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GUETO

solilóquio com a morte

i
Ah, um dia me sentei naquela pedra enorme
e esperei a morte para ter com ela
palavras maduras:
uma prosa das profundezas.
meu coração, em apuros,
ouviu a voz de cristal partido
É a Morte, disse comigo,
Quero falar contigo
e caminhar pelas tardes
segurando sua mão austera.
Morte minha, de onde vens?
Te espero desde menina.
Só agora que tu vens!?
A Morte muda
não responde,
fria é sua presença.
Tenho te buscado há tanto tempo,
somente agora sei:
estás comigo desde o nascimento.
ii
Te encontro dentro de uma fruta partida
que não se come
porque amarga e corrompida.
No vermelho oblongo
de carne esquecida.
Te encontro num sonho ruim
dentro da noite líquida,
da sombra úmida do pântano
de uma antiga angústia,
sempre revivida.
Te encontro às vezes nos olhos do amado
que encaro de repente
distraída.
Tu estás no negro vítreo das pupilas,
porque oculta dentro da vida
e me arrancas suspiros
como amante devotado.
Te encontro no vértice das horas,
nos dias e na sucessão de eventos,
nos limites e no ouro das conquistas,
num sol antes do declínio,
se entregando à noite espessa.

MUSA RARA

sétimo céu

No adro branco,
o vasto onde passeias contido.
minha sombra
percorre aleias sem voltear
as flores da paisagem.
No jardim, roseiras rudes
à sombra dos salgueiros.
Entre as passadas
terra e granito,
gramas crescidas.
Entre jazigos,
eu, em seda azul,
túmida, ungida,
celebro o instante raro
de nossas vidas.

o imperador

Caminhas por essas trilhas silenciosas


e, na distância, te distingues de outras formas.
Teu corpo quente vibra e, segues,
resoluto, a correição das formigas.
Mas sem chegar a parte alguma.
Procuras sol e sombra,
repousas em uns barrancos verdes.
Miras, vertiginoso,
a avidez de um abismo,
espias as profundidades
com o horror de quem resiste
à contemplação do próprio espírito.

enamorados

Teria encontrado a palavra de ouro


no olhar que, discreto, se insinua?
Teria encontrado a chave da vida
só na mudez de olhos que diz tanto?
Que olhar, que boca, que corpo afável.
Luz que me faz padecer a razão.
Que encanto cálido
na mudez em mim
por não encontrar a voz perdida.
eu, ele, os outros,
universos em suspensão.
Entre paredes claras
nossos corpos sombrios
impregnavam o mundo
de uma chama úmida.
Quem é o dono dos meus ares?
Quem é aquele que me deu voz?
Quem é o autor dos meus pesares?
Quem é esse deus-algoz?
FECHADURAmorada antiga

Por que, em memória, o passado,


mais do que retrato perdido,
é pintura de raro requinte?
Por que as cores da paisagem
vibram o verniz úmido
nos olhos da nostalgia?
Real e sonho:
construções íntimas
no âmago da matéria perecível.
Persigo em vão uma luz
em lembranças fugidias.
E nada me é pertencido
nessa luta eterna
de vencidos.
a fera

Um tigre pisa macio sobre o poente.


Rasga o solo ígneo com garras de opalina.
Um chão de transparências puras
abre-se dentro dos seus olhos.
eu me reconheci, ao longe,
distinta e sem paisagem.
Vi aquele monstro de sinuosidades
com a beleza rara das coisas eternas.
o enforcado

Teu nome é chaga,


cicatriz e dor.
Como se visses poesia
nas marcas de um açoite
Teu nome é loucura.
altivez e doçura.
Como se ouvisses música
na voz do teu algoz
Te amo porque és
pleno em solidão
e espanto.
Te amo porque és
o meu avesso.
Te contemplo,
sólido e mudo.

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