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FAZER CENAS
                                                                     
Arte e Técnica na Escrita de Cenas de Cinema

JOÃO NUNES

Uma Edição
QUARTO 237
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Direitos
“Fazer Cenas: Arte e Técnica na Escrita de Cenas de Cinema”

Autor: João Nunes

Uma Edição Quarto 237

E-mail: joao@joaonunes.com

Site: http://joaonunes.com

Capa e paginação: J. L. Coelho

Esta obra está protegida pela Lei e não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que

seja o meio utilizado, sem a autorização expressa do Autor e Editor. Qualquer transgressão à Lei

do Direito de Autor será passível de procedimento judicial.

O texto deste livro reflete apenas as opiniões do autor. Nenhum animal foi morto durante a sua

escrita.

© João Nunes - Quarto 237, 2017


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Índice

Índice ...............................................................................................................................................4
Prefácio ............................................................................................................................................5
Introdução .......................................................................................................................................6
O que faz o guionista ......................................................................................................................8
O que é um guião .........................................................................................................................10
A aparência de um guião ..............................................................................................................12
Os elementos do drama ................................................................................................................15
Uma cena é uma mini-estória ......................................................................................................18
"O SILÊNCIO DOS INOCENTES" ..........................................................................................20
O memorando de David Mamet ..................................................................................................28
"CHINATOWN" ..........................................................................................................................35
Um artigo de John August ............................................................................................................43
"ROMANCE PERIGOSO" .........................................................................................................49
Os Arquétipos ..............................................................................................................................59
O formato do guião ......................................................................................................................63
Conclusão .....................................................................................................................................73
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Prefácio

Há dois anos atrás, quando estava em Angola, alguns amigos que integram o coletivo de

produção audiovisual Geração 80, convidaram-me a dar uma aula sobre a escrita de uma cena

de cinema, no âmbito do seu programa interno de formação.

"Fazer Cenas: Arte e Técnica na Escrita de Cenas de Cinema" é uma evolução do

conteúdo que preparei para essa ação, adaptado ao formato escrito, e revisto e aumentado com

algum conteúdo adicional.

Os meus agradecimentos vão pois para a Tchiloia Lara, Jorge Cohen e Mário Bastos, os

mentores da iniciativa, e para todos os jovens participantes nessa aula, tão cheios de sonhos e de

energia, que tanto me inspiraram e ensinaram.


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Introdução

Neste pequeno livro "Fazer Cenas: Arte e Técnica na Escrita de Cenas de Cinema"

vamos aprender as noções básicas de uma parte essencial do trabalho do guionista: escrever uma

cena.

Na realidade, escrever um argumento, guião, ou roteiro (vamos usar as três palavras como

sinónimos, por simplicidade), é muito mais do que que a escrita das cenas. Estas são apenas o

resultado final de um trabalho de desenvolvimento de personagens, relações, emoções, eventos e

ações.

Além disso, as cenas não são independentes entre si. Encadeiam-se umas nas outras,

como elos de uma corrente, cada uma dependendo das que vieram antes, e influenciando as que

se lhe seguem.

Mas, para o efeito dos objectivos deste livro, vamos olhar apenas para esta etapa

específica do trabalho do guionista: escrever a cena individual. Uma etapa que, em média, se

repete duzentas vezes em cada guião.


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Cada cena é um desafio gigante, com exigências próprias, que combina em partes iguais a

arte do criador de estórias com a técnica do artesão das palavras. Muitos dos princípios

fundamentais da escrita de uma boa cena, que vamos aprender aqui, são comuns ao

desenvolvimento de uma boa estória.

Afinal de contas, drama é drama, seja ao nível microscópico da cena, seja ao nível

macroscópico do guião.
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O que faz o guionista

O guionista, ou roteirista no Brasil, é o profissional de cinema ou televisão a quem cabe a

responsabilidade de criar a estória de um filme ou outra obra audiovisual, estruturá-la e,

finalmente, escrevê-la, incluindo as descrições de todas as acções e os diálogos de todos os

personagens.

Com a excepção do raríssimo filme experimental, nenhum projecto audiovisual é filmado

sem que haja um guião final - o chamado shooting script.

Como tal o guionista é um dos primeiros membros da equipa a trabalhar num projecto. E

sem ele terminar o seu trabalho, pouco mais pode ser feito. Nem o produtor consegue arranjar

financiamento para o filme, nem o realizador pode planear a forma de o filmar, nem os actores

podem começar a desenvolver os seus personagens.

O guionista pode trabalhar por iniciativa própria, criando o chamado roteiro especulativo

(ou spec script), ou por encomenda de uma empresa de produção audiovisual. Num caso ou

noutro, a base do argumento pode ser uma ideia original, ou a adaptação de alguma estória ou
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material pré-existente (de que se deverão ter os direitos): um romance ou peça de teatro, banda

desenhada ou conto curto, jogo de vídeo ou, como no filme "Lego", um brinquedo de crianças.

O resultado final será sempre o documento de que falaremos a seguir.


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O que é um guião

Um argumento, guião ou roteiro, é um documento escrito que descreve sequencialmente

as cenas que compõem um filme e, dentro de cada cena, as acções e diálogos dos personagens, e

todos os aspectos visíveis e audíveis relevantes que se poderão ver na tela.

Na prática, o guião de uma longa metragem é um documento impresso, que tem

normalmente entre 80 e 130 páginas. Se for escrita num formato correcto, cada página do guião

corresponde, grosso modo, a um minuto de filme. Este é um valor médio que, obviamente,

dependerá de muitos factores, tais como o tipo de estória, a relação entre ação e diálogos, e até o

estilo de direção que o realizador adotar.

Mas a relação 1 página=1 minuto é geralmente válida, e ajuda-nos a balizar as dimensões

da estória que estamos a desenvolver. Se o nosso guião tiver 300 páginas, saberemos que vai ser

muito difícil de vender, pois será um filme muito grande; se tiver apenas 50, dificilmente poderá

ser convertido numa longa-metragem.


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O guião não é o único documento produzido pelo guionista. Ele poderá também escrever

sinopses, escaletas e tratamentos, que são documentos que ajudam a planear a estória e entender

o filme.

O formato do guião pode variar de país para país, e até de produtora para produtora,

mas todos os guiões têm algumas coisas em comum.


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A aparência de um guião

Uma página de um argumento de cinema tem normalmente a aparência do exemplo

apresentado de seguida, retirado do guião que escrevi para o filme "O Cônsul de Bordéus".
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Podemos reconhecer neste exemplo alguns dos elementos essenciais de um guião:

- Os CABEÇALHOS, que definem onde cada cena começa (EXT. RUA DE

BORDÉUS - TARDE);

- Os parágrafos de DESCRIÇÃO DA ACÇÃO, onde é descrito tudo o que compõe a cena

e o que nela vai acontecer - incluindo cenários, personagens, acções e movimentos, sons,

efeitos, etc.;

- Os NOMES dos personagens que falam (ESTHER e AARON);

- Os seus DIÁLOGOS;

- Algumas indicações específicas entre PARÊNTESES. Por exemplo: (gritando);

- E, opcionalmente, as TRANSIÇÕES entre as cenas (não presentes neste exemplo).

Mais adiante iremos ver cada um destes elementos com mais detalhe, pois precisaremos

entendê-los bem para poder escrever correctamente uma cena.

Mas primeiro vamos fazer um pequeno exercício prático: folheie as páginas de um jornal

recente, para procurar notícias que tenham o potencial de dar uma boa estória. Podem vir de

qualquer secção do jornal - do noticiário nacional e internacional, do crime, do desporto, até da

necrologia. Seleccione a mais promissora. Tente identificar porque é que acha que essa notícia

daria um bom filme, e escreva meia dúzia de linhas sobre isso.


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Os elementos do drama

O mais provável é que, na selecção de notícias que fez no exercício anterior, sob o critério

subjectivo de que "dariam uma boa estória", encontremos alguns elementos em comum:

- Centram-se numa pessoa ou num número reduzido de pessoas;

- Descrevem algum tipo de problema ou dificuldade séria que essas pessoas enfrentam;

- Mostram como essa pessoa ou pessoas resolvem, ou tentam resolver, esse problema.

Isto acontece porque todos nós temos uma percepção instintiva dos elementos dramáticos

que compõem uma estória interessante.

Alguns de nós - os bons contadores de estórias - têm mais facilidade em aplicar esses

elementos no dia a dia, mas todos temos a capacidade de os identificar naturalmente.

Essa percepção não vem apenas do facto de estarmos permanentemente mergulhados em

estórias, desde que nascemos e ao longo de toda a nossa vida. Vem da nossa própria identidade

mais íntima como seres humanos. Os nossos antepassados, sentados em redor da fogueira há

muitos milhares de anos, provavelmente ouviam estórias com os mesmos componentes essenciais

sas nossas estórias atuais.


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Uma estória satisfatória deve, pois, ter alguns elementos, que reconhecemos e apreciamos

naturalmente:

• Um protagonista ou protagonistas - alguém que conduz a ação;

• Um problema ou desafio que esse protagonista enfrenta;

• Consequências graves, para si ou para outros, se não o conseguir resolver;

• Dificuldades e obstáculos que encontra no caminho da resolução;

• E, finalmente, um resultado, positivo ou negativo, mas definitivo.

Sem estes elementos não temos uma estória clássica; uma estória que satisfaça

integralmente as nossas necessidades emocionais de identificação e projeção.

Uma boa estória é aquela que mantém o espectador permanentemente na expectativa do

que vai acontecer a seguir. Essa capacidade de manter o espectador curioso é o que caracteriza

um bom guionista - aquele que tem um entendimento apurado dos mecanismos dramáticos e da

psicologia do espectador.

A criação de situações e oportunidades de conflito tem um papel fundamental para

conseguir manter essa atenção.

"Todo o drama é conflito. Sem conflito não há acção. Sem acção não há

personagem. Sem personagem não há estória. E sem estória com certeza que não

há guião." -- Syd Field

Sem forças antagónicas em jogo; sem um protagonista que quer algo, e antagonistas e

obstáculos que o atrapalham; sem recompensas a receber e dificuldades a ultrapassar; sem luta,

dor e sofrimento, não há drama. E sem drama não há interesse, nem mesmo numa comédia. As

melhores comédias têm, debaixo da capa açucarada do riso, os mesmos ingredientes dramáticos

que qualquer outro filme.


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Mas o conflito não basta. São também precisas surpresas.

Conflito sem surpresas leva-nos ao território da agitação estéril e entorpecente; surpresas

sem conflito conduzem-nos a filmes gratuitos e desinteressantes. A combinação inteligente desses

dois elementos é que mantém o espectador preso à nossa estória.

Drama = Conflito + Surpresas.


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Uma cena é uma mini-estória

Uma cena bem construída desempenha três funções dentro de um guião:

• Faz avançar a estória;

• Aumenta a tensão dramática;

• Revela um pouco mais sobre a personalidade dos seus intervenientes.

Idealmente, cada cena deve combinar estes três factores mas muitas vezes pode incluir

apenas dois. Em certos casos, muito especiais, até pode cumprir apenas uma destas funções. Mas

se uma cena não desempenhar nenhum destes papéis na estrutura do nosso guião, é a primeira

candidata a ser cortada e sair.

Para cumprir com estas altas expectativas uma cena tem de ter elementos em comum

com uma boa estória. É como uma miniatura da estória maior, em que estão em funcionamento

os mesmos elementos dramáticos que fazem o sucesso de qualquer narrativa.

Devemos, pois, procurar incluir na cena elementos de conflito e de surpresa que

garantam a sua plenitude dramática.


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É isso que vamos desenvolver na secção seguinte. Mas primeiro vamos ler um excerto de

uma das mais memoráveis cenas de tempos recentes, retirada do guião de "O Silêncio dos

Inocentes", escrito por Ted Tally com base no romance de Thomas Harris.
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"O SILÊNCIO DOS INOCENTES"

por

Ted Tally

Baseado no romance de

Thomas Harris

INT. CORREDOR DO DR. LECTER - DIA

PLANO EM MOVIMENTO - acompanhando Clarice, enquanto os seus


passos ECOAM. No alto, à sua direita câmaras de vigilância.
À sua esquerda, celas. Algumas são almofadadas, com
estreitas fendas de observação, outras são normais,
gradeadas. Nas sombras os ocupantes movem-se, MURMURANDO...
Subitamente uma figura escura na penúltima cela lança-se na
sua direcção, esmagando o rosto grotescamente contra as
grades, e sibila.

FIGURA ESCURA
C-consigo chhheirar a tua buceta!

Clarice retrai-se momentaneamente, mas continua a avançar.

A CELA DO DR. LECTER

entra lentamente no seu campo de visão... Atrás da sua


parede frontal gradeada há uma segunda barreira com uma
robusta rede de nylon... Algumas poucas mobílias
aparafusadas ao chão, muitos livros de capa mole e papéis.
Nas paredes, inúmeros desenhos artísticos,
extraordinariamente detalhados, na sua maior parte de
paisagens urbanas europeias, a lápis e carvão.

Clarice pára a uma distância respeitosa das grades, e limpa


a garganta.

CLARICE
Dr. Lecter... O meu nome é Clarice
Starling. Posso falar consigo?

O Dr. Hannibal Lecter está a descansar na sua cama, de


pijama branco, a ler uma Vogue italiana. Vira-se, avaliando-
a... Um rosto que não vê o sol há tanto tempo que parece ser
sido passado na lixívia - exceto os olhos brilhantes, e uns
lábios vermelhos e húmidos. Levanta-se suavemente e vem
colocar-se à frente dela; o perfeito anfitrião. A sua voz é
suave, educada.
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DR. LECTER
Bom dia.

INTERCALA ENTRE OS DOIS

conforme Clarice se aproxima mais um pouco.

CLARICE
Doutor, nós temos um problema
difícil nos perfis psicológicos.
Venho pedir a sua ajuda para um
questionário.

DR. LECTER
Sendo que o "Nós" se refere à
Unidade de Ciência Comportamental
de Quantico. Você faz parte do
pessoal do Jack Crawford, imagino.

CLARICE
Faço, sim.

DR. LECTER
Posso ver a sua identificação?

Clarice fica surpreendida, mas pesca o seu cartão de


identificação da bolsa, e ergue-o para inspecção. Ele sorri,
tranquilizador.

DR. LECTER
Mais perto, por favor... Mais -
perto...

Ela obedece a cada indicação, tentando esconder o medo. As


narinas do Dr. Lecter erguem-se, conforme ele aspira o ar,
suavemente, como um animal. Depois sorri, e olha o cartão.

DR. LECTER
(continuando)
Isso expira numa semana. Você não é
FBI a sério, pois não?

CLARICE
Eu - ainda estou em treino na
Academia.

DR. LECTER
O Jack Crawford enviou-me uma
estagiária?
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CLARICE
Estamos a falar de Psicologia, não
da Polícia. O doutor não pode
avaliar por si mesmo se eu sou
qualificada?

DR. LECTER
Mmmmm... Isso é muito ardiloso da
sua parte, Agente Starling. Sente-
se. Por favor.

Ela senta-se numa cadeira-escrivaninha dobrável de metal.


Ele espera educadamente até ela estar acomodda, e depois
senta-se também, olhando-a com satisfação.

DR. LECTER
Vamos lá, então. O que é que o
Miggs lhe disse?
(ela fica baralhada)
O "Miggs Múltiplo", na cela do
lado. Ele guinchou-lhe qualquer
coisa. O que é que ele disse?

CLARICE
Disse - "Consigo cheirar a tua
buceta".

DR. LECTER
Estou a ver. Eu, pessoalmente, não
consigo. Você usa creme de pele
Evyan, e às vezes coloca L'Air du
Temps, mas não hoje. No entanto,
trouxe a sua melhor bolsa, não é
verdade?

CLARICE
(pausa)
Sim.

DR. LECTER
É muito melhor que os seus sapatos.

CLARICE
Talvez um dia eles consigam
acompanhar.

DR. LECTER
Não tenho dúvidas disso.

CLARICE
(mexendo-se
desconfortável)
Estes desenhos são seus, Doutor?
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DR. LECTER
Sim. Aquele é o Duomo, visto do
Belvedere. Conhece Florença?

CLARICE
Todo aquele detalhe, só de memória?

DR. LECTER
A memória, Agente Starling, é o que
eu tenho em vez de uma janela.

Uma pausa, e depois Clarice tira o questionário da sua


pasta.

CLARICE
Dr. Lecter, se fizer o favor de
considerar -

DR. LECTER
Não, não, não. Estava a ir tão bem,
cortês e receptiva à cortesia,
tinha conseguido estabelecer
confiança admitindo a verdade
embaraçosa acerca do Miggs, e agora
essa passagem desajeitada para o
questionário. Assim não chega lá. É
estúpido e maçador.

CLARICE
Só lhe estou a pedir que olhe para
isto. Ou o faz ou não o faz.

DR. LECTER
O Jack Crawford deve estar cheio de
trabalho se já anda a pedir ajuda
aos seus estudantes. Muito ocupado
a caçar aquele novo, o Buffalo
Bill... Que grande malandro! O
Crawford mandou-a pedir-lhe a minha
opinião sobre ele?

CLARICE
Não, eu vim porque precisamos -

DR. LECTER
Quantas mulheres já ele usou, o
nosso Bill?

CLARICE
Cinco... até ao momento.

DR. LECTER
Todas esfoladas...?
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CLARICE
Parcialmente, sim. Mas, Doutor,
esse é um caso em investigação, e
não estou envolvida. Se puder -

DR. LECTER
Sabe porque lhe chamam Buffalo
Bill? Diga-me. Os jornais não
esclarecem.

CLARICE
Eu digo-lhe se olhar para este
questionário.
(ele reflete, depois
acena)
Começou como uma piada de mau gosto
no departamento de homicídios de
Kansas City. Comentaram ... que
este gostava de esfolar as suas
bossas.

DR. LECTER
Sem graça e sem sentido. Porque é
que acha que ele lhes retira a
pele, Agente Starling? Maravilhe-me
com a sua sabedoria.

CLARICE
Porque o excita. A maior parte dos
assassinos em série guardam algum
tipo de troféus.

DR. LECTER
Eu não guardava.

CLARICE
Pois não. Comia-os.

Um momento de tensão, seguido de um sorriso dele, face a


este pequeno atrevimento.

DR. LECTER
Mostre-me lá isso.

Ela passa-lhe o questionário através da gaveta deslizante


das refeições.

Ele ergue-se, dá uma olhadela, passando desdenhosamente uma


ou duas páginas.
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DR. LECTER
Ó Agente Starling... acha que me
consegue dissecar com este
instrumentozinho rombo?

CLARICE
Não. Tinha só esperança que o seu
conhecimento -

Subitamente, ele empurra a gaveta de volta para ela, com um


CLANG metálico que a faz saltar. A voz dele continua a ser
um agradável ronronar.

DR. LECTER
Você é tãoooo ambiciosa, não é...?
Sabe o que é que você me parece,
com a sua bolsa cara e sapatos
baratos? Parece uma saloia. Uma
saloia bem escovada, esforçada, com
um pouco de gosto... Uma boa
nutrição deu-lhe ossos bem
desenvolvidos, mas nem uma geração
a separa dos saloios miseráveis,
pois não, Agente Starling...? Esse
sotaque que se esforça tanto por
eliminar - pura Virgínia Oeste. O
que era o seu pai, minha querida?
Um mineiro do carvão? Tresandava a
óleo da lamparina...? Ah, sim, quão
depressa os rapazes repararam em
si. Todos aqueles agarranços
aborrecidos e pegajosos, nos bancos
traseiros dos automóveis, enquanto
sonhava em sair dali. Ir a qualquer
lado - sim? Ir até ao fim - para o
F... B... I...

Cada palavra dele atinge-a como um pequeno dardo bem


apontado. Mas ela cerra os lábios e não cede terreno.

CLARICE
Você é muito perceptivo, Dr.
Lecter. Mas é suficientemente forte
para apontar esse alto nível de
percepção a si mesmo? Que tal fazer
isso...? Olhar para si e escrever a
verdade?
(devolve a gaveta)
Ou talvez tenha medo de o fazer.

DR. LECTER
Você é uma durona, não é?
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CLARICE
Um pouco. Sim.

DR. LECTER
E como odeia pensar que possa ser
vulgar. Sim, isso ia doer! Bem,
vulgar você não é, Agente Starling.
Só tem o medo de o ser.
(pausa)
Agora terá de desculpar-me. Bom
dia.

CLARICE
E o questionário...?

DR. LECTER
Um inspetor do Censo uma vez tentou
testar-me. Comi o seu fígado com
favas e um belo chianti... Voe de
volta à sua escola, pequena
Starling.

Recua de costas, e depois regressa à sua cama, ficando tão


imóvel e distante como uma estátua. Frustrada, Clarice
hesita, até que finalmente coloca a bolsa ao ombro e parte,
deixando o inquérito na gaveta. Mas apenas alguns passos
depois, enquanto passa pela

CELA DE MIGGS

Vê a criatura de novo nas grades, sibilando na sua direção.

MIGGS
M-ordi o meu pulso para p-oder
morreeeer! V-ês como está a
sangraaaar?

A figura sombria sacode a palma da mão na direção dela, e -

CLARICE

é salpicada no rosto e pescoço - não com sangue mas com


pálidas gotas de sémen. Solta um pequeno grito, tocando com
os dedos a humidade. Abalada, quase em lágrimas, força-se a
endireitar-se e seguir caminho, procurando um lenço de
papel.

De trás dela, o Dr. Lecter interpela-a, muito agitado.

DR. LECTER (O.S.)


Agente Starling... Agente Starling!
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Clarice abranda, e pára. Treme, mas faz a escolha difícil de


virar-se, caminhar de volta, e parar em frente do -

DR. LECTER

Que está a tremer de raiva. Por um momento a sua expressão


abre-se, e temos um vislumbre do próprio inferno. Mas logo
se recompõe.

DR. LECTER
Não queria que isto lhe tivesse
acontecido. A falta de cortesia é -
simplesmente horrível para mim.

CLARICE
Então, por favor - preencha esse
teste por mim.

DR. LECTER
Não. Mas vou fazê-la feliz... Vou
dar-lhe uma hipótese de fazer o que
mais gosta, Clarice Starling.

CLARICE
E o que será isso, Dr. Lecter?

DR. LECTER
Progredir, é claro.
(pausa)
Vá à Split City. Procure A Sra.
Mofet, uma antiga paciente minha.
M-O-F-E-T...

Vá, agora. Vá.
(um sorriso)
Acho que o Miggs não consegue
repetir, por muito maluco que seja
- não acha?
CORTA PARA:

NOTA: A tradução é de minha responsabilidade. O texto é usado apenas para efeitos didáticos.

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O memorando de David Mamet

"Não há pozinho mágico que salve uma cena chata, inútil, redundante ou

meramente informativa depois de sair dos vossos teclados. A vocês, escritores,

compete garantir que todas as cenas são dramáticas." -- David Mamet

David Mamet é um dos grandes argumentistas vivos. Um dos melhores. Um dos poucos

cujos livros vale a pena ler mais do que uma vez.

No meu blogue tive o prazer de traduzir um memorando que ele escreveu para um grupo

de guionistas que estava a liderar num projecto de televisão.

Esta secção será construída em cima desse texto, que é uma verdadeira aula de escrita de

guião, e merece ser lido e estudado na íntegra.

Diferenciar drama e não-drama

O primeiro ponto que David Mamet salienta é que o objectivo de uma boa cena não é

passar informação; é criar drama. Drama e informação não são sinónimos.

"Mas tomem nota: os espectadores não vão procurar o nosso programa

para ver informação. Vocês não o fariam. Eu não o faria. Ninguém o faria nem o
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fará. Os espectadores só vão sintonizar o nosso programa, e ficar sintonizados,

para ver drama."

Então, segundo Mamet, o que é drama?

"Drama, uma vez mais, é a missão do herói para ultrapassar aquelas coisas

que o impedem de alcançar um objectivo específico e premente."

Estamos aqui completamente de acordo. Como vimos na secção anterior, o drama surge

quando o protagonista - o herói - quer alguma coisa importante e encontra obstáculos no

caminho.

Isso deve acontecer ao nível de cada cena individual. Mamet defende mesmo que antes

de escrevermos uma cena devemos responder a três questões:

- Quem quer o quê?

- O que acontecerá se não o conseguir?

- Porquê neste momento?

Estas questões têm algumas implicações muito interessantes.

A primeira questão realça o facto de que não é só o protagonista que quer alguma coisa

na cena; os restantes personagens, e especialmente os antagonistas, também têm os seus

objectivos próprios. É quando estes objectivos são diferentes ou, melhor ainda, antagónicos, que

surge o conflito e o drama.

A segunda questão deixa em aberto a possibilidade do herói não conseguir o que deseja

ou, pelo menos, de não o conseguir de imediato. Isso é condição necessária para que possam

haver surpresas e para a progressão da estória.


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A terceira questão recorda que uma cena é apenas uma parte da cadeia de eventos que

compõem a estória. É consequência das cenas anteriores, e dá origem às cenas seguintes. Por isso,

numa estória bem pensada e escrita, cada cena tem um momento certo para acontecer.

"Cada cena tem de ser dramática. Isso significa: o personagem principal

tem de ter uma necessidade simples, linear, e urgente que o/a impele a estar

presente na cena. Essa necessidade é a razão para ter aparecido. É a razão de ser

da cena. A tentativa do personagem satisfazer essa necessidade irá, no fim da

cena, conduzir inevitavelmente ao fracasso – é dessa forma que a cena termina.

Isso, o fracasso, é o que nos impele, naturalmente, para a cena seguinte.


Todas estas sucessivas tentativas constituirão, quando juntas, o enredo do

episódio."

Estamos pois perante um mecanismo relativamente simples de entender:

- Na situação inicial da cena os personagens têm objectivos claros e diferentes;

- O conflito nasce da contradição desses objectivos;

- Do resultado desse conflito gera-se uma nova situação, que determina a continuação da

estória.

Por exemplo, na cena que lemos anteriormente de "O Silêncio dos Inocentes", a jovem

agente-estagiária do FBI tem um objectivo: interrogar o perigoso Dr. Hannibal Lecter com vista

a que ele preencha um questionário de perfil psicológico.

Lecter, por sua vez, tem objectivos de curto e longo prazo. No curto prazo, quer apenas

animar um pouco a sua monótona vida de prisioneiro de alta segurança; no longo prazo,

pretende escapar dessa situação.


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O resultado é um jogo de perguntas e respostas em que cada um vai dando alguma

informação, sonegando outra, exigindo outra ainda em troca.

No fim da cena Clarice não consegue o seu objectivo explícito na cena, mas Hannibal

Lecter dá-lhe algo mais valioso: informações sobre o caso de um outro psicopata, levando Clarice

para a trama central do filme. Essas informações fazem avançar a estória para a etapa seguinte.

Cumprem-se dessa forma as três funções da cena: faz avançar o enredo; aumenta a

tensão dramática; e revela muita coisa, tanto sobre o caráter de Clarice como de Lecter.

Qualquer cena, pois, que não faça simultaneamente avançar o enredo e não se sustenha

por si só (ou seja, pelos seus próprios méritos dramáticos) ou é supérflua ou está mal escrita.

Uma coisa muito importante é não confundir conflito com discussão. Na cena analisada

Clarice e Lecter não precisam estar aos berros ou a lutar para que a cena tenha conflito e drama.

As palavras, e as ideias por trás delas, são suficientes para criar uma enorme tensão dramática.

A cena inclui também uma surpresa final, introduzida através de um outro paciente, que

muda a atitude de Lecter e introduz uma importante viragem na cena e na estória.

Recordo: Drama = Conflito + Surpresas

O perigo da exposição

Outra coisa que David Mamet não se cansa de alertar é para o perigo das cenas que se

destinam meramente a passar informação necessária para compreender a estória.

Chama-se a esse tipo de informação EXPOSIÇÃO. Vejamos um exemplo.

Imaginemos que um dos personagens de uma estória é paraplégico e é importante

ficarmos a saber quais as circunstâncias em que ele ficou assim. A maneira errada de o fazer seria

colocar outro personagem a dizer-lhe: "Ó Pedro, que pena teres ficado paraplégico num acidente
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automóvel em que estavas a perseguir o teu pior inimigo. Se não fosse isso podíamos agora ir os

dois atrás dele".

Uma maneira melhor de dar essa mesma informação poderia ser, por exemplo, com a

cena seguinte:

INT. GABINETE DA PJ - DIA

Pedro está sentado na sua cadeira de rodas junto à janela.


Rui aproxima-se dele. Traz um envelope de correio na mão.

Pedro aceita-o, retira a carta do interior, e lê-a em


silêncio, sem demonstrar qualquer emoção. Quando termina
volta a guardar a carta e olha pela janela.

RUI
E então - o que é que diz?

PEDRO
O que é que esperavas?

RUI
Não vão pagar-te? Nem o carro?

Pedro olha para Rui com um sorriso irónico.

PEDRO
O seguro particular não cobre
perseguições policiais. Nem tem de
cobrir, realmente. Não é da conta
deles.

RUI
Filhos da mãe! Se fosse para salvar
a pele, já te pagavam tudo. Filhos
da--

PEDRO
(interrompendo)
Guarda essa raiva para apanhar o
Morais. Vais ter de o caçar
sozinho.

Devolve a carta a Rui.

PEDRO
E usa sempre o carro do
departamento.
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Não será uma cena brilhante, mas transmite exactamente a mesma informação de uma

forma mais natural, subtil e, atrevo-me a dizer, interessante.

A tarefa do guionista é precisamente encontrar maneiras de passar a informação

necessária dentro do contexto da tensão dramática.

"Alguém tem de fazer com que a cena seja dramática. Isso não é tarefa dos

atores (a tarefa dos atores é serem verdadeiros). Não é tarefa dos realizadores. A

tarefa deles é filmar a cena sem complicar e lembrar os atores para falarem

depressa. É a vossa tarefa."

Escrita visual

A pequena cena anterior também serve para demonstrar a preocupação com que Mamet

termina o seu texto:

“Lembrem-se de que estão a escrever para um meio visual. A maior parte

da escrita para televisão, incluindo a nossa, soa a rádio. A câmara pode dar as

explicações por vocês. Deixem-na fazê-lo. O que é que os personagens estão a

fazer – literalmente. Onde é que mexem, o que estão a ler. O que assistem na

televisão, o que estão a ver. Se fingirem que os personagens não podem falar, e

escreverem um filme mudo, estarão a escrever drama de primeira categoria.”

A escrita para cinema e para televisão é uma escrita especial, porque se destina a ser

transformada em imagens, sons, palavras, movimentos, expressões. Devemos pois aproveitar

todos esses recursos para mostrar o que queremos contar.

Há cinéfilos que consideram que o cinema, no que tem de mais específico e original,

terminou com a chegada dos filmes sonoros. É uma posição radical e exagerada, mas não deixa
!34

de ter uma pontinha de verdade. Todos os elementos constituintes da linguagem cinematográfica

já estavam desenvolvidos e eram praticados no início do século XX, nos que agora chamamos de

filmes mudos.

É evidente que o som ampliou as possibilidades dramáticas do cinema, como pudemos

ver na cena de "O Silêncio dos Inocentes", e como veremos na cena com que termina esta

secção. Mas só temos a ganhar se explorarmos todo o potencial narrativo da linguagem

cinematográfica antes de recorrermos às palavras.

Vamos ler então a cena seguinte, retirada do filme "Chinatown", escrito por Robert

Towne, e façamos um pequeno exercício. Aplicar a esta cena o teste com que David Mamet

termina o seu texto:

"Termino com o pensamento nuclear: olhem para a cena e perguntem a vós

mesmos "Está dramática? É essencial? Faz avançar o enredo?"


!35

"CHINATOWN"

Escrito por

Robert Towne

EXT. CASA DO BUNGALOW – ESTRADA DE ADELAIDE

Gittes estaciona o Buick de Mulwray. Corre para a porta da


frente e bate com força.

O empregado chinês abre a porta.

EMPREGADO CHINÊS
Espere aqui.

GITTES
(frase curta em chinês)
Espere você.

Gittes empurra-o e passa por ele. Evelyn, com um aspecto um


pouco cansado mas contente por o ver apressa-se a chegar à
porta. Agarra no braço de de Gittes.

EVELYN
Como estás? Estava a ligar para ti.

Olha para ele, procurando no seu rosto.

GITTES
Sim?

Passam para a sala. Gittes vai olhando em redor.

EVELYN
Conseguiste dormir?

GITTES
Claro.

EVELYN
E almoçaste? O Kyo will pode
preparar alguma coisa.

GITTES
(abruptamente)
Onde é que está a miúda?

EVELYN
Lá em cima. Porquê?
!36

GITTES
Quero vê-la.

EVELYN
...está a tomar banho... porque é
que a queres ver?

Gittes continua a olhar à volta. Vê roupas preparadas para


embalar num quarto que dá para a sala.

GITTES
Vão para algum lado?

EVELYN
Sim. Temos que apanhar o comboio às
4:30. Porquê?

Gittes não responde. Vai ao telefone e marca um número.

GITTES
J. J. Gittes para o Tenente Escobar

EVELYN
O que é que estás a fazer? O que é
que se passa? Disse-te que temos de
apanhar o das 4:30.

GITTES
(interrompendo-a)
Vão perder esse comboio!
(para o telefone)
Lou, vem ter comigo a 1412
Adelaide. é acima do Santa Monica
Canyon... sim,logo que possas.

EVELYN
Porque é que fizeste isso?

GITTES
(um momento, e depois)
Conheces bons advogados de direito
criminal?

EVELYN
(baralhada)
Não...

GITTES
Não te preocupes. Posso recomendar
alguns. São caros mas tu podes
pagar.
!37

EVELYN
(neutra mas com grande
raiva)
De que raio se trata isto?

Gittes olha para ela, e depois tira o lenço do bolso da


frente do casaco. Desdobra-o na mesa da sala, revelando os
óculos bifocais, com uma lente ainda intacta. Evelyn olha-os
sem reacção.

GITTES
Encontrei isto no teu quintal. No
lago dos peixes. Pertenciam ao teu
marido, não é verdade?... não é
verdade?

EVELYN
Não sei. Quero dizer, provavelmente
sim.

GITTES
Com certeza que sim. Foi lá que ele
se afogou...

EVELYN
O que é que estás a dizer?

GITTES
Não está na altura de se mostrar
chocada com a verdade, Sra.
Mulwray. O relatório do médico-
legista prova que ele foi morto em
água salgada. Pode acreditar nisso.
Agora só quero saber quando e como
isso aconteceu. E quero saber antes
do Escobar chegar aqui, porque
gostava de ficar com a minha
licença.

EVELYN
Não sei do que é que estás a falar.
Iso é a coisa mais louca... a coisa
mais maluca que alguma vez...

Gittes está num estado de grande agitação. Levanta-se e


abana-a.

GITTES
Pára! vOu tornar isto mais fácil
para ti. Estavas com ciúmes,
lutaram, ele caiu, bateu com a
cabeça. Foi um acidente mas a sua
miúda viu tudo. Tiveste de lhe
!38

pagar para se calar. Não tens


estômago para lhe fazer mal, mas
tens dinheiro para a silenciar. Sim
ou não?

EVELYN
...não...

GITTES
Quem é ela? E não me venhas com
tretas de ser tua irmã. Não tens
nenhuma irmã.

Evelyn treme descontroladamente.

EVELYN
Eu digo-te a verdade...

Gittes sorri.

GITTES
Isso é bom. Como é que ela se
chama?

EVELYN
Katherine.

GITTES
Katherine?... Katherine quê?

EVELYN
Ela é minha filha.

Gittes olha-a fixamente. Está carregado de raiva e quando


Evelyn diz isto, explode. Dá-lhe uma estalada no rosto.
Evelyn continua a olhar para ele. O golpe arrancou-lhe
lágrimas, mas não se mexe, nem para se defender.

GITTES
Quero a verdade!

EVELYN
É minha irmão.

Gittes esbofeteia-a de novo.

EVELYN
É minha filha.

Gittes esbofeteia-a de novo.

EVELYN
Minha irmã.
!39

Bate-lhe de novo.

EVELYN
Minha filha, minha irmã.

Derruba-a finalmente, atirando-a para cima de um vaso chinês


barato, que se desfaz, e ela deixa-se cair no sofá,
soluçando.

GITTES
Eu disse que queria a verdade.

EVELYN
(quase a gritar)
Ela é minha irmã e minha filha!

Kyo surge a correr nas escadas.

EVELYN
(continuando; em chinês)
Por amor de Deus, Kyo, não a deixes
descer, volta para cima!

Após fitar Gittes por um momento Kyo vira-se e sobe as


escadas de novo.

EVELYN
O meu pai e eu, compreendes, ou é
muito difícil para ti aceitar isso?

Gittes não responde.

EVELYN
...ele teve um colapso nervoso... a
barragem rebentou... a minha mãe
morreu... ele tornou-se uma
criança... eu tinha quinze... ele
perguntava-me oq ue devia comer ao
pequeno-almoço, que roupas
vestir!... E então aconteceu... e
eu fugi...

GITTES
Para o México...

Ela abana a cabeça afirmativamente.

EVELYN
O Hollis apareceu e tomou... conta
de mim... depois dela nascer... ele
disse... ele tomou conta dela... eu
não podia vê-la... eu queria mas
não podia... só queria vê-la de vez
!40

em quando... cuidar dela... só


isso... mas não quero que ela
saiba... não quero que ela saiba...

GITTES
...então é por isso que o odeias...

Evelyn levanta lentamente o olhar para Gittes.

EVELYN
Não... por me ter virado as costas
depois disso acontecer! Ele não
conseguia encarar os factos...
(chorando)
Odeio-o.

Gittes sente uma necessidade súbita de alargar a gravata.

GITTES
Sim... para onde é que a estás a
levar agora?

EVELYN
De volta ao México.

GITTES
Não podes ir de comboio. O
Escobar'll via procurar-te em todo
o lado.

EVELYN
E de avião?

GITTES
Pior ainda. Desaparece daqui. Põe-
te já a andar, deixa tudo.

EVELYN
Tenho que ir a casa apanhar as
minhas coisas.

GITTES
Eu trato disso.

EVELYN
Para onde é que podemos ir?

GITTES
...onde é que o Kyo vive?

EVELYN
Connosco.
!41

GITTES
Nos dias de folga. A sua morada
exacta.

EVELYN
Okay...

Pára de repente.

EVELYN
Não eram do Hollis.

Por um instante Gittes não sabe do que ela está a falar.


Depois segue o seu olhar até aos óculos pousados no lenço.

GITTES
Como é que sabes?

EVELYN
Ele não usava bifocais.

Gittes pega nos óculos, olha para lente, fica perdido por
alguns momentos.

EVELYN

Das escadas. Tem o braço à volta de Katherine.

EVELYN
Diz olá ao Sr. Gittes, querida.

KATHERINE
(das escadas)
Olá.

GITTES

Levanta-se abalado do braço do sofá.

GITTES
Olá.

Com o braço à volta da rapariga, e falando em Espanhol,


apressa-a na direcção do quarto. Aparece passado alguns
momentos.

EVELYN
(falando para baixo)
Ele vive 1712 Alameda... sabes onde
é?

REACÇÃO – GITTES
!42

Acena afirmativamente, devagar.

GITTES
Claro. É em Chinatown.

NOTA: A tradução é de minha responsabilidade. O texto é usado apenas para efeitos didáticos.

!43

Um artigo de John August

Já vimos que uma cena é como uma mini-estória, com os mesmos princípios dramáticos

em funcionamento. Já vimos quais as questões a colocar para garantir que esses princípios

dramáticos são aplicados. Vamos agora entrar num campo um pouco mais prático, analisando a

forma de planear a cena antes de a escrever.

Para esse efeito vamos apoiar-nos num artigo de um outro importante guionista, o

americano John August, conhecido pelas suas colaborações com Tim Burton, entre as quais o

excelente "Big Fish".

John August tem um óptimo blogue no qual já publicou uma enorme quantidade de

informação útil. É um recurso indispensável para quem domine a língua inglesa. Entre os seus

artigos mais populares encontramos este texto sob o seu método para escrever uma cena, que

passaremos a analisar.

Dez etapas para escrever a cena


!44

É muito importante perceber que as dez etapas que John August recomenda são apenas

indicativas. Cada guionista tem um processo mental próprio, desenvolvido ao longo do tempo,

com variações deste sistema.

Ao fim de muita prática a maior parte dos guionistas deixa de pensar analiticamente

nestas etapas (se alguma vez o fez) e integra-as naturalmente no seu processo de escrita. Mas

tendo em conta os objectivos deste livro é importante adoptarmos um método, e este é tão bom

quanto qualquer outro.

As dez etapas (mais uma) são, então, as seguintes:

1. Pergunte: O que tem que acontecer nesta cena?

2. Pergunte: Que mal aconteceria se esta cena fosse omitida?

3. Pergunte: Quem tem que estar na cena?

4. Pergunte: Onde é que esta cena pode decorrer?

5. Pergunte: Qual é a coisa mais surpreendente que poderia ocorrer nesta

cena?

6. Pergunte: É uma cena longa ou curta?

7. Imagina três formas diferentes de a começar.

8. Visualize a cena na sua cabeça.

9. Escreva um rascunho da cena.

10. Escreva a cena completa.

11. Repita 200 vezes (para ter um guião).

Passo a passo

Vejamos então cada etapa mais detalhadamente.

1. Pergunte: O que tem que acontecer nesta cena?


!45

Isto liga-se com o que vimos na secção anterior. Cada personagem entra na cena com

objectivos definidos, que vai tentar alcançar. No artigo, John August aparenta discordar da

opinião de Mamet. Argumenta que devem ser os guionistas a mandar na cena, e não os

personagens. É tudo uma questão de semântica - no fundo, somos sempre nós, os autores, que

decidimos quais são os objectivos dos personagens e se eles os vão alcançar ou não, em função do

curso que queremos dar à estória. Isso tem de estar definido antes de começarmos a escrever a

cena.

2. Pergunte: Que mal aconteceria se esta cena fosse omitida?

Se nada de mal acontecer se retirarmos a cena, então o melhor é retirá-la mesmo; nada

de importante está a acontecer nela. Pode até ser dramática ou divertida, mas não faz falta. Nesse

caso é melhor passar o que ela tem de bom para outras cenas que façam falta.

3. Pergunte: Quem tem que estar na cena?

O facto de termos muitos personagens não implica que os tenhamos de usar em todas as

cenas. Parte da arte do guionista é definir quem entra em cada cena, e o que está a fazer lá. Se,

por imposição da lógica da estória, tivermos de ter vários personagens na cena, é bom

encontrarmos formas de tornar a sua presença relevante e interessante. Isso pode passar por dar-

lhes coisas para fazer ou dizer no decurso da cena.

4. Pergunte: Onde é que esta cena pode decorrer?

Nem sempre podemos escolher onde uma cena vai decorrer. Por vezes por uma questão

de lógica da estória, a cena tem de ocorrer num determinado local. Outras vezes, por questão de

limitações de produção, somos obrigados a usar determinados sítios.

Mas quando podemos escolher, muitas vezes vamos pela solução mais óbvia ou natural. E

esta nem sempre é a que mais valoriza a cena. Antes de escrever a cena devemos pensar em
!46

várias opções de localização que sejam adequadas mas possam acrescentar valor - interesse,

drama ou surpresa.

5. Pergunte: Qual é a coisa mais surpreendente que poderia ocorrer nesta

cena?

Este é o passo mais original que John August sugere, mas pode conduzir a resultados

muito interessantes. Consiste em esquecer um pouco os objectivos que definimos para a cena e

fazermos um pequeno jogo: imaginar a coisa ou coisas mais surpreendentes que poderiam

acontecer durante a cena.

Estamos a falar aqui de eventos realmente inesperados - por exemplo, um carro irromper

pela parede. Em 90% dos casos será apenas um jogo e uma forma de mantermos acesa a

imaginação durante a fase da escrita, mesmo que não aproveitemos as ideias. Em 9%, poderá

conduzir a versões mais interessantes e provocadoras das cenas que tínhamos imaginado. E no

1% que sobra pode originar situações realmente originais e memoráveis.

6. Pergunte: É uma cena longa ou curta?

Nem todas as cenas têm a mesma duração numa estória. Muitas vezes isso está

relacionado com a importância da cena, mas nem sempre: uma cena muito curta pode ter um

papel crucial no desenrolar de uma narrativa.

De qualquer forma, essa alternância de momentos mais longos ou mais curtos contribui

para o ritmo da estória. É pois importante decidir previamente que dimensão a nossa cena

deverá ter, e escrevê-la dentro desses parâmetros.

7. Imagine três formas diferentes de a começar.

O conselho que se dá aos guionistas é começar a cena o mais tarde possível, e sair dela

logo que o essencial da cena tenha acontecido. Se, por exemplo, a nossa cena consiste num
!47

encontro entre três amigos num bar, não precisamos de assistir à chegada de cada um deles, aos

cumprimentos, à encomenda das bebidas, etc. Podemos cortar para o encontro já em curso, com

os três sentados à mesa, a beber e falar, e terminar a cena logo que o conflito dramático tenha

decorrido segundo as nossas necessidades.

Mas John August recorda-nos que não nos devemos ficar por este começo "natural" da

cena. Porque não começá-la com os três amigos na casa de banho, a urinar em conjunto; ou com

os três a tentar reparar a máquina de café do bar; ou com os três a ser expulsos do bar pelos

seguranças? O importante, uma vez mais, é questionarmos a solução que nos ocorre de imediato

e procurarmos alternativas viáveis, mesmo que no fim regressemos à primeira opção - que muitas

vezes é mesmo a melhor.

8. Visualize a cena na sua cabeça.

Antes de começarmos a escrever, devemos imaginar toda a cena. De olhos fechados,

recostados na cadeira, vamos imaginar como a cena se vai desenrolar, como se estivéssemos a ver

o filme na nossa imaginação. Onde estamos; a que horas; quem está presente; o que acontece;

quem fala; o que diz; que trocas de palavras ou de acções se sucedem.

Nem sempre vamos conseguir visualizar tudo, e muitas coisas vão mudar quando

passamos à escrita. Mas é importante fazermos este esforço, para dar realidade e consistência ao

que vamos escrever.

9. Escreva um rascunho da cena.

Depois do exercício de visualização anterior devemos fazer um registo rápido do que

imaginámos, antes de o esquecermos. É apenas um rascunho, sem descrições nem diálogos

detalhados. Apenas notas, apontamentos, emoções. Deve ser uma etapa muito rápida, enquanto

a cena ainda está vívida na nossa imaginação.


!48

10. Escreva a cena completa.

Com base no rascunho anterior, passamos então a escrever a cena na sua versão

completa. Não digo "versão final" porque é provável que, até ao fim do processo, ela ainda passe

por outras rescritas.

Vamos guiar-nos pelas notas que tomámos, desenvolvendo as situações, enriquecendo as

descrições, completando as ações, e criando os diálogos. Mas isto não quer dizer que o rascunho

que fizemos esteja escrito na pedra. É apenas uma fundação que a qualquer momento pode

evoluir ou mudar substancialmente.

11. Repita 200 vezes (para ter um guião).

A 11ª etapa é um toque de humor, para nos recordar que boa parte do trabalho do

guionista assenta na disciplina, perseverança e capacidade de trabalho.

Escrever um guião é trabalho duro; escrever um bom guião, é hercúleo. Mas o resultado

do esforço podem ser cenas tão fantásticas como a que se segue, retirada do filme "Romance

Perigoso", com argumento de Scott Frank a partir do romance de Elmore Leonard.


!49

"ROMANCE PERIGOSO"

Argumento de 

Scott Frank

a partir do romance de

Elmore Leonard

NEGRO

Escuridão total, nem se vê um ponto de luz. Depois ouvimos o


motor arrancar, e o carro começa a mover-se.

FOLEY (VO)
Estás confortável?

KAREN (VO)
Se tivesse um pouco mais de espaço.

FOLEY (VO)
Isso não há. Tens um monte de
tralha aqui. O que é esta porcaria
toda, afinal? Algemas, correntes...
O que é esta lata?

KAREN (VO)
É para o hálito. Podias
experimentar. Esguicha um pouco na
tua boca.

FOLEY (VO)
Sua marota, é gás-pimenta, huh? E o
que é isto - um cacete? Usas isto
nos pobres desgraçados dos
delinquentes.

Um FEIXE DE LUZ surge quando ele descobre uma lanterna e a


liga. Brinca com a luz nas pernas de Karen, e acalma-se um
pouco depois de a ver completamente, e finalmente
pergunta...

FOLEY (VO)
Onde é que está a tua arma, a tua
pistola?

KAREN
Na minha bolsa, no carro.
!50

Passam por cima de algumas lombas. Ouvem-se vozes de homens


lá fora, à distância.

KAREN (CONT'D)
Sabes que não tens nenhuma chance
de te safares. A polícia já anda aí
fora, vão parar o carro.

Ele passa a mão pela coxa dela, a ver se encontra a arma,


mas também, enfim, só a ver.

FOLEY
Eles agora andam lá no canavial a
caçar cubanos. Eu fiz bem as contas
para me escapar entre as gotas da
chuva, se assim podemos dizer.EXT.
CARRO - NOITE

Enquanto Buddy acelera para longe da prisão, olhando pelo


espelho retrovisor...

INT. PORTA-BAGAGENS - AO MESMO TEMPO

Jack tenta limpar um pouco de lama do rosto.

FOLEY
Bolas, cheirava mal lá em baixo.

KAREN
Acredito. Acabaste com um fato de
novecentos dólares que o meu pai me
ofereceu.

FOLEY
Sim, devia ficar mesmo a condizer
com a tua caçadeira de dois canos.
(depois)
Diz-me lá, como é que alguém como
tu se torna num xerife federal?

KAREN
Atraiu-me a ideia de caçar tipos
como tu.

FOLEY
Tipos como eu, huh. Bem, ouve,
apesar de ter andado celibatário
nos últimos tempos, não me vou
forçar em ti. Nunca fiz isso na
vida.
!51

KAREN
Nem vais ter tempo. Logo que
passarmos por uma barragem na
estrada eles vão identificar o
carro e descobrem em cinco segundos
a quem pertence.

FOLEY
Se conseguirem montá-las a tempo, o
que eu duvido. E mesmo que
consigam, estão à procura de um
monte de latinos baixotes, e não
dum negro grandalhão a conduzir um
Ford.

KAREN
Deve ser um amigaço, para arriscar
o couro desta forma.

Mais lombas. Depois a velocidade aumenta conforme a estrada


se torna mais suave.

FOLEY
Quem, o Buddy? Sim. É um tipo às
direitas. Quando cumprimos pena
juntos ele telefonava à irmã todas
as semanas sem falhar. Ela é uma
cristã-nova, faz a contabilidade de
um tele-evangelista. O Buddy liga-
lhe sempre para confessar os seus
pecados, contar-lhe acerca de cada
banco que assalta.

KAREN
Buddy. Esse é mesmo o nome dele?

FOLEY
(woops, pausa)
É o nome que eu lhe dou, sim
(para dentro)
Porra...

INT. CARRO - AO MESMO TEMPO

Enquanto Buddy vasculha pelas coisas de Karen enquanto


conduz. Vai olhando do distintivo e identificação dela para
a estrada.
!52

INT. PORTA-BAGAGENS - AO MESMO TEMPO

KAREN
E então, como é que te chamas? Vais
estar nas notícias amanhã, de
qualquer jeito.

FOLEY
Jack Foley. Possivelmente já
ouviste falar de mim.

KAREN
Porquê, és famoso?

FOLEY
Na altura em que fui preso na
Califórnia? O FBI disse-me que
tinha roubado mais bancos que
qualquer outra pessoa no
computador.

KAREN
Quantos foram mesmo?

FOLEY
Para dizer a verdade, nem sei.
Comecei aos dezoito, a conduzir o
meu tio Cully, e o parceiro dele, o
Gus. Uma vez foram a um banco em
Slidell, o Gus salta o balcão para
apanhar as caixas registadoras e
parte uma perna. Acabámos os três a
cumprir pena em Angola.

KAREN
Isso foi engraçado.

FOLEY
Também achei, por acaso.

KAREN
Se fosse eu, tinha deixado o velho
Gus a rebolar no chão.

FOLEY
Acredito que sim. Noutra vez, fiz
sete anos em Lompoc. E não estou a
falar do porta ao lado onde os
tipos do Nixon foram.

KAREN
Eu sei a diferença. Estiveste em
Lompoc USP, a prisão federal. Já
!53

entreguei alguns lá. Então,


basicamente, passaste metade da tua
vida na prisão.

FOLEY
(pausa)
Basicamente. Sim. Se voltar agora,
levo trinta anos sem possibilidade
de sair. Consegues imaginar uma
coisa dessas?

KAREN
Não preciso. Não ando a assaltar
bancos.

Ele olha para ela, e depois desvia o olhar, conforme...

EXT. CARRO - AO MESMO TEMPO

O carro entra numa autoestrada principal...

INT. PORTA-BAGAGENS - AO MESMO TEMPO

Foley brinca com a luz ao longo do corpo dela...

FOLEY
Não pareces muito assustada.

KAREN
É claro que estou.

FOLEY
Não te estás a portar como tal.

KAREN
O que é que queres que eu faça?
Grite? Acho que não ia ajudar
muito.
(depois)
Vou só ficar por aqui, relaxar, e
esperar que vocês façam asneira.

FOLEY
Jesus, pareces a mina ex-mulher a
falar.
!54

KAREN
Foste casado? Com todas essas
prisões, nem sei como tiveste
tempo.

FOLEY
Foi só um ano, mais dia menos dia.
Quer dizer, não é que a gente não
se entendesse bem. Até nos
divertimos, mas não tínhamos
aquela... aquela coisa, percebes?
Aquela faísca, sabes do que estou a
falar? Tens de ter isso.

KAREN
(pensativa)
Uh-huh.

FOLEY
Mas continuamos a falar, apesar de
tudo.

KAREN
Claro.

EXT. CARRO - AO MESMO TEMPO

Enquanto Buddy passa por um sinal que indica "MIAMI, 74


MILHAS".

INT. PORTA-BAGAGENS - AO MESMO TEMPO

Ela tenta olhar para ele...

KAREN
Sabes, isto não vai acabar bem,
estas coisas nunca acabam bem.

FOLEY
Bom, sim, se eu acabar aí abatido
como um cão, pelo menos é na rua, e
não numa maldita vedação.

KAREN
Deves achar que és algum Clyde
Barrow.

E, por alguns momentos, só ouvimos o som do carro na


estrada. Depois...
!55

FOLEY
Oh, queres dizer, como em "Bonnie e
Clyde"? Hm. Já viste fotografias
dele, da forma como usava o chapéu?
Consegue ver-se que ele tinha
aquele ar de estou-me-nas-tintas.

KAREN
Do chapéu não me lembro, mas
lembro-me das imagens dele morto na
estrada, abatido pelos Rangers do
Texas. Sabias que ele estava
descalço?

FOLEY
A sério?

KAREN
Fizeram cento e oitenta e sete
buracos de bala no Clyde, na Bonnie
Parker e no carro que conduziam. A
Bonnie estava a comer uma
sanduíche.

FOLEY
És uma verdadeira enciclopédia de
factos interessantes, não és?

KAREN
Foi em Maio de 1934, perto de
Gibsland, na Louisiana.

EXT. AUTOESTRADA - NOITE

Sossegada. Vazia. Passado um instante um carro passa a voar.

INT. PORTA-BAGAGENS - AO MESMO TEMPO

FOLEY
Essa parte do filme em que eles são
abatidos? Warren Beatty e a... não
me lembro do nome dela.

KAREN
Faye Dunaway.

FOLEY
Sim, gostei dela naquele filme
sobre a televisão...
!56

KAREN
Network. Sim, ela ia bem.

FOLEY
E o gajo que dizia que não ia
aceitar mais merdas de ninguém...

KAREN
Peter Finch.

FOLEY
Sim, isso. Seja como for, a cena
em que o Warren Beatty e a Faye
Dunaway são abatidos? Lembro-me que
na altura pensei que não era uma má
forma de partir, se tivesse de ser.

KAREN
A sangrar numa estrada rural.

FOLEY
Não foi bonito de ver, não, mas se
fosses naquele carro - a comer uma
sanduíche - nem sabias o que tinha
acontecido.

Ouvimos SIRENES DISTANTES fora de cena...

INT. CARRO - AO MESMO TEMPO

Conforme Buddy vê as LUZES A PISCAR que se aproximam no


sentido oposto. Mantém a calma até os verde e brancos
ficarem mais perto... mais perto... e passarem a voar.

INT. PORTA-BAGAGENS - AO MESMO TEMPO

Conforme as SIRENES UIVAM POR UM MOMENTO, e depois se


DESVANECEM.

FOLEY
É mesmo fácil falar contigo. Estou
aqui a pensar - imagina que a gente
se conhecia noutras circunstâncias,
e metesse conversa, por exemplo, se
estivesses num bar e eu me
aproximasse -- o que é que
aconteceria.

KAREN
Nada.
!57

FOLEY
Quero dizer, se não soubesses quem
eu era.

KAREN
Provavelmente ias dizer-me.

FOLEY
Estou só a dizer que acho que se
nos tivéssemos conhecido noutras
circunstâncias...

KAREN
Deves estar a brincar.

Silêncio. Foley tenta retornar à parte em que as coisas


estavam a funcionar...

FOLEY
Outro da Faye Dunaway de que
gostei, Os Três Dias do Condor.

KAREN
Com o Robert Redford, quando era
jovem.

FOLEY
Sim...

Ficam ali deitados por um momento, a pensar nisso, enquanto


ouvimos O CARRO A ABRANDAR, encostar, e depois saltar a
berma da estrada até se imobilizar.

KAREN
No entanto, nunca achei que fizesse
sentido, a forma como eles ficam
juntos tão depressa.

FOLEY
Na realidade?

KAREN
Quero dizer, romanticamente.

FOLEY
Uh-huh.
(depois)
Bom, mas e se --

O porta-bagagens volta a ficar às escuras ao mesmo tempo que


o carro é desligado.
!58

BUDDY (OS)
Ainda estão vivos aí dentro?

E a tampa do porta-bagagens é levantada, mostrando Karen e


Foley deitados no fundo. Foley sai. Karen não se mexe.

FOLEY (OS)
Onde raio é que estamos?

BUDDY
A autoestrada é já ali. O Glenn
está lá à espera com o outro carro.

FOLEY
OK, doçura, podes sair daí.

Karen estica-se, rola do lado direito para o lado esquerdo,


segura a sua Sig Sauer com ambas as mãos e aponta-a na
direcção dos dois, que estão de pé à sua frente, no escuro
mas ali mesmo.

KAREN
Ponham as mãos no ar e virem-se.
Agora.

FOLEY
Merda...

Foley baixa a tampa, e ele e Buddy movem-se em direcções


opostas, ao mesmo tempo que ela começa a disparar do
interior...

NOTA: A tradução é de minha responsabilidade. O texto é usado apenas para efeitos didáticos.

!59

Os Arquétipos

Num livro de grande influência para as gerações de guionistas mais recentes, "Writer's

Journey: Mythic Structure for Writers", o autor Christopher Vogler analisa o que ele designa pela

estrutura mítica das narrativas.

Inspirado pelos estudos do mitologista Joseph Campbell, delineou uma adaptação da

chamada "Viagem do Herói", presente em todas as tradições, para as necessidades das narrativas

contemporâneas.

Um dos elementos fundamentais da sua análise são os Arquétipos, ou seja,

determinados tipos de personagens com padrões de comportamento comuns que são uma

herança partilhada da raça humana, e aparecem nas tradições narrativas de todas as épocas e

civilizações – fábulas, lendas, contos tradicionais, textos mitológicos, tradições orais, etc.

Estes arquétipos não devem ser confundidos com os estereótipos, que são personagens

padronizadas e sem profundidade, a que muitos guionistas recorrem por incapacidade ou

preguiça: o chefe de polícia irascível, o taxista irritante, a vizinha coscuvilheira, etc.


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Os arquétipos, pelo contrário, são peças muito profundas e antigas daquilo que o

psicólogo Carl Jung designou como o inconsciente colectivo de todas as culturas, uma espécie de

memória partilhada e herdada ao longo dos tempos.

Há um grande número de arquétipos, que devem ser encarados não como papéis rígidos

e imutáveis, mas como funções desempenhadas temporariamente por certos personagens para

determinados fins na evolução da estória.

Nesta perspectiva, defendida por Vogler, os arquétipos são como máscaras que os

personagens colocam em determinadas ocasiões, para desempenhar certas funções dramáticas.

Os arquétipos mais importantes, que analisaremos sucintamente de seguida, são:

• O Herói

• O Mentor

• O Guardião da Passagem

• O Arauto

• O Mutante ("shapeshifter")

• O Sombra

• O Impostor/trapalhão ("trickster")

Mas há muitos outros, que podem surgir autonomamente ou em combinação com

qualquer um dos anteriores: o Lobo, o Caçador, a Mãe, a Madrasta Malvada, a Fada Madrinha,

a Eterna Criança, etc.

Vejamos então, segundo a análise de Vogler, o que caracteriza e quais são as funções dos

principais arquétipos:
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O Herói - é aquele que existe para proteger e servir. Grande parte das histórias são

narrativas de um Herói que sacrifica o seu conforto para devolver o equilíbrio ao seu mundo, à

sua comunidade.

É com o Herói que a audiência se identifica no decurso da narrativa, são as suas acções

que segue, é através da sua transformação ou sacrifício que o espectador tira satisfação da estória.

A Sombra – é, por natureza, o antagonista primordial. Representa toda a energia negra,

todos os sentimentos reprimidos, os traumas e as emoções escondidas ou negadas.

A sua função dramática é desafiar o Herói, criar os obstáculos para que os seus feitos

sejam ainda mais notáveis. Esta máscara da Sombra pode ser usada por um só personagem ao

longo da estória, ou por vários. Até o Herói pode, em certos momentos, ser a sua própria

Sombra.

O Mentor – é normalmente um homem ou mulher mais velho, mais sábio, que

representa o lado da nossa personalidade que está mais atento às coisas, mais ligado ao

conhecimento e à evolução.

Dramaticamente, o Mentor ajuda o Herói de várias formas: ensinando-o; dando-lhe um

objecto especial ou informação essencial; sendo a sua consciência ou motivação; ou iniciando-o

em qualquer tipo de mistérios (mesmo os sexuais).

O Guardião da Passagem – muitos dos obstáculos que o Herói tem de ultrapassar na

sua viagem são passagens, portais para outro nível de evolução da estória.

É frequente que nessas passagens haja um tipo de personagens, os Guardiões, que as

defendem dos transgressores, tornando-se assim antagonistas do Herói. Não são geralmente os

antagonistas principais, mas cumprem a função de dificultar ou atrasar o progresso do Herói.

O Arauto – é um personagem que traz informações, notícias, e normalmente más.


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Está muitas vezes associado ao gatilho, ao inciting incident da estória, aquele evento que

torna impossível ao herói continuar com a sua vida normal e o obriga a lançar-se à viagem para

repor o equilíbrio perdido. A sua função é, pois, anunciar a necessidade de mudança.

O Mutante (Shapeshifter) – é um tipo de personagem de natureza misteriosa, uma

incógnita no caminho do Herói, que vai assumindo contornos diversos conforme a estória vai

evoluindo.

É possível que a relação romântica, ou um aliado do Herói, assumam em alguns

momentos esta máscara. Para Jung ele representa o animus ou anima, os elementos masculinos

ou femininos que complementam o nosso inconsciente feminino ou masculino, e que nós não

entendemos. E como não entendemos estas figuras Mutantes, elas contribuem com tensão e

dúvida para a estória.

O Impostor/Charlatão (Trickster) – são os personagens cómicos, farsantes,

brincalhões, que introduzem a confusão, o humor, ou o caos nas narrativas.

Em muitas estórias de pendor cómico o próprio Herói pode usar esta máscara de

Impostor/Trapalhão. Na maior parte das estórias, contudo, é a um aliado que compete essa

função. E em alguns casos, como o Joker da saga Batman, ela pode até cair no antagonista, ou

Sombra, para usar a mesma terminologia.

Os arquétipos são ferramentas úteis para analisar os nossos personagens.

Podemos, em cada momento, tentar perceber qual a máscara que um determinado

personagem deve utilizar, que função pode ou deve desempenhar na evolução da narrativa.

Com isso conseguiremos, seguramente, personagens mais ricos e, sobretudo, mais

sintonizados com a experiência narrativa da raça humana.


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O formato do guião

Os guiões têm um formato próprio que, mais coisa menos coisa, é praticamente universal.

Este formato desenvolveu-se ao longo do tempo até atingir o estado actual. Há, pois, razões

históricas para ele existir, mas também há razões práticas.

Um formato estandardizado permite aos autores escrever sem terem de estar a inventar a

roda em cada novo guião.

Simplifica a vida de todos os profissionais que trabalham em cinema. De cada vez que

entram num projecto novo não precisam de estar a aprender de novo a ler um guião.

Permite a existência de softwares especializados, como o Final Draft, Scrivener ou

WriterDuet, que deixam ao guionista apenas a preocupação com a escrita.

Finalmente, como uma página de guião escrita neste formato corresponde, em média, a 1

minuto de filme, fica muito mais simples avaliar a duração do guião e o seu ritmo.

Este último ponto causa muitas dúvidas aos guionistas iniciantes. A sua preocupação é

sempre como atingir o objectivo de um minuto por página. É uma preocupação infundada e
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desnecessária. Estamos a falar de médias, que são influenciadas por muitas coisas: o tipo de filme,

o género, o estilo do realizador, e até se estamos a usar papel A4 ou Carta.

O importante é escrever com o formato correcto e apontar para alguma coisa como 90 a

120 páginas de guião. Tudo o que saia desses números vai causar estranheza e dúvidas a quem

for avaliar o guião.

Elementos do formato

Vamos entrar agora na parte mais prática e técnica.

Um guião é sempre escrito na fonte Courier 12 pontos - uma fonte mono-espaçada, em

que todos os símbolos, letras e algarismos, e até os espaços, têm exactamente a mesma largura.

Isso garante consistência e aparência uniforme.

Uma cena constitui uma unidade de acção dramática independente, no tempo e local em

que decorre, das cenas imediatamente anteriores e posteriores.

Está organizada segundo uma determinada lógica e contém alguns elementos

característicos da escrita de guiões, formatados de uma maneira própria:

• Cabeçalhos

• Descrições

• Nomes

• Diálogos

• Parênteses

• Transições

O Cabeçalho

Num guião de cinema uma cena é uma unidade dramática definida por um determinado

local e período, sem quebras de tempo.


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Se mudarmos de local devemos começar uma nova cena. Se houver uma passagem de

tempo, mesmo que o local se mantenha, também devemos começar uma cena nova.

Como é que indicamos que há uma mudança de cena? Introduzindo um novo

CABEÇALHO.

Um Cabeçalho é uma linha de texto, alinhada à margem esquerda, escrita totalmente em

MAIÚSCULAS, com uma linha vazia antes e uma depois.

Contém três elementos essenciais:

Deve começar indicando se é uma cena passada num interior ou exterior, INT. ou EXT.

Deve indicar o local da cena, por exemplo CASA DE JOAQUIM – SALA

Deve indicar o período do dia ou da noite, separado por um travessão – DIA

ou NOITE

Por exemplo, são cabeçalhos válidos os seguintes:

INT. CASA DE JOAQUIM – SALA – DIA

ou

EXT. ESCOLA – CAMPO DE FUTEBOL – NOITE

Também são válidos, e usados por vezes em Portugal e no Brasil, os cabeçalhos escritos

numa outra ordem, como os seguintes:

INT. DIA – CASA DE JOAQUIM

ou

EXT. NOITE – RUA

Mas já não são válidos estes exemplos:


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INT – CAMPO DE RÂGUEBI – CENA 10

Não tem ponto final depois do INT; não tem lógica um campo de râguebi ser interior;

e os números de cena não se indicam assim.

EXTERIOR; Casa do Francisco; manhã

Deveria ser toda em maiúsculas; começar com EXT.; ser escrita em Courier Normal;

e usar travessão em vez de ponto e vírgula.

As Descrições

Cada nova cena começa com um Cabeçalho, como vimos. O parágrafo seguinte, sepa-

rado por uma linha vazia, é normalmente uma DESCRIÇÃO, ou AÇÃO.

Descrição, ou Ação, são os parágrafos do guião onde se descreve o que pode ser visto ou

ouvido no filme (com a excepção dos Diálogos, que têm outro tratamento).

Isto inclui a descrição dos locais onde as cenas decorrem, dos adereços ou veículos impor-

tantes para a cena, dos personagens, incluindo a sua aparência e roupas, dos efeitos especiais ou

sonoros, etc.

Também inclui a descrição das ações, comportamentos, gestos, movimentos dos persona-

gens e outros elementos em cena, desde que dramaticamente relevantes.

Tudo o que deva ser visto ou ouvido no filme deve ser colocado nas Descrições. Os ameri-

canos têm uma frase para isso; "If it's not on the page, it's not on the stage" – se não está na

página, não está no filme.

Algumas notas importantes quanto às Descrições:

São escritas em maiúsculas e minúsculas, e alinhadas à esquerda.

São escritas sempre na terceira pessoa do singular do presente.

Por exemplo:
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Pedro corre. O carro despista- se. Rui olha para cima e

grita.

Nunca se usam outros tempos verbais como:

Pedro olhou. O carro vai despistar-se. Olhei para cima e

gritei.

Devem incluir apenas a informação necessária e suficiente para perceber o local, as pes-

soas, as relações e as ações. Informação em excesso pode tornar um guião muito difícil de ler;

informação em falta pode torná-lo pouco apelativo.

Sempre que um personagem é apresentado pela primeira vez num guião, o seu nome

deve ser indicado em MAIÚSCULAS. Também é costume dedicar- lhe uma pequena descrição,

tanto mais cuidada quanto mais importante ele for.

Efeitos sonoros, efeitos especiais e alguns acessórios particularmente importantes também

podem ser destacados em MAIÚSCULAS.

Os parágrafos de Descrição são normalmente curtos, com duas ou três linhas, como

demonstrei num artigo do blogue. Isto torna a leitura mais fácil e fluida.

Podemos dar a entender o ritmo de uma cena através da sucessão e do ritmo da escrita

das Descrições.

Personagens, Diálogos e Parênteses

Na maior parte dos filmes – mesmo nos mudos – os personagens falam. E, quando bem

utilizados, os Diálogos são um elemento fundamental de um guião.

Bons diálogos têm algumas características em comum:

- São elementos de ação, que fazem avançar a trama.


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- São demonstrações de conflito, confrontos orais, que contribuem para a manutenção e

escalada do drama.

- Fornecem novos desafios e informações.

- Não são óbvios nem expositivos. Não estão na cena apenas para cumprir alguma função

de passar informação, ou responder a alguma necessidade.

- São vivos, dinâmicos, interactivos, e variados. Contribuem para o ritmo e dinâmica das

cenas.

- Soam a verdadeiros, parecem retirados da vida real, embora, quando analisados à lupa,

demonstrem ser uma construção rigorosa, económica e depurada.

- São adequados aos personagens que os falam; às suas características sociais, históricas,

psicológicas.

- São cheios de segundos sentidos e interpretações paralelas, aquilo a que normalmente se

chama o "subtexto".

Em termos formais, para apresentar os diálogos num guião usam-se três elementos: os

PERSONAGENS, DIÁLOGOS e PARÊNTESES.

O elemento Personagem identifica quem fala; o elemento Diálogo identifica o que ele diz;

e o elemento Parênteses dá indicações adicionais que não sejam óbvias da leitura do diálogo. Por

exemplo, um tom especial (irónico) ou a quem se dirige a fala, quando há várias pessoas (para

Rita).

Um bloco de diálogos pode então ter este aspecto:

Pedro entra na cozinha onde Rita está a fazer café.

PEDRO
Queres saber o que me aconteceu
hoje?
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RITA
(irónica)
Mal posso esperar...

PEDRO
(pausa)
Queres saber, ou não?

RITA
(para a sala)
Paula, tomas um cafézinho?
(para Pedro)
Estavas a dizer...?

Indicações de Planos e Transições

Quando procuramos na net guiões para ler muitas vezes encontramos os chamados

shooting scripts, ou guiões de rodagem. São versões dos guiões que já foram rescritas para servir

de guia durante a rodagem do filme e incluem muitas indicações técnicas, como planos,

movimentos, transições, etc.

Por exemplo, o guião de "A Rainha Africana" começa assim:

EXT. A NATIVE VILLAGE IN A CLEARING BETWEEN THE JUNGLE AND


THE RIVER. LATE MORNING

LONG SHOT -- A CHAPEL

As indicações de LONG SHOT, MEDIUM SHOT, CLOSER SHOT, REVERSE

ANGLE, DISSOLVE TO:, etc., sucedem-se nas páginas desse tipo de guiões, o que pode criar a

ideia de que é obrigação do guionista dar este tipo de informação.

Na realidade, é exatamente o contrário.

Os guiões normais em que trabalhamos são os chamados guiões literários. O seu objetivo

é contar a estória do filme de uma forma envolvente, que transporte o leitor para dentro do

universo dramático e o ajude a imaginar o filme.


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Indicações de planos ou movimentos de câmara, paradoxalmente, têm o efeito contrário.

Em vez de prender o leitor, quebram o fluxo da narrativa e afastam-no do filme imaginado.

O mesmo se passa com as Transições. Tradicionalmente os guiões indicavam sempre a

forma de passagem de uma cena para outra: CUT TO, DISSOLVE, SMASH CUT, etc.

Mas a tendência actual é no sentido de simplificar e não usar muitas indicações de

Transição. Tal como os Parênteses, devemos reservá-las apenas para quando não sejam óbvias e

acrescentem algo de especial à narração. A Transição por defeito é o CORTA PARA:, e por isso

não é necessária indicá-la.

De forma geral, devemos resistir à tentação de substituir os actores e o realizador com

excesso de indicações.

A direção que podemos e devemos fazer num guião é indireta e subjetiva. Por exemplo, se

escrevermos

A ponta do pé de Rita bate no chão em cadência acelerada.

estamos a sugerir implicitamente um CLOSE UP do pé de Rita. O leitor vai imaginar a

cena assim, sem nós precisarmos de o explicitar indicando um Plano na descrição.

Não devemos perder tempo a dar indicações de câmara ou de montagem no guião. Os

leitores não gostam – e os realizadores também não.

Software de escrita

Nos tempos antigos os guionistas escreviam os seus guiões em máquinas de escrever, essas

lindas peças quase arqueológicas que agora só usamos para decoração. Respeitar o formato

correcto das páginas do roteiro era um quebra-cabeças, que só muito tempo, e prática constante,

acabavam por resolver. Os grandes estúdios de Hollywood, por exemplo, tinham departamentos

de estilo que dactilografavam todos os guiões finais para assegurar a consistência do formato.
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Os processadores de texto resolveram muitos desses problemas. Com um pouco de

trabalho conseguimos criar modelos que respeitam, quase automaticamente, as regras correctas

de formatação de um guião.

Mas o trabalho do guionista deve ser escrever boas estórias e boas cenas, não andar a

preocupar-se com o formato. Para esse efeito há processadores de texto vocacionados

especificamente para a escrita de guiões.

O mais conhecido destes softwares é o Final Draft, um programa profissional mas muito

caro. Mas há muitas alternativas mais baratas, como o Scrivener (acessível, e o meu favorito), e

até algumas gratuitas, como o WriterDuet (gratuito, online).

É este último que recomendo para o desafio individual que deverá ser efectuado na

sequência desta aula: escrever uma cena de guião.

Porquê o WriterDuet?

Em primeiro lugar, porque é gratuito. Mas não se fica por aí.

O WriterDuet é um software de escrita de guião acessível online através do browser. Está

a ser proposto como a forma mais prática de escrever um guião a meias com outro autor, via

web, mas é também um excelente programa de escrita de guiões para qualquer pessoa que tenha

acesso permanente à net.

O seu interface é simples e intuitivo, usando a mesma técnica de formatação que a

maioria dos softwares congéneres usam – a combinação das teclas de "tabelação" e "parágrafo"

para mudar entre os diferentes elementos do texto, como Cabeçalhos, Personagens, Diálogos, etc.

Mas tem mais: opções sofisticadas como os diálogos paralelos, notas, um completo e

intuitivo modo de planeamento dos guiões que permite rearranjar interactivamente as cenas do

guião, por arrasto, página de título editável, opção de numeração das cenas, etc.
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Podemos ter vários guiões em curso simultaneamente e escrevê-los cooperativamente com

autores diferentes. O programa inclui um sistema de conversa que permite trocar impressões com

outros co-autores ao mesmo tempo que se edita um guião em equipa.

O WriterDuet permite ainda importar guiões escritos noutros programas, o que pode ser

muito útil na fase de revisão de um guião já escrito e que esteja em pré-produção. Consigo

imaginar diversos cenários em que uma aplicação como esta me teria poupado muito tempo e

trocas de emails.

Melhor ainda, o WriterDuet tem excelentes opções de exportação nos formatos mais

convenientes e utilizados: PDF, FinalDraft, CeltX e até Fountain (uma sintaxe para formatar

correctamente um guião em formato de texto simples). Isso garante-nos que, aconteça o que

acontecer a esta aplicação web, poderemos sempre ficar com cópias dos nossos guiões.

Se tivermos em atenção que tudo isto nos é oferecido gratuitamente, mediante uma

simples e instantânea inscrição no site, não há como não gostar de WriterDuet.

Exercício final

Termino este livrinho com um exercício prático para completar por si mesmo - o bom e

velho trabalho de casa.

O desafio é imaginar e escrever uma cena de três minutos, correspondentes a três páginas

de texto.

A cena deverá ser escrita de acordo com os princípios - dramáticos, metodológicos e

técnicos - que foram apresentados no livro.

Imagine os personagens participantes, e uma situação em que eles tenham interesses

conflitantes. Pense num local interessante e escreva a cena aproveitando todos esses factores.
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Conclusão

Escrever as cenas é apenas uma parte do trabalho do guionista. Mas é uma parte

absolutamente fundamental, e provavelmente a que lhe ocupará mais tempo.

Como todas as capacidades humanas, também esta melhora com a prática intencional: a

repetição, conduzida de forma disciplinada, com vista à evolução, em que se avaliam resultados,

analisam-se problemas e dificuldades, e testam-se alternativas e soluções.

Espero que este pequeno livro o estimule a escrever e a refletir sobre a escrita, a procurar

novos caminhos, e a aperfeiçoar a sua técnica e arte de guionista.

BOAS ESCRITAS


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