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Paul Ricoeur e um novo conceito de

interpretação: da hermenêutica dos símbolos


à hermenêutica do discurso
Paul Ricoeur and a new concept of interpretation: from the
hermeneutics of symbols to the hermeneutics of discourse
DOI: 10.12957/ek.2018.33075

Prof. Dr. Manuel Tavares Gomes


manuel.tavares@outlook.com.br
Universidade Nove de Julho - SP

Este texto é uma reflexão sobre a riqueza da problemática hermenêutica


como estruturante do pensamento de Ricoeur, seguindo o próprio percurso
do autor e esclarecendo a transição de uma hermenêutica dos símbolos para
uma hermenêutica do discurso, não esquecendo que o projeto do filósofo e os
horizontes do seu pensamento são a construção de uma nova antropologia e
de uma ontologia da compreensão do ser humano aplicáveis à problemática
educacional. Esclareceremos o que se entende por hermenêutica da via longa
que passa, necessariamente, por opções metodológicas, em oposição à via curta
ou imediata defendida por Husserl e Heidegger; das nossas reflexões emerge
a questão do mal por intermédio de uma abordagem da hermenêutica dos
símbolos e dos mitos. Finalmente, a hermenêutica do discurso como produção
de sentidos ocupará a última parte deste texto. O mundo humano é constituído
por todas as referências abertas pelos textos, sejam poéticos, míticos ou de
outra índole. A ontologia proposta por Ricoeur, ontologia quebrada, ganha
maior densidade por intermédio do percurso transitório entre a hermenêutica
simbólica e a hermenêutica do discurso restauradora do sentido.

Paul Ricoeur. Hermenêutica. Hermenêutica


PALAVRAS CHAVE
dos símbolos. Hermenêutica do discurso. Mal.
Paul Ricoeur e um novo conceito de
Prof. Dr. Manuel Tavares
interpretação: da hermenêutica dos
Gomes [UNJ - SP]
símbolos à hermenêutica do discurso

This text is a reflection on the richness of the hermeneutical problematic


as structuring of Ricoeur's thought, following the author's own course and
clarifying the transition from a hermeneutic of the symbols to a hermeneutic
of the discourse, not forgetting that the philosopher's project and the
horizons of the his thinking is the construction of a new anthropology and an
ontology of the understanding of the human being, applicable to educational
problematic. We shall clarify what is meant by the hermeneutics of the long
way, as opposed to the short or immediate path advocated by Husserl and
Heidegger; the question of evil emerges from our reflections through an
approach to the hermeneutics of symbols and myths. Finally, the hermeneutics
of discourse as production of meanings will occupy the latter part of this
text. The human world is made up of all the references open to texts, be
they poetic, mythical or otherwise. The ontology proposed by Ricoeur, a
broken ontology, gains greater density through the transitory course between
symbolic hermeneutics and the hermeneutics of the restorative discourse of
meaning. The plurality of meanings that the narratives enable represents a
greater breadth for the understanding of the human being in the world and
for a reflection on the truth.

Paul Ricoeur. Hermeneutics. Hermeneutics


KEYWORDS
of symbols. Hermeneutics of discourse. Evil.
Paul Ricoeur e um novo conceito de
Prof. Dr. Manuel Tavares
interpretação: da hermenêutica dos
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símbolos à hermenêutica do discurso

Introdução

Paul Ricoeur é, inegavelmente, um dos maiores pensadores do pós II Guerra


Mundial e, seguramente, um dos mais importantes representantes da herme-
nêutica contemporânea. O objeto de reflexão do presente texto centra-se na
hermenêutica, como teoria da interpretação e, sobretudo, na transição de uma
hermenêutica dos símbolos para uma hermenêutica do discurso. Consideramos
que esta transição constitui uma ampliação do processo metodológico do autor
e uma confirmação da sua via longa, em oposição à via curta levada a cabo pela
fenomenologia husserliana e heideggeriana.
O seu percurso filosófico está indissoluvelmente ligado à metodologia que
se inicia por uma filosofia reflexiva, por influência de Nabert, se concentra na
fenomenologia, por influência de Husserl, para, numa perspectiva eidética, pen-
sar as estruturas fundamentais da vontade humana e estabelecer as relações
entre voluntário e involuntário. Posteriormente, amplia as reflexões para uma
empírica da vontade. A conciliação ontológica entre o voluntário e o involun-
tário revela a reconquista da experiência do cogito em toda a sua amplitude, ou
seja, implica a integração, no plano da subjetividade, das necessidades, de todo
o involuntário corporal e de todos os motivos, incluindo os inconscientes, que
estão sempre na base da ação humana. A hermenêutica constitui, assim, o per-
curso metodológico que permite compreender o ser humano, a sua existência
e as relações com o mundo. Tomamos o conceito de hermenêutica, não como
mero processo metodológico de interpretação visando a compreensão, mas
como uma verdadeira filosofia da práxis que contesta todas as formas de pensa-
mento meramente utilitárias visando a eficácia. A possibilidade de escolha e de-
cisão por parte do ser humano, a sua imputabilidade perante os atos que pratica
e as suas relações de reciprocidade ou não com os outros, eis as grandes linhas
estruturantes de uma filosofia da práxis que pressupõe, do nosso ponto de vista,
a reabilitação das grandes narrativas, dos símbolos e dos mitos que fomentam
a coesão social e política em que radica a responsabilidade e solidariedade da
vida em conjunto (GOMES, 2016). A racionalidade hermenêutica reassume-se
como sabedoria prática que não só interpreta a linguagem, os símbolos, os dis-
cursos e os textos, mas recria em ato a pluralidade de sentidos. É na simbólica
do mal que Ricoeur inicia a sua hermenêutica, como filosofia da práxis ética e
política do ser humano. Esta filosofia exige uma via longa de reflexões sobre a
semântica da ação, que culminarão em Temps et récit.
Pretendemos, neste texto, refletir sobre a riqueza da problemática herme-
nêutica como estruturante do pensamento de Ricoeur, seguindo o próprio per-
curso do autor e esclarecendo a transição de uma hermenêutica dos símbolos

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para uma hermenêutica do discurso, não esquecendo que o projeto do filósofo e


os horizontes do seu pensamento são a construção de uma nova antropologia e
de uma ontologia da compreensão do ser humano, imprescindíveis para pensar
a educação numa perspectiva libertadora e emancipatória. Esclareceremos, em
primeiro lugar, o que se entende por hermenêutica da via longa, em oposição à
via curta ou imediata defendida por Husserl e Heidegger; incontornavelmente,
emerge das nossas reflexões a questão do mal por intermédio de uma aborda-
gem da hermenêutica dos símbolos e dos mitos. Finalmente, a hermenêutica do
discurso como produção de sentidos ocupará a última parte deste texto.

Hermenêutica da via longa

O percurso da “via longa” implica uma ampliação metodológica que pas-


sa, necessariamente, pela hermenêutica. Numa primeira fase, a hermenêutica
reduz-se à descoberta da estrutura comum a todo o símbolo para, progressiva-
mente, se abrir ao conflito de interpretações rivais. Com efeito, aparece sempre,
como cenário, uma ontologia da compreensão do ser humano, da sua presença
na vida e na história e das suas múltiplas relações com os outros, tanto no pre-
sente como no passado histórico, configurado por uma diversidade de represen-
tações, de discursos significantes e dos símbolos das culturas humanas. O que
Ricoeur pretende, mais do que arbitrar um conflito de interpretações rivais, é a
superação desse conflito por intermédio da substituição de uma hermenêutica
redutora por uma hermenêutica restauradora do sentido. O conceito de símbolo
perde o seu sentido estático, entendido como possuidor de um único sentido,
para passar a ser algo susceptível de interpretação, ganhando, assim, uma pers-
pectiva mais ampla, enquanto refiguração textual e narrativa da experiência
humana, da ação e do mundo.
O discurso é um acontecimento da linguagem, um complexo de símbolos
que escondem, dentro de si, mistérios que precisam ser desvelados. Essa é a
função da hermenêutica: desvelando e revelando os sentidos do mundo humano
presentes, muitas vezes, de um modo latente, na linguagem, no discurso e nos
símbolos que os constituem, considerando que os símbolos são expressões de
duplo sentido e que manifestam as múltiplas relações do ser humano consigo
próprio, com os outros e com o mundo.
Se tivermos em consideração a evolução do projeto filosófico de Ricoeur, veri-
ficamos que tal evolução também afeta, de um modo fundamental, a sua metodo-

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logia. Assim, encontramos duas concepções de hermenêutica: a primeira, como


interpretação dos símbolos; a segunda, como interpretação dos textos escritos.
No que diz respeito à primeira concepção, é necessário distinguir duas fases:
na primeira, o objeto da hermenêutica é a interpretação do simbolismo religioso,
procurando assumir o sentido de tal simbolismo no âmbito da reflexão filosófica;
tal hermenêutica mantém os símbolos e os mitos enquanto símbolos e mitos, pen-
sando a partir deles. A interpretação será um trabalho reflexivo que saiba desen-
volver os níveis de significação implícitos em toda a significação literal. A segun-
da fase é constituída pelo conflito de interpretações. Este conflito emerge quando,
por influência de Freud, Ricoeur tem que modificar o seu conceito de símbolo.
A segunda concepção de hermenêutica é definida, fundamentalmente, como
interpretação do texto escrito. Neste caso, um texto é, explicita Ricoeur, “todo
o discurso fixado pela escrita. Segundo esta definição, a fixação pela escrita é
constitutiva do próprio texto” (RICOUER, 1986, p. 154), o que quer dizer que
a palavra, pronunciada física ou mentalmente, é sempre anterior ao texto.
Na etapa do conflito de interpretações, a filosofia reflexiva de Ricoeur con-
verte-se numa espécie de meta-hermenêutica, dado que a finalidade consiste em
arbitrar esse conflito. O que se pretende é, afinal, mais do que arbitrar o conflito
de interpretações, superar esse conflito por meio da substituição de uma herme-
nêutica redutora por uma hermenêutica restauradora do sentido.
O problema hermenêutico já se tinha constituído na exegese bíblica1 e é nes-
ta tradição que Ricoeur encontra as bases da sua hermenêutica, ainda que consi-
dere que a exegese bíblica representa uma concepção restrita da hermenêutica.
Ela constitui uma hermenêutica regional em relação à filosófica que, por sua
vez, se afirma como hermenêutica geral (RICOEUR, 1986). Não obstante, foi
no âmbito da exegese que se desenvolveram as noções de analogia, alegoria e
dos vários sentidos, como o simbólico, o histórico, o espiritual e o literal; foi
também a partir dela que a noção de texto se ampliou, por analogia, a outros
domínios. Deste modo, na Idade Média, começou a falar-se de interpretação da
natureza e, a partir do Renascimento, é a própria interpretação da natureza que
se converte em modelo inspirador para a interpretação da Sagrada Escritura.
Todavia, não se pode menosprezar o fato de que, com o aparecimento da
psicanálise freudiana, não é só a escrita que está sujeita à interpretação, mas

1 O texto sagrado é o lugar onde se diz o sagrado. Esse dizer é indireto e é decifrável por inter-
médio do duplo sentido de um texto que nos comunica uma certa condição ontológica. O duplo
sentido do texto bíblico apela a uma interpretação que pode revelar a posição do ser humano no
seio de uma totalidade, que é o cosmos e, ao mesmo tempo, perante o divino.

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também os sonhos, os rituais, as obras de arte e todos os signos que possam


ser considerados como um texto; mas é com Nietzsche que toda a filosofia se
converte em teoria da interpretação, em suspeita em relação a todas as ilusões
e todas as máscaras de uma consciência imediata de si mesmo. A hermenêutica
da suspeita aspira a formular uma noção de consciência que, depois de enfren-
tar as suas ilusões, torne possível uma ontologia do sujeito, ainda que sempre
parcial (MACEIRAS, 1987).
A reflexão é, assim, sempre um trabalho de interpretação. Daí que a filo-
sofia reflexiva seja, necessariamente, hermenêutica. Neste sentido, a filosofia
de Ricoeur introduz uma importante viragem relativamente às suas posições
fenomenológicas anteriormente assumidas.
Se é verdade que o exercício de reflexão é uma tentativa de reapropriação do
nosso ser, se é “um esforço por existir” (RICOEUR, 1969, p. 21), esta reapro-
priação implica a interpretação de todo o legado cultural, sobretudo dos símbo-
los históricos que são, afinal, manifestações da presença do homem no mundo.

Consequentemente, é pelo fato de eu não estar imediata-


mente na posse de mim mesmo, porque a reflexão não é
intuição de si por si, que é necessário a apropriação do que
eu sou decifrando as múltiplas expressões do meu esforço
por existir. É através dos signos públicos e privados da
minha atividade no mundo, é através da obra, a cultura, a
instituição política e a história que poderei apropriar-me
da minha afirmação originária (GISEL, 1970, p. 177).

Efetivamente, é na simbolização que atua o desejo de ser e se exprime o po-


der de produção e invenção que abre ao homem o espaço e o horizonte do pos-
sível. É na simbolização, afinal, que atua o poder mítico-poético da imaginação
humana como força produtiva e, simultaneamente, a capacidade projetiva que
define, até certo ponto, a liberdade humana.
Como afirmamos, a função da hermenêutica limita-se, numa primeira fase,
à interpretação dos símbolos tomados como “signos de duplo sentido” (RI-
COEUR, 1969, p. 17). De fato, o símbolo remete para algo mais além de si
mesmo e, por isso, implica múltiplas interpretações, o que significa que “a po-
lissemia é um fenômeno central para a hermenêutica” (RICOEUR, 1987, p.
143). No entanto, apresentam-se algumas dificuldades à investigação específica
das representações simbólicas.

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Em primeiro lugar, são múltiplos os ramos da investigação que procuram cla-


rificar o sentido subjacente ao conceito de representação simbólica. Por exem-
plo, a perspectiva psicanalítica considera que uma representação simbólica é um
sintoma de um conflito psíquico inconsciente, o que se distingue, claramente, da
análise poética da expressão simbólica que privilegia a força da imaginação cria-
tiva. Em segundo lugar, o símbolo é uma expressão linguística, é uma realidade
sintática e semântica, mas que ultrapassa largamente os contornos da linguagem.
De fato, a sua estrutura de sentido indica sempre a existência de uma tensão entre
dois sentidos e duas interpretações, antes de ser uma tensão entre o sentido e a
realidade. O símbolo pode ser designado como “o sentido do sentido”, uma vez
que, de acordo com a perspectiva de Ricoeur, que tem por fundamento a con-
cepção de “função simbólica”2 de Cassirer. O sentido aponta sempre para uma
realidade extra-linguística e implica sempre uma tensão entre duas significações.

Hermenêutica dos símbolos e dos


mitos: em torno do problema do mal
Considerando que o homem é um animal simbólico, o mito surge, em pri-
meiro lugar, como uma representação simbólica que é anterior ao pensamento
filosófico e que, no seu simbolismo, revela a participação ontológica do ser
humano, a sua relação com o cosmos e com o sagrado e, simultaneamente, o
modo como o sujeito se realiza no mundo. Consequentemente, a filosofia não
pode esquecer o caráter universal e participante do mito e do símbolo quando
pretende refletir sobre a experiência integral do ser humano. A reflexão sobre
a simbólica surge, de fato, num determinado momento da reflexão filosófi-
ca, sobretudo porque a cultura moderna tem a tendência a valorizar todos os
discursos que exprimem a realidade em termos unívocos, esquecendo que a
realidade se diz de diferentes maneiras, não se devendo privilegiar uma delas
em detrimento de outras.

2 A posição de Ricoeur, em relação ao conceito de “forma simbólica”, proposto por Cassirer,


não é sempre a mesma. Na sua obra sobre Freud, critica a aplicação demasiado geral da noção
de Cassirer: “uma definição demasiado ampla é que faz com que a ‘função simbólica’ tenha
uma função geral de mediação por meio da qual o espírito, a consciência, constrói os seus
universos perceptivos e discursivos; como se sabe, esta definição é a de Cassirer na sua Phi-
losophie des formes symboliques” (RICOEUR, 1995, p. 19). No entanto, em Temps et récit I,
pode apreciar-se uma clara aproximação à noção de “função simbólica”: “entre uma acepção
demasiado pobre e uma acepção demasiado rica, optei por um uso próximo ao de Cassirer em
Philosophie des formes symboliques na medida em que, para ele, as formas simbólicas são pro-
cessos culturais que articulam a totalidade da experiência” (RICOEUR, 1991, p. 91).

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O ponto de partida de Ricoeur não é a especulação, uma vez que esta não
permite captar diretamente a experiência espontânea das vivências humanas.
Começa, então, pelos símbolos primários e pelos mitos; os mitos são narrati-
vas tradicionais que remetem para os tempos primordiais e contam-nos como
tudo começou a ser, desde o cosmos até à ação e ao pensamento humanos.
O mito, enquanto mito, é uma narrativa e não propriamente uma explicação
mas, enquanto relato, revela uma potencialidade exploratória e compreensiva.
Através dele pode-se compreender a totalidade da realidade humana e a sua
relação indissolúvel com o cosmos e com a transcendência. Mas o mito e a sua
linguagem simbólica, tendo em conta os seus caracteres emotivo e fantástico,
não podem inserir-se diretamente no discurso filosófico, o que implica a neces-
sidade de uma “desmitologização” do mito – no sentido de uma mera captação
racional e explicativa – entendendo-o, então, a partir do símbolo, dos símbolos
primários. A interpretação hermenêutica não pode penetrar na a-historicidade
do tempo mítico e na consciência cultural da época primitiva. É, pois, pela via
da desmitologização que se pode contatar a função simbólica do mito, com a
sua verdadeira e profunda realidade:

O filósofo deve apostar, deve perguntar pela verdade


como crença. Deve penetrar no “círculo hermenêutico
de ‘compreender para crer e crer para compreender’”
Esta “verdade do hermeneuta” significa, antes de mais,
não o regresso à ingenuidade originária, à percepção
imediata da consciência em que as culturas viviam na
época primitiva referidas diretamente aos seus mitos.
Este sentido, vive uma época de desmitologização em
que o mito já não pretende ligar-se explicativamente
à história, põe-nos em contacto com a verdadeira rea-
lidade do mito, com a sua função simbólica essencial
(PRIETO, 1980, p. 394).

Ricoeur vê nos símbolos e nas metáforas da linguagem um caminho para a


aquisição de uma consciência mais concreta da situação ontológica do homem. A
compreensão humana será mais completa por intermédio da ligação entre o ser do
homem e o ser de todos os entes, seguindo a indicação do pensamento simbólico.
Tendo em conta a amplitude e a variedade das zonas de emergência do símbolo,
este último representa, de fato, uma ampla abertura à reflexão filosófica.

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Todo o símbolo implica as dimensões cósmica, onírica e poética e o aspecto


reflexivo dos símbolos não se compreende a não ser pela sua relação com estas
três funções do símbolo. Estes três domínios constituem as três “zonas de emer-
gência do simbólico” (RICOEUR, 1988, p. 174). É a linguagem que unifica
os três domínios simbólicos referidos, uma vez que todos se manifestam pela
palavra. Mais ainda: todos eles têm um caráter polissêmico, uma estrutura de
duplo sentido; deste modo, pode dizer-se que há uma estrutura comum aos três
tipos de símbolos e que tal estrutura constitui a sua essência.
O homem começa por intuir as dimensões do sagrado na natureza; a constru-
ção da linguagem simbólica faz-se sobre estas hierofanias originárias. Efetiva-
mente, os primeiros símbolos referem-se a elementos cósmicos e é neste fundo
cósmico que reside a riqueza essencial do símbolo. Os primeiros símbolos são,
de fato, realidades cósmicas (sol, lua, água) que se manifestam pela palavra.
Por isso mesmo e antes de tudo, como diz Ricoeur, “o símbolo antes de dar que
pensar, dá que falar” (RICOEUR, 1988, p. 174). O símbolo como palavra, como
signo, é a condensação da realidade cósmica na medida em que todo o símbolo
se constitui a partir de uma significação de primeiro grau ligada à experiência da
natureza. Assim, a primeira zona de emergência é constituída pelo simbolismo
cósmico e é objeto da fenomenologia da religião3. Ricoeur parte das concepções
de Mircea Eliade, ainda que aluda também a Van der Leeuw e M. Leenhard.
Pode dizer-se que a noção de símbolo apresentada por Ricoeur é inspirada nes-
tes três autores. Com efeito, na concepção de hierofania e de símbolo de Mircea
Eliade aparece já o caráter polissêmico da noção de símbolo. A natureza, diz
Eliade, “nunca é exclusivamente ‘natural’: está sempre carregada de um valor
religioso” (ELIADE, s/d, p. 25). Nesta perspectiva, uma realidade cósmica in-
corpora outra coisa que é distinta de si mesma e adquire realidade na medida
em que é sacralizada. Os símbolos são, para Eliade, signos de realidades trans-
cendentes e não possuem valor em si mesmos, isolados do todo, mas adquirem
valor enquanto integrados num sistema cósmico. Todavia, para Ricoeur, o que é
importante numa primeira reflexão é que todo o símbolo tem um duplo sentido
e que a expressividade cósmica se diz na linguagem. Além disso, é pela lingua-
gem que se realiza a aproximação entre o simbolismo e a reflexão filosófica.
A segunda zona de emergência do símbolo é constituída pelo âmbito do oní-
rico. A análise e exploração deste simbolismo é da competência da psicanálise.

3 Recorde-se que, para a fenomenologia da religião, o símbolo é a expressão concreta da trans-


cendência do real. Deste modo, a realidade é sempre uma hierofania, isto é, manifestação do
sagrado. Cf. RICOEUR, P. Parole et symbole, Revue des sciences religieuses, 49, nº 1-2, 1975,
p. 152. Veja-se, também, ELIADE, M. O sagrado e o profano. A essência das religiões. Lis-
boa: Edições Livros do Brasil, s/d, p. 25.

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Ricoeur considera que “é no sonho que se pode surpreender a passagem da fun-


ção ‘cósmica’ para a função ‘psíquica’ dos simbolismos mais fundamentais e
mais estáveis da humanidade” (RICOEUR, 1988, 176). No entanto, o homem,
ao manifestar no cosmos a dimensão do sagrado, interioriza-a em si mesmo
ou, o que é a mesma coisa, a manifestação do sagrado nas coisas é o resultado
de uma consciência religiosa. Neste sentido, não há que separar os símbolos
cósmicos dos símbolos oníricos. De fato, as produções oníricas em nível indi-
vidual não são mais do que a repetição das representações de uma determinada
cultura. O inconsciente individual é o reflexo – utilizando a terminologia de
Jung – de um inconsciente coletivo. Além disso, pode-se ainda dizer que o ser
humano é um microcosmo; deste ponto de vista, o ser humano realiza, numa
pequena escala, tudo o que acontece no macrocosmo.
Do mesmo modo que os símbolos cósmicos, também a simbologia oníri-
ca pode expressar-se por uma linguagem. O sonho é uma narrativa que deve
ser interpretada. Assim sendo, como dizíamos, a estrutura do simbolismo cós-
mico é a mesma do simbolismo onírico. No entanto, como veremos, a noção
de símbolo é reformulada por Ricoeur na obra De l’interprétation. Essai sur
Freud. De fato, a noção de símbolo apresentada em La symbolique du mal é
demasiado restrita, dado que o símbolo é definido por analogia entre o sentido
literal e o sentido oculto. O objetivo de La symbolique du mal é a descoberta da
estrutura comum a todo o símbolo; em De l’interprétation. Essai sur Freud, o
símbolo surge, então, como uma estrutura de duplo sentido susceptível de múl-
tiplas interpretações. A expressão “duplo sentido” parece designar a distinção
primordial entre as duas vertentes da experiência do sentido: de um lado, o sen-
tido dá-nos conta da experiência transcendental da função simbólica enquanto
condição de possibilidade de um qualquer ato concreto de significação mas, por
outro lado, exprime o movimento que constitui a nossa experiência imediata.
Neste sentido, uma narrativa ou mesmo uma metáfora são expressões simbó-
licas de duplo sentido não tanto pelo fato de serem linguagens figuradas, mas
porque realizam, em simultâneo, o duplo movimento de presença e ausência.
Assim, o conceito de símbolo perde o seu caráter estático, entendido como sen-
tido unívoco, passando a ser algo suscetível de interpretação e ganhando uma
perspectiva mais ampla, enquanto refiguração textual e narrativa da experiência
humana, da ação e do mundo. Nesta perspectiva, a hermenêutica deixa de ter
um âmbito restrito à exegese para passar a ser uma investigação filosófica e
narrativa sobre o ato de constituição do sentido.
A terceira zona de emergência do símbolo é constituída pela imaginação
poética. A imagem poética é, sobretudo, palavra e não tanto imagem da reali-

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dade. Nesta perspectiva, a imaginação poética aproxima-nos do ser que fala, da


sua experiência e das suas vivências, “mostra-nos a expressividade no estado
nascente” (RICOEUR, 1988, p. 177).
Do mesmo modo que nos símbolos anteriores, que possuem a mesma estru-
tura, a estrutura da imagem poética é a mesma que a do sonho. Esclareçamos a
questão: o que faz com que a poesia seja um discurso sedutor e fascinante é o fato
de todo o discurso poético ser simbólico e metafórico; quer dizer, o que se diz
oculta um sentido que não é o literal, o patente, mas outro que se oculta sob o pri-
meiro sentido; o referente do primeiro não é exatamente o referente do segundo.
Em La symbolique du mal, Ricoeur capta o essencial do símbolo por meio
de uma aproximação descritiva. Por outro lado, a análise teórica pretende
distinguir entre o que é símbolo e o que não é por intermédio de uma criterio-
logia dos símbolos.
Em primeiro lugar, “os símbolos são signos (...): são expressões que comuni-
cam um sentido” (RICOEUR, 1988, p. 177) por meio da palavra. Sendo assim, os
símbolos possuem um sentido, uma intencionalidade de significar alguma coisa.
Em segundo lugar, se há pontos comuns entre o símbolo e o signo, há também
diferenças, dado que nem todo o signo é símbolo; no signo existe uma referência
a algo, mas os símbolos têm uma dupla intencionalidade: uma primeira, literal,
que é comum a qualquer signo convencional e, mais concretamente, linguístico;
e uma segunda intencionalidade, um sentido analógico, que faz do símbolo algo
sempre relativamente opaco. Mas há que insistir no fato de que, em ambos os
casos, a linguagem é a mediação entre as vivências humanas e a sua expressão.
Sem a linguagem a experiência permaneceria silenciosa e obscura.
A terceira aproximação a uma descrição do símbolo tem a ver com a com-
preensão da relação analógica entre o sentido literal e o sentido simbólico. Efe-
tivamente, não se trata de uma mera analogia entre o sentido literal e o sentido
latente; no símbolo, o primeiro sentido aponta sempre para além de si mesmo,
para um sentido simbólico que, por sua vez, só se constitui no e pelo primeiro
sentido ou literal; “o símbolo é o movimento do primeiro sentido que nos faz
participar no sentido latente” (RICOEUR, 1995, p. 178).
Seguidamente, Ricoeur distingue símbolo e alegoria. A distinção entre am-
bos está na relação que mantêm com a hermenêutica. O símbolo é anterior a
toda a interpretação, enquanto que a alegoria é já em si mesma uma espécie
de interpretação. O símbolo dá o seu sentido “na transparência do enigma”,
enquanto a alegoria “é interpretação por tradução” (RICOEUR, 1995, p. 179).

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Por este motivo, Ricoeur considera que é mais correto falar de interpretação
alegorizante, uma vez que a alegoria é mais uma modalidade da hermenêuti-
ca do que uma interpretação espontânea de signos. Por outro lado, o símbolo,
susceptível de uma interpretação, não se relaciona com a acepção lógica do
símbolo. A descrição eidética, proposta na criteriologia do símbolo, opõe, cla-
ramente, o símbolo lógico e o hermenêutico: o primeiro, não tem conteúdos, é
simplesmente formal e pode referir-se a uma realidade abstrata; o segundo, pelo
contrário, tem múltiplos conteúdos e é doação de sentidos.
Finalmente, a criteriologia propõe a distinção entre o símbolo e o mito.
Como afirmamos, Ricoeur propõe, desde o início do seu processo metodoló-
gico, uma mítica que se relaciona com o estudo do problema do mal através
de uma classe particular de mitos, a saber: os mitos do princípio e do fim do
mal. Se é verdade que o mito enquanto narrativa é uma simbologia que se
exprime pela linguagem e que, por isso, pode ser inserida na reflexão filo-
sófica, também é verdade que há uma linguagem que é anterior aos próprios
mitos: a linguagem da confissão. Os mitos são símbolos de segundo grau e a
linguagem da confissão inscreve-se nos símbolos de primeiro grau. Antes das
narrativas míticas, o homem manifesta, pela confissão, as suas experiências
externas e internas. Estamos, então, no âmbito dos símbolos primários tal
como são apresentados em La symbolique du mal. Quando Ricoeur distingue
símbolo e mito, há que ter em conta que, por símbolo, entende, por um lado,
especialmente, os símbolos de primeiro grau que emergem na linguagem da
confissão do mal, anterior, portanto, ao desenvolvimento mítico; por outro
lado, o mito é concebido como uma espécie de símbolo, um símbolo secun-
dário que deriva dos símbolos primários. Ricoeur afirma a este respeito:

Entenderei sempre por símbolo (...) as significações


analógicas espontaneamente formadas e imediatamente
doadoras de sentido; assim, por exemplo, a mancha é
análoga à sujidade, o pecado análogo ao desvio, a cul-
pabilidade análoga a um fardo; estes símbolos estão
ao mesmo nível que, por exemplo, o sentido que tem
a água como ameaça e como renovação no dilúvio e
no baptismo (...). Neste sentido, o símbolo é mais radi-
cal que o mito. Considerarei o mito como uma espécie
de símbolo, como um símbolo desenvolvido em forma
de narrativa e articulado num tempo e num espaço que
não podem coincidir com os da história e da geogra-

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fia segundo o método crítico; por exemplo, o exílio é


um símbolo primário da alienação humana, enquan-
to a história da expulsão de Adão e Eva do Paraíso é
uma narrativa mítica de segundo grau que põe em jogo
personagens, lugares, um tempo, episódios fabulosos
(RICOEUR, 1995, p. 180-181).

Os símbolos primários são a linguagem elementar por meio da qual o sujeito


expressa a experiência do mal ou da culpabilidade. Distinguem-se dos símbolos
secundários pela ausência de narrativa, de articulação interna, de personagens,
de lugares e tempos fabulosos, características que definem globalmente os mi-
tos. O mito é, pois, um símbolo de segundo grau e, por isso, pode inserir-se a
mítica na simbólica, o que permite, mediante a hermenêutica dos símbolos,
aproximar a mítica à reflexão filosófica.
Em síntese, pode dizer-se que o problema que antes se colocava, isto é, o
de saber como conciliar o mito com o discurso filosófico, tem agora um esbo-
ço de solução no âmbito da metodologia. Ao entender, em primeiro lugar, os
mitos como símbolos, inscreve-se a mítica na simbólica; e, por outro lado, ao
entender o símbolo como uma estrutura de duplo sentido, susceptível de uma
hermenêutica, a simbólica do mal aproxima os mitos do discurso filosófico.
Com efeito, os símbolos ocultam uma dupla intencionalidade: em primeiro
lugar, há uma intencionalidade literal, aparente que supõe o triunfo do signo con-
vencional sobre o signo natural, como é o caso da mancha, desvio, opressão,
etc. Estes signos não se identificam diretamente com a coisa significada: pelo
contrário, sobre esta intencionalidade primeira edifica-se outra intencionalidade
que aponta para uma certa experiência humana perante o sagrado. A situação
descrita é, precisamente, a do ser manchado, pecador, culpado. Nesta perspectiva,
a intencionalidade primeira ou primeiro sentido, oculta um segundo sentido, uma
segunda intencionalidade, algo que está latente. Quando se fala da mancha, por
exemplo, há algo oculto que afeta o ser humano na sua globalidade; a mancha é
um símbolo do impuro em oposição ao símbolo da pureza. Consequentemente,
Ricoeur começa a sua interpretação partindo de uma fenomenologia da confissão,
uma vez que a linguagem da confissão pode revelar um significado exploratório.

Chamo aqui fenomenologia à descrição das significa-


ções implicadas na experiência em geral, seja esta uma
experiência das coisas, dos valores, ou das pessoas. Uma

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fenomenologia da confissão é, pois, a descrição das sig-


nificações, e das intenções significadas, presentes numa
certa atividade da linguagem: a confissão. A nossa tare-
fa, no quadro de tal fenomenologia, é a de repetir em nós
mesmos a confissão do mal para, a partir dela, libertar as
intenções (RICOEUR, 1969, p. 416-417).

Como se disse, a linguagem da confissão expressa-se por símbolos. Todavia,


há que distinguir os signos simbólicos dos signos técnicos: em oposição aos sig-
nos técnicos que se caracterizam pela transparência, na medida em que dizem
o que querem dizer, os signos simbólicos caracterizam-se pela sua opacidade
e profundidade, dado que o sentido literal aponta analogicamente para outro
sentido que se situa para além do sentido literal ou patente. Cabe perguntar em
que consiste a opacidade do símbolo. Ricoeur responde: “O símbolo permanece
opaco, não transparente, uma vez que é dado por meio de uma analogia, sobre
a base de um significado literal, que lhe confere, por sua vez, raízes concretas e
um peso material, uma opacidade” (RICOEUR; 1969, p. 313).
O símbolo caracteriza-se, então, pela sua doação de sentido, ou seja, através
do sentido primário é possível participar no sentido oculto; pela primeira inten-
cionalidade pode-se participar na segunda. No entanto, esta doação introduz a
contingência e a dependência no interior do próprio pensamento, na medida em
que o símbolo é prisioneiro de uma certa diversidade cultural e linguística, o
que implicará a introdução do conflito hermenêutico.
A investigação dos símbolos primários realizada por Ricoeur tem a vanta-
gem de fazer emergir uma dinâmica simbólica que, na sua equivocidade, trans-
porta a reflexão para uma dinâmica da experiência vivencial do ser humano,
sobretudo no que diz respeito ao problema do mal.
Por outro lado, no próprio âmbito da simbólica pode entender-se o problema
do mal como mistério. A relação com o insondável do mistério provoca no
homem inquietude e angústia; inquietude que supõe um temor pelo enigmático
e inescrutável e pela ignorância da origem. Todavia, o misterioso não fica total-
mente resolvido através dos símbolos; estes podem ser apenas mediações que
têm em vista o esclarecimento e a compreensão do mistério da vida nas suas
origens; os símbolos podem, além disso, esclarecer o problema da origem do
mal e a sua concretização na vida humana, mas o enigmático e misterioso da
vida permanece aporético. É neste ponto que a filosofia inicia a sua função: a de
interpretar a linguagem simbólica para compreender os seus referentes.

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Parece que estamos perante uma certa visão do mundo na qual o homem não
pode ser apreendido a não ser a partir de uma certa aventura que o constitui como
homem. De fato, esta aventura não pode ser realmente vivida sem a dimensão do
mistério; o mistério de Deus, do mundo, da vida, do destino, do espaço e do tem-
po, do limite e do infinito, do princípio e do fim. O inescrutável mistério do mal
é, definitivamente, um dos que maior inquietude e temor provocam no homem.
Além disso, o mistério não tem que ser entendido como algo alheio e distante,
mas está presente, de fato, na vida cotidiana, de modo que o ser humano nunca
poderia iludi-lo completamente. O mistério é, sem dúvida, um enigma, mas é, ao
mesmo tempo, uma força que move o homem em direção à sua compreensão.
O problema do mal supõe uma ambiguidade de base: o mal só é mal porque
o ser humano o introduz, o pratica; mas “no próprio coração da prática do mal
pela liberdade revela-se um poder de sedução pelo mal anterior, pré-existente
(déjà là) que a antiga mancha já havia manifestado de um modo simbólico”
(RICOEUR, 1988, p. 287). A simbólica revela-nos uma certa exterioridade do
mal, algo que afeta o ser humano a partir do exterior. Mas, ao mesmo tempo,
a dinâmica simbólica é animada por uma confrontação fundamental: por um
lado, a origem do mal é o resultado de uma catástrofe ou de um conflito originá-
rio anterior ao homem que o mito nos revela; por outro, o mal tem a sua origem
no interior do próprio ser humano. Os mitos trágicos, por exemplo, supõem
já um destino fatal cuja alteração não está nas mãos do homem; mas, no mito
adâmico, que é um mito fundamentalmente antropológico, é o homem quem,
pela confissão do pecado, se descobre como o autor do mal. O mundo dos mitos
está, pois, polarizado por duas tendências ou convicções: segundo uma delas,
o mal é anterior ao ser humano, introduz-se do exterior (concepção trágica) e,
segundo a outra, o mal é o resultado de uma escolha do homem (concepção
ética), estando enraizado numa desproporção ontológica. Esta polaridade é já
patente nos símbolos primários que constituem o primeiro nível de expressão
da consciência culpada, como veremos de seguida.
Como dissemos, Ricoeur sustenta que há uma linguagem elementar que se
encontra na base das primeiras narrativas míticas. Na base dos símbolos pri-
mários há uma experiência vivida do mal que se manifesta pela confissão. A
mancha, o pecado e a culpabilidade são a expressão simbólica da experiência
vivida do mal praticado; por intermédio de tais símbolos, é possível reproduzir
a experiência concreta em um nível primário. Deste modo, a reflexão filosófica,
antes de avançar para a especulação, terá de partir da experiência viva do ser
humano e do respectivo sentido expresso pela linguagem.

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Se o mal é anterior ao homem, se lhe pré-existe, como conciliar, então, a


visão da anterioridade do mal com a visão da falibilidade humana como possi-
bilidade do mal e com a consequente prática do mal por parte do homem?
Comecemos, pois, por dizer que a clarificação da questão colocada implica
fazer um percurso pelo mundo dos símbolos míticos que tentam regressar à
origem do mal. Os símbolos primários não comportam a dimensão narrativa;
os símbolos míticos, pelo contrário, têm uma dimensão de relato e situam-se
num plano temporal, desenvolvendo-se através da intervenção de personagens,
lugares e tempos fabulosos; referem-se ao começo e ao possível fim de uma
experiência que os símbolos primários testemunham. Nesta perspectiva, pode
afirmar-se que, paradoxalmente, apesar de o mal poder ser anterior ao homem,
sentimos que, de algum modo, começa conosco; é por isso que sentimos a ne-
cessidade de o exprimir, de o dizer por meio da confissão. Neste aspecto, a
confissão do mal pode representar, do ponto de vista simbólico, uma possível
via para tentar eliminá-lo, uma primeira tomada de consciência sem a qual nem
sequer se poderia colocar o problema de ser ou não possível uma escatologia
tendente a pôr-lhe fim. A confissão manifesta-se no interior de narrativas e dis-
cursos simbólicos nos quais emergem símbolos como os da mancha, do desvio,
fardo, etc. e não tanto os de pecado ou de culpabilidade que são, em princípio,
elaborações posteriores. A confissão aponta, pois, para a ideia de liberdade.
Mas, ao mesmo tempo que a confissão do mal é o reconhecimento da liberdade
e da responsabilidade, constitui também o reconhecimento dos limites de uma
visão moral da liberdade humana, dado que a confissão implica a consciência
do caráter injustificável do mal. Se, de fato, se pode dizer que o homem exerce
o seu poder de livre-arbítrio ao escolher o mal, também se pode afirmar que
a liberdade se volta contra si mesma, isto é, o livre-arbítrio converte-se num
servo-arbítrio. No plano teórico-racional parece que estamos perante um pro-
blema de difícil solução. Daí que Ricoeur sustenha a necessidade de recorrer ao
plano simbólico e à interpretação.
De fato, o nó de todo o problema hermenêutico está na articulação entre
o discurso como acontecimento, a sua fixação no texto e os seus respectivos
sentidos. Efetivamente, as significações do discurso representam a superação
dos próprios acontecimentos experienciados, uma vez que estão dependentes
de múltiplas interpretações.

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Hermenêutica do discurso: a pluridiversidade de sentidos

A transição da hermenêutica dos símbolos para a hermenêutica do discurso


não representa, na nossa perspectiva, uma ruptura no pensamento metodológico
de Ricoeur, mas uma ampliação. De fato, o discurso é, também, simbólico – no
sentido que Cassirer lhe atribui – e toda a experiência humana tem na sua base
um caráter linguístico e, enquanto tal, pode ser apreendida em termos simbólicos
e metafóricos (estes últimos considerados, também, como formas linguísticas).
Neste sentido, os diversos níveis da experiência humana manifestam-se e cons-
tituem uma semântica4 que só a hermenêutica filosófica pode compreender.
O projeto de Ricoeur de constituição de uma poética da vontade apresenta-se
como uma segunda revolução copernicana. O discurso é um acontecimento da lin-
guagem. É o que se dá quando alguém, ao tomar a palavra, se dirige ao outro numa
situação de interlocução e tem por finalidade expressar-lhe o sentido de algo.
Ao contrário do que acontece na linguística da língua, que tem por base o
signo, a linguística do discurso edifica-se sobre a frase. É esta última que cons-
titui a unidade de base do discurso e o suporte da dialética existente no discurso
entre o acontecimento e o seu sentido. Esta dialética é o ponto de partida para a
teoria do texto (RICOEUR, 1986).
Como acontecimento, o discurso apresenta determinadas características: são
os critérios da textualidade os que o constituem como discurso e nos permitem
distingui-lo da língua, ao mesmo tempo que permitem distinguir a linguagem
escrita da linguagem oral. Nesta perspectiva, o discurso realiza-se sempre no
tempo presente e remete para um locutor através do uso de marcadores da sub-
jetividade, como são os pronomes pessoais. Além disso, o discurso é intencio-
nal, isto é, refere-se a um mundo que pretende descrever ou significar impli-
cando sempre, direta ou indiretamente, uma situação de interlocução, ou seja, a
existência de outra pessoa com a qual se trocam mensagens. Ao mesmo tempo,
o sistema da língua é algo virtual e estranho ao tempo; não requer a existência
de um sujeito na sua concreção e os seus signos remetem apenas para outros
signos no interior do mesmo sistema. Portanto, o sistema da língua é, acima de
tudo, uma condição preliminar para que seja possível a comunicação, uma vez
que subministra os códigos que a tornam possível.
Se todo o discurso é um acontecimento, tudo é compreendido como significa-
ção (RICOEUR, 1986). Deste modo, Ricoeur introduz-nos na dialética existente

4 Se Ricoeur fala de uma semântica do desejo na sua referência à psicanálise, será legítimo, do
mesmo modo, em nossa opinião, falar de uma semântica da experiência. Assim, a gramática da
vida envolve uma semântica da experiência e da existência.

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entre o acontecimento da linguagem e o seu sentido. Não é já o acontecimento


fugidio do discurso que se trata de compreender, mas o que dele permanece, isto
é, o seu significado durável, o que é dito através dele. É na linguística do discur-
so e não no plano da língua que o acontecimento e a significação se articulam
ultrapassando-se, deste modo, o acontecimento na significação. É, de fato, este
distanciamento entre o dizer e o dito que constitui a base do problema herme-
nêutico. Mas a função hermenêutica do distanciamento torna-se mais explícita
e evidente na transição do discurso oral para o discurso escrito, isto é, quando o
discurso se converte em texto. Neste âmbito, a interpretação, seja do texto escrito
ou do “texto” não escrito transforma-se em produção de sentido (GISEL, 1970).
Como se disse, o acontecimento do discurso é de natureza temporal, realiza-
-se no presente e, por isso, aparece e desaparece. Daí que se coloque o problema
da sua fixação – que pretende fazer do discurso algo atemporal – e, sobretudo,
o do seu significado. O que se pretende fixar não é tanto o acontecimento que o
discurso evoca, mas a sua significação.
A partir daqui, deixa de ser importante o autor do texto, passando a sê-lo a
interpretação. Partindo desta base, do ponto de vista hermenêutico, pode dizer-
-se que ler um livro é considerar o seu autor como já morto e a obra como pós-
tuma. De fato, é quando o autor morre que se pode dizer que a sua relação com
o livro se torna completa e, de algum modo, intacta. (RICOEUR, 1986).
Do mesmo modo, no texto escrito já não é possível saber qual foi a intenção
do autor e os múltiplos significados do texto podem não coincidir com o que o
autor quis dizer. O significado textual e o significado mental têm agora desti-
nos diferentes. De fato, o que Gadamer chama “a coisa do texto” subtrai-se ao
horizonte intencionalmente finito do seu autor; no entanto, por meio da escrita,
o mundo do texto pode fazer explodir o mundo do autor (RICOEUR, 1986).
Nesta perspectiva, o texto representa uma abertura a mundos possíveis que o
homem pode habitar ampliando-se, assim, o seu horizonte de sentido. Por outro
lado, a fixação do discurso na escrita destrói a situação dialógica que caracteriza
a oralidade e inaugura uma nova relação: o discurso passa a dirigir-se a todo e
possível leitor. O distanciamento que o próprio texto introduz é uma condição
importante para que possa dar-se uma apropriação mais fecunda por parte dos
possíveis leitores. Tendo em conta que também o texto é um conjunto de sím-
bolos de múltiplos sentidos que fazem referência a realidades extralinguísticas
(RICOEUR, 1969) que apontam para diversos referentes, só pela hermenêutica
e pela diversidade de hermenêuticas é possível a abertura do texto à realidade
existencial. (RICOEUR, 1969, p. 67).

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Definitivamente, pode dizer-se que a noção de acontecimento do discurso


– que procede da prática efetiva da língua a qual, por sua vez, se concretiza na
palavra –, ganha sentido a partir do momento em que é fixado pela escrita e, a
partir daí, pode ser suscetível de múltiplas interpretações. A língua é ultrapas-
sada pela palavra no discurso como acontecimento. No discurso, por sua vez,
o acontecimento ultrapassa-se a si mesmo na significação; esta é superada pela
sua fixação que é operada pela escrita. Finalmente, o próprio sentido do texto
vai para além de si mesmo num novo acontecimento do discurso que é a sua
própria interpretação. Deste ponto de vista, compreender um texto não é com-
preender a intenção do autor, mas produzir um novo acontecimento do discurso
que já não se pode identificar com o acontecimento inicial.
O texto narrativo proporciona-nos uma história com autonomia própria.
Essa história representa uma abertura a um mundo possível, na medida em que
é um discurso fixado na escrita que se tornou, de algum modo, autônomo em
relação ao seu autor e cuja mensagem se pode dirigir a um leitor qualquer, ao
ser a sua referência situacional superada, sendo substituída por um mundo. A
narrativa é um discurso que pode abrir-se a diversos seres humanos na sua res-
pectiva experiência solitária no mundo.
Se a narrativa é esta complexa intriga na qual as ações, os personagens, o
espaço e o tempo se ligam, desprendendo-se daí um sentido independente em
relação à vontade de quem o enuncia, teremos que considerar cada texto como
um mundo revelador de um mundo singular. Tal mundo é susceptível de múl-
tiplas interpretações, inseridas nos correspondentes mundos dos leitores. No
entanto, nem toda a interpretação pode ser considerada como necessariamente
válida; de acordo com o princípio popperiano, implícito tanto na perspectiva de
Umberto Eco como na de Ricoeur, algumas interpretações devem ser anuladas
a partir de uma análise da estrutura do texto. Nesta perspectiva, sustenta-se a
necessidade da existência de uma relação dialética entre a explicação e a com-
preensão, donde resulta uma interpretação do texto que não é, senão, uma con-
jectura defensável face a outras conjecturas. Ricoeur acrescenta a este respeito:

Para o hermeneuta, é o texto que possui um múltiplo sen-


tido; (...) Ora, este problema do múltiplo sentido não é
já hoje só o problema da exegese, no sentido bíblico ou
inclusivamente profano da palavra; é em si mesmo um
problema interdisciplinar que eu quero em primeiro lugar
considerar num único nível estratégico, num plano ho-
mogéneo, o do texto. (...) Na hermenêutica não há clau-
sura do universo dos signos (RICOEUR, 1969, p. 66-67).

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O que possibilita as diversas interpretações e o confronto entre elas é, efe-


tivamente, a abertura da linguagem a múltiplos sentidos e o fato de o texto ser
também uma abertura a uma diversidade de sentidos; é a riqueza do texto que
nos conduz para além dos limites de referência aos quais a situação faz apelo.
A linguagem é abertura ao mundo e não só a situações concretas. Neste sentido,
o mundo do homem é constituído por todas as referências abertas pelos textos,
sejam estes poéticos, míticos ou de outra índole.
Apesar de Ricoeur considerar que as narrativas míticas devem ser interpreta-
das respeitando o seu simbolismo originário, a verdade é que, segundo a teoria
do texto do próprio Ricoeur, a pluralidade de sentidos que estas narrativas pos-
sibilitam representa uma maior amplitude para a compreensão do ser humano
no mundo. Como afirma Manuel Maceiras, na “apresentação da edição caste-
lhana” de Temps et récit:

Os mitos já não têm uma estreita relação com as classi-


ficações naturais e sociais; a sua reinterpretação é pos-
sível em lugares e tempos muito distintos, adquirindo
significado na história que nestes se realiza: a sua com-
preensão requer uma nova abordagem intelectual, que é
a compreensão hermenêutica. Neste trabalho articulam-
-se as três historicidades: dos acontecimentos fundantes
ou tempo oculto, da interpretação que vive pelos escri-
tores sagrados, que constitui a tradição, e a historici-
dade da compreensão, a historicidade hermenêutica. A
significação é dada pela sequência completa ligada ao
tempo e ao intérprete tal como ao autor. (MACEIRAS,
1987, p. 24-25)

Com efeito, os acontecimentos, ainda que primordiais, só ganham sentido se


puderem ser integrados na história existencial do homem e, em última instân-
cia, na sua experiência concreta. O tempo de que nos falam as narrativas míti-
cas, tempo atemporal, pode, pela interpretação, ser transposto para um tempo
histórico. Tempo histórico e tempo mítico, podem, por meio da hermenêutica,
entrecruzar-se num tempo do sentido. (GOMES, 2009). É nesta confluência
temporal que pode emergir o sentido da própria existência humana.

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Considerações Finais

É pela linguagem que o ser humano expressa os seus pensamentos, os seus


desejos, os seus medos. O homem é linguagem. O símbolo e as narrativas mí-
ticas, também elas simbólicas, depois de interpretados, são meios pelos quais
se pode compreender a condição humana, os seus limites e possibilidades exis-
tenciais. Os símbolos são verdadeiras provocações ao pensamento porque os
sentidos simbólicos são inesgotáveis. É necessário inseri-los em narrativas para
que possam, de algum modo, ser apropriados pela reflexão filosófica. O sím-
bolo dá que pensar, expressão utilizada por Ricoeur em La Symbolique du mal.
Todavia, não se trata, na última fase do pensamento hermenêutico do autor, de
descobrir a estrutura comum a todos os símbolos, mas tomar o símbolo como
uma expressão de duplo sentido, susceptível de múltiplas interpretações. Se o
símbolo é uma provocação ao pensamento, o mistério nele implícito constitui
um “alimento” e estímulo para a filosofia e para a própria vida. A abertura da
linguagem a múltiplos sentidos e o fato de o texto ser também uma abertura
a uma diversidade de sentidos é o que possibilita as diversas interpretações
e o conflito entre elas. A questão da verdade não é o resultado de uma inter-
pretação, mas do conflito entre elas. Daí a importância atribuída por Ricoeur
a uma hermenêutica da suspeita que tem como referência os grandes autores
que, de algum modo, estabeleceram rupturas com a tradição e com o monoli-
tismo interpretativo e nos ensinaram que, efetivamente, a verdadeira realidade
se encontra oculta e que, por isso, carece de interpretação: Marx, Nietzsche e
Freud. É a riqueza do texto que nos conduz para além dos limites de referência
aos quais a situação faz apelo. A linguagem é abertura ao mundo e não só a
situações concretas. Neste sentido, o mundo do homem é constituído por todas
as referências abertas pelos textos, sejam estes poéticos, míticos ou de outra ín-
dole. A ontologia proposta por Ricoeur, ontologia quebrada, ganha maior den-
sidade por intermédio do percurso transitório entre a hermenêutica simbólica e
a hermenêutica do discurso restauradora do sentido.

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Recebido em: 04.03.2018 Aprovado em: 30.09.2018
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