ACPOP. Pasta S/n.
17
D. Viçoso. Órgão Official da Diocese de Marianna Mariana, domingo, 19 de novembro de 1899. Anno VI, n.
32, p. 1.
18
D. Viçoso. Órgão Official da Diocese de Marianna. Mariana, domingo, 30 de julho de 1899. Anno VI, n. 19, p.
1.
Nesta mesma cidade, alguns usavam-na para a inusitada finalidade de pescaria.
Divertimento que, sem o devido cuidado, podia trazer sérias consequencias. O jornal O
Viçoso noticia que “no domingo passado, um italiano de nome Carlos, residente na rua do
Rosário desta cidade, emprehendeu uma pescaria á dynamite, de qual lhe resultou ficar sem
ambas as mãos; porque a bomba explodindo, arrancou-lhas. É mais um exemplo aos
apreciadores deste perigosíssimo e extravagante divertimento.”19
A presença da dinamite nas residências de Mariana e Passagem parece ter sido
mais comum que se imagina. Em alguns casos, o descuido dos pais com seu correto
acondicionamento vitimava seus filhos. Foi o que ocorreu no dia 12 de setembro de 1897 ao
primogênito de José Bastos Duarte que “brincando com uma espoleta de dynamite, esta
esplodio lhe nas mãos resultando dahi sérios ferimentos em uma dellas.”20
Os empreendimentos ingleses do século XIX, por seu gigantismo, comparado com
outros setores, quanto ao montante de capital investido e número de trabalhadores
empregados, devem ser visto como um capítulo à parte neste quadro desolador da história do
trabalho na mineração em Minas Gerais.
Neste contexto, a cultura material dos mineiros, marcada por múltiplas
representações que se ancoram no mundo do trabalho passou por profundas modificações.
Embora tenha sido alterada, permanece ainda a mediação simbólica essencial dos mineiros
com seus principais instrumentos pessoais de trabalho identificadores do eu-trabalhador: o
malho, a broca, o lampião de carbureto (gasômetro) e a dinamite.
A história dos acidentes marca a história de vida dos mineiros e das localidades
mineiras como um todo. Mortes, doenças e mutilações foram as principais heranças que as
minas inglesas deixaram para seus trabalhadores. Isto fica claro através de um pequeno trecho
da obra de Richard Burton. Quando ele e Mr. Gordon visitaram a falida mina de Gongo Soco
em 1867 somente encontraram entre os “remanescentes das senzalas, pretos cegos e aleijados
[que] saíram para receber moedinhas de Mr. Gordon ao passarmos”.21
Fica patente que, ao longo dos séculos XIX e XX, com a revolução tecnológica
inglesa e o consequente aumento da demanda por mão-de-obra, as condições de trabalho na
mineração tornaram-se cada vez mais duras e letais.

19
O Viçoso. Mariana, 15 de julho de 1897. Anno IV, n. 25, p. 3.
20
O Viçoso. Mariana, quinta-feira, 16 de setembro de 1897. Anno IV, n. 2, p. 3.
21
BURTON, Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Tradução David J. Junior; apresentação
e notas Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976, p. 254.
Portanto, é preciso abandonar de uma vez por todas a visão otimista da história da
mineração, ou seja, aquela que apenas vê os “benefícios” legados. E. P. Thompson é crítico
contumaz desta postura que “ignora os sofrimentos de uma geração em benefício do futuro.
Para os que sofreram, esse consolo retrospectivo causaria indiferença”.22 Para nós também.

Fontes Primárias e Bibliografia

Fontes Primárias

Arquivo do Cartório de Registro Civil de Passagem de Mariana

Livro de Óbitos n. 2, f. 86v e Livro 3, fls. 56v e 57.


Livro de Óbitos n. 4, fls. 114v e 115.
Livro de Óbitos nº 2, f. 18.

Arquivo da Casa Setecentista de Mariana.

Crimes. 1º Ofício. Códice 358, auto n. 7907 (1888), p. 3ss; p. 13; p. 67ss.

Jornais

O Estado de Minas. Ouro Preto, 15 de abril de 1896. Anno VII, n. 452, p.1.
D. Viçoso. Órgão Official da Diocese de Marianna. Mariana, domingo, 19 de novembro de
1899. Anno VI, n. 32, p. 1.
D. Viçoso. Órgão Official da Diocese de Marianna. Mariana, domingo, 30 de julho de 1899.
Anno VI, n. 19, p. 1.
O Viçoso. Mariana, quinta-feira, 15 de julho de 1897. Anno IV, n. 25, p. 3.
O Viçoso. Mariana, quinta-feira, 16 de setembro de 1897. Anno IV, n. 2, p. 3.

Revistas
22
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987, vol. 2, p. 176.
Revista Industrial de Minas Geraes. Ouro Preto: Imprensa Official do Estado de Minas
Geraes. 30 de março de 1897, Anno IV, n. 22, p. 284.
Revista Industrial de Minas Geraes. Ouro Preto: Imprensa Official do Estado de Minas
Geraes. 15 de dezembro de 1893. Anno I, n. 3, p. 67.

Bibliografia

BURTON, Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Tradução David J.
Junior; apresentação e notas Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1976.
DEVILLARD, Marie José. Crisis, realidades y representaciones del espacio minero langreano
em vísperas del siglo XXI. In: GARCÍA, José Luis García et all. Los últimos mineros: um
studio antropológico sobre la minería en España. Madrid: Centro de Investigaciones
sociológicas, 2002.
ENGELS, Friedrich, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad. Rosa Camargo
Artigas e Reginaldo Forti. São Paulo: Global, 1985.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São
Paulo: Edusp, 2001.
FERRAND, Paul. O ouro em Minas Gerais. Trad. de Júlio C. Guimarães. Notas de João
Henrique Grossi, Friedrich E. Renger. Belo Horizonte: Sistema Estadual de Planejamento;
Centro de Estudos Históricos e Culturais. Fundação João Pinheiro. 1998. Coleção Mineiriana.
SÉBILLOT, Paul. Les travaux publics e les mines dans les traditions e les superstitions de
tous les pays. Paris: J. Rothschild Éditeur. 1894.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Trad. Denise Bottman. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987, 3 vols.

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