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Introdução
1 O texto sagrado é o lugar onde se diz o sagrado. Esse dizer é indireto e é decifrável por inter-
médio do duplo sentido de um texto que nos comunica uma certa condição ontológica. O duplo
sentido do texto bíblico apela a uma interpretação que pode revelar a posição do ser humano no
seio de uma totalidade, que é o cosmos e, ao mesmo tempo, perante o divino.
O ponto de partida de Ricoeur não é a especulação, uma vez que esta não
permite captar diretamente a experiência espontânea das vivências humanas.
Começa, então, pelos símbolos primários e pelos mitos; os mitos são narrati-
vas tradicionais que remetem para os tempos primordiais e contam-nos como
tudo começou a ser, desde o cosmos até à ação e ao pensamento humanos.
O mito, enquanto mito, é uma narrativa e não propriamente uma explicação
mas, enquanto relato, revela uma potencialidade exploratória e compreensiva.
Através dele pode-se compreender a totalidade da realidade humana e a sua
relação indissolúvel com o cosmos e com a transcendência. Mas o mito e a sua
linguagem simbólica, tendo em conta os seus caracteres emotivo e fantástico,
não podem inserir-se diretamente no discurso filosófico, o que implica a neces-
sidade de uma “desmitologização” do mito – no sentido de uma mera captação
racional e explicativa – entendendo-o, então, a partir do símbolo, dos símbolos
primários. A interpretação hermenêutica não pode penetrar na a-historicidade
do tempo mítico e na consciência cultural da época primitiva. É, pois, pela via
da desmitologização que se pode contatar a função simbólica do mito, com a
sua verdadeira e profunda realidade:
Por este motivo, Ricoeur considera que é mais correto falar de interpretação
alegorizante, uma vez que a alegoria é mais uma modalidade da hermenêuti-
ca do que uma interpretação espontânea de signos. Por outro lado, o símbolo,
susceptível de uma interpretação, não se relaciona com a acepção lógica do
símbolo. A descrição eidética, proposta na criteriologia do símbolo, opõe, cla-
ramente, o símbolo lógico e o hermenêutico: o primeiro, não tem conteúdos, é
simplesmente formal e pode referir-se a uma realidade abstrata; o segundo, pelo
contrário, tem múltiplos conteúdos e é doação de sentidos.
Finalmente, a criteriologia propõe a distinção entre o símbolo e o mito.
Como afirmamos, Ricoeur propõe, desde o início do seu processo metodoló-
gico, uma mítica que se relaciona com o estudo do problema do mal através
de uma classe particular de mitos, a saber: os mitos do princípio e do fim do
mal. Se é verdade que o mito enquanto narrativa é uma simbologia que se
exprime pela linguagem e que, por isso, pode ser inserida na reflexão filo-
sófica, também é verdade que há uma linguagem que é anterior aos próprios
mitos: a linguagem da confissão. Os mitos são símbolos de segundo grau e a
linguagem da confissão inscreve-se nos símbolos de primeiro grau. Antes das
narrativas míticas, o homem manifesta, pela confissão, as suas experiências
externas e internas. Estamos, então, no âmbito dos símbolos primários tal
como são apresentados em La symbolique du mal. Quando Ricoeur distingue
símbolo e mito, há que ter em conta que, por símbolo, entende, por um lado,
especialmente, os símbolos de primeiro grau que emergem na linguagem da
confissão do mal, anterior, portanto, ao desenvolvimento mítico; por outro
lado, o mito é concebido como uma espécie de símbolo, um símbolo secun-
dário que deriva dos símbolos primários. Ricoeur afirma a este respeito:
Parece que estamos perante uma certa visão do mundo na qual o homem não
pode ser apreendido a não ser a partir de uma certa aventura que o constitui como
homem. De fato, esta aventura não pode ser realmente vivida sem a dimensão do
mistério; o mistério de Deus, do mundo, da vida, do destino, do espaço e do tem-
po, do limite e do infinito, do princípio e do fim. O inescrutável mistério do mal
é, definitivamente, um dos que maior inquietude e temor provocam no homem.
Além disso, o mistério não tem que ser entendido como algo alheio e distante,
mas está presente, de fato, na vida cotidiana, de modo que o ser humano nunca
poderia iludi-lo completamente. O mistério é, sem dúvida, um enigma, mas é, ao
mesmo tempo, uma força que move o homem em direção à sua compreensão.
O problema do mal supõe uma ambiguidade de base: o mal só é mal porque
o ser humano o introduz, o pratica; mas “no próprio coração da prática do mal
pela liberdade revela-se um poder de sedução pelo mal anterior, pré-existente
(déjà là) que a antiga mancha já havia manifestado de um modo simbólico”
(RICOEUR, 1988, p. 287). A simbólica revela-nos uma certa exterioridade do
mal, algo que afeta o ser humano a partir do exterior. Mas, ao mesmo tempo,
a dinâmica simbólica é animada por uma confrontação fundamental: por um
lado, a origem do mal é o resultado de uma catástrofe ou de um conflito originá-
rio anterior ao homem que o mito nos revela; por outro, o mal tem a sua origem
no interior do próprio ser humano. Os mitos trágicos, por exemplo, supõem
já um destino fatal cuja alteração não está nas mãos do homem; mas, no mito
adâmico, que é um mito fundamentalmente antropológico, é o homem quem,
pela confissão do pecado, se descobre como o autor do mal. O mundo dos mitos
está, pois, polarizado por duas tendências ou convicções: segundo uma delas,
o mal é anterior ao ser humano, introduz-se do exterior (concepção trágica) e,
segundo a outra, o mal é o resultado de uma escolha do homem (concepção
ética), estando enraizado numa desproporção ontológica. Esta polaridade é já
patente nos símbolos primários que constituem o primeiro nível de expressão
da consciência culpada, como veremos de seguida.
Como dissemos, Ricoeur sustenta que há uma linguagem elementar que se
encontra na base das primeiras narrativas míticas. Na base dos símbolos pri-
mários há uma experiência vivida do mal que se manifesta pela confissão. A
mancha, o pecado e a culpabilidade são a expressão simbólica da experiência
vivida do mal praticado; por intermédio de tais símbolos, é possível reproduzir
a experiência concreta em um nível primário. Deste modo, a reflexão filosófica,
antes de avançar para a especulação, terá de partir da experiência viva do ser
humano e do respectivo sentido expresso pela linguagem.
4 Se Ricoeur fala de uma semântica do desejo na sua referência à psicanálise, será legítimo, do
mesmo modo, em nossa opinião, falar de uma semântica da experiência. Assim, a gramática da
vida envolve uma semântica da experiência e da existência.
Considerações Finais