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DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA (Pollyanna F.

Lima)

Este texto tem por objetivo apresentar uma descrição etnográfica do filme Ó pai,
ó (2007) dirigido por Monique Gardenberg. A obra é adaptação de uma peça de teatro de
Márcio Meirelles, escrito como protesto contra o então governador Antônio Carlos
Magalhães, que havia expulsado moradores, para a restauração do centro histórico. Após
breve descrição, focarei nas cenas em que se manifestam o tema do racismo.

Ó pai, ó é um retrato bem humorado do contexto cultural, mas também crítico das
contradições sociais e da violência em Salvador- Bahia. As cenas são ricas de
musicalidade, ritmo e beleza, algo característico da brasilidade baiana, o que cria
contraste com as imagens da pobreza, do racismo e da violência presentes no filme.

Durante o carnaval, personagens interagem no convívio do dia a dia, na celebração


dos festejos de rua e também nos conflitos de interesse que às vezes se manifestam de
forma violenta, às vezes, velada. Roque é um artista, trabalha em sua oficina de pintura,
porém sonha ser reconhecido como cantor. Ele conhece Rosa, recém-chegada de
Juazeiro, que vive com a madrinha Neuzão, uma comerciante lésbica e querida na
comunidade. Joana é a dona da pensão, evangélica ortodoxa, se gaba de criar os filhos
Cosme e Damião, com rigor e sob os preceitos da religião. Os meninos, por sua vez,
enganam a mãe dizendo ir à igreja, quando vão perambular pelas ruas, pedindo dinheiro
dos turistas e cometendo pequenos furtos. Há também Jerônimo, comerciante e agiota,
empresta dinheiro ao guarda municipal. Este, por sua vez, presta servidos de miliciano
àquele. Nesse contexto multicultural, há Carmen que faz abortos clandestinos, contudo
tem um coração enorme, pois pega crianças para criar. Sua irmã Psilene recém-chegada
da Europa, supostamente bem sucedida e casada com um estrangeiro, não obstante
precisou se prostituir para sobreviver. Tem Reginaldo, o taxista, casado e com a mulher
grávida, mas também amante da transsexual Yolanda. Tem também a baiana da cocada e
acarajé. E Boca (Moisés), o traficante, típico malando de bairro que irei analisar adiante.

Boca pede para Roque realizar serviços, como pintura de carrinhos de venda de
café, pois quer recrutar jovens para venda de drogas. Em uma das cenas da oficina, após
dialogo inicialmente pacífico, a tensão aumenta e ele dispara a seguinte frase: “Não vai
dar uma de preto e cagar minha porra na saída, meu brother!” Nesse momento, Roque
irado inicia a discussão. Boca o chama de cão e depois sai de cena. Apesar de irritado, o
dono da oficina apenas diz que os carrinhos estarão prontos às 5 horas e serão entregues
mediante pagamento.

Analisando o discurso acima, o racismo se manifesta ao sugerir com uma


expressão popular de teor racista que Roque, por ser negro não terminaria o serviço
satisfatoriamente. A ideologia do racismo se estrutura na noção de que as pessoas agem
de tal ou qual forma em função de sua “raça”. Sabe-se hoje que a ideia de raça é um
equívoco e um termo inapropriado do ponto de vista antropológico, pois não existem
raças, mas diferentes etnias. Ainda assim, o racismo continua a existir, porquanto está
entranhado nas estruturas sociais e, um dizer racista é apenas uma das centenas de
manifestação do fenômeno. Em O que é Racismo Estrutural?, de Silvio Almeida, racismo
é parte da estrutura social que reproduz parâmetros de discriminação. Segundo ele, as
explicações estruturais para a persistência do racismo têm, historicamente, propiciado um
grande debate sobre a herança da escravidão:
Sobre a relação entre escravidão e racismo, há basicamente, duas explicações. A primeira
parte da afirmação de que o racismo decorre das marcas deixadas pela escravidão e pelo
colonialismo. Conforme este raciocínio, as sociedades contemporâneas, mesmo após o
fim oficial dos regimes escravistas, permaneceriam presas a padrões mentais e
institucionais escravocratas, ou seja, racistas, autoritários e violentos. Dessa forma, o
racismo seria uma espécie de resquício da escravidão, uma contaminação essencial que,
especialmente nos países periféricos, impediria a modernização das economias e o
aparecimento de regimes democráticos. (ALMEIDA, 2018, p.143)

Na mesma obra, ele continua: “Outra corrente, apesar de não negar os impactos
terríveis da escravidão na formação econômica e social brasileira, dirá que as formas
contemporâneas do racismo são produtos do capitalismo avançado e da racionalidade
moderna e não resquícios de um passado que não passa.” (Idem, p.144) Como isso,
Almeida defende que o racismo faz parte das estruturas sociais de poder e não é algo
estranho a elas. E isso pode ser ilustrado com os discursos e atitudes dos personagens.

Em uma outra cena, a manifestação do racismo é revelada em camadas de


intimidação da vítima. Na hora do pagamento dos serviços, Boca chega na oficina
acompanhado de 7 rapazes e já vai mandando eles pegaram os carrinhos. No entanto
Roque exige o pagamento primeiro. Então o malandro tenta enrolar o protagonista
dizendo que precisou deixar parte do dinheiro com um policial e que, por isso, só pagaria
a metade. Roque deixa claro que não entregará nada sem o pagamento integral. Então o
traficante tenta intimidar a vítima com a presença do grupo de rapazes. A discussão fica
ainda mais tensa como podemos observar nas seguintes falas:

Boca: Você está dizendo isso, porque você é negro, porque nunca teve oportunidade. Certo, velho!
E você agora quer ganhar o dinheiro dessa forma, brother...

Roque: Eu já suportei demais os teus escárnios e suportar é a lei da minha raça, tá ligado. Agora
é assim, quero o dinheiro todo.

Boca: Você é escroto!

Roque: Estou seguindo o teu exemplo.

Boca: Está seguindo o quê! Você é negro! Você é negro, certo. Você negro. Você é negro. Você
é Negro. Você é Negro. você é NEGRO. VOCÊ É NEEEGRO. VOCÊ É NEEEGROOO!

Roque: Eu sou negro sim, mas, por acaso, negro não tem olhos, Boca? Negro não tem mão, não
tem pau, não tem sentido, Boca? não come da mesma comida?. Não sofre das mesmas doenças,
boca? hem não precisa dos mesmos remédios. ? Quando a gente sua, não sua o corpo tal qual um
branco, Boca.? Quando vocês dão porrada na gente, a gente não sangra igual, meu irmão? Quando
vocês fazem graça a gente não ri? Quando vocês dão um tiro na gente, porra, a gente não morre
também? Pois se a gente é igual em tudo, nisso também vamos ser, caralho!

Na cena, o racismo se manifesta em etapas ou estratégias de dominação.


Primeiramente, Boca tenta usar de estratégia autoritária quando entra na oficina dando
ordem para que os rapazes peguem os carrinhos, sem pagar antes. Com isso, pretende
mandar um recado sutil: “quem é que manda aqui”. Como Roque não se submete, o
malandro apela para outra abordagem tentando enganá-lo com uma desculpa qualquer,
ao mesmo tempo em que usa de outra forma intimidação, já que artista supostamente
estaria só com um ajudante na oficina e o malandro estaria em vantagem numérica com
os rapazes. Como a intimidação não funciona, porquanto o protagonista também está
acompanhado de 7 amigos, Boca parte para a etapa do confronto direto e da diminuição
do outro por meio do discurso abertamente racista. Ele diz que Roque é negro e, com isso,
quer dizer que um negro deve se submeter a um homem branco. Contudo Roque dá uma
resposta brilhante e desarma o racista. Quando apela para a questão da humanidade de
ambos, mostrando que tanto homem branco quanto homem negro são iguais. O negro tem
corpo, tem sentidos, sente dor, sangra e morre da mesma forma como um homem branco.
Portanto, deve ser tratado da mesma forma, com direitos e dignidade.

“No mundo – racista -, o negro não tem condições de reivindicar um tratamento


igualitário ou de exigir que suas diferenças sejam respeitadas; o tratamento dispensado
ao trabalhador e até mesmo as suas diferenças não dependem dele ou do que venha a
achar de si mesmo.” (ALMEIDA, 2018, p. 142) Na mente do racista opera parâmetros de
discriminação que são reproduzidos através das relações de poder e das estruturas socais,
que perpetua o racismo não apenas na forma de injuria racial, mas também como violência
policial, desigualdade social e de falta de oportunidade. Nesse sentido, o racismo não
pode ser encarado apenas como um ato individual a ser corrigido apenas com medidas
individuais como sanções jurídicas ou tratamentos psiquiátricos ao criminoso. Mas sim,
como um fenômeno estrutural e que deve ser combatido principalmente com medidas de
transformação das estruturas sociais de poder reprodutoras do racismo.

REFERÊNCIA:

O que é racismo estrutural? Silvio Almeida ALMEIDA - 2018 - O que é racismo


estrutural.pdf (usp.br) Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4610724/mod_resource/contente/1/almeida-
2018

Um Ensaio sobre a Baianidade em Ó Paí, ó: do cinema para a televisão! Bárbara de


Lira Bezerra Disponível em: https://www.revistageminis.ufscar.br › download

Ó PAÍ, Ó - FILME COMPLETO HD 1080p - YouTube Disponível em: https:


//www.youtube.com/ watch?v=20k

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