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ROSA DE SOMBRA

No vermelho da sombra,
esconde-se uma rosa azul.
Rosa precária e triste,
sem pétalas nem odor.

Aquela mancha fria,


dissolvida ao pé da porta,
de talos inacabados
é sombra, coisa morta.

Eu vi uma rosa rude


se fechar na boca da noite.
Sem ressoar de sinos.
Rosa venosa de Vênus,
venenosa.

Matéria lendária de sonho,


um vulto apenas na manhã.
Nem um pássaro quis beijá-la.
A rosa se desfez.
A OUTRA MARGEM

O tempo finalmente se azula


e rompe a banalidade dos dias.
Enquanto os exploradores de abismos
vacilam à vertigem do possível.

Uns enredados à memória


se embaraçam em expectativas
e não conseguem se libertar
de calendários perdidos
nos porões da infância.

Adivinho a outra margem.


Minha alma antiga,
se entrega, sem solenidade,
num mergulho plástico,
às águas agora.
AMAR-TE

Amar-te
enquanto a manhã não vem.
Dos interstícios do fogo
à devassidão.

Amar-te
hoje e amanhã.
Quem sabe eternamente.

Amar-te
em silêncio ou
durante a tempestade.

Amar-te
sem férias, nem recessos.
A seco ou depois do banho.

Amar-te
na cama ou sobre o chão.

Amar-te
até sentir que nada mais existe
além do amor que a ti devoto.

Amar-te
em fúria, depois do furacão.

Amar-te
de joelhos, pedindo o teu perdão.

Amar-te.
Amar-te.
Amar-te.
NARCISO CEGO

Nas fronteiras do sonho,


a oscilação do abismo
de uma alma seduzida
sobre o espelho d’água.

Na iminência trágica,
o horror e o fascínio
paralisam os gestos
antes de nos lançar
ao desconhecido.

Velo uma luz adormecida


no seio do primitivismo,
no mesmo instante
em que procuro tateante
o Ser que sou.
À SOMBRA DO ILUMINADO

No intrincado de tuas teias,


eu me enrolo toda.
Te sigo cega, sem sentido.

A tua forma me informa tão pouco de ti.


A minha forma me deforma tanto de mim.

Eu sumi. Não me encontro no lugar,


onde estava há pouco.

O que será de mim


se a loucura me consumir?
Colecionar cacos de vidro?
Dançar descalço em qualquer canto?

Para onde estou indo?


Está escuro aqui!
Eu me contemplo à sombra do iluminado.
FRAGMENTOS DO SER

Eu, memória desarmada, vencida pelo espanto.


Eu, o silêncio de crianças mortas.
Eu, o grito de mães feridas.
Eu, a túnica de sangue embebida em ácido.
Eu, espelho provisório, precária imagem.
Eu, sonho putrefato de flores esquecidas.
Eu, pedaço de existência irradiado ao infinito.
INDAGAÇÃO A GASTON BACHELARD

Abro a gaveta do criado mudo:


papéis rabiscados, penas, pílulas, retratos...
Não sei por qual razão não consigo manter a ordem!
Gavetas e armários são nossas mentes exteriores?

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