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NOTAS SOBRE A POBREZA1


Oswaldo Lamartine
NATAL – Maio – Na leitura do livro Cancioneiro do Norte, do folclorista Rodrigues de
Carvalho, à página 202, encontra-se sob o título “Meus possuídos” (Ceará):

“Agora vou lhes contar


Os possuídos que eu tinha
Uma vaca, uma bezerra,
Uma porca, uma poldrinha,
Um caixão de 12 palmos
Atestado de farinha
Um bom cachorro de caça,
Um capote, uma galinha.
Um bom cavalo de sela,
Pra servir, uma negrinha.
Mas também vou lhes contar
Minha sorte como vinha:

A vaca morreu da seca,


Deu o mal na bezerrinha,
Deu o “espiche” na porca,
Deu o “rengo” na poldrinha.

O cupim deu no caixão,


Deu o mofo n farinha,
Morre o cachorro “espritado”,
Deu o gôgo na galinha,
Estrepou-se o meu cavalo,
Deu a “gota” na negrinha,
Da maneira por que conto
Acabou-se quanto eu tinha.”

Esta versão é tipicamente cearense, constatada por Rodrigues de Carvalho e reforçada


pelo emprego da palavra “capote”, usada no Ceará como sinônimo da ave guiné ou galinha
d’Angola.
Em 1938, ouvi em Acary (Rio Grande do Norte), cantada na voz preguiçosa de um
sertanejo seridoense, a versão que considero primitiva, quer pela linguagem tipicamente
característica, quer por determinar a época que a originou:

Vou contar os pissuído


Qu’em setenta e sete eu tinha:

Tinha um roçado de roça,


Dez alqueire de farinha.

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Texto editado a partir da publicação original da edição de Domingo, 16 de maio de 1948, do Diário de
Pernambuco. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.
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Tinh’um chiqueiro de porcos


E um terreiro de galinha.
Tinha uma besta velha
Parida co’ uma podrinha.
E tinha m’ia nêga velha
Parida co’ uma neguinha.

Chegou a mardita seca


E acabou tudo qu’eu tinha:

Deu tamanjuá na roça,


Deu o mofo na farinha.
Deu a papeira nos porcos
E o gôgo nas galinha.
Deu o tingui na m’ia besta
E deu o rengue na podrinha.
Deu sarampo na m’ia nêga
E sarampampão na neguinha.

E acabou-se os pissuído
Que em setenta e sete eu tinha...

O Seridó teve na chamada seca dos “dois sete” (1877) o maior marco de sua evolução
econômica. Não sentiu de modo tão acentuado a crise provocada pela abolição por se tratar de
uma região pastoril, onde o senhor e o escravo, envergando o mesmo gibão e a mesma vesta,
excluíam a distância que, no ciclo da cana, existia entre o branco e o negro.
Até 1877 os nossos antepassados dependiam, para a sua manutenção dos gêneros de
primeira necessidade (excetuando a carne fornecida pelo rebanho) vindos das praças do
litoral. A mercadoria era trazida de Recife em lombos de “biquaras” (éguas) e nas cabeças dos
escravos. Como agricultura, apenas alguns pés de algodão herbáceo e “quebradinho” para
manufatura dos tecidos da senzala. O rebanho era criado semi-selvagem, quase sem
interferência do homem. As vacas “arreadas” (desleitadas) até meados de Sant’Ana (julho)
eram soltas para se refazerem. Nenhuma ração de concentrados. Nenhuma indústria láctea.
Apenas um pequeno cercado nos baxios – o peador, onde prendiam seus cavalos de sela.
O milho, como os demais cereais, vinha de Recife. A vaidade em ostentar cavalo de sela tão
gordos – de “rêgo-aberto”, na força da expressão popular –, gerou a quadra:

“Já sou velho e tive gosto


Morro quando Deus quiser.
Duas penas me acompanham:
Cavalo bom e mulher.”

O burro (mulo) era considerado animal inútil e desprezível. Daí o provérbio da época:
burro é quem burro tem.
Nenhuma cerca divisória. Excetuando-se o “peador” de cerca, apenas as socretas
(pequenos cercados de pau-a-pique de entrada sinuosa, usados para aparelho sanitário das
mulheres).
A pequena densidade da população pecuária proporcionava meios de subsistência aos
rebanhos. O couro era desprezado como também toda a carne supérflua, aproveitada apenas
pela senzala.
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No século XIX, a grande seca geral de 1844-45 veio acompanhada de uma grande
mortandade de equinos que desfalcou o rebanho em cerca de 80 por cento de seu total. Os
anos que se seguiram foram todavia invernosos, fazendo o sertanejo descuidar das precauções
de armazenagens.
Surge 1877 e as “experiências de inverno” negativas. O vento sul, precursor da
desgraça, soprava impiedosamente. Estabelece-se o pânico. O povo “perde a cabeça” e emigra
em grandes levas. Criadores retiram o gado para o agreste deixando as estradas marginadas de
esqueletos. O rebanho equino já desfalcado pela mortandade de 1844-45 e desnutrido pela
seca não pode fazer o comercio com as praças do litoral. Os pobres apelam para a “comida
braba” (xique-xique ou sodoro; mucunã; pau-pedra; gugoia – fruto da palmatoria; raiz e
semente da faveleira; macambira; etc).
Os escravos eram levados para os mercados do Recife e permutados por rapadura,
farinha, feijão, milho, etc.
Os fazendeiros iam para a feira a pé com vergonha de selar seus cavalos transformados
em Rocinantes esqueléticos. “O Capitão-mor Francisco Gomes da Silva, um dos mais
abastados fazendeiros da zona do Seridó, viu-se obrigado emigrar para a ribeira do Cunhaú,
fazendo o trajeto a pé, transportando à cabeça dos escravos sacos de moedas de ouro e prata
que, serviam apenas para dificultar a marcha”.
Surgem os primeiros socorros públicos e o cambio negro combatido à boca do clavinote
pelo cangaceiro gentil-homem Jesuíno Brilhante, assaltando os comboios de mantimentos e
distribuindo-os com os famintos. O hino-de-guerra de Jesuíno era escutado pelos flagelados
como última esperança de salvação:

Corujinha que anda na rua


Não anda de dia
Só anda de noite,
Às Ave Maria.
Isto é bom corujinha
Isto é bom (bis)
Banana madura
Comida no cacho
Isto é bom corujinha
Isto é bom qu’eu acho.”

Os retirantes aglomeravam-se nas capitais. Em Fortaleza, num só dia, o obituário


alcançou 1.012 almas.
Contou-me meu pai que, tendo seu tio Manoel Gago (fazenda Carnaúba – município de
Serra Negra, Rio Grande do Norte) baleado um urubu rei, o retirante Manoel Garapú pediu
pra comer. Meu avô, o velho Silvino Bezerra (Acary) comprou no pátio de sua fazenda, Ingá,
um boi manso estropiado por 6$000 réis.
Foi essa hecatombe de desgraças que fez o seridoense plantar as primeiras vazantes
adubadas, no leito seco do Rio Acauã e tirar as cangalhas dos espinhaços magros das biquaras
para organizar as tropas de burros com suas “madrinhas” à testa, engalanadas de fivelas e
“corações”.
Com este e outros trabalhos sobre a evolução da pobreza, o crescimento e a diminuição
das propriedades, etc. pretendemos coordenar o material necessário ao estudo das condições
de vida do homem do Seridó, quase todo ele, típico homem de classe média e camponesa. Um
documento de grande importância é a carta do velho Targino, endereçada em 1877 ao major
Antônio Pires de Albuquerque Galvão, pedindo meios para subsistir. Essa carta, cheia
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citações bíblicas, foi descoberta pelo deputado José Gonçalves de Medeiros e remetida ao
escritor Gilberto Freire que fará um estudo detalhado sobre a mesma.
Natal, maio de 1948.

BIBLIOGRAFIA

O Calvário das Secas – Eloi de Souza. Imp. Oficial, 1933.


As Rodovias e as Secas no Nordeste – Francisco J. da Costa Barros. I.F.O.C.S.
Homens de Outrora – Manoel Dantas. ed. Pongetti, 1941.

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