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DIÁLOGOS
o BANQUETE - FÉDON - SOFISTA - pOLíTICO
Traduções de:
JOSÉ CAVALCANTE DE SOUZA (O Banquete)
JORGE PALEIKAT E JOÃO CRUZ COSTA (Fédon, Sofista. Político)
1972
o BANQUETE .......•...............•...................•... 7
FÉDON .......•••.•.•..••.......••..•..•••..•..•.....•.... 61
SOFISTA .•............................................•... 135
POLITICO . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
o BANQUETE
Texto, tradução e notas
PLATÃO
tradução nada tenha de excepcional, e que o seu autor, em muitos torneios defra-
ses e em muita escolha de palavra, tenha sido vítima da falta de disciplina e de
tradição que está porventura alegando nesse setor da nossa atividade intelectual.
No entanto, em alguma passagem ele terá talvez acertado, e esse parco resultado
poderá dar uma idéia do que seria uma reação especial nossa a um texto helêni-
co, que conhecemos geralmente através da sensibiltdade e da elucubraçõo do
francês, do inglês, do alemão, etc. Nossa língua tem necessariamente uma malea-
bilidade especial, uma peculiar distribuição do vocabulário, uma maneira pró-
pria de utilizar as imagens e de proceder às abstrações, e todos esses aspectos da
sua capacidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verda-
deiro descfto que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para
uma tradução. A linguagem filasâfica sobretudo, e em particular a linguagem de
Platão, oferece sob esse aspecto um vastíssimo campo para experiências dessa
natureza. Alguns exemplos do Banquete ilustram muito bem esse tipo especial de
dificuldades que o tradutor pode encontrar e para as quais ele acaba muitas vezes
recorrendo às notas explicativas. No entanto, se estas são inevitáveis numa tra-
dução moderna, não é absolutamente inevitável que sejam as mesmas em todas
as línguas modernas. Fazer com que se manifestasse nesta traduçõo justamente a
diferença que acusa a reação própria e o carâter de nossa língua, eis o objetivo
semprepresente do tradutor.
Quanto às pequenas notas explicativas, dão elas naturalmente ·um rápido
esclarecimento sobre nomes e fatos da ctvilizaçãa helênica aparecidos no con-
texto do Banquete, mas o que elas almejam sobretudo é ajudar à compreensão
desta obra platântca, ao mesmo tempo em seus trechos característicos e em seu
conjunto. Alguns anos de ensino de literatura grega levaram-me à curiosa cons-
tatação da impaciência e desatenção com que uma inteligência modema lê um
diálogo platónico. Quem quiser por si mesmo tirar a prova disso, procure a uma
primeira leitura resumir qualquer um desses diálogos, mesmo dos menores, e de-
pois confira o seu resumo com uma segunda leitura. Foi a vontade de ajudar o
leitor moderno nesse ponto que inspirou a maioria das notas.
Finalmente devo assinalar que, não obstante a modéstia de conteúdo e de
proporções deste trabalho, eu não teria sido capaz de efetuá-lo sem a constante
orientação do Prof. Aubreton, cujas observações levaram-me a sucessivos reto-
ques, particularmente na tradução e na confecção das notas. ..1 ele, por conse-
guinte, quero deixar expressos, com a minha admiração, os mais sinceros
agradecimentos.
J. C. de Souza
Apolodoro 1 e um Companheiro
seus discursos sobre o amor, como alguma coisa, eu era mais miserável
foram eles. Contou-mos uma outra que qualquer outro, e não menos que
pessoa que os tinha ouvido de Fênix, o tu agora, se crês que tudo se deve fazer
filho.de Filipe, e que disse que também de preferência à filosofia" 6. "Não fi·
tu sabias. Ele porém nada tinha de ques zombando, tornou ele, mas antes
claro a dizer. Conta-me então, pois és dize-me quando se deu esse encontro".
o mais apontado a relatar as palavras "Quando éramos crianças ainda, res-
do teu companheiro. E antes de tudo, pondi-lhe, e com sua primeira tragédia
5 Entre a data da- realização do banquete (v.
1 O interlocutor de Sócrates não está só. infra 173a) e a da sua narração .por Apolodoro
(N. doT.) medeiam portanto muitos anos. Tanto quanto
2 Porto de Atenas, ao sul do Pireu, a menos de um indício cronológico, essa notícia vale como
6 km da cidade. (N. do T.) . uma curiosa ilustração da importância da me-
3 A brincadeira consiste no tom solene da inter- mória na cultura da época. V. infra 173 b e cf.
pelação, dado pelo patronímico e pelo emprego Fédon, 57 a-b (N. do T.)
do demonstrativo em vez do pronome pessoal. 6 O entusiasmo de Apolodoro, raiando o ridí-
(N. doT.) culo, constitui sem dúvida o primeiro traço dó
4 Literalmente, jantar coletivo. Depois da refei- retrato que o Banquete nos dá de um SóCrates
ção propriamente dita é que havia o simpósio, capaz de suscitar desencontradas adesões, e nes-
i.e., "bebida em conjunto", acompanhado das se .sentido é uma hábil antecipação da atitude
mais variadas diversões, entre as quais as com- de Alcibíades, também ridícula, mas noutra
petições literárias. (N. do T.) perspectiva. Cf. infra 222 c-d (N. do T.)
14 PLATÃO
vós vos conte, devo fazê-lo. Eu, aliás, ço, conforme me ia contando Aristo-
quando sobre filosofia digo eu mesmo demo, que também eu' tentarei contar-
algumas palavras ou as ouço de outro, vos.
afora o proveito que creio tirar, ale-
gro-me ao extremo; quando, porém, se Disse ele que o encontrara Sócrates,
trata de outros assuntos, sobretudo dos banhado e calçado com as sandálias, o
vossos, de homens ricos e negociantes, que 'poucas veies fazia; perguntou-lhe
à mim mesmo me irrito e de vós me então onde ia assim tão bonito.
apiedo, os meus companheiros, que Respondeu-lhe Sócrates: - Ao jan-
pensais fazer algo quando nada fazeis. tar em casa de Agatão. Ontem eu o
d Talvez também vós me considereis evitei, nas cerimônias da vitória, por
infeliz, e creio que é verdade o que pré- medo da multidão; mas concordei em
sumis; eu, todavia, quanto a vós, não comparecer hoje. E eis por que me
presumo, mas bem sei. .embelezei assim, a fim de ir belo à casa
COMPANHEIRO .de um belo. E tu - disse ele - que tal
- És sempre o mesmo, Apolodo- te dispores a ir sem convite ao jantar?
7 Em 416, no arcontado de Eufemo. V. supra - Como quiseres - tomou-lhe o
nota S. (N. do T.)
8 Os que formavam o coro de sua tragédia.
outro.
(N. doT.) - Segue-me, então - continuou
9Tal como o próprio Sócrates (v. infra 174a). Sócrates- e estraguemos o provér-
Sem dúvida, outra indicação do fascínio que
Sócrates exercia sobre os amigos. (N do T.) bio, alterando-o assim: "A festins de
O BANQUETE 15
Deixai-o! É um hábito seu esse 1 5: às dos copos que pelo fio de lã escorre 1 7
vezes retira-se onde quer que se encon- do mais cheio ao mais vazio. Se é
tre, e fica parado. Virá logo porém, assim também a sabedoria, muito
segundo creio. Não o incomodeis por- aprecio reclinar-me ao teu lado, pois
tanto, mas deixai -o. creio que de ti serei cumulado com
- Pois bem, que assim se faça, se é uma vasta e bela sabedoria. A minha
teu parecer - tornou Agatão. - E seria um tanto ordinária, ou mesmo
vocês, meninos, atendam aos convivas, duvidosa como um sonho, enquanto
Vocês bem servem o que lhes apraz, que a tua é brilhante e muito desenvol-
quando ninguém os vigia, o que jamais vida, ela que de tua mocidade tão
fiz; agora portanto, como se também intensamente brilhou, tornando-se an-
eu fosse por vocês convidado ao jan- teontem manifesta a mais de trinta mil
tar, como estes outros, sirvam-nos a gregos que a testemunharam.
fim de que os louvemos. - És um insolente, ó Sócrates -
- Depois disso - continuou Aris- disse Agatão. -- Quanto a isso, logo
todemo - puseram-se a jantar, sem mais decidiremos eu e tu da nossa
que Sócrates entrasse. Agatão muitas sabedoria, tomando Dioniso por
vezes manda chamá-lo, mas o. amigo juiz 1 8; agora porém, primeiro apron-
não o deixa. Enfim ele chega, sem ter ta-te para o jantar.
demorado muito como era seu costu- - Depois disso - continuou Aris- 176 •
me, mas exatamente quando estavam todemo - reclinou-se Sócrates e jan-
no meio da refeição. Agatão, que se tou como os outros; fizeram então
encontrava reclinado sozinho no últi- libações e, depois dos hinos ao deus e
mo leito 1 6, exclama: - Aqui, Sócra- dos ritos de costume, voltam-se à bebi-
tes! Reclina-te ao meu lado, a fim de da. Pausânias então começa a falar
que ao teu contato desfrute eu da sábia mais ou menos assim: - Bem, senho-
idéia que te ocorreu em frente de casa. res, qual o modo mais cômodo de
Pois é evidente que a encontraste, e bebermos? Eu por mim digo-vos que
que a tens, pois não terias desistido estou muito indisposto com a bebe-
antes. deira de ontem, e preciso tomar fôlego
Sócrates então senta-se e diz': - - e creio que também a maioria dos _
Seria bom, Agatão, se de tal natureza senhores, pois estáveis lá; vêde então
fosse a sabedoria que do mais cheio de que modo poderíamos beber o mais
escorresse ao mais vazio, quando um comodamente possível.
ao outro nos tocássemos, como a água Aristófanes disse então: - É bom o
15 JLcuciosa essa explicação de um hábito so- que dizes, Pausânias, quede qualquer
crático a amigos de Sócrates, tanto mais que, modo arranjemos um meio de facilitar
um pouco abaixo (d l-Z), Agatão revela estar
familiarizado com ele. Isso denuncia a ficção
J?latônica, e em particular a intenção de sugerir 17 Sem dúvida um processo de purificação da
desde já a. capacidade socrática para as longas água. Aristófanes (Vespas, 701-70Z) refere-se
concentrações de espírito, como a que Alcibía- ao mesmo processo, mas com relação ao óleo.
des contará em seu discurso (220c-d). (N. do T.) (N. do T.)
16 Os divãs do banquete se dispunham em for- 18 Patrono dos concursos teatrais e deus do vi-
ma de uma ferradura. No extremo esquerdo fi- nho, Dioniso é apropriadamente mencionado
cava o anfitrião, que punha à sua direita o hós- por Agatão como o árbitro natural da próxima
pede de honra. o lugar que Agatão oferece a competição entre os convivas, no simpósio pro-
Sócrates. (N. do T.) priamente dito. (N. do T.)
O BANQUETE 17
a bebida, pois também eu sou dos que mas bebendo cada um a seu bel-pra-
ontem nela se afogaram. zer" ".
Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acú- - Como então - continuou Erixí-
meno, e lhes disse: - Tendes razão! maco .- é isso que se decide, beber
Mas de um.de.vôs ainda preciso ouvir cada um quanto quiser, sem que nada
como se sente para resistir à bebida; seja forçado, o que sugiro então é que
não-é, Agatão? mandemos embora a flautista que aca-
- Absolutamente - disse este - bou de chegar, que ela vá flautear para
também eu não me sinto capaz. si mesma, se quiser, ou para as mulhe-
- Uma bela ocasião seria para res lá dentro; quanto a nós, com dis-
nós, ao que parece - continuou Erixí- cursos devemos fazer nossa reunião
maco - para mim, para Aristodemo, hoje; e que discursos - eis o que, se
Fedro e os outros, se vós os mais capa- vos apraz, desejo propor-vos.
zes de beber desistis agora; nós, com Todos então declaram que lhes 177 a
fízermos! ". Ora, como nenhum dos minha, mas aqui de Fedro a história
presentes parece disposto a beber que vou dizer. Fedro, com efeito,
muito vinho, talvez, se a respeito do frequentemente me diz irritado: -
que é a embriaguez eu dissesse o que Não é estranho, Erixímaco, que para
ela é, seria menos desagradável. Pois outros deuses haja hinos e peãs, feitos
para mim eis uma evidência que me pelos poetas, enquanto que ao Amor
veio da prática da medicina: é esse um todavia, um deus tão venerável e tão
mal terrível para os homens, a embria- grande, jamais um só dos poetas que
guez; e nem eu próprio desejaria beber tanto se engrandeceram fez sequer um
muito nem a outro eu o aconselharia, encômioê ? Se queres, observa tam-
ê
sobretudo a quem está com ressaca da bém os' bons sofistas: a Hércules e a
véspera. outros eles compõem louvores em
- Na verdade - exclamou a se- prosa, como o excelente Pródico" 4 -
guir Fedro de Mirrinote- o - eu costu-
mo dar-te atenção, principalmente em 21 Geralmente o UUIl1TOU!ápXTlÇ, i.e., o chefe
tudo que dizes de medicina; e agora, se do simpósio, eleito pelos convivas, determinava
o programa da bebida, fixando inclusive o grau
bem decidirem, também estes o farão. de mistura do vinho a ser obrigatoriamente
Ouvindo .isso, concordam todos em ingerido. V. infra 213e, 9-10. (N. do T.)
22 Melanipa, a Sábia, tragédia perdida de Eurí-
não passar a reunião embriagados, pedes, que também escreveu Melanipa, a Prisio-
neira. Erixímaco refere-se ao verso aVK €iJOç o
19 A oC"PfI0Ql'v1J. soçrática, i.e., o domínio dos- IlviJaç. fllilç IlTlTPÓ<; 1Tápa (frag, 487 Wag-
apetites e sentidos do corpo, resiste tJlllJO à fa- ner): não é minha a história, mas de minha
diga e à dor como ao prazerTv.--infra 220aT; mãe. (N. do/r.)
-tal como Platão queria. que fossem os guardiães 23 Isto é, uma composição poética, consagrada
da sua cidade ideal. V. República III, 413d-e. exclusivamente ao louvor de um deus ou de um
(N. doT.) herói. Um elogio poético belíssimo, embora no
20 Um dos numerosos demos (no tempo de espírito da tragédia. encontra-se no famoso 39
Heródoto 100), i.e., distritos em que se subdi- estásimo da Antlgona de Sófocles, 783-800.
vidia a população de Atica. (N. do T.) (N. doT.)
18 PLATÃO
Amor. E Parmênides diz da sua ori- resse de se fazer uma cidade ou uma
gem expedição de amantes e de amados,
não haveria melhor maneira de a cons-
tituírem senão afastando-se eles de
bem antes de todos os deusespensou- 9 tudo que é feio e porfiando entre si no
em Amor. apreço à honra; e quando lutassem um 179 a
mãe, os quais ela tanto excedeu na morte; assim é que, admirados a mais
aféIção do seu amor que os fez apare- não poder, os deuses excepcionalmente
cer como estranhos ao filho, e parentes o honraram, porque em tanta conta ele
apenas de nome; depois de praticar ela tinha o amante. Que Ésquilo sem dúvi-
ato, tão belo pareceu ele não só da fala à toa, quando afirma que Aqui-
aos homens mas até aos deuses que, les era amante de Pátroclo, ele que era
embora muitos tenham feito muitas mais belo não somente do que este
ações belas, foi a um bem reduzido nú- como evidentemente do que todos os
mero que os deuses concederam esta heróis, e ainda imberbe, e além disso
honra de fazer do Hades subir nova- muito mais novo, como diz Homero.
mente sua alma, ao passo que a dela Mas com efeito, o que. realmente mais
efes· fizeram subir, admirados do seu admiram e honram os deuses é essa
gesto; é assim que até os deuses hon- virtude que se forma em tomo do
ram ao máximo o zelo e a virtude no amor, porém mais ainda admiram-na e
"àmor. A Orfeu, o filho de Eagro, eles o apreciam e recompensam quando é o
fizeram voltar sem o seu objetivo, pois amado que gosta do amante do que
foi um espectro o que eles lhe mostra- quando é este daquele. Eis por que a
ram da mulher a que vinha, e não lha Aquiles eles honraram mais do que a
deram, por lhes parecer que ele se Alceste, enviando-o às ilhas dos bem-
acovardava, citaredo que era, e não aventurados.
ousava por seu amor morrer como Assim, pois, eu afirmo que o Amor é
Alceste, mas maquinava um meio de dos deuses o mais antigo, o mais hon-
penetrar vivo no Hades" 4. Foi real- rado e o mais poderoso para a aquisi-
mente por isso que lhe fizeram justiça, ção da virtude e da felicidade entre os
e determinaram que sua morte ocor- homensê 5, tanto em sua vidac:omo
resse pelas mulheres; não o honraram após sua morte."
como a Aquiles, o filho de Têtis, nem o De Fedro foi mais ou menos este o
enviaram às ilhas dos bem-aventu- discurso que pronunciou, no dizer de
rados; que aquele, informado pela mãe Aristodemo; depois de Fedro houve al-
de que morreria se matasse Heitor, guns outros de que ele não se lembrava
enquanto que se o não matasse voltaria bem, os quais deixou de lado, pas-
à pátria onde morreria velho, .teve a sando a contar o dePausânias. Disse
este: "Não me parece bela, ó Fedro, a
34 Não é essa evidentemente a versão comum da
lenda. Descendo ao Hades para trazer de volta maneira como nos foi proposto o. dis-
sua querida Eurídice, Orfeu consegue convencer curso, essa. simples prescrição de um
a prôpría Perséfone, rainha daquele reino, gra-
ças aos doces acentos de sua música. Mas esta elogio ao Amor.' Se, com efeito, um só
lhe impõe uma condição: Orfeu não deve olhar fosse o Amor, muito bem estaria; na
para trás, enquanto não subir à região da luz.
Já quase ao fim da jornada, porém, o músico realidade porém. não é ele um só; e
duvida da sinceridade de Perséfone e olha para
trás: logo sua amada desaparece, e para'·sem- 35 Confrontar essa peroração com o final do
pre. A lembrança constante de Eurídice faz-lhe discurso de Sócrates, particularmente 212a-b.
esquecer as outras mulheres que, enciumadas, O poder do amor, a virtude e a felicidade têm
matam-no. (N. do T.) conteúdo diferente nos dois discursos. (N. do T.)
o BANQUETE 21
d não sendo um SÓ, é majsacertado pri- res" 7 que os jovens, e depois o que
meiro dizer qual o que se deve elogiar. neles amam é mais o corpo que a alma,
Tentarei eu portanto corrigir este e ainda dos mais desprovidos de inteli-
senão, e primeiro dizer qual o Amor gência, tendo em mira apenas o efetuar
que se deve elogiar, depois fazer um o "ato, sem se preocupar se é decente-
elogio digno do deus. Todos, com efei- mente ou não; daí resulta então que
to, sabemos não há eles fazem o que lhes ocorre, tanto o
Afrodite. Se portanto uma só fosse que é bom como o seu contrário. Tra-
esta. um só seria o Amor; como porém do amor proveniente
são duas, é forçoso que dois sejam da deusa que é mais jovem que a outra
também os Amores. E como não são e que em sua geração participa da
duas deusas? Uma, a mais velha sem fêmea e do macho. O outro porém é o
dúvida, não tem mãe e é filha de da Urânia, que primeiramente não par-
ticipa da fêmea mas só do macho - e
-Uran0 3 6, e a ela é que chamamos de
é este o amor aos jovens" 8 - e depois
Urânia, a Celestial; a mais nova, filha
é a mais velha" 9, isenta de violência;
de Zeus e de Dione, chamamo-la de
daí então é que se voltam ao que é
Pandêmia, a Popular. É forçoso então
másculo os inspirados. deste amor,
que também o Amor, coadjuvante de .afeiçoando-se ao que é de natureza
uma, se chame corretamente Pandê- mais forte e que tem mais inteligência.
mio, o Popular, e o outro Urânio, o
E ainda, no próprio amor aos jovens
Celestial. Por conseguinte, é sem dúvi-
poder-se-iam reconhecer os que estão d
da preciso louvar todos os deuses, mas movidos exclusivamente por esse tipo _
o dom que a um e a outro coube deve- de amor 4 o ; não amam eles, com efeito,
se procurar dizer. Toda ação, com efei- os meninos, mas os que já começam a
to, é assim que se apresenta: em si ter juízo, o que se dá quando lhes vêm
mesma, enquanto simplesmente prati- chegando as barbas. Estão dispostos,
181 • cada, nem e bela nem feia. Por exem- penso eu, os que começam desse
plo, o que agora nós fazemos, beber, ponto, a amar para acompanhar toda.a,
cantar, conversar, nada disso em si é vida e viver em comum, e não a enga-
belo, mas é na ação, na maneira como nar e, depois de tomar o jovem em sua
e feito, que resulta tal; o que é bela e inocência e ludibriá-lo, partir à procu-
corretamente feito fica belo, o que não ra de outro. Seria preciso haver uma lei
o é fica feio. Assim é que o amar e o proibindo que se amassem os meninos,
Amor não é .todo ele belo e digno de a fim de que não se perdesse na incer-
ser louvado, mas apenas o que leva a teza tanto esforço; pois é na verdade
amar belamente. incerto o destino dos meninos, a que
Ora pois, o Amor de Afrodite Pan- ponto do vício ou da virtude eles che-
dêmia é realmente popular e faz o que 37 Confrontar com 208 e, onde Sócrates encon-
lhe ocorre; é a ele que os homens vul- tra o grande sentido do amor normal à mulher,
gares amam. E amam tais pessoas, aqui especiosamente confundido como o tipo
inferior do amor. (N. do T.)
primeiramente não menos as mulhe- 38 Muitos editores consideram esta frase uma
glosa. (N. do T.)
36 Hesíodo, Teogonia, 188-206. -Urano foi mu- 39 Na velhice .domina a razão. Daí é que os
tilado por seu filho Zeus, e o esperma do seu amantes desse amor procuram os que já come-
membro viril,atirado ao mar, espumou sobre çam a ter juízo ... (N. do T.)
as águas, donde se formou Afrodite. Em Ho- 40 Confrontar com 210a-b. A progressão do
mero, no entanto, essa deusa é filha de Zeus, amor, segundo Diotima, exige que o amante
e de Dione (Ilíada, V, 370). (N. do T,) largue o amor violento de um só. (N. do T.)
22 PLATÃO
gam em seu corpo e sua alma. Ora, se veita aos seus governantes que nasçam
os bons amantes a si mesmos se grandes idéias entre os governados,
impõem voluntariamente esta lei, de- nem amizades e associações inabalá-
via-se também a estes amantes popula- veis, o que justamente, mais do que
res obrigá-los a lei semelhante, assim qualquer outra coisa, costuma o amor
como, com as mulheres de condição inspirar. Por experiência aprenderam
livre 41, obrigamo-las na medida do isto os tiranos 4 4 desta cidade; pois foi
possível a não manter relações amoro- .o amor de Aristogitão e a amizade de
182. sas. São estes, com efeito, os que justa- Harmódio que, afirmando-se, destruí-
mente criaram o descrédito, a ponto de ram-lhes o poder. Assim, onde se esta-
alguns ousarem dizer que é vergonhoso beleceu que é feio o aquiescer aos
o aquiescer aos amantes; e assim o amantes, é por defeito dos que o esta-
dizem porque são estes os que eles beleceram que assim fica, graças à
consideram, vendo o seu despropósito ambição dos governantes e à covardia
e desregramento, pois não é sem dúvi- dos governados; e onde simplesmente
da quando feito com moderação e se determinou que é belo, foi em conse-
norma que um ato, seja qual for, incor- qüência da inércia dos que assim
reria em justa censura. estabeleceram. Aqui porém, muito
Aliás, a lei do amor nas demais mais bela que estas é a norma que se
cidades é fácil de entender, pois é sim- instituiu e, como eu disse, não é fácil
ples a sua determinação; aqui 4 2 porém de entender. A quem, com efeito, tenha
ela é complexa. Em Élida, com efeito, considerado 4 5 que se diz ser mais belo
na Lacedemônia, na Beócia, e onde amar claramente que às ocultas, e
não se saiba falar, simplesmente se sobretudo os mais nobres e os melho-
estabeleceu que é belo aquiescer aos .....res, embora mais feios que outros; que
amantes, e ninguém, jovem ou velho, por outro lado o encorajamento dado
diria que é feio, a fim de não terem difi- por todos aos amantes é extraordinário
culdades, creio eu, em tentativas de e não como se estivesse a fazer algum
persuadir os jovens com a palavra, ato feio, e se fez ele uma conquista pa-
incapazes que são de falar; na Jônia, rece belo o seu ato, se não, parece feio;
porém, e em muitas outras partes é e ainda, que em sua tentativa de con-
tido como feio, por quantos habitam quista deu a lei ao amante a possibili-
sob a influência dos bárbaros. Entre os dade de ser louvado na prática de atos
I
bárbaros, com efeito, por causa das 44 Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato, Numa
tiranias, é uma coisa feia esse amor, primeira conspiração em 514, ao que parece
por -motivos pessoais, Hiparco foi assassinado,
justamente como o da sabedoria e da enquanto Armódío morria na luta e seu com-
ginástica 4 3; é que, imagino, não apro- panheiro Aristogitão era condenado à morte.
Quatro anos depois Hípias perdia o poder, víti-
41 Isto é, não escravas. (N. do T.) ma de uma nova conspiração (V. Tucídides, VI,
42 Os manuscritos trazem a expressão "e na 54). (N. do T.)
Lacedemônia" depois de "aqui", o que não con- 45 Essa subordinada, iniciando um longo perío-
corda com a notória tendência dos lacedemô- do, não tem seqüência lógica com a sua princi-
nios ao homossexualismo. (N. do T.) pal, formulada em l83c (Poder-se-ia pensar
43 Observar a expressão grega correspondente que ... ). Mesmo à custa da clareza, preferimos
( <PlXouo.pta Koi Ti <PlXlYylJl.lvouÍIl ) e lembrar conservar a mesma articulação ampla e irregu-
eram dos lar, a fim de permitir uma melhor apreciação
Sócrates (cf. a introd. do Cârmldes, LISIS, La- do estilo do discurso, geralmente apontado
queS;-etc.). (N. do T.) como uma paródia de Isócrates. (N. do T.)
O BANQUETE 23
fato de ser amante como também o nossa lei provar bem e devidamente, e
serem os amados amigos dos amantes. que 'a uns se aquiesça e dos outros se
Quando porém, impondo-lhes um pe- fuja. Por isso é que uns ela exorta a
dagogo 4 7, os pais não permitem aos perseguir e outros a evitar, arbitrando
46 Por que da filosofia? Vários críticos tenta- e aferindo qual é porventura o tipo do
ram corrigir essa lição dos mss, Burnet apôs-lhe amante e qual o do amado. Assim é
o 6belo da suspeita. No entanto, não se deve
entender a palavra no seu conceito platônico, que, por esse motivo, primeiramente o
mas antes na acepção menos específica de cul- se deixar conquistar é tido como feio, a
tura superior, tal como, por exemplo, a enten-
dia Is6crates, um saber prático que incluía 48,Uma longínqua antecipação da idéia desen-
entre .outras coisas o conhecimento das boas volvida plenamente em 207d-208b. (N. do T.)
normas do cidadão. (N. do T.) 49 Expressão homérica (Ilíada, II, 71), aplicada
47 e. o escravo encarregado de acompanhar os a Oneiros, o sonho personificado, que veio a
jovens à palestra e à escola. (N. do T.) Agamenão. (N. do T.)
PLATÃO
24
fim de que possa haver tempo, que bem segundo em precisão de adquirir para
parece o mais das vezes ser uma exce- a sua educação e demais competência,
lente prova; e depois o deixar-se con- só então, quando ao mesmoobjetivo
quistar pelo dinheiro e pelo prestígio convergem essas duas normas, só
político é tido como feio, quer a um então é que coincide ser belo o aquies-
mau trato nos assustemos sem reagir, cer o amado ao amante e em mais
quer beneficiados em dinheiro ou em nenhuma outra ocasião. Nesse caso,
sucesso político não os desprezemos; mesmo o ser enganado não é nada feio;
nenhuma dessas vantagens, com efeito, em todos os outros casos porém é
parece firme ou constante, afora o fato vergonhoso, quer se seja enganado,
de que delas nem mesmo se pode deri- quer não. Se alguém com efeito, depois 185 a
sional. Pois de novo revém a mesma cujo conhecimento nas translações dos
idéia, que aos homens moderados, e astros e nas estações do ano chama-se
'para que mais moderados se tomem os astronomia. E ainda mais, não só
que ainda não sejam, deve-se aquiescer todos os sacrifícios, como também os
e conservar o seu amor, que é o belo, o casos a que preside a arte divinatória
celestial, o Amor da musa Urânia; o - e estes são os que constituem o
outro, o de Polímnia 61, é o popular, comércio recíproco dos deuses e dos
que com precaução se deve trazer homens - sobre nada mais versam
àqueles a quem se traz, a fim de que se senão sobre a conservação e a cura 62
colha o seu prazer sem que nenhuma do Amor. Toda impiedade, com efeito,
intemperança ele suscite, tal como em costuma advir, se ao Amor moderado
nossa arte é uma importante tarefa o não se aquiesce nem se lhe tributa
servir-se'convenientemente dos apetites honra e respeito em toda ação, e sim
da arte culinária, de modo a que sem ao outro, tanto no tocante aos pais,
doença se colha o seu prazer. Tanto na vivos e mortos, quanto aos deuses; e
música então, como na medicina e em foi nisso que se assinou à arte divina-
todas as outras artes, humanas e divi- tória o exame dos amores e sua cura, e
nas, na medida do possível, assim é que por sua vez é a arte divina-
conservar um e outro amor; ambos tória produtora 63 de amizade entre
188. com efeito nelas se encontram. De deuses e homens, graças ao conheci-
fato, até a constituição das estações do mento de todas as manifestações de
ano está repleta desses dois amores, e amor que, entre os homens, se orien-
quando se tomam de um moderado tam para ajustiça divina e a piedade.
amor um pelo outro os contrários de Assim, múltiplo e grande, ou me-
que há pouco eu falava, o quente e o lhor, universal é o poder que em geral
frio, o seco e o úmido, e adquirem uma tem todo o Amor, mas aquele que em
harmonia e uma mistura razoável, che- tomo do que é bom se consuma com
gam trazendo bonança e saúde aos sabedoria e justiça, entre nós como
homens, aos outros animais e às plan- entre os deuses, é o que tem o máximo
tas, e nenhuma ofensa fazem; quando poder e toda felicidade nos prepara,
porém éo Amor casado com a violên- pondo-nos em condições de não só
cia que se toma mais forte nas estações entre nós mantermos convívio e amiza-
do ano, muitos estragos ele faz, e ofen- de, como também com os que são mais
sas. Tanto 'as pestes, com efeito, costu- poderosos que nós, os deuses. Em
mam resultar de tais causas, como conclusão, talvez também eu, lou-
também muitas e várias doenças nos vando o Amor, muita coisa estou dei-
animais, como nas plantas; geadas,
xando de lado, não todavia por minha
granizos e alforras resultam, com efei-
vontade. Mas se algo omiti, é tua tare-
to, do excesso e da intemperança
fa, ó Aristófanes, completar; ou se um
mútua de tais manifestações do amor,
outro modo tens em mente de elogiar o
61 Padroeira da poesia lírica. Ao contrário de
Pausânias, Erixímaco associou o amor às Mu- deus, elogia-o, uma vez que o teu solu-
sas e não a Afrodite, o que está de acordo com ço já o fizeste cessar."
o caráter que seu discurso lhe empresta: o de
uma força de aglutinação universal, suscetível 62 A assimilação das outras artes 'à medicina
de ser tratada pela atte. Em lugar de Afrodite tornou-se tão completa que o Amor é conside-
Pandêmia, ele imaginou a Musa da poesia líri- rado como uma afecção como as outras doen-
ca, a poesia dos sentimentos pessoais e das pai- ças. (N.doT.)
xões. (N. do T.) 63'V.' supra p. 26,. nota 59.
28 PLATÃO
189 • Tendo então tomado a palavra, con- sacrifícios lhe fariam, não como agora
tinuou Aristodemo, disse Aristófanes: que nada disso há em sua honra, quan-
- Bem que cessou! Não todavia, é do mais que tudo deve haver. É ele d
verdade, antes de lhe ter eu aplicado o com efeito o deus mais amigo do
espirro, a ponto de me admirar que a homem, protetor e médico desses
boa ordem do corpo requeira tais ruí- males, de cuja cura dependeria sem dú-
dos e comichões como é o espirro; pois vida a maior felicidade para o gênero
logo o soluço parou, quando lhe apli- humano. Tentarei eu portanto iniciar-
quei o espirro. vos 65 em seu poder, e vós o ensinareis
E Erixímaco lhe disse: - Meu bom aos outros. Mas é preciso primeiro
Aristófanes, vê o que fazes. Estás a aprenderdes a natureza humana e as
fazer graça, quando vais falar, e me suas vicissitudes. Com efeito, nossa
forças a vigiar o teu discurso, se por- natureza outrora não era a mesma que
ventura vais dizer algo risível, quando a de agora, mas diferente. Em primeiro
te é permitido falar em paz. lugar, três eram os gêneros da humani-
Aristófanes riu e retomou: - Tens dade, não dois como agora, o mascu-
razão, Erixímaco! Fique-me o dito lino e o feminino, mas também havia a
pelo não dito. Mas não me vigies, que mais um terceiro, comum a estes dois,
eu receio, a respeito do que vai ser do qual resta agora um nome, desapa-
dito, que seja não engraçado o que vou recida a coisa; andrógino era então um
dizer - pois isso seria proveitoso e gênero distinto, tanto na forma como
próprio da nossa musa - mas ridícu-,
no nome comum aos dois, ao mascu-
lo 6 4.
- Pois sim! - disse o outro - lino e ao feminino, enquanto agora
lançada a tua seta, Aristófanes, pensas nada mais é que um nome posto em
em fugir; mas toma cuidado e fala desonra. Depois, inteiriça 6 6 era a
como se fosses prestar contas. Talvez forma de cada homem, com o dorso
todavia, se bem me parecer, eu te redondo, os flancos em círculo; quatro
largarei. mãos ele tinha, e as pernas o mesmo
"Na verdade, Erixímaco, disse Aris- tanto das mãos, dois rostos sobre um 19Q •
compaixão, Zeus consegue outro expe- uma mulher não dirigem muito sua
diente, e lhes muda o sexo para a frente atenção aos homens, mas antes estão
- pois até então eles o tinham para voltadas para as mulheres e as amigui-
fora, e geravam e reproduziam não um nhas provêm deste tipo. E todos os que
no outro, mas na terra 69, como as são corte de um macho perseguem o
cigarras; pondo assim o sexo na frente macho, e enquanto são crianças, como
deles fez com que através dele se cortículos do macho, gostam dos ho-
processasse a geração um no outro, o mens e se comprazem em deitar-se J92 a
os quais nem saberiam dizer o que que- tanto ao desejo e procura do todo que
rem que lhes venha da parte de um ao se dá o nome de âmor. Anteriormente,
outro. A ninguém com efeito pareceria como estou dizendo, nós éramos um
que se trata de união sexual 72, e que é só, e agora é que, por causa da nossa 193 a
d E eis que Fedro, disse Aristodemo, Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer
interrompeu e exclamou: - Meu caro em vinganças", o mais feliz, porque é
Agatão, se responderes a Sócrates, o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é
nada mais lhe importará do programa, o mais belo por ser tal como se segue.
como quer que ande e o que quer que Primeiramente, é o mais jovem dos
resulte, contanto que ele tenha com deuses, ó Fedro. E uma grande prova
quem dialogue, sobretudo se é com um do que digo ele próprio fornece, quan-
belo. Eu por mim é sem dúvida com do em fuga foge da velhice, que é rápi-
prazer que ouço Sócrates a conversar, da evidentemente, e que em todo caso,
mas é-me forçoso cuidar do elogio ao mais rápida do que devia, para nós se
Amor e recolher de cada um de vós o encaminha. De sua natureza Amor a
seu discurso; pague 78 então cada um o odeia e nem de longe se lhe aproxima.
que deve ao deus e assim já pode Com os jovens ele está sempre em seu
conversar. convívio e ao seu lado; está certo, com
- Muito bem, Fedro! - excla- efeito, o antigo ditado, que o seme-
mou Agatão - nada me impede de lhante sempre do semelhante se aproxi-
falar, pois com Sócrates depois eu ma. Ora, eu, embora com Fedro con-
poderei ainda conversar muitas vezes. corde em muitos outros pontos, nisso
"Eu então quero primeiro dizer não concordo, em que Amor seja mais
como devo falar, e depois falar. Pare- antigo que Crono e J âpeto, mas ao
ce-me com efeito que todos os que contrário afirmo ser ele o mais novo
antes falaram, não era o deus que elo- dos deuses e sempre jovem, e que as
giavam, mas os homens que felici- questões entre os deuses, de que falam
tavam pelos bens de que o deus lhes é Hesíodo" ' e Parmênides, foi por Ne-
195 Q causador; qual porém é a sua natureza, cessidadevê e não por Amor que ocor-
em virtude da qual ele fez tais dons, reram, se é verdade o que aqueles
ninguém o disse. Ora, a única maneira diziam; não haveria, com efeito, muti-
correta de qualquer elogio a qualquer lações nem prisões de uns pelos outros,
um é, no discurso, explicar em virtude e muitas outras violências, se Amor
de que natureza vem a ser causa de tais estivesse entre eles, mas amizade e paz,
efeitos aquele de quem se estiver falan- como agora, desde que Amor entre os
do 9. Assim então com o Amor, é deuses. reina. Por conseguinte, jovem
justo que também nós primeiro o lou- ele é, mas além de jovem ele é delica-
vemos em sua natureza, tal qual ele é, e do; falta-lhe porém um poeta como era
depois os seus dons. Digo eu então que Homero para mostrar sua delicadeza
de todos os deuses, que são felizes, é o de deus. Homero afirma, com efeito, d
que Ate é uma deusa, e delicada - parte a parte há guerra. Quanto à bele-
que os seus pés em todo caso são deli- za da sua tez, o seu viver entre flores
cados - quando diz: bem o atesta; pois no que não floresce,
seuspés são delicados; pois não como no que já floresceu, corpo, alma
[sobre o solo ou o que quer que seja, não se assenta
se move, mas sobre as cabeças dos o Amor, mas onde houver lugar bem
[homens ela anda83 • florido e bem perfumado, aí ele se
Assim, bela me parece a prova com assenta e fica.
que Homero revela a delicadeza da Sobre a beleza do deus já é isso bas-
deusa: não anda ela sobre o que é tante, e no entanto ainda muita coisa
duro, mas sobre o que é mole. Pois a resta; sobre a virtude de Amor devo
mesma prova também nós utilizaremos depois disso falar, principalmente que
a respeito do Amor, de que ele é delica- Amor não comete nem sofre injustiça,
do. Não é com efeito sobre a terra que nem de um deus ou contra um deus,
ele anda, nem sobre cabeças, que não riem de um homem ou contra um
são lá tão moles, mas no que há de homem" 5. À força, com efeito, nem ele
mais brando entre 'os seres é onde ele cede, se algo cede - pois violência
anda e reside. Nos costumes, nas não toca em Amor - nem, quando
almas de deuses e de homens ele fez age, age, pois todo homem de bom
sua morada, e ainda, não indistinta- grado serve em tudo ao Amor, e o que
mente em todas as almas, mas da que de bom grado reconhece uma parte a
encontre com um costume rude ele se outra, dizem "as leis, rainhas da cida-
afasta, e na que o tenha delicado ele de"8 6, é justo. Além da justiça, da má-
habita. Estando assim sempre em con- xima temperança ele compartilha. É
tato, nos pés como em tudo, com os com efeito a temperança, reconhecida-
que, entre os seres mais brandos, são mente, o domínio sobre prazeres e
os mais brandos, necessariamente é ele desejos; ora, o Amor, nenhum prazer
196 •. o que há de mais delicado. É então o lhe é predominante; e se inferiores, se-
mais jovem, o mais delicado, e além riam dominados por Amor, e ele os
dessas qualidades, sua constituição é dominaria, e dominando prazeres e
úmida. Pois não seria ele capaz de se desejos seria o Amor. excepcional-
amoldar de todo jeito, nem de por toda mente temperante. E também quanto à
alma primeiramente entrar, desperce- coragem, ao Amot "nem Ares se lhe
bido, e depois sair, se fosse ele seco 84 • opõe"8 7. Com efeito, a Amor não pega d
De sua constituição acomodada e Ares, mas Amor a Ares - o de Afro-
úmida é uma grande prova sua bela dite, segundo a lenda - e é mais forte
compleição, o que excepcionalmente o que pega do que é pegado: domi-
todos reconhecem ter o Amor; é que nando assim o mais corajoso de todos,
entre deformidade e amor sempre de
85 Como a seguinte, essa frase, com seus' para-
83 Ilíada. XIX, 92. Ate é a personificação da lelismos exagerados, é típica do maneirismo do
fatalidade. (N. do T.) estilo retórico de Agatão. (N. do T.)
84 Sendo úmido, mole, Amor cede à pressão, 86 Expressão do retórico Alcidamas, aluno de
adapta-se, modela-se; ao contrário, sendo Górgias, citado por Aristóteles, Ret., 1406a.
não se adapta e não adquire forma convemen- (N. do T.)
te. O argumento é de uma fantasia extrava- 87 Frag. de um Tiestes de Sófocles: IIpoç
gante, de acordo com o caráter requintado de 'AIJá'YKl)1' obô ' "Apl)Ç àvía7C<7cll (fr, 235 Nau-
Agatão, (N. do T.) ck 2 ) . (Nv do T,')
o BANQUETE 35
Mas é que eu não sabia então o modo que é amor de algo ou de nada? Estou
de elogiar, e sem saber concordei, tam- perguntando, não se é de uma mãe ou
bém eu, em elogiá-lona minha vez: "a de um pai - pois ridícula seria essa
língua jurou, mas o meu peito não" 9 8; pergunta, se Amor é amor de um pai
'que ela se vá então. Não vou mais elo- ou de uma mãe - mas é como se, a
giar desse modo, que não o poderia, é respeito disso mesmo, de "pai", eu
certo, mas a verdade sim, se vos apraz, perguntasse: "Porventura o pai é pai
quero dizer à minha maneira, e não em de algo ou não? Ter-me-ias sem dúvida
competição com os vossos discursos, respondido, se me quisesses dar uma
para não me prestar ao riso. Vê então, bela resposta, que é de um filho ou de
Pedro, se por acaso há ainda precisão uma filha que o pai é pai 9 9 ; ou não?"
de um tal discurso, de ouvir sobre o Exatamente - disse Agatão.
Amor dizer a verdade, mas com nomes E também a mãe não é assim?
e com a disposição de frases que por Também - admitiu ele.
acaso me tiver ocorrido. Responde-me ainda, continuou
Sócrates, mais um pouco, a fim de me-
Pedro então, disse Aristodemo, e os
lhor compreenderes o que quero. Se eu
demais presentes pediram-lhe que,
te perguntasse: "E irmâo "?", enquanto
como ele próprio entendesse que devia
é justamente isso mesmo que é, é irmão
falar, assim o fizesse.
de algo ou não?"
- Permite-me ainda, Pedro - re- - É, sim, disse ele.
tornou Sócrates - fazer umas pergun-
- De um irmão ou de uma irmã,
tinhas a Agatão, a fim de que tendo
não é? Concordou.
obtido o seu acordo, eu já possa assim
- Tenta então, continuou Sócra-
falar.
tes, também a respeito do Amor dizer-
- Mas sim, permito - disse me: o Amor é amor de nada ou de
Pedro. - Pergunta! - E então, disse algo?
Aristodemo, Sócrates começou mais - De algo, sim.
ou menos por esse ponto: - Isso então, continuou ele, guar- 200 •
- Realmente, caro Agatão, bem da contigo 1 01, lembrando-te de que é
pareceste iniciar teu discurso, que ele é amor; agora dize-me apenas o
quando dizias que primeiro se devia
99 Entender: Assim corno pai é pai com rela-
97 Sócrates critica nos elogios anteriores a preo- ção a filho, amor é amor com relação a algu-
cupãçãoexclusiva da aparência, em detrimento ma coisa. É por esse objeto específico do amor
da realidade. Corno concorrentes, os oradores que Sócrates pergunta. (N. do T.)
agiram corno se a máxima beleza dos seus dis- 100 A repetição dos exemplos numa argumenta-
cursos fosse urna conseqüência da máxima be- ção, que muitas vezes nos parece ociosa e ge-
leza atribuída ao Amor. Sócrates evita essa fa- ralmente nos impacienta é típica dos diálogos,
lha fundamental. (N. do T.) que parecem nesse ponto refletir um hábito da
98 Eurípedes, Hipólito, 612. ii -yÀwooa Ój.lw/Jox· época. (N. do T.)
Ti 8€ <pPi1v (N. do T.) 101 Para dizê-lo em 201 a 206. (N.doT.)
38 PLATÃO
seguinte: Será que o Amor, aquilo de za, saúde e fortaleza. o que queres é
que é amor, ele o deseja ou não? também no futuro possuir esses bens,
- Perfeitamente - respondeu o pois no momento, quer queiras quer
outro. não, tu os tens; observa então se, quan-
- E é quando tem isso mesmo que do dizes "desejo o que tenho comigo",
deseja e ama que ele então deseja e queres dizer outra coisa senão isso:
ama, ou quando não tem? "quero que o que tenho agora comigo,
- Quando não tem, como é bem também no futuro eu o tenha." Deixa-
provável - disse Agatão. ria ele de admitir?
- Observa bem, continuou Sócra- Agatão, dizia Arístodemo, estava de
tes, se em vez de uma probabilidade acordo.
não é uma necessidade que seja assim, Disse então Sócrates: - Não é isso
o que deseja deseja aquilo de que é então amar o que ainda não está à mão
carente, sem o que não deseja, se não nem se tem, o querer que, para o futu-
for carente. É espantoso como me ro, seja isso que se tem conservado
parece, Agatâo, ser uma necessidade; e consigo e presente?
a ti? - Perfeitamente - disse Agatão.
- Também a mim - disse ele. - Esse então, como qualquer
- Tens razão. Pois porventura de- outro que deseja, deseja o que não está
sejaria quem já é grande ser grande, ou à mão nem consigo, o que não tem, o
quem já é forte ser forte? que não é ele próprio e o de que é
Impossível, pelo que foi admiti- carente; tais são mais ou menos as coi-
do. sas de que há desejo e amor, não é?
Com efeito, não seria carente - Perfeitamente - disse Agatão.
disso o que justamente é isso. - Vamos então, continuou Sócra-
- É verdade o que dizes. tes, recapitulemos o que foi dito. Não é
- Se, com efeito, mesmo o forte certo que é o Amor, primeiro de certas
quisesse ser forte, continuou Sócrates, coisas, .e depois, daquelas de que ele
e o rápido ser rápido, e o sadio ser tem precisão?
sadio - pois talvez alguém pensasse - Sim - disse o outro. 20/ •
certo que o Amor seria da beleza, mas discurso que sobre o Amor eu ouvi um
não da feiúra? Concordou. dia, de uma mulher de Mantinéia, Dio-
- Não está então admitido que tima, que nesse assunto era entendida e
aquilo de que é carente e que não tem é em muitos outros - foi ela que uma
o que ele ama? vez, porque os atenienses ofereceram
=-- Sim - disse ele. sacrifícios para conjurar a peste, fez
por dez anos' o 6 recuar a doença, e era
- Carece então de beleza o Amor,
e não a tem? ela Que me instruía nas questões de
- É forçoso. amor - o discurso então que me fez
- E então? O que carece de beleza aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a
partir do que foi admitido por mim e
e de modo algum a possui, porventura
por Agatão, com meus próprios recur-
dizes tu que é belo?
sos e como eu puder. É de fato preciso,
- Não, sem dúvida. Agatão, como tu indicaste, primeiro
- Ainda admites por conseguinte discorrer sobre o próprio Amor, quem
que o Amor é belo, se isso é assim? é ele e qual a sua natureza e depois
E Agatão: - É bem provável, ó Só- sobre as suas obras. Parece-me então
crates, que nada sei do que então que o mais fácil é proceder como
disse'03? outrora a estrangeira, que discorria
- E no entanto, prosseguiu Sócra-
interrogando-me' o 7, pois também eu
tes, bem que foi belo o que disseste, quase que lhe dizia outras tantas coi-
Agatão. Mas dize-me ainda uma pe- sas tais quais agora me diz Agatão,
q-uena coisa: o que é bom não te parece que era o Amor um grande deus, e era
que também é belo? do que é belo; e ela me refutava, exata-
o-- Parece-me, sim. mente com estas palavras, com que eu
- Se portanto o Amor é carente do estou refutando a este, que nem era
que é belo, e o que é bom é belo, tam- belo segundo minha palavra, nem bom.
bém do que é bom seria ele carente' o 4 E eu então: - Que dizes, ó Dioti-
- Eu não poderia, ó Sócrates, ma? É feio então o Amor, e mau?
disse Agatão, contradizer-te; mas seja E ela: - Não vais te calar? Acaso
assim como tu dizes. pensas que o que não for belo, é forço-
- É à verdade' o 6, querido Aga- só ser feio?
tão, que não podes contradizer, pois a - Exatamente. 101 •
Sócrates não é nada dificil. - E também se não for sábio é
- E a ti eu te deixarei agora; mas o ignorante'? Ou não percebeste que exis- .
103 Agatão reage como um discípulo ou um te algo entre sabedoria e ignorância?
amigo de Sócrates, isto é, confessando franca- - Queé?
mente a ignorância que acaba de descobrir em
si. (N. do T.) Se se trata da peste que assolou Atenas no
104 Essa associação do bom e do belo, bem fa- começo da guerra do Peloponeso, Diotima te-
miliar ao grego (ob. o epíteto corrente: ria feito o sacrifício em 440, quando Sócrates
Kaj'a!?óç ), e insistentemente defendida na argu- entrava na casa dos trinta. (N. doT.)
mentação socrática (v. por exemplo, Górgias, 107 estranho que uma sacerdotisa use o mé-
474d-el. será de muita utilidade em 204e, todo de explicação dos sofistas do século V,
(N. doT.) através de perguntas forjadas por ela mesma.
105 Não se trata aqui de refutar a A ou a D, é Esse parece um dos mais fortes indícios de que
o que quer dizer Sócrates; uma vez estabeleci- o fato contado por Sócrates é fictício. sobretu-
da a veracidade de um argumento, não é mais do se se considera a exata correspondência dos
possível, ou melhor, não é mais questão de diálogos Sócrates-Agatão, Diotima-Sócrates,
contestá-lo. (N. do T.) (N. do T.)
40 PLATÃO_
que não é belo a ser feio, nem o que reconheceste que, por carência do que
não é bom a ser mau. Assim também o é bom e do que é belo, deseja isso
Amor, porque tu mesmo admites' 09 mesmo de que é carente.
que não é bom nem belo, nem por isso - Reconheci, com efeito.
vás imaginar que ele deve ser feio e - Como então seria deus o que
mau, mas sim algo que está, dizia ela, justamente é desprovido 90 que é belo
entre esses dois extremos. e bom?"
- E todavia é por todos reconhe- - De modo algum, pelo menos ao
cido que ele é um grande deus' , o que parece.
- Todos os que não sabem, é o - Estás vendo então - disse -
que estás dizendo, ou também os que que também tu não julgas o Amor um
sabem? deus?
- Todos eles, sem dúvida. - Que seria então o Amor?
E ela sorriu e disse: - E como, Ó perguntei-lhe. - Um mortal?
Sócrates, admitiriam ser um grande Absolutamente.
deus aqueles que afirmam que nem - Mas o quê, ao certo, ó Diotima?
deus ele é? - Como nos casos anteriores -
- Quem são estes? perguntei-lhe. disse-me ela - algo entre mortal e
- UIJ1f és tu - respondeu-me - e imortal.
eu, outra. - O quê, então, ó Diotima?
E eu: - Que queres dizer com isso? - Um grande gênio, ó Sócrates; e
com efeito, tudo o que é gênio está
108 Cf. Menão, 97b-e. (N. do T.)
109 No Lisis (216d - 221e) Sócrates faz uma entre um deus e um mortal.
proposição semelhante (é amigo do belo e do - E com que poder? perguntei-lhe.
bom o que não é nem bom nem mau), que ele - O de interpretar e transmitir aos
encaminha para a seguinte aporia: A presença
do mal no que não é bom nem é mau é o que deuses o que vem dos homens, e aos
faz este desejar o belo e o bom, e assim, ausente homens o que vem dos deuses, de uns
o mal, o belo e o bom não seriam capazes de
suscitar o amor. Como se vê trata-se de puras as súplicas e os sacrítícios, e dos ou-
idéias, cuja relação é dificultada na razão di- tros as ordens e as recompensas pelos
reta da sua exata conceituação. (N. do T.)
no Essa observação de Sócrates vai determinar sacrifícios; e como está no meio de
a passagem do método dialético para a exposi- ambos ele os completa, de modo que o
ção alegórica. Demonstrada a natureza inter-
mediária do Amor, Diotima chama-o de gênio, todo fica ligado todo ele a si mesmo.
conta sua origem e traça seu retrato. (N. do T.) Por seu intermédio é que procede não
o BANQUETE 41
só toda arte divinatória, como também sem lar, sempre por terra e sem forro,
. a dos sacerdotes que se ocupam dos deitando-se ao desabrigo, às portas e
sacrificios, das iniciações e dos encan- nos caminhos, porque tem a natureza
203 • tamentos, e enfim de toda adivinhação da mãe, sempre convivendo com a pre-
e magia. Um deus com um homem não cisão. Segundo o pai, porém, ele é insi-
se mistura, mas é através desse ser que dioso com o que é belo e bom, e cora-
se faz todo o convívio e diálogo dos joso, decidido e enérgico, caçador
deuses com os homens, tanto quando terrível, sempre a tecer maquinações,
despertos como quando dormindo; e ávido de sabedoria e cheio de recursos,
aquele que em tais questões é sábio é a filosofar por toda a vida, terrível
um homem de gênio 1 1 1, enquanto o mago, feiticeiro, sofista 1 1 2: e nem
sábio em qualquer outra coisa, arte ou imortal é a sua natureza nem mortal, e
oficio, é. um artesão. E esses gênios, é no mesmo dia ora ele germina e vive,
certo, são muitos e diversos, e um deles quando enriquece 1 1 3; ora morre e de
é justamente o Amor. novo ressuscita, graças à natureza do
- E quem é seu pai - perguntei- pai; e o que consegue sempre lhe esca-
lhe - e sua mãe? pa, de modo que nem empobrece 1 1 4 o
- É um tanto longo de explicar, Amor nem enriquece, assim como tam-
disse ela; todavia, eu te direi. Quando bém está no meio da sabedoria e da
nasceu Afrodite, banqueteavam-se os ignorância. Eis com efeito o que se dá. 204 Q
era o amado e não o amante; eis por que é bom, disse ela, que os felizes são
que, segundo penso, parecia-te todo felizes, e não mais é preciso ainda per,
belo o Amor. E de fato o que é amável guntar: E para que quer ser feliz aquele
é que é realmente belo, delicado, per- que o quer? Ao contrário, completa
feito e bem-aventurado' , 7; o amante, parece a resposta.
porém é outro o seu caráter, tal qual eu - É verdade o que dizes - tor-
expliquei. nei-lhe.
E eu lhe disse: - Muito bem, --' E essa vontade então e esse
estrangeira! É belo o que dizes! Sendo amor, achas que é comum a todos os
porém tal a natureza do Amor, que .homens, e que todos querem ter sempre
proveito ele tem para os homens? consigo o que é bom, ou que dizes?
- Eis o que depois disso - res- - Isso respondi-lhe' é
d
comum a todos.
pondeu-me - tentarei ensinar-te. Tal é
- E por que então, ó Sócrates, não
de fato a sua natureza e tal a sua ori-
são todos que dizemos que amam, se é
gem; e é do que é belo, como dizes.
que todos desejam a mesma coisa' 2 o e
Ora, se alguém nos perguntasse: Em
sempre, mas sim que uns amam e ou-
que é que é amor do que é belo o
tros não?
Amor, ó Sócrates e Diotima? ou mais - Também eu - respondi-lhe -
claramente: Ama o amante o que é admiro-me.
belo; que é que ele ama?
118 A expressão no grego é pitoresca ( ,
- Tê-lo consigo - respondi-lhe. isto é, deseja), por sua relação com a idéia
discutida no contexto. (N. do T.)
116 No grego eõnooo« ,assim como infra iÍ7ropaç 119V. supra p.39, n. 104. (N.doT.)
= pobre, ambos derivados de lTÓpOÇ (N. do T.) 120 Isto é, o que é bom ou, mais literalmente,
117 Cf. supra 180a-4. (N. do T.) as coisas boas. (N. do T.)
o BANQUETE 43
Quando então - continuou ela vista do belo, que de uma grande dor
- é sempre isso o amor, de que modo, liberta o que está prenhe. É com efeito,
nos que o perseguem, e em que ação, o Sócrates, dizia-me ela, não do belo o
seu zelo e esforço se chamaria amor, como pensas.
amor 1 2 5? Que vem a ser essa ativida- Mas de que é enfim?
de? Podes dizer-me? Da geração e da parturição no
- Eu não te admiraria então, Ó belo.
Diotima, por tua sabedoria, nem te Seja - disse-lhe eu.
freqüentaria para aprender isso Perfeitamente - continuou. 207 •
mas os animais, qual a causa desse seu nascem e outras morrem para nós, e ja-
comportamento amoroso? Podes di- mais somos os mesmos nas ciências,
zer-me? mas ainda cada uma delas sofre a
De novo eu lhe disse que não sabia; mesma contingência. O que, com efei-
e ela me tomou: - Imaginas então to, se chama exercitar é como se de nós
algum dia te tomares temível nas ques- estivesse saindo a ciência; esqueci-
tões do amor, se não refletires nesses mento é escape de ciência, e o exercí-
fatos? cio, introduzindo uma nova lembrança
- Mas é por isso mesmo, Diotima
em lugar da que está saindo, salva a
- como há pouco eu te dizia - que
ciência, de modo a parecer ela ser a
vim a ti, porque reconheci 'tue preci-
sava de mestres. Dize-me entao não só mesma. É desse modo que tudo o que é
a causa disso, como de tudo o mais mortal se conserva, e não pelo fato de
que concerne ao amor. absolutamente ser sempre o mesmo,
- Se de fato - continuou - crês como o que é divino, mas pelo fato de
que o amor é por natureza amor daqui- deixar o que parte e envelhece um
lo que muitas vezes admitimos, não fi- outro ser novo, tal qual ele mesmo era.
ques admirado.. Pois aqui, segundo o É por esse meio, ó Sócrates, que o
mesmo argumento que lá, a natureza mortal participa da imortalidade, no
mortal procura, na medida do possível, corpo como em tudo mais l o imor-
ê ";
ser sempre e ficar imortal. E ela só tal porém é de outro modo. Não te
pode assim, através da geração, porque admires portanto de que o seu próprio
sempre deixa um outro ser novo em rebento, todo ser por natureza o apre-
lugar do velho 129; pois é nisso que se cie: é em virtude da imortalidade que a
diz que cada espécie animal vive e é a todo ser esse zelo e esse amor acompa-
mesma. - assim como de criança o nham.
homem se diz o mesmo até se tornar Depois de ouvir o seu discurso,
velho; este na verdade, apesar de ja- admirado disse-lhe: - Bem, ó doutís-
mais ter em si as mesmas coisas, diz-se sima Diotima, essas coisas é verdadei-
todavia que é o mesmo, embora sem- ramente assim que se passam?
pre se renovando e perdendo alguma E ela, como os sofistas consumados,
coisa, nos cabelos, nas carnes, nos tornou-me: - Podes estar certo, ó Só-
'e ossos, no sangue e em todo o corpo. E crates; o caso é que, mesmo entre os
não é que é só no corpo, mas também homens, se queres atentar à sua ambi-
na alma os modos, os costumes, as ção, admirar-te-ias do seu desarrazoa-
opiniões, desejos, prazeres, aflições,
temores, cada um desses afetos jamais 130 Alguns críticos querem ver nessa passagem
uma contradição com a doutrina da imortali-
permanece o mesmo em cada um de dade da alma, e conseqüentemente um indício
nós, mas uns nascem, outros morrem. da anterioridade do Banquete ao Fédon, onde
aquela doutrina é longamente exposta. Na ver-
208 a Mas ainda mais estranho do que isso é dade, ela não autoriza a inferência de que a
que até as ciências não é só que umas alma é mortal. Diotima diz que seus afetos e
conhecimentos são passageiros, como os ele-
129 Segue até 20gb um quadro muito vivo da mentos do corpo, mas não afirma que a alma
visão heraclitiana da realidade. Mas, sob o são esses afetos e conhecimentos. A idéia de vá-
fluxo desesperador das coisas, Diotima vê em rias encarnações da alma e a do conhecimento-
sua geração, a sua maneira de continuar, o seu reminiscência, exposta também no Fédon, ilus-
modo de participar do ser perene das idéias. tra muito a compatibilidade de uma alma imor-
(N. do T.) tal com ácidentes transitórios. (N. do T.)
46 PLATÃO
mento, a menos que, a respeito do que estes estão todos os poetas criadores e
te falei, não reflitas, depois de conside- todos aqueles artesãos que se diz serem
rares quão estranhamente eles se com- inventivos; mas a mais importante,
portam com o amor de se tomarem disse ela, e a mais bela forma de pensa-
renomados e de "para sempre uma g16- mento é a que trata da organização dos
ria imortal se preservarem", e como negócios da cidade e da família, e cujo
por isso estão prontos a arrostar todos nome é prudência e justiça 1 3 4 - des-
d_ os perigos, ainda mais do que pelos tes por sua vez quando alguém, desde
filhos, a gastar fortuna, a sofrer priva- cedo fecundado em sua alma, ser divi-
ções, quaisquer que elas sejam, e até a no que é, e chegada a idade oportuna,
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou já está desejando dar à luz e gerar, pro-
ela, que Alceste 1 3 1 morreria por Ad- cura então também este, penso eu, à
meto, que Aquiles morreria depois de sua volta o belo em que possa gerar;
Pátroclo, ou o vosso Codro 1 32 morre- pois no que é feio ele jamais a fará.
ria antes, em favor da realeza dos Assim é que os corpos belos mais que
filhos, se não imaginassem que eterna os feios. ele os acolhe, por estar em
seria a mem6ria da sua própria virtu- concepção; e se encontra uma alma
de, que agora n6s conservamos? Longe bela, nobre e bem dotada, é total o seu
disso, disse ela; ao contrário, ê, segun- acolhimento a ambos, e para um
do penso, por uma virtude imortal e homem desses logo ele se enriquece 13 5
por tal renome e gl6ria que todos tudo de discursos sobre a virtude, sobre o
fazem, e quanto melhores tanto mais; que deve ser o homem bom e o que
pois é o imortal que eles amam. Por deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao
conseguinte, continuou ela, aqueles contato sem dúvida do que é belo e em
que estão fecundados em seu corpo sua companhia, o que de há muito ele
voltam-se de preferência para as mu- concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem
lheres, e é desse modo que são amoro- o esquecer tanto em sua presença
sos, pela procriação conseguindo para quanto ausente, e o que foi gerado, ele
o alimenta justamente com esse belo,
si imortalidade, memória e bem-aven-
de modo que uma comunidade muito
turança por todos os séculos seguintes,
maior que a dos filhos ficam tais indi-
209 • ao que pensam; aqueles porém que é víduos mantendo entre si, e uma ami-
em sua alma - pois há os que conce- zade mais firme, por serem mais belos
bem na alma mais do que no corpo, o e mais imortais os filhos que têm em
que convém à alma conceber e gerar; e comum. E qualquer um aceitaria obter - d
o que é que lhes convém senão o pen- tais filhos mais que os humanos, de-
samento e o mais da virtude 1 33? Entre pois de considerar Homero e Hesíodo,
131 uma referência ao discurso de Pedro, 179 e admirando com inveja os demais
ss. (N. do T.) bons poetas, pelo tipo de descendentes
132 Rei legendário de Atenas. Informado de
que um oráculo prometera vitória aos dórios, que deixam de si, e que uma imortal
se estes não o matassem, disfarça-se em solda- gl6ria e mem6ria lhes garantem, sendo
do e como tal encontra a morte com que sal-
vou sua pátria. (N. do T.) 134 Prudência ( uW«JPOC1Úv1/ ) e justiça são aqui
133 Entender virtude no sentido amplo de exce- formas do pensamento ( .ppÓVT/UIÇ ); como no
lência, tal como o grego . Notar a dis- Protágoras (361b ss.) elas são, como as de-
tinção feita no Banquete entre l{IPÓVT/UIÇ (de mais virtudes, formas ou aspectos de uma
.ppovÉU!JCX1 ) = disposição para a sabedoria, ciência ( élllurilJ.1.1/ ).. (N. do T.)
pensamento e uo.pía, isto é, sabedoria (v. 202) 135 No grego eimopei . V. supra p. 41 , n. 113.
que s6 os deuses possuem. (N. do T. ) (N. doT.)
o BANQUETE 47
eles mesmos o que são; ou se prefe- seu dirigente, deve ele amar um só
res 1 3 6, continuou ela, pelos filhos que corpo e então gerar belos discur-
Licurgo deixou na Lacedemônia, sal- sos 1 3 9; depois deve ele compreender.
vadores da Lacedemônia e por assim que a beleza em qualquer corpo é irmã
dizer da Grécia. E honrado entre vós é da que está em qualquer outro, e que,
também' Sólon 13 7 pelas leis que criou, se se deve procurar o belo na forma,
e outros muitos em muitas outras par- muita tolice seria não considerar uma
tes, tanto entre os gregos como entre os só e a mesma a beleza em todos os cor-
bárbaros, por terem dado à luz muitas pos; e depois de entender isso, deve ele
obras belas e gerado toda espécie de fazer-se amante de todos os belos cor-
virtudes; deles é que já se fizeram mui- pos e largar esse amor violento de um
tos cultos por causa de tais filhos, só, após desprezá-lo e considerá-lo
enquanto que por causa dos humanos mesquinho ; depois disso a beleza que
ainda não se fez nenhum. está nas almas deve ele considerar
mais preciosa que a do corpo, de modo
São esses então os casos de amor em
que, mesmo se alguém de uma alma
210 a' que talvez, ó Sócrates, também tu
gentil tenha todavia um escasso encan-
pudesses ser iniciado 1 3 8; mas, quanto
to, contente-se ele, ame e se interesse, e
à sua perfeita contemplação, em vista produza e procure discursos tais que
da qual é que esses graus existem, tornem melhores os jovens; para que
quando se procede corretamente, não então seja obrigado a contemplar o
sei se serias capaz; em todo caso, eu te belo nos oficios e nas leis, e a ver assim
direi, continuou, e nenhum esforço que todo ele tem um parentesco
pouparei; tenta então seguir-me se comum 1 4 o, e julgue enfim de pouca
fores capaz: deve com efeito, começou monta o belo no corpo; depois dos ofi-
ela, o que corretamente se encaminha a cios é para as ciências que é preciso
esse fim, começar quando jovem por transportá-lo, a fim de que veja tam-
dirigir-se aos belos corpos, e em pri- bém a beleza das ciências, e olhando d
meiro lugar, se corretamente o dirige o para o belo já muito, sem mais amar
como um doméstico a beleza indivi-
136 A ordem em que aparecem os exemplos da
poesia e da legislação parece sugerir a preemi- dual de um criançola, de um homem
nência da primeira sobre a segunda. Cf. toda- ou de um só costume, não seja ele,
via República, X, 597 e ss., em que Platão, ao
contrário, explica a superioridade da segunda. nessa escravidão, miserável e um mes-
(N. do T.) quinho discursador, mas voltado ao
137 Em conferência na Associação dos Estudos
Clássicos do Brasil (Seção de São Paulo), so- vasto oceano do belo e, contemplan-
bre o autocriticismo em Atenas, o Prof. Aubre- do-o, muitos discursos belos e magní-
ton observou com muito acerto os sentimentos
de laconismo que revela essa maneira de um 139 Evidentemente não se trata aqui do amor
ateniense citar depois das leis de Licurgo - físico entre o homem e a mulher, que tem a
salvadores da Grécia. . . - as leis do seu con· justificação na procriação (20Se) , e sim de
terrâneo - e também Sólon ... (N. do T.) uma primeira etapa do amor entre o amante e
138 Feito o exame das diversas formas da ativi-: o bem-amado, que deve estar condicionado à
dade amorosa (proscrição, poesia, legislação), produção dos belos discursos. Essa etapa iní-
Uiotima as considera como estágios prelimina- cial: corresponde ao que Pausânias, numa pers-
res do supremo ato do amor, que é a conquista pectiva menos clara, afirma ser o nobre amor
da ciêncía do belo em si. Para dar no entanto de Afrodite Urânia. (N. do T.)
a entender o caráter dessa ciência e de sua 140 Assim como, pouco antes, um belo corpo é
aquisição, ela recorre à alegoria da iniciação irmão de um belo corpo, todos estes por sua
aos mistérios. Compará-la a esse respeito com vez têm a mesma relação com os belos ofícios
o mito da Caverna na República. (N. do T.) e as belas leis. (N. do T.)
48 PLATÃO
ficos ele produza, e reflexões, em ines- tudo mais que é belodele participa, de
gotável amor à sabedoria, até que aí um modo tal que, enquanto nasce e -pe:-
robustecido e crescido 1 41 contemple rece tudo mais que é belo, em nada ele
ele uma certa ciência, única, tal que o fica maior ou menor, nem nada sofre.
seu objetoé o belo seguinte. Tenta. Quando então alguém, subindoapartir
agora, disse-me ela, prestar-me a máxi- do que é belo 1 4 4, através do cor-
ma atenção possível. Aquele, pois,_9!!e reto amor aos jovens, começa a con-
até esse ponto tiver sido orientado para templar aquele belo, quase que estaria
as coisas . do amor contemplando
seguida e corretamente o que é belo, já a atingir o ponto final. Eis, com efeito,
chegando ao ápice dos graus do amor, em que consiste o proceder correta-
súbito perceberá algo de maravilhosa- mente nos caminhos do amor ou por
mente belo em sua natureza, aquilo outro se deixar conduzir: em começar
mesmo 1 42, Ó Sócrates, a que tendiam do que aqui é belo e, em.vista.daquele
todas as penas anteriores, primeira- belo, subir sempre, como que servin-
2JI tJ mente sempre sendo, sem nascer nem do-se de degraus, de um só para dois e
perecer, sem crescer nem decrescer, e de dois para todos os belos corpos, e
depois, não de um jeito belo e de outro dos belos corpos para os belos ofícios,
feio, nem ora sim ora não, nem quanto e dos ofícios para as belas ciências até
a isso belo e quanto àquilo feio, nem que das ciências acabe naquela ciên-
aqui belo ali feio, como se a uns fosse cia, que de nada mais é senão daquele
belo e a outros feio; nem por outro próprio belo, e conheça enfim o que em
lado aparecer-lhe-à o belo como um si é belo. Nesse ponto da vida, meu d
rosto ou mãos, nem como nada que o caro Sócrates, continuou a estrangeira
corpo tem consigo, nem como algum de Mantinéia, se é que em outro mais,
discurso ou alguma ciência, nem certa- poderia o homem viver, a contemplar o
mente como a existir ém algo mais, próprio belo. Se algum dia o vires, não
como, por exemplo, em animal da terra
é como ouro 1 4 6 ou como roupa que
ou do céu, ou em qualquer outra coisa;
ao contrário, aparecer-lhe-â 'ele ele te parecerá ser, ou como os belos
mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, jovens adolescentes, a cuja vista ficas
sendo sempre uniforme 1 43, enquanto agora aturdido e disposto, tu como ou-
141 A abundância é a grandeza dos discursos
tros muitos, contanto que vejam seus
decorrentes da extensão do belo já contempla- amados e sempre estejam com eles, a
do ( 1IpÔ<; 1IoAi! iíful TO KaAá" ) é condição para nem comer nem beber, se de algum
atingir a contemplação do próprio belo.
(N. doT.) modo fosse possível, mas a só contem-
142 Observar ro que precede até essa expressão
uma extraordinária técnica de suspense para
plar e estar ao seu lado 1 4 6. Que pensa-
preparar o deslumbramento do que segue, isto mos então que aconteceria, disse ela,
é, a descrição do belo em si. Desencantados da se a alguém ocorresse ..contemplar o
magia desse trecho, podemos perceber que ele
é uma resposta àquela litania final do discurso próprio belo, nítido, puro, simples, e
de Agatão (I 97d-e), mas quão superior em
emoção e grandeza! (N. do T.) 144 O pronome TWIJ& parece-me aqui refe-
143 Essas expressões, que aparecem freqüente- rir-se claramente à idéia do belo. Assim, tradu-
mente no F édon para caracterizar as idéias em zimo-lo especificando: "as coisas belas daqui".
sua pureza essencial, contrapõem-se a fórmulas A menção explícita Tw" KQAw", um pouco
usadas pouco acima (de um jeito de ou- abaixo, explica-se pelo fato de que Diotima
tro ..., ora ... ora ... quanto a isso quanto está resumindo sua lição. (N. do T.)
àquilo. .. etc.) para qualificar as coisas deste 145 Como o sofista Hípias o define para Sócra-
mundo, e que representam por assim dizer os tes. V. Hípias Maior, 28ge. (N. do T.)
marcos da argumentação socrática. (N. do T.) 146 Cf. supra 192d-e. (N. do T.)
O BANQUETE 49
não repleto de carnes, humanas, de coisa' 50, que era a ele que aludira Só-
cores e outras muitas ninhãrias mor- crates, quando falava de um certo dito;
tais, mas o próprio divino belo pudesse e súbito a porta do pátio, percutida,
ele em sua forma única contemplar? produz um grande barulho, como de
212 • Porventura pensas, disse, que é vida vã foliões, e ouve-se a voz de uma flautis-
a de um homem a olhar naquela dire- ta. Agatão exclama: "Servos! Não d
ção e aquele obieto, com aquilo' 4 7 ireis ver? Se for algum conhecido, cha-
com que deve, quando o contempla e mai-o; se não, dizei que não estamos
com ele convive? Ou não consideras, bebendo, mas já repousamos".
disse ela, que somente então, quando Não muito depois ouve-se a voz de
vir o belo com aquilo com que este Alcibíades \no pátio, bastante
pode ser visto, ocorrer-Ihe-â produzir gado, e a gritar alto, perguntando onde
não sombrast v" de virtude, porque estava Agatão, pedindo que o levassem
não é em sombra que estará tocando, para junto de Agatão. Levam-no então
mas reais virtudes, porque é no real até os convivas a flautista, que o
que estará tocando? tomou sobre si, e alguns outros acom-
panhantes, e ele se detém à porta, cin-
Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro
gido de uma espécie de coroa tufada de
e demais presentes, e do que estou
convencido; e porque estou conven- hera e. violetas, coberta a cabeça de
fitas em profusão, e exclama:
cido, tento convencer também os ou- "Senhores! Salve! Um homem em
tros de que para essa aquisição, um completa embriaguez vós o recebereis
colaborador da natureza humana me- como companheiro de bebida, ou deve-
lhor que o Amor não se encontraria mos partir, tendo apenas coroado Aga-
facilmente. Eis por que eu afirmo que tão, pelo qual viemos? Pois eu, na ver-
deve todo homem honrar o Amor, e dade, continuou, ontem mesmo não fui
que eu próprio prezo o que lhe con- capaz de vir; agora porém eis-me aqui,
cerne e particularmente o cultivo, e aos com estas fitas sobre a cabeça, a fim de
outros exorto, e agora e sempre elogio passá-las da minha para a cabeça do
o poder e a virilidade do Amor na me- mais sábio e do' mais belo, se assim
devo dizer. Porventura ireis zombar de
dida em que sou capaz. Este discurso,
mim, de minha embriaguez? Ora, eu, 213.
ó Fedro, se queres, considera-o profe-
por mais que zombeis, bem sei por-
rido como um encômio ' 49 ao Amor; tanto que estou dizendo a verdade.
se não, o que quer que e como quer que Mas dizei-me daí mesmo: com o que
te apraza chamá-lo, assim deves fazê- disse, devo entrar ou não? Bebereis co-
lo. migo ou não?"
Depois que Sócrates assim falou, Todos então o aclamam e convidam
enquanto que uns se põem a louvá-lo, a entrar e. a recostar-se, e Agatão o
Aristófanes tenta dizer alguma chama. Vai ele conduzido pelos ho-
147 Isto é, com a inteligência, ou antes, com a mens, e como ao mesmo tempo colhia
própria alma, livre das suas relações com o as fitas para coroar, tendo-as diante
corpo. V. Fédon, 65t--e. (N. do T.)
148 São as virtudes praticadas pelo comum dos 150 Aristófanes não parece, como os demais
homens, tais como Platão as explica no Fédon, convivas, empolgado com o que foi dito por
68b-69b. (N. do T.) Sócrates, o que bem revela sua pouca predis-
149 Porque foi proferido à maneira socrática. posição para captar o conteúdo do discurso de
V. supra 199b. (N. do T.) Alcibíades. (N. do T.)
so PLATÃO
dos olhos não viu Sócrates, e todavia mitido dirigir nem o olhar nem a
senta-se ao pé de Agatão, entre este e palavra a nenhum belo jovem, senão
Sócrates, que se arastara de modo a este homem, enciumado e invejoso, faz
que ele se acomodasse. Sentando-se ao coisas extraordinárias, insulta-me e
lado de Agatão ele o abraça e o coroa. mal retém suas mãos da violência. Vê
Disse então Agatão: - Descalçai então se também agora não vai ele
Alcibíades, servos, a fím de que seja o fazer alguma coisa, e reconcilia-nos;
terceiro em nosso leito' 5'. ou se ele tentar a violência, defende-
- Perfeitamente - tornou Alci- me, pois eu da sua fúria e da sua pai-
bíades; - mas quem é este nosso ter- xão amorosa muito me arreceio.
ceiro companheiro de bebida? E en- - Não! - disse Alcibíades -
quanto se volta avista Sócrates, e mal entre mim e ti não há reconciliação.
o viu recua em sobressalto e exclama: Mas pelo que disseste depois eu te
Por Hércules! Isso aqui que é? LU, 6 castigarei; agora porém, Agatão, ex-
Sócrates? Espreitando-me de novo aí clamou ele, passa-me das tuas fitas, a
te deitaste, de súbito aparecendo assim fim de que eu cinja também esta aqui,
como era teu costume, onde eu menos a admirável cabeça deste homem, e
esperava que haverias de estar? E não me censure ele de que a ti eu te
agora, a que vieste? E ainda por que coroei, mas a ele, que vence em argu-
foi que aqui te recostaste? Pois não foi mentos todos os homens, não s6 ontem
junto de Aristófanes' 52, ou de qual- como tu, mas sempre, nem por isso eu
quer outro que seja ou pretenda ser o coroei. - E ao mesmo tempo ele
engraçado, mas junto do mais belo dos toma das fitas, coroa Sócrates e recos-
que estão aqui dentro que maquinaste ta-se.
te deitar. Depois que se recostou, disse ele: -
E Sócrates: - Agatão, vê se me Bem, senhores! Vós me pareceis em
defendes! Que o amor deste homem se plena sobriedade. É o que não se deve
me tornou um não pequeno proble- permitir entre vós, mas beber; pois foi
ma' 53. Desde aquele tempo, com efei- o que foi combinado entre nós. Como
to, em que o amei, não mais me é per- chefe então da bebedeira, até que tiver-
des suficientemente bebido, eu me elejo
151 V. supra p. IS , n, 13, e p, 16 , n. 16. a mim mesmo' 5 4. Eia, Agatâo, que a
(N. doT.)
152 Por que essa referência a Aristófanes? Não tragam logo, se houver aí alguma gran-
temos nenhuma outra notícia da predíleção de de taça. Melhor ainda, não há nenhu-
Sócrates pelos cômicos, em particular por Aris-
t6fanes. Por outro lado é de supor que Alcibía- ma precisão: vamos, servo, traze-me
des de pronto percebesse a possibilidade de aquele porta-gelo! exclamou ele, quan- 214 •
S6crates ter sido convidado pelo pr6prio Aga-
tão, como de fato aconteceu. Assim, suas pala- do viu um com capacidade de mais de
vras devem ser entendidas mais como um arti oito "cótilas" 5 5. Depois de enchê-lo,
fício dramático para chamar a atenção sobre a
incapacidade em Arist6fanes de entender o ver- primeiro ele bebeu, depois mandou Só-
dadeiro aspecto cômico da atitude de Alcibía- crates entornar, ao mesmo tempo que
des para com Sócrates. (N. do T.)
153 Essa observação de Sócrates, como a de 154 Alcibíades sente em sua embriaguez que o
Alcibíades logo a seguir, anuncia à maneira de "simposiarca" (v. supra p, 17 , n. 21) não se
um prelúdio as conclusões que vamos tirar do houve bem em sua função e pretende reparar a
discurso de Alcibíades sobre a irresponsabilida- falta .. , (N. do T.)
de de S6crates no comportamento de Alcibía- 155 Uma "cótila" equivalia a pouco mais de
des, (N. do T.) um quarto de litro. (N. do T.)
O BANQUETE 51
faz dizer outra, não te admires; não é flautista quer uma flautista ordinária,·
fácil, a quem está neste estado, da. tua são as únicas que nos fazem possessos
singularidade dar uma conta bem feita e revelam os que sentem falta dos deu-
e seguida. ses e das iniciações, porque são divi-
"Louvar Sócrates, senhores, é assim nas. Tu porém dele diferes apenas
que eu tentarei, através de imagens. Ele nesse pequeno ponto, que sem instru-
certamente pensará talvez que é para mentos, com simples palavras, fazes o
carregar no ridículo, mas será a ima- mesmo. N6s pelo menos, quando
gem em vista da verdade, não do ridí- algum outro ouvimos mesmo que seja
culo. Afirmo eu então que é ele muito um perfeito orador, a falar de outros
semelhante a esses silenos 6 o coloca- assuntos, absolutamente por assim
dos nas oficinas dos estatuários, que os dizer ninguém se interessa; quando
artistas representam com um pifre ou porém é a ti que alguém ouve, ou pala-
uma flauta, os quais, abertos ao meio, vras tuas referidas por outro, ainda que
vê-se que têm em seu interior estatue- seja inteiramente vulgar o que está
tas de deuses. Por outro lado, digo falando, mulher, homem ou adoles-
também que ele se assemelha ao sátiro cente, ficamos aturdidos e somos em-
Mársias' 6 '. Que na verdade, em teu polgados. Eu pelo menos, senhores, se
aspecto pelo menos és semelhante a não fosse de todo parecer que estou
esses dois seres, 6 Sócrates, nem embriagado, eu vos contaria, sob jura-
mesmo tu sem dúvida poderias contes- . mento, o que é que eu sofri sob o efeito.
tar; que porém também no mais tu te dos discursos deste homem, e sofro
assemelhas, é o que depois disso tens ainda agora. Quando com efeito os
de ouvir. És insolente' 62! Não? Pois escuto, muito mais do que aos cori-
se não admitires, apresentarei testemu- bantes ' 6 4 em seus transportes bate-me
nhas. Mas não és flautista? Sim! E o coração, e lágrimas me escorrem sob
muito mais maravilhoso que o sátiro. o efeito dos seus discursos, enquanto
Este, pelo menos, era através de instru- que outros muitíssimos eu vejo que
mentos que, com o poder de sua boca, experimentam o mesmo sentimento; ao
encantava os homens como ainda ouvir Péricles porém, e outros bons
agora o que toca as suas melodias - oradores, eu achava que falavam bem
pois as que Olimpo' 6 3 tocava são de sem dúvida, mas nada de semelhante
Mársias, digo eu, por este ensinadas - eu sentia' II 5, nem minha alma ficava
as dele então, quer as toque um bom perturbada nem se irritava, como se se
encontrasse em condição servil; mas
160 Também chamados sátiros, os silenos eram
divindades campestres que faziam parte do sé- com este Mársias aqui, muitas foram 216 •
quito de Dioniso. Eram figurados com cauda e as vezes em que de tal modo me sentia
cascos de boi ou de bode e rosto humano, sin- que me parecia não ser possível viver
gularmente feio. (N. do T.)
161 Exímio flautista, Mársias desafiou Apolo em condições como as minhas. E isso,
com sua lira e, vencido, foi esfolado pelo deus. 6 Sócrates, não irás dizer que não é
162 A liberdade espiritual de Sócrates dá-lhe
realmente, em muitas circunstâncias, essa apa- 164 Sacerdotes de Cibele, da Frigia, que dança-
rência. V. Apol. 20e-23c, 30c e ss. e 36b-37. vam freneticamente ao som de flautas, címba-
(N. dõT.) les e tamborins. (N. do T.)
163 Em Minas Sócrates cita-o como bem-amado 165 É que não eram estes oradores "homens de
de Mársias, Muitas canções antigas lhe eram gênio", suscetíveis de uma inspiração divina (v.
atribuídas. (N. do T.) supra 203a). (N. do T.)
o BANQUETE 53
verdade. Ainda. agora tenho certeza de Que esta sua atitude não é conforme à
que, se eu quisesse prestar ouvidos, dos silenos? E muito mesmo. Pois é
não resistiria, mas experimentaria os aquela com que por fora ele se reveste,
mesmos sentimentos. Pois me força ele como o sileno esculpido; mas lá den-
a admitir que, embora sendo eu mesmo tro, uma vez aberto, de quanta sabedo-
deficiente em muitos pontos ainda, de ria imaginais, companheiros de bebida,
mim mesmo me descuido, mas trato estar ele cheio? Sabei que nem a quem
dos negócios de Atenas 1 8 8. A custo é belo tem ele ii mínima consideração,
então, como se me afastasse das antes despreza tanto quanto ninguém
sereias, eu cerro os ouvidos e me retiro poderia imaginar, nem tampouco a
em fuga, a fim de não ficar sentado lá e quem é rico, nem a quem tenha qual-
aos seus pés envelhecer. E senti diante quer outro título de honra, dos que são
deste homem, somente diante dele, o enaltecidos pelo grande número; todos
que ninguém imaginaria haver em esses bens ele julga que nada valem, e
mim, o envergonhar-me de quem quer que nós nada somos - é o que vos
que seja; ora, eu, é diante deste homem digo - e é ironizando e brincando
somente que me envergonho. Com efei- com os homens que ele passa toda a
to, tenho certeza de que não posso vida. Uma vez porém que fica sério e
contestar-lhe que não se deve fazer o se abre, não sei se alguém já viu as
que ele manda, mas quando me retiro estátuas lá dentro; eu por mim já uma
sou vencido pelo apreço em que me vez as vi, e tão divinas me pareceram
tem o público. Safo-me então de sua elas, com tanto ouro, com uma beleza
presença e fujo, e quando o vejo enver- tão completa e tão extraordinária que 217 a
c disso convidei-o a fazer ginástica co- únicos, dizem eles, que o com-
migo e entreguei-me aos exercícios, preendem e desculpam de tudo que
como se houvesse então de conseguir ousou fazer e dizer sob o efeito da dor.
algo. Exercitou-se ele comigo e comigo Eu então, mordido por algo mais dolo-
lutou muitas vezes sem que ninguém roso, e no ponto mais doloroso em que
nos presenciasse; e que devo dizer? se possa ser mordido - pois foi no
Nada me adiantava. Como por ne- coração ou na alma" ou no que quer
nhum desses caminhos eu tivesse resul- que se deva chamá-lo que fui golpeado
tado, decidi que devia atacar-me ao e mordido pelos discursos filosóficos,
homem à força e não largá-lo, uma vez que têm mais virulência que a víbora,
que eu estava com a mão na obra, mas quando pegam de um jovem espírito,
logo saber de que é que se tratava. não sem dotes, e que tudo fazem come-
Convido-o então a jantar comigo, exa- ter e dizer tudo - e vendo por outro
tamente como um amante armando ci- lado os Fedros, Agatãos, Eriximacos,
lada ao bem-amado. E nem nisso tam- os Pausânias, os Aristodemos e os
bém ele me atendeu logo, mas na Aristófanes; e o próprio Sócrates, é
verdade com o tempo deixou-se con- preciso mencioná-lo? E quantos
vencer. Quando porém veio à primeira mais ... Todos vós, com efeito, parti-
vez, depois do jantar queria partir. Eu cipastes em comum 1 7 0, do delírio filo-
então, envergonhado, larguei-o; mas sófico e dos seus transportes bâquicos
repeti a cilada, e depois que ele estava e por isso 'todos ireis ouvir-me; pois
jantado eu me pus a conversar com ele haveis de desculpar-me do que então
noite adentro, ininterruptamente, e fiz e do que agora digo. Os domésticos,
quando quis partir, observando-lhe que e se mais alguém há profano e inculto, .
e era tarde, obriguei-o a ficar. Ele des-
cansava então no leito vizinho ao meu, 169 Alusão ao provérbio DÍvoç /(ai 1Ta'ilieç QXT/{Je'iç
: o vinho e as crianças são verídicas. (N. do
no mesmo em que jantara, e ninguém T.)
mais no compartimento ia dormir 170 Não deixa de ser estranha essa inclusão de
Aristófanes no grupo dos amantes da filosofia.
senão nós. Bem, até esse ponto do meu Córnopoeta cõmíco, este devia estai presente
discurso ficaria bem fazê-lo a quem a todas as reuniões desse tipo, e daí poder
Alcibíades confundi-lo naturalmente com os
quer que seja; mas o que a partir daqui que ardorosamente a defendiam, em oposição
se segue, vós não me teríeis ouvido aos indiferentes. (N. do T.)
o BANQUETE 55
que apliquem aos seus ouvidos portas ser verdade o que dizes a meu respeito,
bem espessas' 7 '. e se há em mim algum poder pelo qual
Como com efeito, senhores, a lâm- tu te poderias tomar melhor; sim, uma
pada se apagara e os servos estavam irresistível beleza verias em mim, e
fora, decidi que não devia fazer ne- totalmente diferente da formosura que
nhum floreado com ele, mas franca- há em ti. _Se então, ao contemplá-la,
mente dizer-lhe o que eu pensava; e tentas compartilhá-la comigo e trocar-
assim o interpelei, depois de sacudi-lo: beleza por beleza, não é em pouco que
- Sócrates, estás dormindo? pensas me levar vantagens, mas ao 219 •
do a noite toda. Nem também isso, ó mos ali companheiros de mesa. Antes
Sócrates, irás dizer que estou falsean- de tudo, nas fadigas, não só a mim me
do. Ora, não obstante tais esforços superava mas a todos os outros -
meus, tanto mais este homem cresceué quando isolados em algum ponto,
desprezou minha a , como é comum numa expedição, éra- 220.
174 Em sua embriaguez, Alcibíades figura mo- lá na expedição, certa vez, merece ser
mentaneamente um processo em que a acusa- ouvido. Concentrado numa reflexão,
ção de sobranceria dissimula justamente sua
defesa no processo histórico: a recusa de Só- logo se detivera desde a madrugada a
crates, um crime de orgulho nessa patuscada, examinar uma idéia, e como esta não
significa de fato sua inocência. (N. do T.) lhe vinha, sem se aborrecer ele se con-
175 Em 432, Potidéia, na Calcídica, recusou-se
a pagar. tributo a Atenas e foi pelos atenienses servara de pé, a procurá-la. Já era
sitiada, capitulando em 430. Essa insurreição
foi uma das causas imediatas da Guerra do 176 V. supra p. 17 , n. 19. (N. do T.)
Peloponeso. (N. do T. ) 177 Odisséia, IV, 242. (N. do T.)
o BANQUETE 57
bem, caro Agatão, que nada mais haja tar-se ao lado de Sócrates; súbito
para ele, e faze com que comigo nin- porém uns foliões, em numeroso
guém te indisponha. grupo, chegam à porta e, tendo-a
Agatão respondeu: - De fato, ó encontrado aberta com a saída de
Sócrates, é muito provável que estejas alguém, irrompem eles pela frente em
dizendo a verdade. E a prova é a direção dos convivas, tomando assento
maneira como justamente ele se recos- nos leitos; um tumulto enche todo o
tou aqui no meio, entre mim e ti, para recinto e, sem mais nenhuma ordem,
nos afastar um do outro. Nada mais é-se forçado a beber vinho em demasia.
ele terá então; eu virei para o teu lado Erixímaco, Fedro e alguns outros,
e me recostarei. disse Aristodemo, retiram-se e partem;
- Muito bem - disse Sócrates - a ele porém o sono o pegou, e dormiu c
reclina-te aqui, logo abaixo de mim. muitíssimo, que estavam longas as noi-
- Ó Zeus, que tratamento recebo tes; acordou de dia, quando já canta-
ainda desse homem! Acha ele que em vam os galos, e acordado viu que os
tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo outros ou dormiam ou estavam ausen-
menos, extraordinária criatura, permi- tes; Agatão porém, Aristófanes e Só-
te que entre nós se acomode Agatão. crates eram os únicos que ainda esta-
- Impossível! - tomou-lhe Só- vam despertos, e bebiam de uma
crates. - Pois se tu me elogiaste, devo grande taça que passavam da esquerda
eu por minha vez elogiar o que está à para a direita. Sócrates conversava
minha direita. Ora, se abaixo de ti 1 8 9 com eles; dos pormenores da conversa
ficar Agatão, não irá ele por acaso disse Aristodemo que não se lembrava
fazer-me um. novo elogio, antes de, - pois não assistira ao começo e
pelo contrário, ser por mim elogiado? ainda estava sonolento - em resumo d
223 • Deixa, divino amigo, e não invejes ao porém, disse ele, forçava-os Sócrates a
jovem o meu elogio, pois é grande o admitir que é de um mesmo homem o
meu desejo de elogiá-lo. saber fazer uma comédia e uma tragé-
- Evoé! - exclamou Agatão; - dia, e que aquele que com arte é um
Alcibíades, não há meio de aqui eu poeta trágico é também um poeta 00-
ficar; ao contrário, antes de tudo, eu mico. Forçados a isso e sem o seguir
mudarei de lugar, a fim de ser por Só- com muito rigor eles cochilavam, e pri-
crates elogiado. meiro adormeceu Aristófanes e, quan-
- Eis aí - comentou Alcibíades do já se fazia dia, Agatâo. Sócrates
- a cena de costume: Sócrates presen- então, depois de acomodá-los ao leito,
te, impossível a um outro conquistar os levantou-se e partiu; Aristodemo,
belos! Ainda agora, como ele soube como costumava, acompanhou-o; che-
facilmente encontrar uma palavra per- gado ao Liceu 1 9 o ele asseou-se e,
suasiva, com o que este belo se vai pôr como em qualquer outra ocasião, pas-
ao seu lado. sou o dia inteiro, depois do que, à
Agatão levanta-se assim para ir dei- tarde, foi repousar em casa.
190 Ginásio dedicado a Apolo, às margens do
189 Isto é, à sua direita, entre ele e Sócrates. Ilisso, mais tarde utilizado por Aristóteles para
Agatão passara para a direita de Sócrates, a sua escola, que ficou com esse nome.
ficando este no meio do divã. (N. do T.) (N. doT.)
N003:J
Introdução
57 a EQUÉCRATES FÉDON
- Estiveste, Fêdon, ao lado de Só- - Houve no seu caso, Equêcrates,
crates, no dia em que ele bebeu o vene- uma coincidência fortuita: a do dia que
no na prisão? Ou acaso sabes, por precedeu ao julgamento com a coroa-
outrem, o que lá se passou? ção da popa do navio que os atenienses
FÉDON mandam a Delos.
- Lá estive em pessoa, Equécrates. EQUÉCRATES
EQUÉCRATES - E que navio é este?
- E então, de que coisas falou ele FÉDON
antes de morrer? Qual foi o seu fim? - Segundo conta a tradição, é o
Isso eu gostaria de saber, pois atual- navio no qual Teseu transportou outro-
mente não há nenhum de meus conci- ra os sete moços e as sete moças que
dadãos de Flionte 1 que esteja em Ate- deviam ser levados para Creta" . Ele os
nas, e de lá, faz muito tempo, que não
2 A peregrinação a Delos é um simples culto ao
nos vem nenhum estrangeiro capaz de deus Apolo e à deusa Artemis. A lenda é a
nos dar informações seguras, a não ser seguinte: Androgeu, filho do afamado rei Mi-
que Sócrates morreu após ter bebido o nos de Creta, visitara Atenas e tomara parte
nos jogos ginásticos; fora superior a todos, des-
veneno. Mas, quanto ao mais, ninguém pertando assim a inveja dos atenienses, que o
nada nos soube relatar. mataram. Seu pai, então, para vingar a morte
do filho, declarou guerra aos atenienses, ven-
FÉDON cendo-os, e estabelecendo como condição de
58 a - Não sabeis, tampouco, nada paz que os vencidos enviassem periodicamente
7 moços e 7 moças a Creta. Estes jovens iriam
também a respeito das circunstâncias servir de alimento ao monstro Minotauro que
do seu julgamento? vivia no Labirinto de Creta, palácio fabuloso
cuja saída ninguém conseguira encontrar. Por
EQUÉCRATES muito tempo os atenienses continuaram a
- Sim, dele tivemos alguma infor- enviar novas vítimas para Creta, até que o he-
rói Teseu, herdeiro do trono, voluntariamente
mação. E uma das coisas, mesmo, que entrou no número das vítimas sorteadas, a fim
muito nos surpreendeu foi ter ocorrido de pôr termo a esse sacrifício periódico. Teseu
sua morte muito tempo depois do conquistou em Creta o amor da princesa
Ariadne, que lhe deu um novelo de lã verme-
julgamento. Que houve, Fédon? lha e, assim, entrando no Labirinto, atou ele
uma ponta do novelo numa pedra da entrada
1 Em Flionte 'ou Flio, no Peloponeso, um dis- e, enquanto avançava, o desenrolava, ficando
cípulo de Filolau, Eurito de Tarento, havia desta forma com o caminho de regresso asse-
estabelecido um círculo de pitagóricos, em cuja gurado. Conseguiu assim matar o Minotauro
sede Fédon foi recebido por Equécrates e asso- e retornar com seus companheiros salvos para
ciados (58d, 102a). (N.doE.) a pátria. (N. do T.)
64 PLATÃO
A Narrativa
prisão fosse aberta. Ela não se abria lhoado, Xantipa 7 (tu a conheces!), que
muito cedo; logo, porém, que era fran- segurava o filho mais novo, sentada ao
lado do marido. Assim que ela nos viu,
queada, dirigíamo-nos até onde estava
choveram maldições e palavrórios
Sócrates, e muitas vezes, passávamos o
como só as mulheres sabem proferir:
dia todo em sua companhia. Naquele "Vê, Sócrates, esta é a última vez que
dia, como deixáramos ajustado, encon- conversam contigo os teus amigos, e tu
tramo-nos ainda mais cedo que de cos- com eles!" Sócrates lançou um olhar
tume, porque na véspera, ao sair da na direção de Críton: "Críton, disse,
prisão pelo entardecer, havíamos sabi- faze com que a conduzam para casa!"
do que o navio sagrado retornara de E, enquanto era levada pela gente de
Delos. Por isso ficara assentado que Críton, ela se debatia e gritava.
nos reuniríamos o mais cedo possível
Os Onze: um grupo de onze homens esco-
no lugar habitual. Ao chegarmos, o 6lhidos por votação cuidava em Atenas do cár-
porteiro, vindo ao nosso encontro (era cere e das execuções. a. Arist., Consto Aten .•
ele quem sempre nos atendia), até 752,Xantipa
1. (N. do T.)
deixou a fama .de ser uma senhora
pediu-nos que ficássemos por ali e algo violenta, que atormentou a vida do ma-
esperássemos, para entrar, que nos rido. Segundo Xenofonte, era uma verdadeira
rnegera, mas enterneceu-se por ocasião da mor-
houvesse chamado. "É, disse ele, que te de Sócrates. (N. do T.)
o Prazer e a Dor
sas: devido ao grilhão, há pouco sentia sonho está a incitar-me para que eu
dor na minha perna, e já agora sinto persevere na minha ação, que é com-
prazer! por música: haverá, com efeito, mais
Cebes interrompeu: - Por Zeus, alta música do que a filosofia, e não é
Sócrates, foi bom me haveres lem- justamente isso o que eu faço? Mas su-
d brado isso! De fato, a propósito dessas cede agora que, depois de meu julga-
tuas composições, em que transpuseste mento, a festa do Deus está retardando
para o metro cantado os contos de minha morte. O que é preciso então,
Esopo eo hino a Apolo, várias pessoas pensei, no caso de que o sonho me
já me têm perguntado - e entre elas, tenha prescrito essa espécie comum de
há pouco tempo, Eveno" - com que composição musical, é que eu não lhe
intenção as compuseste depois de tua desobedeça; é que eu componha ver-
chegada aqui, tu que até agora jamais sos. E, de fato, é muito mais seguro
fizeras coisas desse gênero. Se tens, não me ir sem antes ter satisfeito esse
pois, qualquer interesse em que eu escrúpulo religioso com a composição
possa responder a Eveno quando ele de tais poemas, nem antes de haver
novamente me interrogar (porque bem prestado obediência ao sonho. E, por
sei que tomará a fazê-lo r), fala: que isso, minha primeira composição foi
deverei dizer-lhe? dedicada ao Deus em cuja honra esta-
- Dize-lhe a verdade, Cebes: não va sendo realizado o sacrifício. Depois
foi com a intenção de lhe fazer concor- de haver prestado a minha homenagem
rência, e muito menos às suas compo- ao Deus, julguei que um poeta para ser
sições, que fiz aqueles versos: sei que verdadeiramente um poeta deve empre-
isso teria sido difícil! Eu os fiz em vir- gar mitos e não raciocínios. Não me
tude de certos sonhos, cuja significa- sentindo capaz de compor mitos, por
ção pretendia assim descobrir, e tam- isso mesmo tomei por matéria de meus
bém por escrúpulo religioso versos, na ordem em que me vinham
prevendo, sobretudo, a eventualidade ocorrendo à lembrança, as fábulas ao
de que as repetidas prescrições que me meu alcance, as de Esopo que eu sabia
foram feitas se relacionassem com o de cor. Assim, pois, aí está, Cebes, o
exercício dessa espécie de poesia. Eis que deverás dizer a Eveno. Transmite-
como se passaram as cousas: Várias lhe também a minha saudação, e além
vezes, no curso de minha vida, fui visi- disso o conselho, se de fato ele é sábio,
tado por um mesmo sonho; não era de seguir minhas pegadas o mais
através da mesma visão que ele sempre depressa que puder! Quanto a mim,
se manifestava, mas o que me dizia era parece que me vou hoje mesmo, uma
invariável: "Sócrates", dizia-me ele, vez que os atenienses me ordenam.
"deves esforçar-te para compor músi- Então Símias disse:
ca!" E, palavra! sempre entendi que o - Que belo convite, Sócrates, para
8 Eveno: poeta grego (N. do T.) Eveno! Já por várias vezes tive oca-
68 PLATÃO
sião de encontrar esse homem, e, a jul- - Dize-nos pois, Sócrates, por que
gar pela minha experiência, ele sem dú- motivo se pode certamente negar que
vida seguirá de boa vontade o teu seja coisa permitida o suicídio? Eu
conselho! mesmo, com efeito (é o que nos
- Ora - tornou Sócrates - , será perguntavas há pOUCO), já ouvi Filolau
que Eveno não é filósofo? dizer, no tempo em que se encontrava
- Segundo penso, é - respondeu entre nós, e também a outros, que tal
Símias. coisa não se pode fazer. Mas ninguém
- Então não há de desejar coisa já foi capaz de ensinar-me qualquer
melhor, ele ou quem quer que dê à filo- coisa de exato a esse respeito.
sofia a atenção que ela merece. Toda- - Vamos - disse Sócrates - , 62 Q
via, é de esperar que Eveno não fará vamos examinar isso. É possível, tal-
violência contra si mesmo, pois, segun- vez, que eu te possa ensinar alguma
do dizem, isso não é permitido. coisa. É provável também que isso te
Assim falando, desencolheu as per- pareça maravilhoso e que te espantes
nas e, desde então, foi sentado dessa ao saber que, para todos os homens, há
forma que continuou a conversar. A uma absoluta necessidade de viver,
esta altura Cebes lhe fez a seguinte necessidade invariável mesmo para
pergunta: aqueles para os quais a morte seria
- Como podes dizer, Sócrates, que preferível à vida. Acharás espantoso
não é -permitido fazer violência contra ainda que não seja permitido àqueles,
si mesmo, e, por outro lado, que o filó- para os quais a morte seja um bem
sofo não deseja nada melhor do que preferível à vida, o direito de procura-
poder seguir aquele que morre? rem, por si, esse bem e que, para o
- Quê? Então, Cebes, não fostes obterem, necessitem recebê-lo de ou-
instruídos a respeito deste gênero de trem.
questões, tu e Símias, que vivestes Cebes sorriu docemente:
tanto tempo em companhia de Filo- - Deus o sabe! - disse no modo
lau"? de falar de seu país' 0.
- Não, nada de claro, Sócrates. - Poder-se-ia, com efeito - vol-
- Eu, também, o que digo é por veu Sócrates - encontrar nisso, pelo
ouvir dizer, e seguramente nada impe- menos considerado sob essa forma,
de que se transmita o que dessa forma qualquer coisa de irracional. Todavia
me foi dado aprender. com efeito, não é assim, e, muito provavelmente,
talvez convenha particularmente aos aí não falta razão. A esse respeito há,
que devem transladar-se para o além a mesmo, uma fórmula que usam os
tarefa de empreender uma investigação adeptos dos Mistérios' , : "É uma espé-
sobre essa viagem e de relatar, num 10 Cebes é de Tebas, e os tebanos têm a fama de
mito, o que julgamos ser tal lugar. E serem pouco instruídos e falarem um grego algo
provinciano. Cebes, o aluno ardente de Sócra-
por que não? Que poderíamos fazer tes, fala em geral a língua da gente letrada,
senão isso durante o tempo que nos se- mas neste momento, apaixonado por uma ínte-
ressante questão filosófica, descura a lingua-
para do por do sol? gem e usa o dialeto regional de seu país.
(N. do T.)
9 Filolau: filósofo pitagórico. Platão o conhe- 11Platão refere-se aos mistérios órfícos, que
cia pessoalmente, e muito o estimou.(N. do T.) mencionara no Menão. (N. do T.)
FÉDON 69
Receio, porém, que, quando uma pes- questão, e, quanto ao vulgo e aos
soa se dedica à filosofia no sentido cor- outros, não lhes demos atenção!
reto do termo, os demais ignoram que - Segundo nosso pensar, é a morte
sua única ocupação consiste em prepa- alguma cousa?
rar-se para morrer e em estar morto! - Claro - replicou Símias.
Se isso é verdadeiro, bem estranho - Nada mais do que a separação
seria que, assim pensando, durante da alma e do corpo, não é? Estar
toda sua vida, que não tendo presente morto consiste nisto: apartado da alma
ao espírito senão aquela preocupação, e separado dela, o corpo isolado em si
quando a morte vem, venha a irritar-se mesmo; a alma, por sua vez, apartada
com a presença daquilo que até então do corpo e separada dele, isolada em si
tivera presente no pensamento e de que mesma. A morte é apenas isso?
fizera sua ocupação! - Sim, consiste justamente nisso.
Nesta altura Símias se pôs a rir: - Examina agora, meu caro, se te
- Por Zeus, Sócrates, eu não tinha é possível compartilhar deste modo de
nenhuma vontade de rir, mas tu me ver, pois nisso reside, com efeito, uma
fizeste rir! É que, penso, se o vulgo te condição do progresso de nossos co-
ouvisse falar desse modo se conven- nhecimentos sobre o presente objeto de
ceria de que há muito boas razões para estudo. Crês que seja próprio de um
atacar os que se ocupam de filosofia, e filósofo dedicar-se avidamente ao.s pre-
a ele fariam coro sem reserva os nos- tensos prazeres tais como o de comer e
sos amigos!": "na verdade", diria ele, de beber?
"os que se dedicam à filosofia são ho- - Tão pouco quanto possível, Só-
mens que se estão preparando para crates! - respondeu Sírnias.
morrer"; e, se há uma cousa que segu- E aos prazeres do amor?
13 Alusão ao que diz Aristófanes nas NI/I'e/l.\',
Também não!
Cf. 65e 67 deste texto, (N. doT.) E quanto aos demais cuidados
72 PLATÃO
ve se na investigação lhe pedimos auxí- dele foge, enquanto por outro lado pro-
lio? Quero dizer com isso, mais ou cura isolar-se em si mesma?
menos, o seguinte: acaso alguma ver- Evidentemente!
dade é transmitida aos homens por - Mas que poderemos dizer, Sí-
FÉDON 73
aquele que usasse no mais alto- grau, metidos pelas doenças - e eis-nos às
para aproximar-se de cada um desses voltas com novos entraves em nossa
seres. unicamente o seu pensamento, caça ao verdadeiro real! O corpo de
sem recorrer no ato de pensar nem à tal modo nos inunda de amores, pai-
66 a vista, nem a um outro sentido, sem xões, temores, imaginações de toda
levar nenhum deles em companhia do sorte, enfim, uma infmidade de bagate-
raciocínio; quem, senão aquele que, las, que por seu intermédio (sim, verda-
utilizando-se do pensamento em si deiramente é o que se diz) não recebe-
74 PLATÃO
efeito, na posse de bens é que reside a por si mesma - mas nunca antes.
origem de todas as guerras, e, se somos Além disso, por todo o tempo que
irresistivelmente impelidos a amontoar durar nossa vida, estaremos mais pró-
bens, fazemo-lo por causa do corpo, de ximos do saber, parece-me, quando
4 quem somos míseros escravos! Por nos afastarmos o mais possível da
culpa sua ainda, e por causa de tudo sociedade e união com o corpo, salvo
isso, temos preguiça de filosofar. Mas em situações de necessidade premente,
o cúmulo dos cúmulos está em que, quando, sobretudo, não estivermos
mais contaminados por sua natureza,
quando conseguimos de seu lado obter
mas, pelo contrário, nos acharmos
alguma tranqüilidade, para voltar-nos
puros de seu contato, e assim até o dia
então ao estudo de um objeto qualquer
em que o próprio Deus houver desfeito
de reflexão, súbito nossos pensamentos
esses laços. E quando dessa maneira
são de novo agitados em todos os sen- atingirmos a pureza, pois que então
tidos por esse intrujão que nos ensur- teremos sido separados da demência
dece, tonteia e desorganiza, ao ponto do corpo, deveremos mui verossimil-
de tornar-nos incapazes de conhecer a mente ficar unidos a seres parecidos
verdade. Inversamente, obtivemos a conosco; e por nós mesmos conhece-
prova de que, se alguma vez quisermos remos sem mistura alguma tudo o que
conhecer puramente os seres em si, é. E nisso, provavelmente, que há de
ê
encarar por intermédio da alma em si admitir que não seja permitido apos-
mesma os entes em si mesmos. Só sar-se do que é puro, quando não se é
então é que, segundo me parece, nos há puro !" Tais devem ser necessaria-
de pertencer aquilo de que nos declara- mente, segundo creio, meu caro Sí-
mos amantes: a sabedoria. Sim, quan- mias, as palavras e os juízos que profe-
do estivermos mortos, tal como o indi- rirâ todo aquele que, no correto
ca o argumento, e não durante nossa sentido da palavra, for um amigo do
vida! Se, com efeito, é impossível, saber. Não te parece a mesma cousa?
enquanto perdura a união com o Sim, Sócrates, nada mais prová-
corpo, obter qualquer conhecimento vel.
FÉDON 75
A Purificação
- Assim pois, companheiro - não são por acaso aqueles que, no bom
continuou Sócrates - , se é verdade o sentido do termo, se dedicam à filoso-
c que acabamos de dizer, que imensa fia? O exercício próprio dos filósofos
esperança não existe para aquele que não é precisamente libertar a alma e
se encontra nesta altura de minha afastá-la do corpo?
rota! Lá no além, se tal deve acontecer - Evidentemente.
em algum lugar, ele irá possuir com - Não seria, pois, como eu dizia
abundância tudo aquilo que exigiu de ao começar esta nossa conversa, uma
nós a realização de um imenso esforço, coisa ridícula por parte dum homem,
em nossa vida passada. E assim esta que durante toda a vida se houvesse
viagem, esta viagem que ora me foi esforçado por se aproximar o mais
prescrita, é acompanhada de uma feliz possível do estado em que ficamos
esperança; e o mesmo acontece a quem quando estamos mortos, irritar-se con-
quer que possa afirmar que seu pensa- tra a morte quando esta se lhe apresen-
mento está pronto e o possa dizer tasse?
purificado.
- Absolutamente certo - disse - Por certo que seria ridículo!
Símias. - Assim, pois, Símias, em verdade
- 'Mas a purificação não é, de fato, estão se exercitando para morrer todos
justamente o que diz uma antiga aqueles que, no bom sentido da pala-
tradição?14 Não é apartar o mais pos- vra, se dedicam à filosofia, e o próprio
sível a alma do corpo, habituá-la a evi- pensamento de estar morto é para eles,
tá-lo, a concentrar-se sobre si mesma menos que para qualquer outra pessoa,
por um refluxo vindo de todos os pon- um motivo de terrores! Eis como deve-
tos do corpo, a viver tanto quanto mos julgá-los. Não seria o supra-sumo
puder, seja nas circunstâncias atuais, da contradição que eles, por uma parte
\
seja nas que se lhes seguirão, isolada e sentindo-se de todos os modos mistu-
II por si mesma, inteiramente 'desligada rados com o corpo, e por outra dese-
do corpo e como se houvesse desatado jando que sua alma existisse em si
os laços que a ele a prendiam? mesma e por si mesma, se tomassem
- É exatamente isso. de pânico e de irritação quando sobre-
- Ter uma alma desligada e posta viesse a realização de seus desejos?
à parte do corpo, não é esse o sentido Sim, não seria uma contradição se não
exato da palavra "morte"? se encaminhassem com alegria para o
- É exatamente esse o sentido. além onde, uma vez chegados, terão a
- Sim. E os que mais desejam essa esperança de encontrar aquilo por que 68.
panhia daquilo que os molestava? Mas coragem também convém ou não con-
então! Os amantes, as mulheres, os fi- vém, no seu mais alto grau, àqueles em
lhos não foram capazes, quando mor- quem se encontram, pelo contrário, as
tos, de inspirar a muitos o desejo de ir disposições de que eu falava?
voluntariamente para as regiões do - Sem nenhuma dúvida!
Hades, na esperança de lá os encontra- - Não acontece a mesma cousa
rem, de rever o objeto de seus amores e com a temperança, e até com a tempe-
permanecer ao seu lado; ao passo que rança no sentido comum da palavra?
um homem que fosse apaixonado pela Porventura a ausência de veemência
sabedoria, que tivesse ardorosamente nos desejos e uma atitude desdenhosa e
abraçado a esperança de em nenhuma prudente não são próprias unicamente
parte senão no Hades encontrá-la sob daqueles que, no mais alto grau, sen-
uma forma digna de ser desejada, tem desprezo pelo corpo e vivem na
então esse homem haveria de irritar-se filosofia?
no momento de morrer, então esse - Necessariamente.
homem não se rejubilaria de poder - Aliás, basta que tenhas a bonda-
dirigir-se para aquelas regiões? Eis o de de refletir um momento apenas
que deve pensar, meus companheiros, sobre a coragem e a temperança do
um filósofo, se realmente é filósofo; resto dos homens, para que percebas
pois nele há de existir a forte convic- toda a sua estranheza.
ção de que em parte alguma, a não ser - Que queres dizer, Sócrates?
num outro mundo, poderá encontrar a - Não ignoras que a morte é
pura sabedoria. Ora, se assim é, não considerada por todo o resto dos ho-
será o cúmulo da extravagância, como mens como pertencendo ao número
disse há pouco, que exista o temor da dos grandes males.
morte no espírito de um tal homem? - Ah! bem o sei.
- Seguramente que seria o cúmu- - O temor de males maiores não
lo, por Zeus! leva, por acaso, os que dentre eles têm
- Dize-me, pois -'- continuou Só- mais coragem a enfrentarem a morte,
crates - , não tiveste oportunidade de quando se apresenta a ocasião de
observar várias vezes que quando enfrentá-la?
alguém se irrita no momento de mor- - COIl}o não!
rer, não é a sabedoria que alguém - Assim, pois, é por serem medro-
ama 1 5, mas sim o corpo? E que esse sos e por temerem que são corajosos
alguém talvez ame ainda as riquezas, todos os homens, com exceção dos
ou as honrarias, quer uma, quer outra filósofos. E, contudo, é absurdo pensar e
dessas coisas, ou quem sabe senão as que o temor e a covardia dêem
duas juntas? coragem!
- Realmente. É como dizes. - Tens toda a razão!
- Assim, Símias, o que chamamos - Vejamos agora os que dentre
15 Platão serve-se de um jogo de palavras: eles são considerados prudentes. Não é
philásophos (o que ama a sabedoria), philosô- uma espécie de desregramento, o prin-
matos (o que ama o corpo), philokhrématos
(o que ama as riquezas) e philátimos (o que cípio de sua temperança? Podemos
ama as honrarias). (N. do E.) afirmar enfaticamente que é impossível
FÉDON 77
serem as cousas assim, mas é um fato, contrário, a verdade nada mais seja do
contudo, que eles se encontram em que uma certa purificação de todas
situação análoga, na sua ridícula tem- essas paixões e seja a temperança, a
perança! Porque é pelo fato de teme- justiça, a coragem; e o próprio pensa-
rem ser privados de outros prazeres mento outra coisa não seja do que um
que cobiçam que se abstêm em face de meio de purificação. É possível que
alguns - porque, afinal, há muitos ou- aqueles mesmos a quem devemos a
tros que os dominam. Parece erróneo instituição das iniciações não deixem
69 a chamar de desregramento a uma certa de ter o seu mérito, e que a verdade já
continência em face dos prazeres, e de há muito tempo se encontre oculta
todavia é certo que, se esses homens sob aquela linguagem misteriosa. Todo
suportam o jugo de certos prazeres, é aquele que atinja o Hades como profa-
porque dessa forma conseguem domi- no e sem ter sido iniciado terá como
nar alguns outros. Ora, isto concorda lugar de destinação o Lodaçal, en-
com o que acabamos de dizer há quanto aquele que houver sido purifi-
pouco. De qualquer modo, é num cado e iniciado morará,' uma vez lá
desregramento que está o princípio de chegado, com os Deuses. É que, como
sua temperança! vês, segundo a expressão dos iniciados
- Verossimilmente, com efeito. nos mistérios: "numerosos são os por-
- Na verdade, excelente Símias, tadores de tirso, mas poucos os Bacan-
talvez não seja em face da virtude um tes ' 6". Ora, a meu ver, estes últimos
procedimento correto trocar assim pra- não são outros senão os de quem a
zeres por prazeres, sofrimentos por filosofia, no sentido correto do termo,
sofrimentos, um receio por um receio, constitui a ocupação. E quanto a mim,
o maior pelo menor, tal como se se tra- durante toda a vida e pelo menos na d
- no outro mundo irei encontrar, não peito dessas coisas. Se, pois, diante de
menos do que aqui, outros bons donos vós fui em minha defesa mais persua-
como outros bons companheiros. O sivo do que diante dos juízes de Ate-
vulgo, na verdade, é incrédulo a res- nas, bem haja!"
A Sobrevivência da Alma
70 •
Os contrários
inversamente, vai do segundo para o enfim, para estes dois termos, as gera-
primeiro? Observemos, com efeito, ções são, uma, "adormecer", outra,
uma coisa maior e uma coisa menor: "acordar". Achas que isto basta, ou
não há entre as duas crescimento e não?
decrescimento, o que permite afirmar, Certo que basta!
de uma, que ela cresce, e, da outra, que Cabe-te agora a vez de dizer
descresce? outro tanto a respeito da vida e da
- Há. morte. Não dirás, de início, que
- E a decomposição e a composi- "viver" tem por contrário "estar
ção, o resfriamento e o aquecimento, e morto"?
todas as oposições semelhantes, ainda - É o que eu diria.
que às vezes não' possuam nomes apro- - E, em seguida, que esses estados
priados em nossa língua, não haveriam se engendram mutuamente?
de comportar em todos os casos essa - Diria.
mesma necessidade, tanto de engen- - Que é, por conseguinte, o que
drar-se mutuamente como de admitir provém do que está vivo?
em cada termo uma geração dirigida -' O que está morto.
para o outro? - E do que está morto, que é que
- Sim, perfeitamente. provém?
- Por conseguinte, que deveremos - Impossível - disse Cebes -
dizer? - continuou Sócrates. não admitir que é o que está vivo.
Acaso "viver" não possui um contrá- - É, pois, de coisas mortas que
rio, assim como "estar acordado" tem provêm, Cebes, as que têm vida, e,
por contrário "estar dormindo"? com elas, os seres vivos?
- É absolutamente necessário que - É claro.
tenha. - Quer dizer, então, que nossas
Qual é? almas existem no Hades 1 9.
- "Estar morto".. - Parece mui verossímil.
- Não é verdade que esses estados - Das duas gerações, enfim, que
se engendram um ao outro, já que são aqui temos, não há pelo menos uma
contrários, e também que a geração que não nos deixe dúvida sobre sua
entre um e outro é dupla, já que são realidade? Por que o termo "morrer",
dois? penso, está fora de dúvida! Não está?
Assim é! - Sim, é absolutamente certo.
Ora pois - continuou Sócrates - Que faremos, então? Não o
- vou mencionar-te um dos dois compensaremos pela geração contrá-
pares de contrários, de que há pouco ria? Porque, se não fosse assim, a
falei, e sua dupla geração; e tu depois Natureza seria coxa! Ou, pelo contrá-
me indicarás o outro par. Primeiro falo rio, será preciso supor uma geração
eu: dum lado, direi "estar dormindo", contrária ao "morrer"?
do outro, "estar acordado"; em segui- - Isso é, segundo penso, absoluta-
da, é de "estar dormindo" que provém mente necessário.
d "estar acordado", e de "estar acorda- 19 Hades, Para Platão este nome tem aqui a
significação de Invisível, o país do Invisível, o
do" que provém "estar dormindo"; reino das sombras. (N. do T.)
FÉDON 81
reais: o reviver, o fato de que os vivos menos dessa maneira, não se consiga
provêm dos mortos, de que as almas convencer-te! Vê se, encarando a ques-
dos mortos têm existência, e - insisto tão de outra forma, poderás comparti-
neste ponto - de que a sorte das lhar de minha opinião. Porque, o que
almas boas é melhor, e pior a das parece diflcil de ser compreendido é
almas ruins! precisamente de que maneira o que
- Em verdade, Sócrates - tornou chamamos aprender seja apenas recor-
então Cebes - é precisamente esse dar.
também o sentido daquele famoso - Incredulidade a respeito disso?
argumento que (suposto seja verda- - volveu Símias; - não, não a
deiro) tens o hábito de citar amiúde. tenho! Sinto apenas necessidade de ser
Aprender, diz ele, não é outra coisa posto nesse estado de que fala o argu-
senão recordar" 2. Se esse argumento é mento, e de que me façam recordar.
de fato verdadeiro, nã-o há dúvida que, Na verdade, Cebes contribuiu um
numa época anterior, tenhamos apren- pouco, com a exposição que fez, para
dido aquilo de que no presente nos despertar minhas lembranças e con-
73 a recordamos. Ora, tal não poderia vencer-me. Mas nem por isso, Sócra-
acontecer se nossa alma não existisse tes, deixarei de ouvir, com prazer, a
em algum lugar antes de assumir, pela tua explicação.
geração, a forma humana. Por conse- o _ Aqui a tens: estamos sem dúvi- c
guinte, ainda por esta razão é veros- da de acordo em que para haver recor-
símil que a alma seja imortal. dação de alguma coisa num momento
' - Mas, Cebes - atalhou por sua qualquer é preciso ter sabido antes
vez Símias - de que modo poderá essa coisa?
provar isso'? Faze com que me lembre, - Sim.
pois, de momento, não consigo recor- - E, por conseguinte, sobre o
dar-me muito bem desse argumento. ponto que segue estamos também de
- Temos disso - volveu- Cebes acordo: que o saber, se se vem a pro-
--.:. uma prova magnífica: interroga-se duzir em certas circunstâncias, é uma
um homem. Se as perguntas são bem rememoração? Que circunstâncias
conduzidas, por si mesmo ele dirá, de sejam essas, vou dizer-te: se vemos ou
modo exato, como as coisas realmente ouvimos alguma coisa, ou se experi-
são. No entanto, esse homem seria mentamos não importa que outra espé-
incapaz de assim fazer se sobre.essas cie de sensação, não é somente a coisa
coisas não possuísse um conhecimento em questão que conhecemos, mas
e um reto juízo! Passa-se depois às temos também a imagem de uma outra
figuras geométricas e a outros meios coisa, que não é objeto do mesmo
do mesmo gênero, e assim se obtém, saber, mas de um outro. Então, dize-
com toda a certeza possível, que as me, não temos razão em pretender que
coisas de fato assim se passam. aí houve uma recordação, e uma recor-
- Entretanto - disse Sócrates - dação daquilo mesmo de que tivemos a
é muito provável, Símias, que, pelo imagem?
Como assim? d
coisas muito diferentes, penso, conhe- sua semelhança com aquilo de que nos
cer um homem e conhecer uma lira? recordamos?
- Efetivamente. - Sim, isso é necessário.
- Ignoras tu que os amantes, à - Examine agora - tornou Só-
vista duma lira, duma vestimenta ou de crates - se não é deste modo que isso
qualquer outro objeto de que seus ama- se passa: afirmamos sem dúvida que
dos habitualmente se servem, rememo- há um igual em si; não me refiro à
ram a pr6pria imagem do amado a igualdade entre um pedaço de pau e
quem esse objeto pertenceu? Ora, aqui outro pedaço de pau, entre uma pedra
tentos o que vem a ser uma recorda- e outra pedra, nem a nada, enfim, do
ção. Da mesma forma, também acon- mesmo gênero; mas a alguma coisa
tece que, se alguém vê Símias, muitas que, comparada a tudo isso, disso,
vezes isso lhe faz recordar Cebes, E porém se distingue: - o Igual em si
poder-se-iam encontrar milhares de mesmo. Deveremos afirmar que ele
exemplos análogos. existe, ou negar?
- Milhares, seguramente, por - Seguramente que devemos afir-
Zeus! -- assentiu Símias, má-lo, por Zeus! - disse Cebes. -
- Assim, pois, um caso desse gê- Muito bem!
nero constitui uma recordação, princi- - E sabemos também o que ele é
palmente quando se trata de coisas que em si mesmo?
o tempo ou a distração já nos tinham - Também.
feito esquecer, não é verdade? - E onde obtemos o conhecimento
- Absolutamente certo. que dele temos? Acaso não foi dessas
- Mas responde-me - continuou coisas de que falamos há pouco?
Sócrates: - ao ver o desenho dum Acaso não foram esses pedaços de
cavalo, o desenho de uma lira, pode-se pau, essas pedras, ou outras coisas
recordar um homem? Ao ver um retra- semelhantes, cuja igualdade, percebida
to de Símias, recordar-se de Cebes? por n6s, nos fez pensar nesse igual que
- Certo que pode. entretanto é distinto delas? Ou dirás
-Ao ver um retrato de Símias, não que ao teu parecer ele não se distingue
é fácil recordar-se do pr6prio Símias? delas? Pois bem; examina outra vez a
74 •
- Seguramente que sim! questão, mas sob este outro aspecto:
- Assim - não é verdade? - o não acontece que pedaços de pau ou
ponto de partida da recordação em pedras, sem se modificarem, se apre-
todos esses casos é, algumas vezes, um sentem a n6s ora como iguais, ora
semelhante, outras vezes também um como desiguais?
dessemelh ante ? - Acontece, realmente.
- Éverdade. - Mas então? O Igual em si acaso
- Mas, considerando o caso em te pareceu em alguma ocasião desi-
que o semelhante nos sirva de ponto de gual, isto é, a igualdade uma desigual-
partida para uma recordação qualquer, dade?
não somos forçosamente levados a - Jamais, Sócrates!
reflexões como esta: falta ou não algu- - Logo, a igualdade dessas coisas
ma coisa ao objeto considerado, em não é o mesmo que o Igual em si.
84 PLATÃO
visão desta faz com que penses numa elas aspiram a ser tal qual o Igual em
outra, desde então, quer haja seme- si, embora lhe sejam inferiores?
lhança ou dessemelhança, necessaria- - É isso mesmo.
mente o que se produz é uma recorda- - Mas também estamos de acordo
ção?23 sobre o seguinte: uma tal reflexão e a
- Necessariamente. possibilidade mesma de fazê-la provêm
- Mas dize-me - continuou Só- unicamente do ato de ver, de tocar, ou
crates: - passam-se as coisas para de qualquer outra sensação; pois o
nós da mesma forma como as igualda- mesmo podemos dizer a respeito de
des dos pedaços de pau e como as de todas.
que falávamos há pouco? Essas coisas - De fato, é o mesmo, Sócrates,
nos parecem iguais assim como o que é pelo menos em relação ao fim visado
Igual em si? Falta-lhes ou não lhes pelo argumento.
- Como quer que seja, segura-
falta algo para poderem convir ao
Igual? mente são as nossas sensações que
devem dar-nos tanto o pensamento de
- Oh, falta-lhes muito!
que todas as coisas iguais aspiram à
- Estamos, pois, de acordo quan-
realidade própria do Igual, como o de
do, ao ver algum objeto, dizemos:
que elas são deficientes relativamente a
"Este objeto que estou vendo agora
este. Quer dizer, senão isto?
tem tendência para assemelhar-se a um
- Isso mesmo!
outro ser, mas, por ter defeitos, não - Assim, pois, antes de começar a
consegue ser tal como o ser em ques- ver, a ouvir, a sentir de qualquer modo
tão, e lhe é, pelo contrário, inferior". que seja, é preciso que tenhamos
Assim, para podermos fazer estas adquirido o conhecimento do Igual em
reflexões, é necessário que antes tenha- si, para que nos seja possível comparar
23 Alusão ao Fedro: as idéias eternas são o ser com essa realidade as coisas iguais que
verdadeiro; os objetos materiais não passam de as sensações nos mostram, percebendo
imitações insuficientes daquelas. As almas.
antes de entrar nos corpos, contemplaram as que há em todas elas o desejo de serem
idéias eternas, e a percepção sensível dos obje- tal qual é essa realidade, e que no
tos materiais lhes desperta uma recordação des-
sas idéias (teoria da reminiscência). (N. do T. ) entanto lhe são inferiores!
FÉDON 85
Maior eo Menor, e também tudo o que pelo ouvido ou por qualquer outro sen-
é da mesma espécie? Pois o que, de tido, essa coisa nos permita pensarmos
fato, interessa agora à nossa delibera- num outro ser que tínhamos esquecido,
ção não é apenas o Igual, mas também e do qual se aproximava a primeira,
o Belo em si mesmo, o Bom em si, o quer ela lhe seja semelhante ou não.
d Justo, o Piedoso, e de modo geral, Por conseguinte, torno a repetir, de
digamos assim, tudo o mais que é a duas uma: ou nascemos com o conhe-
Realidade em si, tanto nas questões cimento das idéias e este é um conheci-
que se apresentam a este propósito, mento que para todos nós dura a vida
como nas respostas que lhes são dadas. inteira - ou então, depois do nasci-
De modo que é uma necessidade mento, aqueles de quem dizemos que
adquirir o conhecimento de todas essas se instruem nada mais fazem do que
coisas antes do nascimento ... recordar-se; e neste caso a instrução
- É bem isso. seria uma reminiscência.
- E também, supondo pelo menos - É exatamente assim, Sócrates!
que depois de tê-lo adquirido não o - Qual é, por conseguinte, dessas
esqueçamos constantemente, é uma alternativas a que escolhes, Símias? O
necessidade lógica que tenhamos nas- saber inteiro e perfeito para nós ao
cido com esse saber eterno, conservan- nascermos, ou talvez uma recordação
do-o sempre no curso de nossa vida. ulterior de tudo aquilo de que anterior-
Saber, com efeito, consiste nisto: de- mente havíamos adquirido o conheci-
pois de haver adquirido o conheci- mento?
mento de alguma coisa, dispor dele e - De momento, Sócrates, estou in-
não mais perdê-lo. Aliás, o que deno- capacitado de fazer uma escolha.
86 PLATÃO
Mas responde, eis aqui uma mesmo em que adquirimos tais conhe-
escolha que estás em condições de cimentos; pois essa é a ocasião que nos
fazer, dizendo-me a seu respeito qual é resta.
a tua opinião: um homem que sabe é - É verdade, meu amigo; mas d
capaz, ou não; de dar razões daquilo então, em que outra ocasião nós os
que sabe? perdemos? É certo que não dispú-
- Necessariamente, Sócrates! nhamos deles quando nascemos, e a
- Crês, além disso, que toda a este respeito estávamos de acordo faz
gente seja capaz de explicar o que são pouco. Assim, ou nós os perdemos no
os seres de que há pouco nos ocupáva- momento mesmo em que os adquiri-
mos? mos; ou acaso podes alegar algum
- Ah! Bem o desejaria eu - res- outro momento?
pondeu Símias. - Mas receio, pelo - Impossível, Sócrates! A verdade
contrário, que amanhã não haja mais é que, sem o perceber, falei leviana-
um só homem no mundo que esteja em mente.
condições de sair-se dignamente dessa - Em conseqüência, Símias, se
tarefa.ê " existe, como incessantemente o temos
- Daí resulta pelo menos, Símias, repetido, um Belo, um Bom, e tudo o
que, no teu entender, o conhecimento mais que tem a mesma espécie de reali-
das idéias não pertence a todo o dade; se é a essa realidade que relacio-
mundo? namos tudo o que nos provém dos sen-
- Absolutamente não! tidos, porque descobrimos que ela já
- Vale então dizer que os homens existia, e que era nossa; se, enfim, à
se recordam daquilo que aprenderam realidade em questão comparamos
num tempo passado? esses fenômenos - então, em virtude
- Necessariamente. da mesma necessidade que fundamenta
- E que tempo foi esse em que a existência de tudo isso, podemos
nossas 'almas adquiriram saber acerca concluir que nossa alma existia já
desses seres? Seguramente, não havia antes do nascimento. Suponhamos, ao
de ser a datar de nosso nascimento contrário, que tudo isso não exista.
humano? Não seria, então, pura perda o que esti-
vemos a demonstrar? Não é desta
Seguramente que não!
forma que se apresenta a situação?
- Seria pois, anteriormente?
Não há acaso uma igual necessidade
- Sim.
de existência, tanto para esse mundo
- As almas, Símias, existiam, por
ideal, como também para nossas
conseguinte, antes de sua existência
almas, mesmo antes de termos nasci-
numa forma humana, separadas dos
do, e a não-existência do primeiro
corpos e dotadas de pensamento?
termo não implica a não-existência do
- A menos, Sócrates, que o ins-
tante de nosso nascimento seja aquele segundo?
- Não há quem sinta, Sócrates,
24 Glorificação um tanto exagerada de Sócra- mais do que eu - disse Símias - que
tes: amanhã Sócrates estará morto, e após sua a necessidade é idêntica em ambos os
morte não se há de encontrar mais um bom
filósofo. (N. do T.) casos! Que bela base para uma prova,
FÉDON 87
menos assim creio, embora no mundo sibilidade de que seu adv.ento à vida e
não haja em matéria de demonstra- que o seu nascimento tenham outra
ções, duvidador mais obstinado que origem que não a morte? Logo, como é
b . ele! Entretanto julgo-o plenamente .que sua existência, mesmo que se este-
convencido de que a alma existe antes ja morto, não há de ser necessária,
do nascimento. Mas será verdade que uma vez que ela deve ter uma nova
depois de nossa morte ela continua a geração? De qualquer modo, já aí exis-
existir? Aqui está, Sócrates, segundo te uma prova, uma demonstração.
me parece, uma coisa que ainda não Contudo, parece-me que gostarias,
foi demonstrada. Muito pelo contrário: Cebes, e tu também, Símias, de apro-
em face de nós ainda permanece de pé fundar esta prova, pois estais domina-
a opinião vulgar há pouco lembrada dos pelo medo pueril de que um vento
por Cebes. É possível que, no momen- qualquer possa soprar sobre a alma no
to da morte, a alma não se dissipe, e se momento de sua saída do corpo para
esse não é, também, o seu fim? Com dispersá-la e dissipá-la, sobretudo
efeito, que há que impeça isso? A alma .quando, por pura coincidência, há uma
pode muito bem ter alguma outra ori- brisa forte no instante de morrer-
mos! 2,5
gem, pode existir, enfim, antes de vir
Cebes nu:
para um corpo humano, mas por outro - Não são uns poltrões, Sócrates?
lado, quando, depois de ter vindo, dele Talvez, mas procura reconfortá-los!
se separa, é possível que também ela Admitamos, porém, que não sejamos
encontre nesse instante o seu fim e a poltrões, mas que dentro de cada um
sua destruição. de nós há não sei quê de infantil a que
- Muito bem dito, Símias! - vol- .este gênero de coisas causa medo. Por
veu Cebes. - Com efeito, é evidente isso, esforça-te para que essa criança,
que da demonstração decorre que a convencida por ti, não sinta diante da
nossa alma existe antes do nascimento.
25 Ironia contra os naturalistas, que conside-
Mas é imprescindível demonstrar ram a alma como sendo constituída pelo ar.
ainda que nos achamos apenas na me- (N. doT.)
88 PLATÃO
morte o mesmo medo que lhe infun- Ah, é bom ouvir isto! - disse
dem as assombrações. Cebes.
- Mas é preciso então - replicou - Não é uma questão, mais ou
Sócrates - que lhe façam exorcismos menos como esta, a que temos de
todos os dias, até que as encantações o propor-nos: quais são as coisas que
tenham libertado disso uma vez por são suscetíveis de decomposição? A
todas P " propósito de que espécie de coisas
78 a - Mas, Sócrates, onde poderemos devemos temer esse estado, e -para que
encontrar contra esse gênero de terro- espécie de seres isso não acontece? De-
res um bom exorcista, uma vez que pois disso, teremos ainda de examinar
estás prestes a deixar-nos? qual dos dois é o caso da alma, para
- A Grécia, Cebes, é bem grande finalmente, conforme o resultado que
- respondeu Sócrates - e nela não obtivermos, haurir daí confiança ou
faltarão homens capazes! E, além temor com respeito à nossa alma.
- Éverdade.
dela, quantas nações bárbaras exis-
- Não é, pois, às coisas compostas
tem!27 Dirigi vossa busca por entre
ou àquelas cuja natureza é composta,
todos esses homens; e na procura de
que cabe corresponder precisamente a
um tal exorcista não poupeis trabalhos
composição? Mas, se acontece haver
nem bens, repetindo convosco, a cada
alguma coisa não-composta, não é só a
momento, que nada há em que possais
ela que convém, mais do que a qual-
com mais proveito gastar a vossa for-
quer outra coisa, o escapar a esse esta-
tuna! Mas, antes disso, é necessário
do de decomposíçâo P 9
que procureis entre vós mesmos, pois - Sim - disse Cebes - é o que
talvez vos seja muito difícil encontrar penso; assim deve ser.
uma pessoa que esteja em melhores - Dize-me então: os seres que
condições do que vós para realizar sempre se conservam imutáveis e sem-
essa tarefa P 8 pre se comportam do mesmo modo,
- Pois bem, assim faremos! - não é altamente verossímil que sejam
disse Cebes. - Agora voltemos à esses precisamente os seres que não se
investigação, no ponto em que a deixa- decompõem? Ao contrário, o que ja-
mos, a menos que isso te cause mais é o mesmo, o que ora se com-
aborrecimento. porta de um modo, ora de outro, é ou
- Muito ao contrário, isso agra- não é isso o que chamamos composto?
da-me muito! Por que havia de ser de - Segundo penso, é.
outro modo? - Passemos, agora,· àquilo para
onde nos havia encaminhado a argu-
26 Alusão aos costumes populares, que acredi- mentação precedente! Essa essência, d
tavam na possibilidade de expulsar fantasmas de cuja existência falamos em nossas
e assombrações mediante a recitação cantada
de certas fórmulas mágicas. (N. do T.) interrogações e em nossas respostas,
27 Nações bárbaras quer dizer nações estran-
geiras, e não nações incultas; Platão não igno- 29 Opinião dos filósofos Anaxágoras e Empé-
rava que os egípcios possuíam doutrinas muito docles: o transformar-se resulta da composi-
importantes acerca da ciência. (N. do T.) ção de certas substâncias simples; o desapare-
28 De fato foram os discípulos de Sócrates. cer nada mais é do que a decomposição ou
que constituíram a mais rica sementeira de desagregação destas substâncias anteriormente
doutrinas e escolas da antiguidade. (N. do T.) unidas num corpo composto. (N. do T.)
FÉDON 89
jamais guarda a mesma forma; ela de vista. Quando estão juntos a alma e
mesma se torna inconstante, agitada, e o corpo, a este a natureza consigna ser-
titubeia como se estivesse embriagada: vidão e obediência, e à primeira co-
isso, por estar em contato com coisas mando e senhorio. Sob este novo
desse gênero. aspecto, qual dos dois, no teu modo de
- Realmente. pensar, se assemelha ao que é divino, e
- Mas quando, pelo contrário qual o que se assemelha ao que é mor-
nota bem! - ela examina as coisas tal? Ou acaso pensas que o que é divi-
por si mesma, quando se lança na dire- no existe, por sua natureza, para dirigir
ção do que é puro, do que sempre exis- e comandar, e o que é mortal, ao
te, do que nunca morre, do que se com- contrário, para obedecer e para ser
porta sempre do mesmo modo - em escravo?
virtude de seu parentesco com esses - Penso como tu.
seres puros - é sempre junto deles - Com qual dos dois, portanto, a
que a alma vem ocupar o lugar a que alma se assemelha?
lhe dá direito toda realização de sua - Nada mais claro, Sócrates! A
existência em si mesma e por si alma, com o divino; o corpo, com o
mesma. Por isso, ela cessa de vaguear mortal.
e, na vizinhança dos seres de que fala- - Bem; examina agora, portanto,
mos, passa ela também a conservar Cebes, se tudo o que foi dito nos con-
sempre sua identidade e seu mesmo duz efetivamente às seguintes conclu-
modo de ser: é que está em contato sões: a alma se assemelha ao que é
com coisas daquele gênero. Ora, este divino, imortal, dotado da capacidade
estado da alma, não é o que chamamos de pensar.. ao que tem uma forma
pensamento? única, ao que é indissolúvel e possui
- Muito bem dito, Sócrates, e sempre do mesmo modo identidade: o
muito verdadeiro! corpo, pelo contrário, equipara-se ao
e. - Portanto, ainda uma vez: com que é humano, mortal, multiforme,
qual das duas espécies mencionadas, desprovido de inteligência, ao que está
segundo te parece, diante de nossos sujeito a decompor-se, ao que jamais
argumentos passados e dos de agora, a permanece idêntico. Contra Isto, meu
alma tem mais semelhança e paren- caro Cebes, estaremos em condições
tesco? de opor uma outra concepção, e provar
- Penso não haver ninguém, Só- que as coisas não se passam assim?
crates, por mais dura que tenha a cabe- - Não, Sócrates.
ça, que seja capaz de não concordar, - Que se segue daí? Uma vez que
seguindo este método, em que, em tudo as coisas são assim, não é acaso uma
e por tudo, a alma tem mais seme- pronta dissolução o que convém ao
lhança com o que se comporta sempre corpo, e à alma, ao contrário, uma
do mesmo modo, do que com as coisas absoluta indissolubilidade, ou pelo
que não o fazem. menos qualquer estado que disso se
- E o corpo, por seu lado? aproxime?
FÉDON 91
- E por que não, com efeito? lugar, um lugar que lhe é semelhante,
- Mas a esta altura podes fazer a lugar nobre, lugar puro, lugar invisível,
seguinte reflexão: depois da morte do o verdadeiro país de Hades, para cha-
c. homem, o que nele há de visível, seu má-lo por seu verdadeiro nome" o,
corpo, a parte que continua visível, ou, perto do Deus bom e sábio, lá para
por outra, o que chamamos cadáver, a onde minha alma deverá encaminhar-
isto é que convém dissolver-se, desa- se dentro em breve, se Deus quiser;
gregar-se, dissipar-se em fumo, e entre- então há de ser essa alma, digo, cujos
tanto nada de tudo isso lhe acontece caracteres e constituição natural aca-
imediatamente. Bem ao contrário, ele bamos de ver, então há de ser ela que,
resiste durante um tempo relativa- tão depressa se separe do corpo, se
mente longo. Sobretudo para um corpo dispersará e aniquilará, assim como
que, ao morrer, está cheio de vida e em pretende o comum dos homens? Não.. e
todo o seu viço, tal duração é de fato muito ao contrário, meu caro Cebes,
muito grande. Ademais, é fato que, se meu caro Símias; muito ao contrário,
for reduzido e embalsamado como as vede o que acontece.
múmias do Egito, sua conservação
será quase perfeita durante uma dura- 30 Alusão li. filosofia contemporânea de Platão:
ção, por assim dizer, incalculável. os gregos derivavam a palavra llillç
(Hades) de CI e lÓ1jÇ encontra-
d. Além disso há, mesmo num corpo em ram nesta palavra a significação de invisível,
putrefação, certas partes, como os explicando simplesmente que Hades, como rei
dos mortos, mora com as almas destes debaixo
ossos, os tendões e outras do mesmo da terra, e é por isso invisível aos homens e
gênero, que são, pode-se dizer, imor- aos outros deuses. Mas Platão modifica a acep-
ção: Hades é o "invisível verdadeiro", isto é,
tais. Não é verdade? a substância invariável, eterna e imperceptível
-É. aos sentidos, mas 'captâvel pelo espírito, que
depois da morte se aparta dos obstáculos da
- Mas então a alma, aquilo que é matéria (corpo) e vê diretamente o Hades,
.ínvisível e que se dirige para um outro isto é, o ser eterno. (N. do T.)
vida um contato voluntário, ela conse- para morrer. Poder-se-â dizer, pois, de
guiu, evitando-o, concentrar-se em si uma tal conduta, que ela não é um
mesma e sobre si mesma, e também exercício para a morte?"
pela razão de que foi para esse resul- - Sim, realmente é isso.
92 PLATÃO
A função da filosofia
"Pois bem, aí estão, Símias, meu que lhes confere o infortúnio, não é
amigo, e tu, Cebes, os motivos pelos capaz de atemorizá-los, como faz aos
quais os que, no exato sentido da pala- que amam o poder e as honras. Por
vra, se ocupam com a filosofia, perma- isso, eles permanecem afastados dessa
necendo afastados de todos os desejos espécie de desejos." .
corporais sem exceção, mantendo uma - Aliás, o contrário de tudo isso,
atitude firme e não se entregando às Sócrates, é que lhes ficaria mal! -
suas solicitações. A perda de seu patri- acrescenta Cebes.
mônio, a- pobreza não lhes infunde - De fato, por Zeus! Eis aí por d
medo, como à multidão dos amigos que motivo se aparta de todas essas
das riquezas; e, da mesma forma, a pessoas, Cebes, o homem que tem al-
existência sem honrarias e sem glória, guma preocupação com sua alma e
94 PLATÃO
cuja vida não é gasta em mimar o Que não creiam enfim senao no pró-
corpo. Seu caminho não se confunde prio testemunho desde que tenham
com o daqueles que não sabem para examinado bem o que cada coisa é na
onde vão. Acreditando que não deve sua essência e que se persuadam de
agir em sentido contrário à filosofia, que as coisas que são examinadas por b
nem ao que ela proporciona para liber- meio de um intermediário qualquer
tar-nos e purificar-nos, esse homem nada possuem de verdadeiro, e perten-
volta-se para o lado dela e segue-a na cem ao gênero do sensível e do visível
rota que ela lhe aponta. enquanto que o que elas vêem pelos
- De que modo, Sócrates? seus próprios meios é inteligível e, ao
- Vou dizer-te. É uma coisa bem mesmo tempo, invisível!
conhecida dos amigos do saber, que "Contra essa libertação a alma do
sua alma, quando foi tomada sob os verdadeiro filósofo persuade-se de que
cuidados da filosofia, se encontrava não se deve opor, e por isso se afasta
completamente acorrentada a um tanto quanto possível dos prazeres,
corpo e como que colada a ele; que o assim como dos desejos, dos incômo-
corpo constituía para a alma uma dos e dos terrores. Ela sabe com efeito
espécie de prisão, através da qual 'ela que, quando sentimos com intensidade
devia forçosamente encarar as realida- um prazer, um incômodo, um terror ou
des, ao invés de fazê-lo por seus pró- um desejo, por maior que seja o mal c
prios meios e através de si mesma; que, que possamos sofrer nesse momento,
enfim, ela estava submersa numa igno- entre todos os que se podem imaginar
rância absoluta. E o que é maravilhoso - cair doente, por exemplo, 'ou arrui-
nesta prisão, a filosofia bem o perce- nar-se por causa de suas paixões - ela
beu, é que ela é obra do desejo, e quem sabe que não há nenhum desses males
83 a _ concorre para apertar ainda mais as que não seja ultrapassado por aquele
suas cadeias é a própria pessoa! que é o mal supremo; é deste mal que
Assim, digo, o que os amigos do saber sofremos, e não o notamos !"
não ignoram é que, uma vez tomadas - E que mal é esse, Sócrates?
sob seus cuidados as almas cujas con- - É que em toda alma humana,
dições são estas, a filosofia entra com forçosamente, a intensidade do prazer
doçura a explicar-lhes as suas razões, a ou do sofrimento, a propósito disto ou
libertá-las, mostrando-lhes para isso de daquilo, se faz acompanhar da crença
quantas ilusões está inçado o estudo de que o objeto dessa emoção é tudo o
que é feito por intermédio dos olhos, que há de mais real e verdadeiro, em-
tanto como o que se faz pelo ouvido e bora tal não aconteça. Esse é o efeito
pelos outros sentidos; persuadindo-as de todas as coisas visíveis, não é?
ainda a que se livrem deles, a que evi- - Efetivamente.
tem deles servir-se, pelo menos quando - E não é em tais afetos que no -d
não houver imperiosa necessidade; mais alto grau a alma fica sujeita às
recomendo-lhes que se concentrem e se cadeias do corpo?
voltem para si, não confiando em nada - De que modo, dize?
mais do que em si mesmas, qualquer - Assim: todo prazer e todo sofri-
que seja o objeto de seu pensamento. mento possuem uma espécie de cravo
FÉDON 95
alma ao corpo em seus juízos e que deverá, além disso, após o fim
comprazer-se nos mesmos objetos, ne- desta existência, ir-se para o que lhe é
cessariamente deve produzir-se em aparentado e semelhante, desembara-
ambos, segundo penso, uma conformi- çando-se destarte da humana miséria!
dade de tendências assim como tam- Tendo sido esse o seu alimento, não há
bém uma conformidade de hábitos; e recear que ela tenha medo; nem -
sua condição é tal que, em conse- porquanto foi precisamente nisso, Sí-
qüência, ela jamais atinge o Hades em mias e Cebes, que ela se exercitou -
estado de pureza, mas sempre contami- que tema vir a decompor-se no mo-
nada pelo corpo de que sai; o resultado mento em que se separar do corpo, ou
é que logo recai num outro corpo, onde ser dispersada ao sopro dos ventos, ou
de certa forma se planta e deita raízes. dissipar-se em fumo e, uma vez dissol-
E por força disso fica desprovida de vida, não ser mais nada em nenhuma
parte!
• todo direito a participar da existência
Depois destas palavras de Sócrates,
do que .é divino e, portanto, puro e
fez-se um silêncio que durou algum c
único em sua forma.
tempo. Sócrates; isso se notava ao
- Tuas palavras, Sócrates - disse
olhá-lo, tinha o espírito completamente
Cebes - são a própria verdade! absorto na meditação do argumento
- Aí estão, pois, Cebes, os moti- que acabara de expor, e o mesmo
vos pelos quais aqueles que são, de acontecia com a maioria dos presentes.
fato, amigos do saber, são prudentes e Quanto a Cebes e Símias, estavam
corajosos, e não pelas razões que alega conversando a meia voz. Vendo isso,
o vulgo. Ou talvez penses também Sócrates dirigiu-se aos dois: - Dizei-
como o vulgo? me se também não é vosso pensamento
- Não, seguramente que não! que falta alguma coisa ao que até
64 a - Não, é verdade! Muito pelo agora dissemos? É bem certo que para
contrário, eis como, sem dúvida, refle- trás ficou mais de um ponto suspeito,
tirá uma alma de filósofo: ela não irá que daria margem a ataques contra
pensar que, sendo o trabalho da filoso- nós se não fizéssemos uma suficiente
fia libertá-la, o seu possa ser.; enquanto revisão deles todos. Mas, se falais de
a filosofia a liberta, o de se entregar outra coisa neste momento, então
voluntariamente às solicitações dos estou a interrogar-vos em vão! Se, pelo
prazeres e dos sqfrimentos, para tornar 31 Penélope: esposa de, Ulisses, figura da Odis-
a colocar-se nas cadeias, nem o de rea- séia. Na ausência de seu marido, perseguida
lizar o labor sem fim duma Penélope por muitos pretendentes que desejavam com
ela casar, Penélope prometeu desposar um de-
que trabalhasse de maneira contrária les quando houvesse acabado de tecer um pano
àquela com que trabalhou aquelaê ". em que estava trabalhando. Mas desfazia du-
rante a noite a parte que tecera de dia, de mo-
Não! ela acalma as paixões, liga-se do que jamais concluiu o trabalho, nem casou
aos passos do raciocínio e sempre está com nenhum pretendente. (N. do T.)
96 PLATÃO
contrário, é isto mesmo o que vos nenhuma ave canta quando sente fome
d embaraça, nada de hesitações! Falai, ou frio, ou quando sente dor; não, nem
dizei o que vos parecer necessário e, mesmo o rouxinol, a andorinha e a
por vossa vez, tomai-me por auxiliar, poupa, que são precisamente, segundo
se acreditais que vos será mais fácil a tradição, os pássaros cujo canto é
sair das dificuldades com o meu um lamento dolorido. Para mim, não é
auxílio! a dor que faz com que eles cantem,
- Pois bem, Sócrates - respon- como não é ela que faz cantar os eis-
deu Símias - vou dizer-te a verdade; nes 3 2 • Estes, muito ao contrário, pro-
já faz um bom tempo que, sentindo vavelmente porque são as aves de
certa dificuldade a propósito do teu Apolo, possuem um dom divinatório, e b
argumento, cada um de nós está procu- é a presciência dos bens existentes no
rando fazer com que o outro se decida Hades que os faz, no dia de sua morte,
e te interrogue; temos, com efeito, cantar de modo tão sublime, como ja-
muito desejo de ouvir-te falar, mas mais o fizeram no curso anterior de
receamos também causar-te incômodo sua existência. Ora, eu, quanto a mim,
e angústia, pois levamos em conta a penso ter a mesma missão que os cis-
situação penosa em que te encontras! nes; creio que estou consagrado ao
Ouvindo isso, Sócrates teve um leve mesmo Deus, que os cisnes não me
sorriso: Misericórdia, Símias! superam na faculdade divinatória que
Como me seria difícil e incômodo con- recebi de nosso Soberano 3 3, e que, do
vencer a outros homens de que não mesmo modo, não sinto mais tristeza
considero penosa a situação em que do que ele ao separar-me desta vida.
atualmente me encontro, uma vez que Essas são as cousas que deveis ter em
não consigo convencer disso nem a vós mente quando quiserdes falar e propor
próprios, e que, além disso, tendes a as questões que desejardes, tanto quan-
desconfiança de que nesta ocasião eu to o permitirem os Onzeê 4 em nome
esteja possuído de uma enorme triste- do povo de Atenas.
za, como nunca senti em minha vida - Alegra-me, Sócrates, esse teu
passada! Isso, possivelmente, provém modo de falar! - disse Símias. -
de me julgardes menos bem dotado do Vou, portanto, expor-te o que está me c
que os cisnes para a adivinhação. embaraçando, e Cebes, depois, dirá
Realmente, quando eles sentem aproxi-
por que motivo não aceita o que até
mar-se a hora da morte, o canto que
agora foi dito. Meu ponto de vista, Só-
85 a antes cantavam se torna mais fre-
crates, a respeito de questões deste gê-
qüente e mais belo do que nunca, pela
alegria que sentem ao ver aproximar-se 32 Há aqui alusão a uma antiga lenda da Atica,
o momento em que irão para junto do segundo a qual a andorinha e o rouxinol são
Procne e Filomela, filhas do rei Pandião, de
Deus a que servem. Mas os homens, Atenas. (N. do T.)
com o pavor que têm da morte, calu- 33 O cisne é a ave consagrada a Apolo, deus
da adivinhação. Sócrates aqui se compara poe-
niam até os cisnes: estes estão, dizem, ticamente ao cisne e considera como seu derra-
a lamentar a sua morte, e a dor é que deiro canto a doutrina sobre a imortalidade da
alma. (N. do T.)
lhes inspira aquele canto supremo. No 34 Funcionários encarregados da execução dos
entanto, ninguém se lembra de que condenados e de fiscalizar a prisão. (N. do T.)
FÉDON 97
difícil de obter. Mas por outro lado, dedilhada, ao passo que a própria lira
está claro, se as opiniões -relacionadas e suas cordas são coisas corpori-
com tudo isso não forem submetidas a formes, compostas, terrenas, aparen-
uma crítica realmente aprofundada, se tadas com a natureza mortal. Supo-
se abandonar o assunto sem antes ser nhamos, pois, que alguém quebre a
examinado em todos os sentidos - lira, que se lhe cortem ou rebentem as
então, é porque se tem uma natureza cordas; e depois que se sustente, com
fraca! É necessário, pois, a este propó- uma argumentação idêntica à tua, que
sito, fazer uma das cousas seguintes: a harmonia de que falamos existe
não perder a ocasião de instruir-se, ou necessariamente e que não foi des-
procurar aprender por si mesmo, ou truída. De que modo compreender que
então, se não se for capaz nem de uma subsistam, tanto a lira, depois que suas
nem de outra dessas ações, ir buscar cordas se partiram, como as próprias
em nossas antigas tradições humanas o cordas, que são de natureza mortal, e a
d que houver de melhor e menos contes- harmonia - a harmonia que é da
tável, deixando-se assim levar como mesma natureza e da mesma família
sobre uma jangada, na qual nos' arris- que o divino e o imortal, destruída
caremos a fazer a travessia da vida, mesmo antes do que é mortal? Não,
uma vez que não a podemos percorrer, seria o que diriam; é necessário que a
com mais segurança e com menos ris- harmonia continue ainda a existir em
cos, sobre um transporte mais sólido: alguma parte, embora a madeira da
quero dizer, uma revelação divina! lira e suas cordas apodreçam, à har-
Assim, pois, já estamos entendidos: monia nada sucederá! Aliás, Sócrates,
não terei, de minha parte, cerimônia creio que não esqueceste aquela con-
em interrogar-te, já que a isso me con- cepção da natureza da alma, a que
vidas, e para que no futuro eu não damos preferência. Admitido que
tenha de recriminar-me por não te nosso corpo seja semelhante a um
haver dito hoje o que penso! De fato, instrumento de cordas e que sua unida-
Sócrates: depois da revisão à qual eu de seja mantida pelo calor e o frio, pelo
mesmo submeti, como Cebes, o que se seco, pelo úmido e outras qualidades
disse em nossa conversa, fiquei con- análogas, é a combinação e a harmo-
vencido de que as provas não são nia desses mesmos contrários que
satisfatórias. constitui a nossa alma, quando se com- c
logo destruída como as outras harmo- não tenha sido (se pelo 'menos não é
nias, quer se realizem em sons, quer presunção afirmá-lo) demonstrado de
em outras formas de arte; ao passo que modo plenamente satisfatório. Mas,
o despojo corporal resiste ainda por pretender que depois de nossa morte a
muito tempo, até o dia em que o tenha alma continue a existir, eis uma coisa
d destruído o fogo ou a putrefação. Exa- com que não estou de acordo. Por
mina, pois, Sócrates, o que poderíamos certo, a alma é uma entidade mais
objetar a essa teoria segundo a qual a vigorosa e durável que o corpo; e isso
alma, sendo a combinação dos elemen- não concedo à objeçâo levantada por
tos de que é feito o corpo, deve ser des- Símias, pois minha convicção é a de
truídá em primeiro lugar quando so- que, em todos os pontos, a superiori-
brevém aquilo a que chamamos morte. dade da alma é imensa. "Então por que
Sócrates teve aquele olhar pene- motivo, dír-me-ão, permaneces ainda
trante que, em muitas circunstâncias, em dúvida? Não reconheces que, uma
lhe era habitual, e sorriu: - Há algu- vez morto o homem, o que continua a
ma verdade, palavra l, no que Símias subsistir é precisamente o que há de
acaba de dizer! Com efeito, se há den- mais frágil? E quanto ao que é mais
tre vós alguém que esteja menos atur- durável não achas necessário que con-
dido do que eu por suas palavras, por tinue a viver durante esse tempo?"
que não lhe responde? Pois é um temí- Examina agora se minha linguagem
vel golpe que ele parece ter desfechado encerra alguma verdade, pois eu, natu-
contra as minhas provas! Contudo, ralmente, assim como Símias, sinto
necessidade duma imagem para que
segundo penso, antes de responder-lhe
me possa exprimir. Para mim, com
devemos primeiramente ouvir dos lá-
efeito, seria isso o mesmo que dizer
bios de Cebes o que este por sua vez
alguém a respeito da morte dum velho
reprova no meu argumento. Assim
tecelão: "O bom do velho tecelão não
teremos tempo para refletir sobre o que está morto; ele continua a viver em
devemos dizer. Depois disso, ouvidos qualquer parte, e, como prova, aqui
ambos, por-nos-emos acordes com está o vestuário que ele usava, e que ele
eles, se julgarmos que seu canto está próprio tecera, conservado em bom es-
bem cantado; senão, será porque o tado e não destruído." E a quem não
processo do argumento deve ser revisa- concordasse, poderia fazer esta per-
do. Pois bem, Cebes, avante! Fala, por gunta: "Qual dos dois, em seu gênero, c
tua vez, sobre o que te preocupa. é mais durável: o homem ou a veste de
- Para mim - disse então Cebes que se serve e traz no corpo?" Então,
- é bem claro que o argumento ainda baseado na resposta de que muito mais
se encontra na mesma situação e conti- durável é o homem, imaginaria ter
nua a ser passível das mesmas obje- demonstrado que, com maior razão
87 • ções de há pouco. Que nossa alma ainda, o homem deve permanecer intei-
realmente existiu antes de assumir a ro em alguma parte, pois o que é
forma que agora possui, isso não sou menos durável do que ele não foi
obrigado a admitir. Nada aí existe que destruído!
vá contra o meu modo de pensar e que "Contudo, segundo penso, as coisas
FÉDON 99
não se passam assim, Símías; e, por- dizer: "A esse raciocínio, concedo
tanto, deves tu também prestar atenção ainda mais do que tu". E o que lhe
ao que vou dizer, pois no que respeita concederia é que não somente as nos-
à argumentação precedente, todos sas almas existem no tempo que prece-
podem facilmente perceber sua inge- deu o nascimento, mas que também
nuidade. E vou prová-lo: se é verdade nada impede, mesmo após a morte,
que o desaparecimento de nosso tece- que algumas delas continuem a existir,
d Ião, após haver usado uma multidão de para dar lugar a futuros nascimentos e
tais vestuários e de haver tecido outros a novas mortes. Nesta hipótese, com
tantos, ocorre depois deles todos, mas efeito, a alma é bastante forte para
antes daquele que foi sua última vesti- fazer frente a esses repetidos nascimen-
menta, aí não se encontra menor moti- tos. Entretanto, depois de haver conce-
vo para afirmar que o homem seja infe- dido isto, esse alguém se recusaria a
rior às suas vestes e mais frágil do que admitir que a alma não se esgote nes-
elas! Pois bem: esta mesma imagem, ses múltiplos nascimentos e não termi-
se não me engano, é aplicável à alma ne por ser radicalmente destruída, afi-
em sua relação com o corpo. Quem nal, em uma dessas mortes. Ora, essa
fizer uso dela dirá (acertadamente, no morte, essa dissolução do corpo que b
meu entender) que a alma é coisa durá- vibra na alma o golpe fatal, não há
vel, e o corpo, por seu lado, coisa frágil homem, diria esse alguém, que a possa
e de menor duração. Quem assim fizer, conhecer, pois é impossível a quem
poderá acrescentar ainda que cada quer que seja que possa ter essa
alma usa diversos corpos, principal- impressão. Mas, se as coisas são
mente se ela vive muitos anos, pois assim, não há homem que possa estar
sendo o corpo - como é possível tranqüilo diante da morte, a menos que
supor - uma torrente que se esvai ele seja capaz de provar que a alma é
enquanto o homem vive, a alma inces- totalmente imortal e imperecível. Se
santemente renova o seu vestuário assim não for, necessariamente, todo
perecível. Mas, assim mesmo, é neces- aquele que vai morrer deve sempre
sário que a alma, no dia em que for temer que sua alma, no momento em
destruída, se revista com a última ves- que se separa do corpo, seja destruída
timenta que teceu e que seja esta a inteiramente."
única anteriormente à qual tenha lugar Tendo-os ouvido falar, todos nós
esta destruição. Uma vez aniquilada a experimentamos um sentimento de an-
alma, o corpo patentearia desde logô a gústia, como aliás, mais tarde, mutua- c
mento exposto por Sócrates assim se de responder, é coisa que nada tem de
esboroa na incerteza?" É o efeito do extraordinário. Mas o que achei mara-
maravilhoso poder que sempre exerceu vilhoso de sua parte foi antes de tudo o
sobre mim a teoria que afirma que a bom humor, a bondade, o ar interes-
alma é uma harmonia. A exposição sado com que acolhia as objeções
dessa tese me fez, por assim dizer, daqueles moços e, além disso, a finura
recordar que ela tivera até então o meu com que percebeu e soube avaliar' o
assentimento; mas eis que, novamente, efeito que sobre nós tinham produzido
sinto também grande necessidade de as suas objeçôes, E, enfim, como nos
que, partindo de novas razões me soube curar! Pois parecíamos uns fugi-
demonstrem que nossa morte não é tivos, uns vencidos. Sua voz nos alcan-
acompanhada pela morte da alma! çou novamente, nos obrigou a fazer
Dize-nos, pois, em nome de Zeus, de meia volta e a tornar, sob sua conduta
que modo Sócrates defendeu o seu e com ele, ao exame do argumento.
argumento. Ele se mostrava descoro- EQUÉCRATES:
çoado, assim como dizes que vós todos - De que modo?
mim mesmo, disso. Penso, pois, caro dele, pois pensa que aquela nada mais
amigo, como um egoísta. Se é verdade é do que uma espécie de harmonia.
o que digo, então é bom estar conven- Quanto a Cebes, concede, por seu
cido; se, pelo contrário, não há espe- lado, que a alma dure mais do que o
rança' para quem morre, eu, pelo corpo, mas, segundo pensa, é bem difí-
menos, não terei tornado meus últimos cil saber se a alma, depois de haver
instantes desagradáveis para meus gasto muitos corpos sucessivamente,
amigos, obrigando-os a suportar mi- não se dissolve ao sair do último, e se a
nhas lamentações. De resto, não terei morte não consiste justamente nisto,
muito tempo para meditar nisso (o que na destruição da alma, pois que o
seria efetivamente desagradável). Mais corpo, esse, está continuamente des-
um pouco e logo tudo estará acabado. truindo-se. Não é isto, Símias e Cebes,
Assim, preparado com esse espírito, o que devemos examinar?
Símias e Cebes, entro na discussão. Ambos declararam que sim.
Vós, entretanto, se me acreditais, cui- - Ora - tornou Sócrates - , não e
c dai menos de Sócrates que da verdade! aceitais o conjunto das afirmações que
Concordai comigo, se achardes que fizemos ou que apenas aceitais umas e
digo a verdade; se não, objetai-me a outras, não?
cada argumento, a fim de que - ilu- - Umas sim, outras não - res-
dindo a vós e a mim também, com meu ponderam os dois.
entusiasmo - eu não me vá daqui, - Que pensais a respeito da dou-
como a abelha, deixando o ferrão! 4 1 trina segundo a qual instruir-se é ape-
"Então, avante! Antes de tudo, nas recordar e, que sendo assim, é
porém, fazei-me recordar bem o que necessário que nossa alma, antes de vir
dissestes, se notardes que não me encadear-se em nosso corpo, tenha vi- 91 a
recordo. Para Símias, salvo erro meu, vido primeiramente noutro lugar?
o objeto de sua dúvida e dos seus - Quanto a mim - respondeu
temores é o de que a alma, sendo algo Cebes - estou perfeitamente persua-
de mais belo e mais divino do que o dido disso, e que não há pensamento
corpo, venha a corromper-se antes ao qual eu mais ligado esteja.
41 A abelha, que deixa seu ferrão na ferida, - Eu também - ajuntou Símias
provoca dores. Assim Sócrates, que faria mal e - ficaria muito admirado se viesse a
causaria sofrimentos a seus discípulos se se
fosse, deixando-lhes erros. (N. do T.) mudar de opinião a esse respeito.
104 PLATÃO
Resposta a Símias
"Suporta, coração! Infelicidades, já suma como uma coisa por demais divi-
as suportaste bem piores !" 4 4 na para se comparar à harmonia?
- Crês que ele teria dito isso se - Por Zeus! é isso justamente o
houvesse considerado a alma como que penso, Sócrates.
simples harmonia, inteiramente sujeita - Logo, meu excelente amigo, não
às inclinações do corpo, e não como é coisa assisada considerar a alma
algo que rege e governa o corpo, em como uma simples harmonia; pois,
44 o autor recorre aqui a Homero, divino poeta, assim, não ficaríamos de acordo nem
porque este dístico se encaixa perfeitamente na com Homero, divino poeta, nem co- 95.
tese que vem desenvolvendo no diálogo; mas em
outras obras Platão o censura, deixando de lhe nosco mesmos.
chamar divino e sem reconhecê-lo como autori- - É justamente isso - concedeu
dade com a qual é conveniente "estarmos de
acordo". (N. do T.) Símias.
Resposta a Cebes
Ora, o essencial do que queres saber é localizar-se num corpo humano marca
isto: desejas que se demonstre que o início de seu fim, e uma espécie de
c nossa alma é indestrutível e imortal; doença; por isso, é num estado de
sem o que, para o filósofo que está pró- miséria que deve viver essa existência,
ximo de morrer, a confiança, a convic- e, quando a termina por aquilo a que
ção de ir encontrar no além, depois da chamamos morte, deve ela ser des-
morte, uma felicidade que jamais teria truída. É indiferente, como dizes, saber
alcançado se vivesse doutra forma, se ela se localiza em corpos uma só ou
essa confiança seria, pensas, desarra- muitas vezes; cada um de nós tem
razão de recear por sua alma. Quem
zoada e tola. Mostrar que a alma é não tem certeza, nem sabe provar que
forte e semelhante à divindade, e que
a alma é imortal, deve temer a morte,
existia antes de nos havermos tornado
se não for tolo. É mais ou menos isto, c
homens, pode ser prova, como dizes, caro Cebes, o que dizes? Repito-o
não de que a alma é imortal, mas ape- propositadamente, para que não olvi-
nas de que ela dura muito, de que sua demos nada e para que acrescentes ou
existência anterior preencheu um tires alguma coisa, se quiseres.
tempo incalculável com uma multidão Então Cebes - Nada tenho, no
enorme de conhecimentos e de ações; o momento, que acrescentar, nem que
que, no entanto, não lhe confere imor- tirar. É aquilo justamente o que preten-
d talidade, pois o próprio fato de vir do.
o Problema da Física
A esta altura fez Sócrates uma longa em minha mocidade senti-me apaixo-
pausa, absorto. em alguma reflexão. nado por esse gênero de estudos a que
Depois disse - Não é coisa sem dão o nome de "exame da natureza";
importância, Cebes, o que procuras. A parecia-me admirável, com efeito, co-
causa da geração e da corrupção de nhecer as causas de tudo, saber por
todas as coisas, tal é a questão que que tudo vem à existência, por que pe-
96. devemos examinar com cuidado. Se o rece e por que existe. Muitas vezes
desejares, poderei relatar-te detalhada- detive-me seriamente a examinar ques- b
mente as minhas experiências a esse tões como esta: se, como alguns pre-
respeito. E se vires que uma ou outra tendem, os seres vivos se originam de
coisa do que eu disser é útil aproveita- uma putrefação em que tomam parte o
a para reforçar tua tese. frio e o calor; se é o sangue que nos faz
- Sim - disse Cebes - é justa- pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem
mente o que eu quero. sabe se nada disso, mas sim o próprio
- Escuta, então, o que vou contar: cérebro, que nos dá as sensações de
FÉDON 109
ouvir, ver e cheirar, das quais resulta- é visto ao lado dum pequeno, ele é de
riam por sua vez a memória e a opi- uma cabeça 50 maior do que o peque- e
suía um conhecimento certo, ao menos quer dessas coisas! Não sei resolver
na minha opinião, e na dos outros. nem sequer se quando se adiciona uma
Pois bem, essa espécie de estudo che- unidade a outra, a unidade à qual foi
gou a produzir em mim uma tal acrescentada a primeira toma-se duas,
cegueira que desaprendi até aquelas ou se é a acrescentada e a outra que
coisas que antes eu imaginava saber, assim se tomam duas pelo ato de adi-
como, por exemplo, o conhecimento ção. Fico admirado! Quando as duas
que eu julgava ter das causas que unidades estavam separadas uma da
determinam o crescimento do homem! outra, cada uma era uma, e não havia
Outrora eu acreditava, como é claro dois; logo, porém, que se aproximaram
para todos, que isso acontece em virtu- uma da outra, esse encontro tornou-se
de do comer e do beber: adicionando, a causa da formação do dois. Também
pelos alimentos, carne a carne e ossos não entendo por que motivo, quando
aos ossos, e em geral substância seme- alguém divide uma unidade, esse ato
lhante a substância semelhante, acon- de divisão faz com esta coisa que era
tece que o volume, antes pequeno, uma se transforme pela separação em
aumenta, e assim, o homem pequeno se duas! Essa coisa que produz duas uni-
toma grande. Desse modo pensava eu dades é contrária à outra: antes, acres-
naquela época. Não achas tu que isso centou-se uma coisa a outra - agora,
era razoável? afasta-se e separa-se uma de outra 51.
- Pelo que me parece, sim - res- Nem sequer sei por que um é um!
pondeu Cebes. Enfim, e para dizer tudo, não sei abso-
- Mas repara no seguinte: naquele lutamente como qualquer coisa tem
tempo, eu também achava razoável origem, desaparece ou existe, segundo
pensar que quando um homem grande este procedimento metodológico. Esco-
49 Platão. quer dizer aqui que em sua moci-
lhi então outro método, pois, de qual-
dade se dedicou ao estudo de todas as teorias quer modo, este não me serve. Ora,
da filosofia naturalista pré-socrática. Não há
dúvida de que ele coloca nos lábios de Sócra- :;0O tamanho da cabeça é usado aqui como
tes a história de sua própria evolução intelec- medida. (No do T.)
tual. Cf, Burnet, Early Greek Philosophy : 51 Crítica aos filósofos eleáticos, que abusam
(N. ae r.: às vezes da dialética. (Nv do Tv)
110 PLATÃO
certo dia ouvi alguém que lia um livro relativas como de suas revoluções e de
de Anaxágoras. Dizia este que "o espí- outros movimentos que lhes são pró-
rito é o ordenador e a causa de todas prios; Nunca supus que depois de ele
as coisas". Isso me causou alegria. haver dito que o Espírito os havia
Pareceu-me que havia, sob certo aspec- ordenado, ele pudesse dar-me outra
to, vantagem em considerar o espírito causa além dessa que é a melhor e que
como causa universal. Se assim é, pen- é a que serve a cada uma em particular
sei eu, a inteligência ou espírito deve assim como ao conjunto.
ter ordenado tudo e tudo feito da me- Grandes eram as minhas esperan-
lhor forma. Desse modo, se alguém ças! Pus-me logo a ler, com muita
desejar encontrar a causa de cada atenção e entusiasmo os seus livros.
coisa, segundo a qual nasce, perece ou Lia o mais depressa que podia a fim de
existe, deve encontrar, a respeito, qual conhecer o que era o melhor e o pior.
é a melhor maneira seja de ela existir, Mas, meu grande amigo, bem depressa
seja de sofrer ou produzir qualquer essa maravilhosa esperança se afas-
dação. E pareceu-me ainda que a única tava de mim! À medida que avançava
coisa que o homem deve procurar é e ia estudando mais e mais, notava que
aquilo que é melhor e mais perfeito, esse homem não fazia nenhum uso do
porque desde que ele tenha encontrado espírito nem lhe atribuía papel algum
isso, necessariamente terá encontrado como causa na ordem do universo,
o que é o pior, visto que são objetos da indo procurar tal causalidade no éter,
mesma ciência. no ar, na água em muitas outras coi-
Pensando desta forma, exultei acre- sas absurdas! 62. Parecia-me que ele se
ditando haver encontrado em Anaxâ- portava como um homem que dissesse
goras o explicador da causa, inteligível que Sócrates faz tudo o que faz porque
para mim, de tudo que existe. Esperava age com seu espírito; mas que, em
que ele iria dizer-me, primeiro, se a seguida, ao tentar descobrir as causas
terra é plana ou redonda, e, depois de o de tudo o que faço, dissesse que me
ter dito, que à explicação acrescentasse acho sentado aqui porque meu corpo é
a causa e a necessidade desse fato, formado de ossos e tendões, e os ossos
mostrando-me ainda assim como é ela
52 Foi discutido muitas vezes o problema de sa-
a melhor. Esperava também que ele, ber se Platão tinha razão ao descrever histori-
dizendo-me que a terra se encontra no camente, desta forma, o pensamento de Anaxá-
centro do universo, ajuntasse que, se goras. Os mencionados livros de Anaxágoras só
nos chegaram em reduzidos fragmentos. O que
assim é, é porque é melhor para ela sabemos é que aquele filósofo reconhecia.
estar no centro. Se me explicasse tudo como princípio material, umas partículas míni-
mas de matéria - as homeomerias - e ainda,
isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer como outro princípio - o espírito - cuja fun-
desejaria tomar conhecimento de outra ção para nós não é ainda bem clara, e sobre a
qual, aliás, já havia dúvidas na antiguidade:
espécie de causas. Naturalmente, a alguns explicadores antigos viam nesse espírito
propósito do sol eu estava pronto tam- um deus, outros, um ordenador do mundo, e
finalmente outros, como nosso autor e também
bém a receber a mesma espécie de Aristóteles, uma simples primeira força motriz,
98 • explicação, e da mesma forma para a isto é. um princípio quase material ou mesmo
material. Cf. J. Burnet, Early Greek Philoso-
lua e os outros astros, assim como phy e Carl Joel, Geschichte der Antiken Philo-
também a respeito de suas velocidades sophie, (N. do T.)
FÉDON III
são sólidos e separados uns dos outros melhor e com inteligência - essa é
por articulações, e os tendões con- uma afirmação absurda. Isso importa-
traem e distendem os membros, e os ria, nada mais nada menos, em não
músculos circundam os ossos com as distinguir duas coisas bem distintas, e
carnes, e a pele a tudo envolve! Articu- em não ver que uma coisa é a verda-
lando-se os ossos em suas articulações, deira causa e outra aquilo sem o que a
e estendendo-se e contraindo-se, sou causa nunca seria causa. Todavia, é a
capaz de flexionar os meus membros, e isso que aqueles que erram nas trevas,
por esse motivo é que estou sentado segundo me parece, dão o nome de
aqui, com os membros dobrados. Tal causa, usando impropriamente o
homem diria coisas mais ou menos termo 5 6. O resultado é que um deles,
semelhantes a propósito de nossa con- tendo envolvido a terra num turbi-
versa, e assim é que consideraria como lhão 5 7, pretende que seja o céu o que a
causas dela a voz, o ar, o ouvido e mantém em equilíbrio, ao passo que
muitas outras coisas - mas, em reali- para outro ela não passa duma espécie
dade, jamais diria quais são as verda- de gamela 58, à qual o ar serve de base
deiras causas disso tudo: estou aqui
porque os atenienses julgaram melhor 56 Esta frase exprime desprezo pela filosofia
naturalista: "os demais" poderia ser entendido
condenar-me à morte, e por isso pare- aqui como indicando apenas a opinião vulgar,
ceu-me melhor ficar aqui, e mais justo mas o que o autor posteriormente atribui aos
'demais" são os sistemas filosóficos naturalis-
aceitar a punição por eles decretada 53. tas. Platão, como quase sempre quando fala nas
Pelo Cão 54. Estou convencido de que teorias naturalistas, acha que não vale a pena
citar os nomes de seus autores, contentando-se
estes tendões e estes ossos já poderiam com dizer "uns", "alguns" e "outros".(N. do T.)
99 • há muito tempo se encontrar perto de 57 A palavra díne (turbilhão) é técnica no
sistema de Demócrito e Leucipo. Para estes
Mégara ou entre os Beócios, para onde naturalistas gregos, o princípio de todas as coi-
os teria levado uma certa concepção sas são os átomos; corpos minúsculos e indivi-
do melhor, se não me tivesse parecido síveis (donde átomos, em grego), eternos e invi-
síveis; esses átomos estão a cair no vácuo; os
mais justo e mais belo preferir à fuga e mais pesados caem mais depressa, pelo que se
à evasão a aceitação, devida à Cidade, apartam dos demais. Dão, assim, encontrões
uns nos outros, com a conseqüente formação
da pena que ela me prescreveu! de turbilhões, produtores de complexos de áto-
Dar o nome de causas a tais coi- mos, que nada mais são do que os objetos exis-
tentes. Esses turbilhões jamais terminam, e con-
sas 5 5 seria ridículo. Que se diga que tinuamente os átomos estão a separar-se e a
sem ossos, sem músculos e outras coi- reunir-se; é a isto que damos o nome de gerarão
sas eu não poderia fazer o que me e corrupção. A terra existe e permanece em seu
lugar, porque continuamente está a receber e a
parece, isso é certo. Mas dizer que é perder átomos; e o mesmo vale para os demais
por causa disso que realizo as minhas corpos. Logo, quando um corpo não recebe
novos átomos em troca dos que vai perdendo,
ações e não pela escolha que faço do dá-se sua destruição. Platão se refere aqui ao
turbilhão do céu para meter a ridículo esta
53 Platão conta que Sócrates, tendo uma opor- teoria, que mais tarde iria ter grande impor-
tunidade para fugir do cárcere, não se apro- tância nas ciências naturais. (N. do T.)
veitou dela porque era sua convicção que um 58 É uma ironia contra Anaxímenes.. mas indi-
cidadão deve obedecer sempre às leis e decre- cadora das doutrinas deste filósofo. Conforme
tos do Estado, mesmo quando os concidadãos e ele, o princípio de todas as coisas é o ar: tudo
as autoridades legítimas são injustos. (N. do T.) se forma do ar, volta ao ar, e o próprio ar é
54 Pelo Cão: Sócrates jura muitas vezes desta também o sustentáculo da terra, a qual tem a
forma, certamente porque o cão sempre foi con- forma de um tamborim. O termo propriamente
siderado como símbolo da lealdade. (N. do T.) empregado por Platão é o de "gamela", com o
55 Isto é: as causas materiais. (N. do T.) que exprime seu desprezo deste sistema.
112 PLATÃO
A Idéia
assim fazem estragam os olhos por não mais sólida, tudo aquilo que lhe seja
tomarem a precaução de observar a consoante eu o considero como sendo
imagem do sol refletida na água ou em verdadeiro, quer se trate de uma causa
matéria semelhante. Lembrei-me disso ou de outra qualquer coisa, e aquilo
e receei que minha alma viesse a ficar que não lhe é consoante, eu o rejeito
completamente cega se eu continuasse como erro. Vou, porém, explicar com
a olhar com os olhos para os objetos e mais clareza o que estou a dizer, pois
tentasse compreendê-los através de me parece que não o 'compreendeste
cada um de meus sentidos. Refleti que bem.
devia buscar refúgio nas idéias e pro- - Por Zeus, com efeito, que não o
curar nelas a verdade das coisas. É entendo bem! - confirmou Cebes.
possível, todavia, que esta comparação - Quero dizer o seguinte - vol-
não seja perfeitamente exata, pois nem 60o sensualista é que observa mais em "ima-
gens", pois os objetos materiais não passam de
eu mesmo aceito sem reservas que a imitações imperfeitas das idéias eternas.
observação ideal dos objetos - que é (N.doT.)
FÉDON 113
veu Sócrates - e não estou a enunciar faça a sua comunicação com este. O
b· nenhuma novidade, mas apenas a repe- modo por que essa participação se efe-
tir o que, em outras ocasiões como na tua, não o examino neste momento;
pesquisa passada, tenho me fatigado afirmo, apenas 62, que tudo o que é
de dizer 61. Tentarei mostrar-te a espé- belo é belo em virtude do Belo em si.
cie de causa que descobri. Volto a uma Acho que é muitíssimo acertado, para e
teoria que já muitas vezes discuti e por mim e para os demais, resolver assim o
ela começo: suponho que há um belo, problema, e creio não errar adotando
um bom, e um grande em si, e do esta convicção. Por isso digo convicta-
mesmo modo as demais coisas. Se con- mente, a mim mesmo e aos demais,
cordas comigo também admites que que o que é belo é belo por meio do
isso existe, tenho muita esperança de, Belo. Acaso não' é esta também a tua
por esse modo, explicar-te a causa opinião?
mencionada e chegar a provar que a - É.
alma é imortal. - E o que é grande é grande por
c' - Naturalmente admito que isso
meio da Grandeza; e o que é maior
existe - confirmou Cebes; - e,
pelo Maior; e o que é menor é Menor
agora, faze depressa o que dizes. por meio da Pequenez?
- Examina, pois, com cuidado, se
- Indubitavelmente.
estás de acordo, como eu, com o que se
- Em conseqüência, jamais esta-
deduz dessa teoria! Para mim é evi-
rias de acordo com quem te viesse
dente: quando, além do belo em si,
existe um outro belo, este é belo por- dizer que um é maior do que outro pela
que participa daquele apenas por isso e cabeça, e que o menor é menor pelo
por nenhuma outra causa. O mesmo mesmo motivo; mas continuarias fir-
afirmo a propósito de tudo mais. Reco- memente a afirmar que tudo aquilo que 101 a
Eu? Claro que sim! - cebes riu ignorância e o teu apego à segurança
e disse. que encontraste ao tomar por base a
- E não temerias igualmente dizer tese em questão - tudo isso te inspira-
- continuou Sócrates - que o dez é ria uma resposta semelhante. E se
maior do que o oito porque o ultra- alguém se apresentasse censurando
passa de dois e considerar isso como essa tese, porventura não o deixarias
causa, ao invés de dizer que é pela em paz e sem resposta, até o momento
quantidade e por causa da quantidade? em que houvesses examinado as conse-
E serias capaz de dizer, da mesma qüências dela extraídas e verificado se
forma, que um objeto do tamanho de ela concorda consigo mesma ou se
dois côvados é maior do que outro de contradiz? E depois, quando viesse a
um côvado pela metade, em lugar de ocasião de dar as razões desta tese em
dizer que é pela grandeza? Pois, sem si mesma, não o farias da mesma
dúvida, isso não é menos estapafúrdio! forma, tomando desta vez por base
- Efetivamente. uma outra tese, aquela em que encon-
- Não te envergonharias de dizer trasses maior valor, até atingires um
que, acrescentando-se a unidade à uni- resultado satisfatório? E não é claro e
dade, esse acréscimo, e dividindo-se a que tu, desejando uma doutrina do ser
c unidade, essa separação, são ambos verdadeiro, te absterias de tagarelices e
causas da formação do dois? Não mais discussões a propósito do princí-
protestarias aos gritos que não com- pio e das suas conseqüências, assim
preendes como cada coisa se possa for- como fazem os que polemizam profis-
mar por outro modo que não seja pela sionalmente? Nada daquilo, com efei-
participação na própria substância em to, figura nas pesquisas e preocupações
que essa coisa toma parte? Não dirias, de tais homens: dão-se por superior-
neste caso, que não encontras outra mente satisfeitos com a sabedoria que
causa de formar-se o dois a não ser a possuem, embora confundam tudo 64.
participação na idéia do dois, e que Tu, porém, se na verdade és filósofo, 102.
deve participar dela o que vem a tor- tenho a certeza de que farás o que
nar-se dois, e também que deve partici- digo!
par da idéia de unidade o que se toma - O que dizes é a pura verdade -
unidade? E, em conseqüência, não responderam ao mesmo tempo Símias
haverias de pôr de lado essas taissepa- e Cebes.
rações e acréscimos e demais artima- EQUÉCRATES:
nhas do mesmo gênero, deixando a dis- - Por Zeus, caro Fêdon, e com
cussão de tais coisas a homens que são 64 Golpe violento contra naturalistas e sofistas:
d mais sábios do que tu? Mas o medo estes desejam apenas discutir por discutir, sem
cogitar de obter a verdade; aqueles podem ter
que tens, como se costuma dizer, da uma convicção pessoal da veracidade' de suas
tua própria sombra 63, o receio da tua teorias, mas seus métodos são tão deficientes
que não conseguem oferecer mais do que fra-
63Temer a própria sombra: expressão prover- cas tolices, não merecendo por isso o nome de
bial que exprime o cúmulo do medo.{N. do T.) filósofos. (N. do T.)
FÉDON 115
lugar de onde vinha a voz, escutou e uma coisa e o fogo, outra; e que o frio
depois disse: é uma coisa e a neve, outra?
- És um bravo por nos haveres - Evidentemente.
recordado isso l. Entretanto, não refle- ..,- POf certo há de ser também tua
tiste na diferença que há entre o que se opinião que a neve jamais aceita o
diz agora e o que se disse antes. No iní- calor, conforme antes dissemos, nem
cio de nOSSa palestra foi afirmado que continuará a ser o que foi quando o
uma coisa se forma da coisa contrária; calor se aproximar: ou fugirá dele, ou
mas, neste momento, o que se diz é que deixará de existir; não é assim?
.
itliJ
FÉDON_ 117
L
118 PLATÃO
- Não serão, caro Cebes, essas trário da que nelas existe. Volta, aliás,
coisas cuja existência as obriga a con- às tuas lembranças (não há mal que se
ter em si não só sua própria idéia, mas repitam as mesmas coisas I): O cinco
também, e sempre, a idéia contrária a não receberá em si a natureza do par;
uma certa coisa? nem o dez, que lhe é o dobro, a do
- Não compreendo o que dizes. ímpar. Este dez, como tal, não é con-
-Quero dizer o que disse há trário ao outro, mas apesar disso não
pouco: sabes, com efeito, que o que receberá a idéia do ímpar. É o mesmo
contém a idéia do três necessariamente o que acontece com o um e meio e com b
três, por exemplo, sem ser contrário ao te darei aquela resposta certa, mas
par, nunca o aceita, e não o aceita por- simples, que é o calor, mas responder-
que sempre tem incluído em si o con- te-ei com uma mais hábil, dizendo que
trário do par; e do mesmo modo o dois é o fogo. Perguntas: que é que,
inclui o contrário do ímpar, o fogo o entrando num corpo, o torna doente?
do frio, e assim em muitíssimos outros Não direi que é a doença, mas a febre.
105. exemplos. Pensa agora e dize-me se Da mesma forma, não irei declarar que
não concluirias assim: não é somente o um número se torna ímpar devido à
contrário que não recebe em si o seu imparidade, mas sim devido à unidade,
contrário, mas o mesmo acontece tam- e assim por diante. Examina, entre-
bém a coisas que, sem serem mutua- tanto, se compreendeste bem o que
mente contrárias umas às outras, pos- quero dizer!
suem sempre em si os contrários, e as - Compreendi suficientemente -
quais verossimilmente não receberão respondeu Cebes.
jamais uma qualidade que seja o con- - Então responde-me, se puderes:
FÉDON 119
muito tempo ainda adejando ao redor cida com a de que falas. Teria, pois,
do cadáver e dos monumentos funerá- muito prazer em te ouvir a esse
rios, oferece resistência e sofre, e só se respeito.
deixa levar pelo gênio sob violência e - Pois bem, meu caro Símias.
exigindo grandes esforços. Mas quan- Todavia, para explicar como isso é,
do essa alma, afinal, chega ao lugar em evidentemente não necessitamos da
que já se encontram as outras almas, arte de Glauco 7 4. Provar, porém, que
cada uma destas imediatamente se isso defato assim é, eis uma tarefa que
afasta e a evita, pois sabem que ela de muito ultrapassa a arte de Glauco.
praticou uma das negras ações seguin- Eu talvez não seja capaz de demons-
tes: ou matou injustamente alguém, ou trá-lo, e, mesmo que fosse, parece-me
praticou qualquer crime desse gênero, que ainda assim a minha própria vida,
ou qualquer obra que seja própria caro Símias, não seria suficiente para
dessa espécie de almas. Por isso, nin- fazê-lo, tendo em vista a extensão do
guém deseja ter sua amizade e ser seu assunto. Quanto a explicar-vos, entre-
companheiro, nem servir-lhe de guia. tanto, as minhas opiniões a respeito da
c Assim, essa alma erra desnorteada terra e de suas regiões, nada me impe-
daqui para lá, em ignorância absoluta, de de fazê-lo.
durante certo tempo, e em virtude de - Nada mais queremos! - excla-
uma necessidade fatal é levada a uma mou Símias.
residência que lhe é conveniente. Inver- - Pois bem - continuou Sócra-
samente, a alma cuja vida na terra foi tes. - Em primeiro lugar, estou con-
pura e sábia lá encontra, por compa- vencido de que a terra, sendo redonda
nheiros e guias, os próprios deuses, e e estando colocada no centro da abó-
sua residência será, da mesma forma, a bada celeste, não precisa nem do ar
que lhe é adequada. nem de qualquer outra matéria para
"Ora, a terra possui grande número não cair. Ao contrário, a uniformidade 109 a
astros são contemplados por esses quando diz: Bem longe, no lugar em
homens, tais como verdadeiramente que sob a terra está o mais fundo dos
são em si mesmos. A esses privilégios abismos, e é a ele que o próprio Home-
se junta uma felicidade que lhes é ro em outros trechos, e da mesma
acompanhamento natural. forma muitos outros poetas, dão o
126 PLATÃO
nome de Târtaroê" , O fato é que esse rios deste lado que, por sua vez, se
vazio é o lugar para onde convergem encherão. Cheios, os rios correm pelas
os cursos de todos os rios, e também o vias de passagem e atravessam a terra,
de onde inversamente partem, adqui- chegando a lugares que se abrem para
rindo cada um então características o exterior, dando nascimento a mares,
próprias, conforme o terreno que atra- a lagos, a outros rios e a fontes. Mas, d
vessa. Quanto à razão pela qual todos daqui, a água desce novamente para o
os rios vão ter a esse lugar e dele saem, interior da terra e, depois de haver feito
está no fato de que a água aí não ora circuitos de grande extensão e em
b encontra nem fundo nem base: é, pois, grande número, ora mais curtos e em
natural que aí haja um movimento de menor número, desemboca no Tártaro;
oscilação e de ondulação, que a faça uns, muito abaixo do lugar de saída;
subir e descer. O ar e o sopro que a ele outros, um pouco menos - mas todos
se prende fazem o mesmos": ambos sempre abaixo da saída do Tártaro.
acompanham e seguem, com efeito, o Alguns desses rios correm pelo lado
movimento da água, tanto quando este oposto àquele por onde saíram; outros,
lança para o outro lado da terra como pelo mesmo lado. Alguns deles tam-
quando para o nosso lado - mais ou bém descrevem um círculo completo,
menos assim como no processo da enlaçando a terra uma ou duas vezes,
respiração, quando se inspira e expira, como serpentes, e descem à maior
se forma uma corrente de ar. Do profundidade que é possível, para vol-
mesmo modo o sopro, aí entrando e tar ao Tártaro. Ora, o que é possível é
saindo com as massas d'água, produz que, numa ou noutra direção, a descida
ventos de uma irresistível violência. se faça apenas até o centro, mas nunca
Suponhamos que a água se tenha além; pois a parte da terra que se acha
retirado para as chamadas regiões infe- de cada um dos dois lados do centro é,
riores; afluindo então através do solo para cada corrente, a origem de uma
nos lugares onde, como vimos, se ascensão.
opera a descida da sua corrente, ela "Seguramente esses rios são muito
enche os rios do outro lado, do mesmo numerosos, enormes e variados: nessa
modo que nos processos de irrigação. multidão, porém, se podem distinguir
Suponhamos, inversamente, que a quatro mais importantes. O maior de
água fuja desses lugares e se arroje em todos, e aquele cujo curso descreve o
direção ao nosso lado. Serão então os círculo mais exterior, é o rio a que cha-
mam de Oceano 83 • Face a face com
81 Platão neste passo interpreta dados da mito-
logia com grande liberdade poética: Tártaro é este, e rolando em sentido oposto,
às vezes sinônimo de Hades, mas em geral a corre o Aqueronte" 4: serpeia por entre
mitologia o considera como uma parte do Ha-
des, na qual os maiores criminosos recebem a desertos, várias vezes corre também
pena merecida. Jamais se disse, porém, que o por baixo da terra, e ao cabo precipi-
Tártaro fosse o centro do sistema hidrográfico ta-se no lago Aquerúsia. A este lago é Jl3 a
universal. (N. do T.)
82 O Tártaro de Platão é um orifício que per-
fura completamente a terra, passando pelo seu 83 Oceano: na lenda, é ele um rio que perfaz
centro. A água corre no Tártaro de uma para um círculo ao redor da terra plana. (N. do T.)
a outra extremidade, mas jamais sai fora desse 84 Aqueronte (ao pé da letra: rio dos lamentos)
canal, porque o centro da terra, como cen!ro é um fabuloso rio que existe no Hades; a men-
de gravidade, a mantém segura. O ar, no Tár- cionada lagoa Aquerúsia é também um dado
taro, faz movimentos como a água. (N. do T.) mitológico que Platão utiliza. (N. do T.)
FÉDON 127
que vêm ter as almas dos mortos, as avança, nas proximidades do lago
quais, após ali permanecerem durante Aquerúsia, mas do lado oposto. Suas
o tempo que lhes foi prescrito, tempo águas tampouco se misturam com
mais longo para umas, mais breve para outra; também elas, após o trajeto cir-
outras, são outra vez enviadas para cular, finalmente desembocam no Tár-
formarem os seres vivos. Um terceiro taro, num ponto oposto ao Periflege-
rio nasce a meia distância entre os dois tonte: o nome deste rio, ao dizer dos
primeiros e, perto do ponto em que poetas é Cocitoê ".
nasceu, vem a desembocar num vasto "Tal é, pois, meus amigos, a distri-
espaço onde arde um fogo imenso; aí, buição natural desses rios. Eis, agora,
então, forma um lago muito maior do os mortos chegados ao lugar para onde
que o nosso marê 5, fervendo sempre cada um foi conduzido por seu gênio
água e lama; e daí sai, sujo e cheio de
tutelar. Aí, antes do mais, todos são
lama, serpeando por muitas voltas e julgados, tanto os que tiveram uma
passando por muitos lugares, che- vida sã e piedosa como os outros. Em
gando a cruzar pela extremidade do seguida, aqueles de quem se verifica
lago Aquerúsia, sem todavia se mistu-
que tiveram uma existência comum
rar com suas águas, para ir, final- são dirigidos ao Aqueronte, e nele, em
mente, após mais alguns coleios repeti- qualquer embarcação, se encaminham
dos, lançar-se no Tártaro, num ponto para o lago Aquerúsia. Lá, então, pas-
mais abaixo: é a este terceiro rio que se sam a morar e a submeter-se a purifi-
dá o nome de Periflegetonte" 6, e dele é cações, quer remindo-se pelas penas
que brota toda lava que se encontra, que sofrem das ações de que se torna-
onde quer que ela exista, sobre a face ram culpados, quer obtendo pelas boas
de nOSS8 terra. Fazendo por sua vez ações que praticaram recompensas
face a este, corre o quarto rio: rolam
suas águas primeiramente por uma proporcionadas aos méritos de cada
região de assombrosa horripilância e um 8 9. Outros, porém, que se verifica
selvageria, completamente revestida de serem incuráveis por causa da gran-
uma uniforme coloração azulada - é deza dos pecados que cometeram,
a região que se denomina região Estí- autores de roubos em templos repeti-
gia; e Estige" 7 é então o nome do lago dos e gravesê", de muitos homicídios
formado por esse rio. Depois de se 88 Cocito (rio das queixas) é igualmente um
haver lançado nesse lago, onde suas dos fabulosos rios do Hades. Platão esclarece:
águas adquirem temíveis propriedades, "ao dizer dos poetas". Mas aproveitou dos poe-
tas apenas o nome do rio, pois em nenhuma
mergulha pela terra adentro e, descre- poesia ele desempenha o papel que Platão lhe
vendo espirais, corre em sentido con- empresta. (N. do T.)
89 Os que viveram uma vida comum consti-
trário ao Periflegetonte, ante o qual tuem a maioria: não têm nem grandes vícios,
nem grandes virtudes. Conforme a vida que le-
85 Não é bem claro se "nosso mar" indica o varam, recebem punição ou recompensa tempo-
Mediterrâneo ou o Egeu, que é o mar propria- rária e, ademais, como indica o trecho ante-
mente grego. Em todo caso, este lago é bem rior, voltam a inserir-se em novos corpos.
grande. (N. do T.) Platão não descreve as punições nem as recom-
86 Periflegetonte (ao pé da letra: rio de cha- pensas. (N. do T.)
mas de fogo) é também um rio fabuloso que 90 Os salteadores de templos figuram entre os
corre no Hades. Nosso autor utiliza este rio em maiores criminosos: onde se observa o respeito
sentido naturalista para explicar os vulcões. de Platão à religião tradicional. Sócrates, acusa-
(N. do T.) do de inimigo desta religião, é que expressa tais
87 Estige, na mitologia, é um rio do Hades. pensamentos. Assim, Platão está defendendo seu
Platão o transforma em lago. (N. do T.) caro mestre. (N. do T.)
128 PLATÃO
nos são lançados no Cocito, e os crimi- de um homem de bom senso! Mas crer
nosos contra pai e mãe no Periflege- que é uma coisa semelhante o que se
tonte. Cornboiados por esses rios, dá com nossas almas e o seu destino
chegam ao lago Aquerúsia: e ali, cha- - porque a alma é evidentemente
mam e pedem em altos brados, uns imortal - eis uma opinião que me pa-
àqueles que mataram, outros àqueles rece boa e digna de confiança. Belo
que violaram; e lhes suplicam que os será ter esta coragem! É preciso repe-
deixem passar do rio ao lago e vir ter ti-lo como fórmula mágica e é - pala-
com eles. Se conseguem o que pedem, vra! - por tal razão que há muito
saem do rio e não sofrem mais. Em estou a falar nessa lenda mitológica.
caso contrário são de novo jogados ao Pois bem! Considerando estas cren-
Tártaro, e de lá outra vez aos rios, ças, deve permanecer confiante sobre o
assim numa repetição sem tréguas, até destino de sua alma o homem que
que hajam obtido o perdão de suas ví-
timas - pois essa é a punição que os 92 Chegamos enfim a conhecer quais são os fe-
lizes habitantes da superfície da verdadeira
juízes lhes impuseram. Aqueles, enfim, terra., sobre os quais e sobre cuja bem-aventu-
cuja vida foi reconhecida como de rança Platão tanto tem falado: são os adeptos
da religião tradicional, os piedosos. Agora se
grande piedade, são libertados, como compreende também por que Platão disse antes
de cárceres, dessas regiões interiores que estes tinham comunicação direta com os
da terra, e levados para as alturas da deuses: adoravam os deuses nesta vida e nas
cavidades da terra, e sua recompensa na super-
morada pura, indo morar na superfície fície da mesma será uma vida feliz e o contato
com os deuses. (N. do T.)
91 Castigo eterno para os maiores pecadores. 93 Grau supetior da classificação dos homens:
Platão não dá precisão acerca dos sofrimentos oS filósofos. Estes fazem parte dos piedosos a
por que passam no Tártaro. Possivelmente, é que nos referimos na nota anterior; mas são
opinião sua que os turbilhões de água" e ar, entre eles os mais genuinamente piedosos, e por
atrás descritos, façam padecer os habitantes da- este motivo terão uma sorte melhor do que os
quela região. (N. do T.) demais adeptos da religião tradicional.fN. do T.)
FÉDüN 129
durante sua vida desprezou os prazeres tanto a mim e aos meus quanto a vós
do corpo e os ornamentos deste, princi- mesmos, ainda que não tenhais assu-
palmente, pois são, a seu ver, coisas mido esse- compromisso. Suponhamos,
estranhas e nocivas. O homem que, ao pelo contrário, que de vós próprios não
contrário, se dedicou aos prazeres que tomeis cuidado, e que não queirais
têm a instrução por objeto, e que dessa absolutamente viver em conformidade
forma ornou sua alma, não com ador- com o que foi dito tanto hoje como em
nos estranhos e nocivos, mas com o outras ocasiões. Então, quaisquer que
que é propriamente seu e mais lhe con- possam ser hoje o número e a força de
vém, com a temperança, a justiça, a vossas promessas, nada tereis adianta-
coragem, a liberdade, a verdadeê " - do!
esse aguarda confiante e corajoso o - Poremos todo o nosso coração,
momento de por-se a caminho do naturalmente - disse Criton -- em
ns a Hades, quando seu destino o chamar! conduzir-nos dessa forma. Mas como
"Vós, seguramente - ajuntou Só- haveremos de enterrar-te?
crates - , vós, Simias, Cebes, e todos - Como quiserdes - respondeu
os outros - será mais tarde, não sei - , isto é, se conseguirdes reter-me a
quando, que vos poreis a caminho. mim, c se eu não vos escapar! -
Quanto a mim, o meu destino neste Então riu-se docemente e, voltando-se
momento me chama, como diria um para nós, disse: - Não há meio, meus
ator de tragédia 9 5. amigos. de convencer Críton de que o
"Creio que ainda me sobra algum que eu sou é este Sócrates que se acha
tempo para tomar um banho: parece- presentemente conversando convosco e
me melhor, com efeito, lavar-me antes que regula a ordem de cada um de seus
de tomar o veneno, e não deixar para argumentos! Muito ao contrário, está
as mulheres o trabalho de lavar um persuadido de que eu sou aquele outro
cadáver." Sócrates cujo cadáver estará daqui a
Depois destas palavras de Sócrates, pouco diante de seu olhos; e ei-lo a
Críton falou: - Então, que ordens nos perguntar como me deve enterrar! E
dás, Sócrates, a estes ou a mim, a res- quanto ao que desde há muito venho
peito de teus filhos ou de qualquer repetindo - que depois de tomar o ve-
outro assunto? Quanto a nós, essa neno não estarei mais junto de vós,
seria, por amor a ti, nossa tarefa mais mas me encaminharei para a felicidade
que deve ser a dos bem-aventurados -
importante!
tudo isso, creio, eram para ele vãs
- Justamente, Críton, não cesso de
palavras, meras consolações que eu
falar sobre ela - respondeu - e nada procurava dar-vos, ao mesmo tempo
de novo tenho para vos dizer! Vede: que a mim mesmo! Sede, pois, meus
cuidai de vós próprios, e de vossa parte fiadores junto a Críton, garantindo-lhe
então toda tarefa será feita com amor, o contrário daquilo que ele afiançou
94 Nesta enumeração de virtudes, a liberdade só aos juízes 9 6. Ele jurou que eu ficaria
pode ter o sentido de "libertação de paixões e no meio de vós; vós, porém, afirmai-
vícios". (N. do T.)
95 Nas tragédias, os heróis despedem-se de seus 96Alusão ao processo de Sócrates: Críton ga-
amigos com frases como esta e em tom dramá- rantiu ao tribunal que Sócrates não fugiria.
tico. (Nc doT, ) (N. do T.)
130 PLATÃO
lhe que não ficarei entre vós quando estou sofrendo dores inenarrâveis, e
morrer, mas que partirei, que me irei que no decorrer dos funerais diga estar
embora! Este é o único meio de fazer expondo Sócrates, conduzindo-o à se-
com que esta provação seja mais pultura e enterrando-o! Nota bem,
suportável a Críton, o meio de evitar meu bravo Críton: a incorreção da lin-
que, vendo queimar ou enterrar meu guagem não é somente uma falta
corpo" 7, se impressione e pense que cometida contra a própria linguagem.
Ela faz mal às almas! Não! É preciso
97 A época clássica dos gregos não conheceu o perder esse temor. Realiza estes fune-
costume generalizado dos funerais, tendo insti- rais como quiseres e como achares J}6 a
tuído a liberdade de queimar ou enterrar os
cadáveres, como se quisesse. (N. do T.) mais conforme aos usos.
Epílogo
Dito isto, Sócrates pôs-se de pé, e, com eles em presença de Críton, fazen-
para banhar-se, passou a outra peça. do-lhes algumas recomendações. Em
Críton seguiu-o, fazendo-nos sinal que seguida ordenou que se retirassem e
esperássemos. Ficamos, pois, a conver- veio para junto de nós.
sar e a examinar tudo quanto se havia Já o sol estava próximo de recolher-
dito. Lamentávamos a imensidade do se, pois Sócrates havia passado muito
infortúnio que sobre nós descera. Ver- tempo no outro quarto. Ao voltar do
dadeiramente, era para nós como se banho sentou-se novamente, e a con-
perdêssemos um pai, e iríamos passar versa desta vez durou pouco. Apresen-
como órfãos o resto de nossa vida! tou-se então o servidor dos Onze, e, em
Depois de se ter banhado, trouxe- pé, diante dele disse:
ram-lhe seus filhos (tinha dois peque- - Sócrates, por certo não me darás
nos e um já grande), e as mulheres de a mesma razão de queixa que tenho
casa'" também vieram; entreteve-se contra os outros! Esses enchem-se de c
tra mim que sentirás ódio, pois conhe- do demais; vai, obedece, e não me
ces os verdadeiros culpados, mas con- contraries.
tra eles. Não ignoras o que vim Assim admoestado, Críton fez sinal
anunciar-te, adeus! Procura suportar a um de seus servidores que se manti-
da melhor forma oque é necessário! nham nas proximidades. Este saiu e
Ao mesmo tempo pôs-se a chorar e, retornou daí a poucos instantes, con-
escondendo a face, retirou-se. Sócrates duzindo consigo aquele que devia
tendo levantado os olhos para ele: administrar O' veneno. Este homem o
- Adeus! - disse. - Seguirei o trazia numa taça. Ao vê-lo Sócrates
teu conselho. disse:
Depois, voltando-se para nós: - Então, meu caro! Tu que tens
- Quanta gentileza neste homem! experiência disto, que é preciso que eu
Durante toda a minha permanência faça?
aqui veio várias vezes ver-me, e até - Nada mais - respondeu - do
conversar comigo. Excelente homem! que dar umas voltas caminhando, de-
E, hoje, quanta generosidade no seu pois de haver bebido, até que as pernas
pranto! Pois bem, avante! Obedeça- se tornem pesadas, e em seguida ficar
mos-lhe, Críton, e que me tragam o ve- deitado. Desse modo o veneno produ-
neno se já está preparado; se não, que zirá seu efeito.
o prepare quem o deve preparar! Dizendo isso, estendeu a taça a Só-
Então disse Críton: crates. Este a empunhou, Equécrates,
- Mas, Sócrates, o sol se não me conservando toda a sua serenidade,
engano está ainda sobre as montanhas sem um estremecimento, sem uma alte-
e não se deitou de todo. Ademais, ouvi ração, nem da cor do rosto, nem dos
dizer que outros beberam o veneno só seus traços. Olhando em direção do
muito tempo depois de haverem rece- homem, um pouco por baixo e perscru-
bido a intimação, e após terem comido tadoramente, como era seu costume,
e bebido bem, e alguns, até, só depois assim falou:
de haverem tido contato com as pes- - Dize-me, é ou não permitido
soas que desejaram. Vamos! nada de fazer com esta beberagem uma libação
precipitações; ainda há muito tempo! às divindades? 9 9
Ao que Sócrates respondeu: - Só sei, Sócrates, que trituramos
- É muito natural, Críton, que as a cicuta em quantidade suficiente para
pessoas de quem falas tenham feito o produzir seu efeito, nada mais.
que dizes, pensando que ganhavam al- - Entendo. Mas pelo menos há de
guma coisa fazendo o que fizeram. ser permitido, e é mesmo um dever,
Mas, quanto a mim, é natural que eu dirigir aos deuses uma oração pelo c
não faça nada disso, pois penso que bom êxito desta mudança de residên-
tomando o veneno um pouco mais
99 Nos banquetes dos gregos era costume que
117 a tarde nada ganharei, a não ser, tornar- todos os convivas, antes de tocarem na primeira
me para mim mesmo um objeto de taça, derramassem no chão algumas gotas, em
homenagem aos deuses, e que ao mesmo tempo
,riso, agarrando-me dessa forma à vida recitassem uma breve oração. Aqui, Platão quer
e procurando economizá-la quando sublinhar a tranqüilidade de Sócrates: este se
comporta como se estivesse num banquete.
dela nada mais resta! Mas temos fala- (N. do T.)
132 PLATÃO
cia, daqui para além. É esta minha então de costas, assim como lhe havia
prece; assim seja! recomendado o homem. Ao mesmo
E em seguida, sem sobressaltos, sem tempo, este, aplicando as mãos aos pés
relutar nem dar mostras de desagrado, e às pernas, examinava-os por interva-
bebeu até o fundo. los. Em seguida, tendo apertado forte-
mente o pé, perguntou se o sentia. Só-
Nesse momento nós, que então
crates disse que não. Depois disso }.'8
conseguíramos com muito esforço
recomeçou no tornozelo, e, subindo
reter o pranto, ao vermos que estava
aos poucos, nos fez ver que Sócrates
bebendo, que já havia bebido, não nos
contivemos mais. Foi mais forte do começava a ficar frio e a enrijecer-se.
que eu. As lágrimas me jorraram em Continuando a apalpá-lo, declarou-nos
ondas, embora, com a face velada, esti- que quando aquilo chegasse até o cora-
vesse chorando apenas a minha infeli- ção, Sócrates ir-se-ia 10 1. Sócrates já se
cidade - pois, está claro, não podia tinha tornado rijo e frio em quase toda
chorar de pena de Sócrates! Sim, a a região inferior do ventre, quando des-
infelicidade de ficar privado de um tal cobriu sua face, que havia velado, e
companheiro! De resto, incapaz, disse estas palavras, as derradeiras que
muito antes de mim, de conter seus pronunciou:
soluços, Críton se havia levantado - Críton, devemos um galo a
para sair. E Apolodoro 1 oo, que mesmo Asclépio ; não te esqueças de pagar
antes não cessara um instante de cho- essa dívida.
rar, se pôs então, como lhe era natural, - Assim farei - respondeu Crí-
a lançar tais rugidos de dor e de cólera, tono - Mas vê se não tens mais nada
que todos os que o ouviram sentiram- para dizer-nos.
se comovidos, salvo, é verdade, o pró- A pergunta de Críton ficou sem res-
prio Sócrates: posta. Ao cabo de breve instante, Só-
- Que estais fazendo? - excla- crates fez um movimento. O homem
mou. - Que gente incompreensível! então o descobriu. Seu olhar estava
Se mandei as mulheres embora, foi fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a
sobretudo para evitar semelhante cena, boca e os olhos.
pois, segundo me ensinaram, é com Tal foi, Equécrates, o fim de nosso
belas palavras que se deve morrer. companheiro. O homem de quem po-
c Acalmai-vos, vamos! dominai-vos! demos bendizer que, entre todos os de
Ao ouvir esta linguagem, ficamos seu tempo que nos foi dado conhecer,
envergonhados e contivemos as lágri- era o melhor, o mais sábio e o mais
mas. justo.
Quanto a Sócrates, pôs-se a dar
101 A descrição minuciosa do efeito do veneno
umas voltas no quarto, até que decla- está a mostrar que na realidade se trata da ci-
rou sentir pesadas as pernas. Deitou-se cuta, planta muito venenosa; e manifesta, da
mesma forma, a humanidade com que os ate-
100 o leitor do Banquete já conhece Apolodoro nienses realizavam suas execuções capitais, pro-
como o mais emotivo dos alunos de Sócrates. curando torrá-Ias isentas de sofrimentos e do-
(N. do '1'.) res. (N.doT.)
V1SljOS
Teodoro, Sócrates,
Estrangeiro de Eléia, Teeteto
antes de virmos até aqui. Discutia, que tocamos não é assim tão simples
então, conosco, precisamente as mes- como parece, na maneira por que a
mas dificuldades que agora te opôs, e a propões; ao contrário, ela exige uma
propósito das quais diz ele haver ouvi- longa conversação. Por outro lado
do tantos ensinamentos quantos neces- compreendo bem que seria incivil e
sários, e não havê-los esquecido. grosseiro, não me tornar, eu, teu hós-
SÓCRATES pede, a instâncias tuas e de teus ami-
- Não queiras, pois, estrangeiro, gos, e especialmente depois de ouvir o
recusar-te ao primeiro favor que te que disseste. Aliás consinto de bom
pedimos. Mas dize-nos antes se, de grado em que Teeteto me replique, pois 218 a
bemos esta distinção: que são os obje- parte não será menos ridículo que o da
tos que servem ao alimento ou ao uso, primeira e, pois que o que ela vende
tanto do corpo como da alma, que se são as ciências, deveremos chamá-Ia,
vendem e se trocam por dinheiro? necessáriamente, por um nome que
TEETETO tenha correspondência próxima com o
- Que queres dizer com isso? nome de sua própria prática.
ESTRANGEIRO TEETETO
- Que, talvez, falte-nos reconhecer - Certamente.
parte relativa à alma, pois a outra,
ESTRANGEIRO
creio, é-nos clara. - Assim, nesta importação por
TEETETO atacado das ciências, a seção relativa c
- Sim. às ciências das diversas técnicas terá
224 a ESTRANGEIRO um nome; e a que cuida, em sua impor-
- Podemos dizer que a música em tação, da virtude, um outro nome.
todas as suas formas, levada de cidade
em cidade, aqui comprada para ser TEETETO
para lá transportada e vendida; que a - Naturalmente.
pintura, a arte dos prestidigitadores em ESTRANGEIRO
seus prodígios, e muitos outros artigos - À primeira convém o nome de
destinados à alma, que se transportam importação por atacado das técnicas.
e vendem, seja a título de divertimento Quanto à outra, procura tu mesmo
ou de estudos sérios, dão àquele que as encontrar-lhe o nome.
transporta e vende, tanto quanto ao TEETETO
vendedor de alimentos e bebidas, direi- - Que nome daremos, que não pa-
to ao título de negociante? reça falso, a menos que digamos: aí
TEETETO está o objeto que procuramos, o famo-
- O que dizes é a pura verdade. so gênero sofistico.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Àquele que, de cidade em cidade - Esse, e nenhum outro. Agora,
vende as ciências por atacado, trocan- vejamos, recapitulando, e repitamos:
do-as por dinheiro, darias o mesmo esta parte da aquisição, da troca, da
nome? troca comercial, da importação, da
TEETETO importação espiritual, que negocia dis-
- Certamente. cursos e ensinos relativos à virtude, eis,
ESTRANGEIRO em seu segundo aspecto, o que é a
- Nesta importação espiritual, sofistica.
uma parte não se chamaria, com -justi- TEETETO
ça, arte de exibição? O nome da outra - Perfeitamente.
148 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Dentre as partes da arte de aqui- - Colocando, de um lado, a sim-
sição, havia a luta. ples rivalidade, e de outro, o combate.
TEETETO TEETETO
- Éexato. - Bem.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Não está, pois, fora de propósito - Poderíamos definir conveniente-
dividir a luta em duas partes. mente o combate que se realiza corpo
TEETETO a corpo, como um assalto a força
- Explica de que modo. bruta?
SOFISTA 149
TEETETO TEETETO
- Sim. - É certo; as suas divisões são
ESTRANGEIRO realmente muito pequenas e muito
- Mas, àquele em que se opõem diversas.
argumentos contra argumentos, por ESTRANGEIRO
que outro nome chamaríamos, Teeteto, - Mas a contestação conduzida
b além de contestação? com arte, e relativa ao justo em si, ou
TEETETO ao injusto em si, e a outras determina-
- Por nenhum outro. ções gerais, não a chamamos, comu-
ESTRANGEIRO mente, por erística?
- Ora, o gênero de contestação TEETETO
deve ser considerado em duas partes. - E de que outra forma have-
TEETETO ríamos de chamá-la?
- De que ponto de vista? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Ora, na realidade, a erística ou
- Uma vez, opondo-se a um longo bem nos leva a perder ou a ganhar
desenvolvimento outro desenvolvi- dinheiro.
mento igualmente longo de argumen- TEETETO
tos contrários, mantendo-se uma con- - Perfeitamente.
trovérsia pública sobre as questões de ESTRANGEIRO
justiça e de injustiça; é a contestação - Procuremos dizer que nome pró-
judiciária. prio se aplica a cada uma delas.
TEETETO TEETETO
- Sim. - Sim, procuremos.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Mas, se a contestação é privada, - Quando, encantados por esta
fragmentando-se na alternância de per- ocupação, sacrificamos os negocios
guntas e respostas, que outro nome lhe pessoais sem darmos, como se diz, pra-
damos, comumente, além do de contes- zer algum à massa de nossos ouvintes,
tação contraditória? ela se chamará, ao que creio, e tanto
TEETETO quanto posso julgar, simplesmente,
- Nenhum outro. tagarelice.
ESTRANGEIRO TEETETO
- A contradição que tem por obje- - É precisamente esse o nome que
to contratos e que, realmente, é contes- se lhe dá.
tação, mas que procede ao acaso e sem ESTRANGEIRO
arte, deve, é certo, constituir uma - É tua vez, agora. Procura dizer
forma especial, uma vez que a sua que nome se dá à arte oposta que rece-
originalidade ressalta claramente de be dinheiro por disputas privadas.
nossa discussão. Mas, os que viveram TEETETO
antes de nós não lhe deram nome - Que hei de dizer, ainda desta
algum, e a procura de um nome que lhe vez, sem risco de erro, senão que nova-
seja próprio não merece agora a nossa mente aí está o prestigioso personagem
atenção. e que assim nos aparece, pela quarta
ISO PLATÃO
çar, entrelaçar, e mil outros que, sabe- - Entretanto, ao falar das separa-
mos, constituem misteres completos. ções, havia dito que elas tinham por
TEETETO fim dissociar, fosse o melhor do pior,
- Que queres demonstrar a esse ou o semelhante do semelhante.
SOFISTA 15 I
TEETETO TEETETO
- Agora que tu o dizes, é quase - E bem ridículos, certamente.
evidente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Totalmente ridículos, Teeteto.
- Para a última espécie não tenho Mas, afinal, ao método de argumenta-
nome algum que a designe, mas para a ção não importa menos a lavagem com
primeira, a que retém o melhor e rejei- esponjas do que os medicamentos,
ta o pior, tenho um nome. atendendo-se a que a ação purificadora
TEETETO de uma arte seja mais ou menos bené-
- Dize-o. fica que a de outra. Na realidade, é
ESTRANGEIRO para alcançar a penetração de espírito b
- Que formas e que nome? saber que nome seja o mais distinto.
ESTRANGEIRO Bastará separar tudo o que purifica a
- Para os corpos vivos, todas as alma e agrupar, em um novo todo,
purificações internas que se operam, tudo o que purifica outras coisas que
graças a uma exata discriminação, não a alma. O que lhe compete, agora,
227 a pela ginástica e pela medicina, e todas se é que compreendemos os seus
as purificações externas, por tnenos propósitos como método de argumen-
característico que lhe seja o nome, e as tação, é discernir, realmente, a purifi-
quais a arte do banhista nos prescreve; cação que se dirige ao pensamento e
e para os corpos inanimados, todos os distingui-la de todas as demais.
cuidados próprios do apisoador, ou TEETETO
mais universalmente, próprios à prepa- - Sim, compreendo, e concordo
ração do couro, e que se distribuem em que há duas formas de purificação,
nomes que parecem ridículos. uma das quais tem por objeto a alma e
152 PLATÃO
TEETETO ESTRANGEIRO
- Evidentemente à sua assimetria. - E para o corpo, ao menos, já
ESTRANGEIRO não se encontram duas artes relativas a
- Mas para a alma e para qual- estas duas afecções?
quer alma, nós sabemos que toda a TEETETO
ignorância é involuntária. - Quais?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Completamente involuntária. - A ginástica para a fealdade, e a
ESTRANGEIRO
medicina para a enfermidade.
- Ora, ignorar é precisamente o TEETETO
fato de uma alma atirar-se à verdade, e -- É o que parece.
J neste próprio impulso para a razão, ESTRANGEIRO
desviar-se; não é outra coisa senão um - Assim, a correção para a falta
contra-senso. de medida, para a injustiça e a covar-
dia é, dentre todas as técnicas, a que
TEETETO
- Perfeitamente. melhor se aproxima da Justiça.
TEETETO
ESTRANGEIRO
- Deveremos, pois, afirmar que na - É o que parece, pelo menos se
alma insensata há fealdade e falta de quisermos falar conforme à opinião
medida. humana.
ESTRANGEIRO
TEETETO
- Parece que sim. - E ainda: para toda a ignorância
haverá uma arte mais apropriada que o
ESTRANGEIRO ensino?
- Há pois, aparentemente, na
TEETETO
alma, estes dois gêneros de males: e
- Nenhuma.
um deles a que o vulgo chama malda-
de, é para ela, evidentemente, uma ESTRANGEIRO
- Vejamos, pois: o ensino consti-
enfermidade.
tuirá um único gênero ou deveremos
TEETETO nele distinguir vários gêneros dos quais
- Sim. dois são os principais? Examina a
ESTRANGEIRO questão.
- Ao outro, o vulgo chama igno- TEETETO
rância; recusando-se entretanto a ad- - É o que faço.
mitir que este mal, na alma, e apenas ESTRANGEIRO
para ela, seja um vício. - A meu ver, este é o meio mais
TEETETO rápido de resolvê-la.
- Sim, é preciso admitir ainda que TEETETO
há dois gêneros de vício na alma: a - Qual?
covardia, a intemperança e a injustiça ESTRANGEIRO
devem todas ser consideradas como - Ver se a ignorância permite uma
uma enfermidade em nós; e nesta afec- linha mediana de divisão. Se a igno-
ção múltipla e diversa que é a ignorân- rância for dupla, torna-se claro, real-
cia, devemos ver uma fealdade. mente, que no próprio ensino haveria,
154 PLATÃO
espécie de ignorância que qualifica o são com o tom mais terno da admoes-
nome de ignaro. tação. Em seu todo, poder-se-ia muito
TEETETO
justamente chamá-la de admoestação.
- Perfeitamente. TEETETO
ESTRANGEIRO
- É bem assim.
- Mas que nome daremos à parte ESTRANGEIRO
do ensino à qual compete dela liber- - Quanto ao outro método, parece
tar-nos? que alguns chegaram, após amadure-
TEETETO
cida reflexão, a pensar da seguinte
- A meu ver, estrangeiro, a outra forma: toda ignorância é involuntária,
parte é da competência do ensino das e aquele que se acredita sábio se recu-
profissões; mas o ensino de que falas, sará sempre a aprender qualquer coisa
aqui chamamos de educação. de que se imagina esperto; e apesar de
ESTRANGEIRO
toda a punição que existe na admoesta-
-É, na realidade, esse o seu nome, ção, esta forma de punição tem pouca
Teeteto, entre quase todos os helenos. eficácia.
Mas é preciso ainda que examinemos TEETETO
se aí existe um todo já indivisível ou se - Eles têm razão.
ele permite alguma divisão na qual ESTRANGEIRO
valha a pena colocar nomes. - E propondo livrar-se de tal ilu-
SOFISTA 155
são, se armam contra ela, de um novo a acreditar saber justamente o que ela
método. sabe, mas nada além.
TEETETO TEETETO
- Qual? - Essa é, infalivelmente, a melhor
ESTRANGEIRO disposição e a mais sensata.
- Propõem, ao seu interlocutor, ESTRANGEIRO
questões às quais acreditando respon- - Aí estão, pois, muitas razões,
der algo valioso ele não responde nada Teeteto, para afirmarmos que a refuta-
de valor; depois, verificando facil- ção é o que há de mais importante e de
mente a vaidade de opiniões tão erran- mais eficaz na purificação e para acre-
tes, eles as aproximam em sua crítica, ditarmos, também, que permanecer à
confrontando umas com outras, e por parte desta prova é, ainda que se trate
meio desse confronto demonstram que do grande Rei, permanecer impurifi-
a propósito do mesmo objeto, sob os cado das maiores máculas e conservar
mesmos pontos de vista, e nas mesmas a falta de educação e a fealdade onde a
relações, elas são mutuamente contra- maior pureza, e a mais perfeita beleza
ditórias. Ao percebê-lo, os interlocu- se requer, a quem pretenda possuir a
tores experimentam um descontenta- verdadeira beatitude.
mento para consigo mesmos, e TEETETO
disposições mais conciliatórias para - Perfeitamente.
com outrem. Por este tratamento, tudo ESTRANGEIRO
o que neles havia de opiniões orgulho- - Pois bem! Que nome daremos
sas e frágeis lhes é arrebatado, ablação aos que praticam esta arte? Pois eu
em que o ouvinte encontra o maior tenho receio de chamá-los de sofistas. 231 a
TEETETO
encanto e, o paciente, o proveito mais - Que receio?
duradouro. Há, na realidade, um prin-
ESTRANGEIRO
cípio, meu jovem amigo, que inspira
- De dar muita honra aos sofistas.
aqueles que praticam este método pur- TEETETO
gativo; o mesmo que diz, ao médico do - E entretanto, há alguma seme-
corpo, que da alimentação que se lhe lhança entre eles e aquele de quem, hã
dá não poderia o corpo tirar qualquer pouco, falamos.
proveito enquanto os obstáculos inter- ESTRANGEIRO
nos não fossem removidos. A propó- - Na realidade, tal como entre o
sito da alma formaram o mesmo con- cão e o lobo, como entre o animal mais
ceito: ela não alcançará, do que se lhe selvagem e o mais doméstico. Ora,
possa ingerir de ciência, benefício para estarmos bem seguros é sobre-
algum, até que se tenha submetido à tudo com relação às semelhanças que é
refutação e que por esta refutação, preciso manter-nos em constante guar-
causando-lhe vergonha de si mesma, se da: na verdade, é um gênero extrema-
tenha desembaraçado das opiniões que mente escorregadio. Mas, por enquan-
cerram as vias do ensino e que se tenha to, admitamos que sejam os mesmos,
levado ao estado de manifesta pureza e pois desde que observem uma fronteira
156 PLATÃO
ESTRANGEIRO TEETETO
- Primeiramente descansemos e - Sim, e o quarto personagem que
durante esta pausa vejamos o que dis- ele nos revelou foi o de um produtor e
semos. Sob quantos aspectos se apre- vendedor destas mesmas ciências.
d sentou a nós o sofista? Creio que, em
ESTRANGEIRO
primeiro lugar, nós descobrimos ser ele - Tua memória é fiel. Quanto ao
um caçador interesseiro de jovens seu quinto papel, eu mesmo procurarei
ricos. lembrá-lo. Na realidade, filiava-se ele à e
ESTRANGEIRO TEETETO
- Como chegam esses homens a - E bem voluntariamente.
incutir na juventude que somente eles,
ESTRANGEIRO
e a propósito de todos os assuntos, são -- É que, ao que creio, eles pare-
mais sábios que todo o mundo? Pois, cem ter uma sabedoria pessoal sobre
na realidade, se como contraditores todos os assuntos que contradizem.
não tivessem razão, ou não pareces-
TEETETO
sem, à sua juventude, ter razão; se, - Irrecusavelmente.
mesmo assim, a sua habilidade em dis-
cutir não desse algum brilho à sua ESTRANGEIRO
- E assim fazem, a propósito de
sabedoria, então seria caso de dizer,
tudo, segundo cremos?
como tu, que ninguém viria voluntaria-
mente dar-lhes dinheiro para deles TEETETO
- Sim.
aprender estas duas artes.
TEETETO ESTRANGEIRO
- Certamente. - Dão, então, a seus discípulos a
ESTRANGEIRO
impressão de serem oniscientes.
- Ora, na verdade, os que os pro- TEETETO
curam o fazem voluntariamente. - Como não!
SOFISTA 159
ESTRANGEIRO TEETETO
- E sem o ser, na realidade; pois, - Que dizes com isso?
como vimos, isso seria impossível. ESTRANGEIRO
TEETETO
- Quem se julgasse capaz de pro-
- E como não haveria de ser duzir a mim e a ti e a tudo que nasce e
impossível? cresce ...
TEETETO 234 a
ESTRANGEIRO
- Ao que vemos, pois, o que traz o - A que produção te referes? Cer-
sofista é uma falsa aparência de ciên- tamente não pensas num agricultor,
cia universal, mas não a realidade. pois esse homem produz até mesmo
seres vivos.
TEETETO
- Exatamente! O que dizes parece ESTRANGEIRO
- Perfeitamente, e com eles, o
ser o que de mais justo se possa dizer a
mar, a terra e o céu, e os deuses e tudo
seu propósito.
o mais. Produzindo, de um só golpe,
ESTRANGEIRO
uma e outra destas criaturas, ele as
- Tomemos agora, a seu propó-
vende por uma quantia bem pequena.
sito, um exemplo mais claro.
TEETETO
TEETETO - Pretendes brincar ao falares
- Qual?
assim!
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Este. E procura seguir-me bem - E então? Quando se afirma que
atentamente para responder-me. tudo se sabe e que tudo se ensinará a
TEETETO outrem, por quase nada, e em pouco
- A quê? tempo, não é caso de se pensar que se
ESTRANGEIRO trata de uma brincadeira?
- Quem se afirmasse capaz, não TEETETO
de explicar nem contradizer, mas de - Creio que sim, inteiramente.
produzir e executar, por uma única ESTRANGEIRO
arte, todas as coisas ... - Ora, conheces alguma forma de
TEETETO brincadeira mais sábia e mais graciosa
- Que entendes por todas as coi- que a mimética?
sas? TEETETO
ESTRANGEIRO - Nenhuma, pois a forma a que te
- É o próprio principio de nossa referiste, como a unidade a que subor-
explicação que deixaste de perceber, dinaste todas as demais, é a mais com-
pois parece nada compreenderes da plexa, e quase a mais diversa que
minha expressão "todas as coisas". existe.
TEETETO ESTRANGEIRO
- Realmente nada compreendi. - Assim, o homem que se julgasse
ESTRANGEIRO capaz, por uma única arte, de tudo
- Ora, minha expressão "todas as produzir, como sabemos, não fabrica-
coisas" quer dizer tu e eu e, além de ria, afinal, senão imitações e homôni-
nós, tudo o que mais há, tanto os ani- mos das realidades. Hábil, na sua téc-
mais como as árvores. nica de pintar, ele poderá, exibindo de
160 PLATÃO
levem a mudar as opiniões então trans- caças. Também a nossa não se esqui-
mitidas, a julgar pequeno o que lhes vará mais, pelo menos, disto.
havia parecido grande, difícil o que TEETETO
c lhes parecera fácil, uma vez que os - Do quê?
simulacros que transportavam as pala-
ESTRANGEIRO
vras desapareçam em presença das - De ter de colocar-se no genero
realidades vivas? dos prestidigitadores.
TEETETO TEETETO
- Sim, tanto quanto, à minha - A esse respeito, pelo menos eu,
idade, posso julgar. Quanto a mim, concordo contigo.
entretanto, creio que ainda me encon- ESTRANGEIRO
tro dentre os que uma longa distância - Eis, pois, o que ficou decidido:
separa. dividir sem demora a arte que produz
SOFISTA 161
ESTRANGEIRO TEETETO
- Ora, não é neste caso que se - É mesmo o que parece.
encontra uma grande parte da pintura ESTRANGEIRO
e da mimêtica, em seu todo? - É a consciência da dificuldade
TEETETO que te leva a essa afirmação ou estará
- Sem dúvida. sendo levado pelo curso da argumenta-
ESTRANGEIRO ção e pela força do hábito, ao afirma-
- Mas à arte que, em lugar de uma res, tão prontamente, o que eu afirmo?
cópia, produz um simulacro, não cabe- TEETETO
ria, perfeitamente, o nome de arte do - Que queres dizer? Por que essa
simulacro? pergunta?
- Sim, perfeitamente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - É que, realmente, jovem feliz,
- Aí estão as duas formas que te nos vemos frente a uma questão extre-
anunciei da arte que produz imagens: a mamente difícil; pois, mostrar e pare-
arte da cópia e a arte do simulacro. cer sem ser, dizer algo sem, entretanto,
- Isso mesmo. dizer com verdade, são maneiras que
trazem grandes dificuldades, tanto
ESTRANGEIRO
- Para o problema que então me hoje, como ontem e sempre. Que modo
deixara perplexo, o de saber em qual encontrar, na realidade, para dizer ou
destas artes colocar o sofista, ainda pensar que o falso é real sem que, já ao
não vejo, claramente, uma solução. proferi-lo, nos encontremos enredados
d Esse homem é verdadeiramente um na contradição? Na verdade, Teeteto,
assombro e é muito difícil apanhá-lo a questão é de uma dificuldade extre- 237 a
há pouco e ainda agora, afirmei como - Por que então falar de mim por
princípio que o não-ser não deve parti- mais tempo? Para mostrar que fui ven-
cipar nem da unidade nem da plurali- cido, agora como sempre, nesta argu-
dade, já ao afirmá-lo eu o disse uno; mentação contra o não-ser? Não é,
pois disse "o não-ser". Compreendes pois, no que eu falo, como te dizia, que
certamente. devemos procurar as regras de falar
corretamente a respeito do não-ser.
TEETETO
- Sim. Mas prossigamos e agora vamos pro-
curá-Ias em ti.
ESTRANGEIRO
- Instantes antes afirmava ainda TEETETO
que ele é impronunciável, inefável e -- Que queres dizer?
inexprimível. Estás seguindo? ESTRANGEIRO
- Adiante pois. Tu que és jovem,
TEETETO
- Sim, como não te seguir? sê grande e bravo. Concentra todas as
tuas forças e, sem unir ao não-ser, nem
ESTRANGEIRO
- Tentar aplicar-lhe este "é" não é o ser, nem a unidade, nem a plurali-
239 a- contradizer as minhas proposições an- dade numérica, procura dar-nos um
teriores? enunciado correto a seu respeito.
TEETETO TEETETO
-- Provavelmente. -Seria grande a minha temeri-
ESTRANGEIRO dade, e insensata a minha empresa se
- E então? Aplicar-lhe não era me atrevesse onde vi sofreres um tal
dirigir-me, nele, a uma unidade? revés.
TEETETO ESTRANGEIRO
-- Sim. - Pois bem! Se te parece melhor,
ESTRANGEIRO não cogitemos nem de ti nem de mim.
- E mais: dizendo-o inexprimível, Mas, até que encontremos alguém
inefável, impronunciável, eu o expres- capaz dessa proeza, digamos que o
sava como unidade. sofista, da maneira mais astuciosa do
TEETETO mundo, se escondeu num refúgio inex-
- Como não reconhecê-lo? tricável.
ESTRANGEIRO TEETETO
- Ora, nós afirmamos que e im- - É precisamente o que parece.
possível a quem fale com rigor, defini- ESTRANGEIRO
lo, seja como uno ou como múltiplo, e - Em conseqüência, se afirmamos
mesmo absolutamente impossível de que ele possui uma arte de simulacro, o
falar dele, pois, ainda aqui, essa manei- emprego de tais fórmulas lhe tornaria
166 PLATÃO
fácil a resposta. Facilmente ele voltaria todos eles. Fala agora, e sem permitir-
contra nós as nossasfórmulas, e quan- lhe vantagem alguma, repele o adver-
do o chamássemos de produtor de ima- sário.
gens ele nos perguntaria o que, afinal TEETETO
de contas, chamamos de imagens. - Que outra definição daríamos à
Devemos, pois, procurar, Teeteto, o imagem, estrangeiro, se não a de um
que se poderia responder, com acerto, segundo objeto igual, copiado do ver-
a este espertalhão. dadeiro?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Evidentemente que responde- - Teu "segundo objeto igual" sig-
remos lembrando as imagens das nifica um objeto verdadeiro, ou, então,
águas e dos espelhos, as imagens pinta- que queres dizer com esse "igual"?
das ou gravadas, e todas as demais, da TEETETO
mesma espécie. - De forma alguma um verda-
ESTRANGEIRO deiro, certamente, mas um que com ele
- Bem se vê, Teeteto, que jamais se pareça.
viste um sofista. ESTRANGEIRO
TEETETO - Mas, por verdadeiro, tu entendes
- Por quê? "um ser real"?
ESTRANGEIRO TEETETO
- Ele te parecerá um homem que - Certamente.
fecha os olhos ou que, absolutamente, ESTRANGEIRO
não tem olhos. - Então? Por não-verdadeiro tu
TEETETO entendes o contrário do verdadeiro?
- Como assim? TEETETO
ESTRANGEIRO - Certamente.
- Quando assim lhe responderes, ESTRANGEIRO
ao lhe falar do que se forma nos espe- - O que parece é, pois, para ti, um
lhos ou do que as mãos amoldem, ele não-ser irreal, pois o afirmas não-ver-
se rirá de teus exemplos, destinados a dadeiro.
um homem que vê. Fingirá ignorar TEETETO
espelhos, águas e a própria vista e te - Entretanto, há algum ser.
240 • perguntará, unicamente, o que se deve ESTRANGEIRO
concluir de tais exemplos. - Em todo o caso, não um ser
TEETETO verdadeiro, é o que dizes.
- Oquê? TEETETO
ESTRANGEIRO - Certamente não; ainda que ser
- O que há de comum entre todos por semelhança seja real.
esses objetos que tu dizes serem múlti- ESTRANGEIRO
plos mas que honras por um único - Assim, pois, o que chamamos
nome, que é o nome de imagem, e que semelhança é realmente um não-ser
entendes como uma unidade sobre irreal?
SOFISTA 167
ESTRANGEIRO TEETETO
.- Que, para defender-nos, teremos - Evidentemente, esse é o ponto
de necessariamente discutir a tese de que teremos de debater em nossa
nosso pai Parmênides e demonstrar, discussão.
pela força de nossos argumentos que, ESTRANGEIRO
em certo sentido, o não-ser é; e que, - Como não haveria de ser evi-
por sua vez, o ser, de certa forma, não dente mesmo para um cego, como se
é. diz? Enquanto não houvermos feito
SOFISTA 169
brirmos que significado lhe emprestam ríamos, "ainda nesse caso se afirmaria
aqueles que dele falam. muito claramente que dois é um".
ESTRANGEIRO TEETETO
- Descobriste logo meu pensa- - Tua réplica é perfeitamente
mento, Teeteto. Aí está, pois, ao que justa.
creio, o método que se impõe à nossa ESTRANGEIRO
pesquisa. Nós os suporemos presentes, - "Uma vez, pois, que nos encon-
pessoalmente, e lhes proporemos estas tramos em dificuldade, caberá a vós
perguntas: "Que devereis vós todos, explicar-nos o que entendeis por este
para quem o Todo é o quente e o frio vocábulo "ser". Evidentemente estas
ou algum par desta espécie, entender coisas vos são, de há muito, familiares.
por esse vocábulo que aplicais ao par Nós mesmos, até aqui, acreditamos
quando dizeis que tanto o par, como compreendê-las, e agora nos sentimos
cada um de seus termos, "é"? Que pre- perplexos. Começai, pois, por nos ensi-
tendeis fazer-nos entender por este ná-las desde o princípio, de sorte que,
"é"? Deveremos nele ver um terceiro acreditando compreender o que dizeis,
termo somado aos dois outros, ou não nos aconteça, na verdade, o
deveremos, segundo acreditais, admitir contrário". Estas são as questões e as
que o Todo é três, e não mais dois? observações que faremos a estas pes-
Pois, se chamardes de ser a um dos soas e a todas as demais que dizem que
dois, não podereis mais dizer que os o Todo é mais que um. Encontras nela,
dois igualmente "são"; e nesse caso, meu filho, algo de falso?
teríamos, em rigor, uma maneira dupla TEETETO
de fazer com que apenas um seja, mas - Absolutamente nada.
172 PLATÃO
As doutrinas unitárias
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Embora não tenhamos proce- - Alguns procuram trazer à terra
dido aqui ao exame de todos os que, tudo o que há no céu e no invisível,
pormenorizadamente, tratam do ser e tomando, num simples aperto de mão,
do não-ser, aceitemos o exame que a rochas e carvalhos. E, na verdade, é
fizemos como suficiente. Há outros em virtude de tudo o que, dessa forma,
que, em suas explicações, têm preten- podem alcançar que afirmam obstina-
sões diferentes; e devemos examiná- damente que só existe o que oferece
los, igualmente, para convencer-nos, resistência e o que se pode tocar. Defi- b
246 a por um exame completo, que não é nem o corpo e a existência como idên-
nada mais fácil dizer o que é o Ser do ticos e logo que outros pretendam atri-
que o que é o não-ser. buir o Ser a algo que não tenha corpo,
TEETETO mostram por estes um soberbo des-
- É preciso então examiná-los prezo nada mais querendo ouvir.
também. TEETETO
ESTRANGEIRO - É verdade. Os homens de quem
- Na verdade, parece que, entre falas são intratáveis! Eu mesmo já
eles, há um combate de gigantes, talo encontrei vários deles.
ardor com que disputam, entre si, ESTRANGEIRO
sobre o ser. - Por sua vez, os seus adversários
TEETETO nesta luta se mantêm cuidadosamente
- Como assim? em guarda, defendendo-se do alto de
SOFISTA 175
TEETETO ESTRANGEIRO
- Uma vez que, até agora, eles não - A paixão ou a ação resultante de
têm nenhuma definição melhor, aceita- um poder que se exerce ao encontro de
rão essa. dois objetos. Talvez tu, Teeteto, desco-
ESTRANGEIRO nheças a resposta que dão a esta per-
- Está bem. Talvez adiante, tanto gunta, mas eu talvez a saiba, pois, eles
nós como eles mudaremos de opinião. me são familiares.
248 a Por enquanto, fique assim entendido, TEETETO
entre eles e nós. - Qual é, então, essa resposta?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Sim, entendido. - Não concordam, absolutamente, c
nhecido é, segundo vós, ação, paixão, de uma e outra poderemos negar que
ou ambas ao mesmo tempo? Ou ainda tenha tais presenças numa alma?
um é paixão, outro ação? Ou então, TEETETO
nem um nem outro não têm qualquer - De que outra forma poderia
relação nem com uma nem com outra? tê-las?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Evidentemente nem um nem - Teria, então, inteligência, vida e
outro, nem em relação a uma, nem em alma, e ainda que animado, permane-
relação a outra. Do contrário seria ceria estático sem mover-se de nenhu-
contradizer suas afirmações anteriores. ma maneira?
ESTRANGEIRO TEETETO
- Compreendo. Mas, nisto ao - Seria absurdo!, ao que me pare-
menos, concordarão: se se admite que ce.
e - conhecer é agir, a conseqüência inevi-
ESTRANGEIRO
tável é que o objeto ao ser conhecido - Temos, pois, de conceder o ser
sofre a ação. Pela mesma razão o ser, ao que é movido e ao movimento.
'ao ser conhecido pelo ato do conheci-
TEETETO
mento, e na medida em que é conheci- - Como negá-lo?
do, será movido, pois que é passivo, e
isso não pode acontecer ao que está em ESTRANGEIRO
- Do que se segue, Teeteto, que se
repouso.
os seres são imóveis, .não há inteli-
TEETETO gência em parte alguma, em nenhum
- É certo.
sujeito e para nenhum objeto.
ESTRANGEIRO
- Mas como? Por Zeus! Deixar- TEETETO
nos-emos, assim, tão facilmente, con- - Certamente.
vencer de que o movimento, a vida, a ESTRANGEIRO
alma, o pensamento não têm, realmen- - Por outro lado se admitirmos
te, lugar no seio do ser absoluto; que que tudo está em translação e em
249 a ele nem vive nem pensa e que, solene e movimento excluiremos a própria inte-
sagrado, desprovido de inteligência, ligência do número dos seres.
permanece estático sem poder movi- TEETETO
mentar-se? - Como?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Na verdade, estrangeiro, esta- - Haverá jamais, a teu ver, perma-
ríamos aceitando, assim, uma doutrina nência de estado, permanência de
assustadora! modo e permanência de objeto onde c
A irredutibilidade do ser
ao movimento e ao repouso
ESTRANGEIRO TEETETO
- E então? Não parece que, a par- - Era o que pelo menos eu acredi-
tir de agora, encerramos perfeitamente tava, e não sei bem em que estejamos
o ser em nossa definição? assim enganados.
TEETETO
ESTRANGEIRO
- Perfeitamente.
- Examina, então, mais clara-
ESTRANGEIRO mente, se a propósito de nossas últi-
- Oh! assim fosse, Teeteto!, pois
mas conclusões, não se teria direito de
ao que creio é precisamente este o
propor-nos as mesmas questões que 250.
momento em que veremos o quanto o
propusemos antes aos que definiam o
seu exame é difícil.
Todo pelo quente e o frio.
TEETETO
- Em quê, ainda? Que queres TEETETO
dizer? - Que questões? Dize-as de novo.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Ó jovem feliz! Não te apercebes - De bom grado. Ao recordá-las,
de que, embora acreditando discerni-lo procurarei fazê-lo interrogando-te da
claramente, nós agora nos encon- mesma forma como então os interro-
tramos na ignorância mais profunda a gara; o que nos servirá para, ao mesmo
seu respeito? tempo, progredir um pouco.
ISO PLATÃO
TEETETO TEETETü
- Muito bem. - É mais ou menos assim.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Vejamos: o repouso e o movi- - Para onde deve dirigir o racio-
mento não são, na tua opiniâovabsolu- cínio quem quiser descobrir uma teoria
tamente contrários um ao outro? bem fundada a esse respeito?
TEETETO TEETETO
- Sem dúvida. - Para onde? Dize.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Entretanto tu afirmas que - Creio que em nenhuma parte é
ambos são e tanto um como outro? fácil; pois, se uma coisa não se move,
TEETETO como é possível que não esteja para-
- Sim, certamente o afirmo. da? E como deixará de ter movimento
ESTRANGEIRO aquilo que nunca está quieto? Portan-
- Dizendo que são, declaras esta- to, o ser revelou-se agora como sepa-
rem os dois e cada um deles em rado dos dois. Isto é possível?
movimento? TEETETO
TEETETO - É a coisa mais impossível entre
- Nunca. todas.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Mas dizendo que ambos são, - Aqui devemos lembrar isto.
declaras que estão imóveis? TEETETO
TEETETO - Oquê?
-- Como é isso? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Que encontramos grande difi-
- Logo, supões em teu espírito, culdade quando alguém nos perguntou
além dessas duas coisas, uma terceira: com que coisa se relaciona a expressão
o ser. Este abrange repouso e movi- "não-ser". Recordas?
mento. Não dizes que os dois são, TEETETü
unindo-os e observando a sua partici- - Certamente.
pação na existência? ESTRANGEIRO
TEETETO - Será porventura menor a dificul-
- Parece realmente que pressen- dade em que ora nos encontramos a
timos uma terceira coisa, o ser, quando propósito do ser'!
dizemos que movimento e repouso são. TEETETO
ESTRANGEIRO - A meu ver, estrangeiro, se me
-- Logo, o ser não é a reunião de permites dizer, é ainda maior.
repouso e movimento, mas é coisa dife- ESTRANGEIRO
rente de ambos. - Nesse caso, paremos nossa ex-
TEETETO posição nessa delicada questão. Já,
- Naturalmente. pois, que o ser e o não-ser nos trazem
ESTRANGEIRO iguais dificuldades, podemos dora-
- Por sua própria natureza, o ser vante esperar que, no dia mais ou
não está imóvel nem em movimento. menos claro, em que um deles se reve-
SOFISTA ISI
lar, o outro se esclarecerá de igual que nos for possível, tomando a ambos
251 a modo. Se nenhum deles se revelar a simultaneamente.
nós, não deixaremos de prosseguir em TEETETO
nossa discussão, da melhor maneira - Muito bem.
o problema da predicação e
a comunidade dos gêneros
unir uma a outra quaisquer coisas que imobilizam, e a tese de todos aqueles
sejam, e, considerando-as, ao contrá- que, classificando os seres por Formas,
rio, como inaliáveis, como incapazes afirmam-nos eternamente idênticos e
de participação mútua, tratá-las como imutáveis. Pois todas essas pessoas
tais em nossa linguagem? Ou as unire- fazem essa atribuição do ser, quer
mos todas supondo-as capazes de se falando do ser realmente móvel, quer
associarem mutuamente? Ou, enfim, falando do ser realmente imóvel.
diremos que algumas possuem essa TEETETO
capacidade e outras não? Dessas pos- - Certamente.
sibilidades, Teeteto, à qual poderemos ESTRANGEIRO
afirmar que se orientará a preferência - Além do mais, todos aqueles
dos homens? que ora unificam o todo e ora o divi-
TEETETO dem, seja conduzindo à unidade, ou da
- Eu, pelo menos, nada posso res- unidade fazendo surgir uma infinidade;
ponder em seu nome, a esse respeito. seja decompondo-o em elementos fini-
ESTRANGEIRO tos e em elementos fmitos recom-
- Por que não resolves estas ques- pondo; quer descrevam este duplo
tões uma a uma, procurando as conse- devir como uma alternância ou uma
qüências a que cada hipótese nos coexistência eterna, não importa: nada
conduz? dizem, desde que nada pode associar-
TEETETO se.
- Tua idéia é excelente. TEETETO
ESTRANGEIRO - É certo.
- Suponhamos, pois, pelo menos ESTRANGEIRO
como hipótese, que a primeira afirma- - Mas aqueles que, entre todos,
tiva seja, se concordas, a seguinte: exporiam sua tese ao ridículo mais rui-
nada possui, com nada, possibilidade doso, são os que não querem, em caso
alguma de comunidade sob qualquer algum, consentir que, pelo efeito dessa
relação que seja. Isto não significa comunidade que um ser suporta com
excluir o movimento e o repouso de outro, qualquer que seja ele, receba
toda participação na existência? outra denominação que não a sua.
ma TEETETO TEETETO
- Perfeitamente. - Como?
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- E então? Poderá dar-se o caso - É que a propósito de tudo,
de algum deles existir e não possuir vêem-se obrigados a empregar as ex-
comunidade com a existência? pressões "ser" "à parte", "dos outros",
TEETETO "em si", e milhares de outras determi-
- É impossível. nações. Incapazes de delas se livrarem
ESTRANGEIRO e delas se servindo em seus discursos,
- Eis uma conclusão que, rapida- eles não necessitam que outro os refute
mente, inverteu tudo, ao que parece: a mas, como se diz, alojam no seu ínti-
tese daqueles' que movem o Todo, a mo, o inimigo e o contraditor; e essa
tese daqueles que, afirmando-o uno, o voz que os critica no seu interior eles a
SOFISTA 183
A dialética e o filósofo
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Muito bem. Desde que os gêne- - Dividir assim por gêneros, e não
ros, como conviemos, são eles também tomar por outra, uma forma que é a
mutuamente suscetíveis de semelhantes mesma, nem pela mesma uma forma
associações, não haverá necessidade que é outra, não é essa, como diríamos,
de uma ciência que nos oriente através a obra da ciência dialética?
do discurso, se quisermos apontar com TEETETO
exatidão quais os gêneros que são - Sim, assim diríamos.
mutuamente concordes e quais os ou-
ESTRANGEIRO
tros que não podem suportar-se, e mos-
- Aquele que assim é capaz dis-
trar mesmo, se há alguns que, estabele-
cerne, em olhar penetrante, uma forma
cendo a continuidade através de todos,
única desdobrada em todos os senti-
tornam possíveis suas combinações, e
dos, através de uma pluralidade de for-
se, ao contrário nas divisões, não há
mas, das quais cada uma permanece
outros que, entre os conjuntos, são os
distinta; e mais: uma pluralidade de
fatores dessa divisão?
formas diferentes umas das outras
TEETETO envolvidas exteriormente por uma
- Certamente é necessana tal
forma única repartida através de plura-
ciência que é, talvez, a suprema ciên-
lidade de todos e ligada à unidade;
cia?
finalmente, numerosas formas inteira-
ESTRANGEIRO mente isoladas e separadas; e assim
- Que nome, então, daríamos a
sabe discernir, gêneros por gêneros, as
essa ciência, Teeteto? Por Zeus, não associações que para cada um deles
estaremos, sem o sabermos, dirigindo- são possíveis ou impossíveis.
nos para a ciência dos homens livres e
correndo o risco, nós que procuramos TEETETO
o sofista, de haver, antes de encontrá- - Perfeitamente.
lo, descoberto o filósofo? ESTRANGEIRO
TEETETO - Ora, esse dom, o dom dialético,
- Que queres dizer? não atribuirás a nenhum outro, acredi-
SOFISTA 185
deremos aliás, à universalidade das tente e dele nos livrarmos sem nada
formas, temendo confundirmo-nos perder.
186 PLATÃO
TEETETO ESTRANGEIRO
- É O que é necessário fazer. - Mas certamente nem o movi-
ESTRANGEIRO mento nem o repouso não serão o
- Ora, os mais importantes desses "outro" nem o "mesmo".
gêneros são precisamente aqueles que TEETETO
acabamos de examinar: o próprio ser, - Como assim?
o repouso e o movimento. ESTRANGEIRO
TEETETO - O que quer que atribuamos de
- De longe, os maiores. comum ao movimento e ao repouso
ESTRANGEIRO não poderá ser nem um nem outro
- Dissemos, por outro lado, que deles.
os dois últimos não podiam associar-se TEETETO
um ao outro. - Por quê?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Éexato. - Porque ao mesmo tempo o mo-
ESTRANGEIRO vimento se imobilizaria, e o repouso se
- Mas o ser se associa a ambos: tornaria móvel. Com efeito, se qual-
pois, em suma, os dois são. quer um dentre eles se aplicar a esse
TEETETO par, obrigará o outro a mudar sua pró-
- Não há dúvida. pria natureza na natureza contrária,
ESTRANGEIRO
pois o tornará participante de seu b
mos que o movimento e o repouso são, vimos perfeitamente que tudo o que é
c diremos que eles são o mesmo, como outro só o é por causa da sua relação
seres que são. necessária a outra coisa.
TEETETO TEETETO
- Entretanto, isso é impossível. - É verdade o que dizes.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Então é impossível que o mesmo - É necessário, pois, considerar a
e o ser não sejam senão um. natureza do "outro" como uma quinta
TEETETO forma, entre as que já estabelecemos.
- Sim, ao que parece. TEETETO
ESTRANGEIRO - Sim.
- Deveremos, pois, às três formas ESTRANGEIRO
precedentes, adicionar "o mesmo" - Diremos, também, que ela se
como quarta forma? estende através de todas as demais.
TEETETO Cada uma delas, com efeito, é outra
- Perfeitamente. além do resto, não em virtude de sua
ESTRANGEIRO própria natureza, mas pelo fato de que
- E então? "O outro" deverá ser ela participa da forma do "outro".
contado como uma quinta forma? Ou TEETETO
será necessário entender a ele e ao ser - Certamente.
como dois nomes que servem a um gê- ESTRANGEIRO
nero único? - Eis, pois, o que nos é necessário
TEETETO dizer a respeito dessas cinco formas
- Talvez. tomadas uma a uma.
ESTRANGEIRO TEETETO
- Mas concordarás, creio, que - Oquê?
dentre os seres uns se expressam por si ESTRANGEIRO
mesmos e outros, unicamente em algu- - Em primeiro lugar, o movimen-
ma relação. to: ele é absolutamente outro que não o
TEETETO repouso. Não é o que dizemos?
- Evidentemente. TEETETO
ESTRANGEIRO - É.
- Ora, "o outro" se diz sempre ESTRANGEIRO
relativamente a um outro, não é? - Logo, ele não é repouso.
TEETETO TEETETO
- Certamente. - De maneira alguma.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO 256 a
TEETETO TEETETO
- Seja. - Seria, ao contrário. perfeita-
mente correto, se devemos convir que,
ESTRANGEIRO
- Então ele não é "o mesmo". entre os gêneros, uns se prestam à
associação mútua, outros não.
TEETETO
ESTRANGEIRO
- Certamente não.
- Ora, essa é justamente a de-
ESTRANGEIRO monstração à qual havíamos chegado
- Entretanto, vimos que ele é o antes de atingirmos esta, e havíamos
mesmo, pois como conviemos tudo provado que é precisamente essa a sua
participava do mesmo. natureza.
TEETETO TEETETO
- Certamente. - Evidentemente.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Então o movimento é o mesmo, - Retomemos, pois: o movimento
e não o mesmo: é necessário convir é outro que não o "outro", assim como
nesse ponto sem nos afligirmos, pois, era outro que não o mesmo e que não o
quando dizemos o mesmo e não o repouso?
mesmo, não nos referimos às mesmas TEETETO
relações. Quando afirmamos que ele é - Necessariamente.
b Q mesmo é porque, em si mesmo, ele ESTRANGEIRO
participa do mesmo, e quando dizemos - Em certa relação ele não é, pois,
que ele não é o mesmo, é em conse- o outro; e é outro de acordo com o
qüência de sua comunidade com "o nosso raciocínio de agora.
outro", comunidade esta que o separa TEETETO
do "mesmo" e o torna não-mesmo, e - É verdade.
sim outro; de sorte que, neste caso, ESTRANGEIRO
temos o direito de chamá-lo - Daí o que se segue? Iremos nós,
"não-o-mesmo". afirmando-o outro que não os três pri-
meiros, negar que seja outro que não o
TEETETO quarto, havendo concordado que os
- Perfeitamente. gêneros que estabelecemos e que nos
ESTRANGEIRO propusemos examinar eram cinco?
- Se, pois, de alguma maneira, o TEETETO
próprio movimento participa do repou- - E o meio? Não podemos admitir
so, haveria algo de estranho em cha- um número menor que. aquele que há
má-lo estacionário? pouco demonstramos?
SOFISTA 189
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- É, pois, sem temor que susten- - Assim, vemos que tantos quan-
tamos esta afirmação: o movimento é tos os outros são, tantas vezes o ser
outro que não o ser. não é; pois, não os sendo, ele é um em
TEETETO si; e por sua vez, os outros, infmitos
- Sim, sem sombra de escrúpulo. em número, não são.
ESTRANGEIRO TEETETO
- Assim, pois, está claro que o - Parece ser verdade.
movimento é, realmente, não ser, ainda ESTRANGEIRO
que seja ser na medida em que parti- - Aqui, ainda, não há nada. que
cipa do ser? nos deva preocupar, pois a natureza
TEETETO dos gêneros comporta comunidade
- Absolutamente claro. mútua. Aquele que se recusa a concor-
ESTRANGEIRO dar conosco neste ponto, que comece
-- Segue-se, pois, necessariamente, por converter à sua causa os argumen-
que há um ser do não-ser, não somente tos precedentes, antes de procurar
no movimento, mas em toda a série negar as conclusões.
dos gêneros; pois na verdade, em todos TEETETO
eles a natureza do outro faz cada um - O que pedes é justo.
deles outro que não o ser e, por isso ESTRANGEIRO
mesmo, não-ser. Assim, universal- - Eis, ainda, um ponto a conside-
mente, por essa relação, chamaremos a rar.
todos, corretamente, não-ser; e ao TEETETO
contrário, pelo fato de eles partici- - Qual?
parem do ser, diremos que são seres. ESTRANGEIRO
TEETETO - Quando falamos no não-ser isso
- É possível. não significa, ao que parece, qualquer
ESTRANGEIRO coisa contrária ao ser, mas apenas
- Assim, cada forma encerra uma outra coisa qualquer que não o ser.
multiplicidade de ser e uma quantidade TEETETO
infinita de não-ser. - Como assim?
ESTRANGEIRO
TEETETO - Quando, por exemplo, falamos
- É possível. de algo "não grande", crês que por
257 a ESTRANGEIRO essa expressão designamos mais o
- Logo, é necessário afirmar que o pequeno que o igual?
próprio ser é outro que não o resto dos TEETETO
gêneros. -- Que razão teríamos nós?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Necessariamente. - Não podemos, pois, admitir que
190 PLATÃO
tes como seres pela mesma razão que o samente; o não-ser que buscávamos a
que quer que seja. propósito do sofista.
TEETETO
ESTRANGEIRO
- Evidentemente.
- Ele não é, pois, como disseste,
ESTRANGEIRO
- Assim, ao que parece, quando inferior em ser a nenhum outro. É
uma parte da natureza do outro e uma necessário animarmo-nos a proclamar,
parte da natureza do ser se opõem desde já, que o não-ser é, a título está-
mutuamente, esta oposição não é, se vel, possuidor de uma natureza que lhe
assim podemos dizer, menos ser que o é própria do mesmo modo que o gran- c
próprio ser; pois não é o contrário do de era grande e o belo era belo, e o
ser o que ela exprime; e sim, simples- não-grande, não-grande, e o não-belo,
mente, algo dele diferente. não-belo; por essa mesma razão tam-
TEETETO bém, o não-ser era e é não-ser, unidade
- É claro. integrante no número que constitui a
ESTRANGEIRO
multidão das formas. Ou a teu ver,
- E, então, que nome lhe daría-
mos? Teeteto, teríamos alguma dúvida?
TEETETO TEETETO
Claro que o de "não-ser" preci- - Nenhuma.
ESTRANGEIRO TEETETO
- Na verdade, meu caro amigo, - Tens razão nesse ponto. Mas
esforçar-se por separar tudo de tudo, não compreendo por que devemos,
não é apenas ofender à harmonia, mas agora, definir em comum o discurso.
ignorar totalmente as musas e a filoso- ESTRANGEIRO
fia. - Eis, talvez, algumas razões que
te farão - se me quiseres ouvir
TEETETO compreender mais facilmente.
- Por quê?
TEETETO
ESTRANGEIRO - Quais?
- É a maneira mais radical de ani-
ESTRANGEIRO
quilar lodo discurso, isolar cada coisa - Havíamos descoberto que o
de todo o resto; pois é pela mútua não-ser é um gênero determinado entre
combinação das formas que o discurso os demais, e que se distribui por toda
nasce. série dos gêneros.
TEETETO TEETETO
- É verdade. - Éexato.
260 a ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Vês, pois, como era oportuno, - Muito bem; resta-nos agora exa-
como o fizemos há pouco, lutar contra minar se ele se associa à opinião e ao
essas pessoas e constrangê-las a acei- discurso.
tar a associação mútua. TEETETO
TEETETO - Por quê?
- Oportuno para quê? ESTRANGEIRO
- Se ele não se associa, segue-se
ESTRANGEIRO
- Para assegurar ao discurso lugar necessariamente que tudo é verdadeiro.
no número dos gêneros do ser. Privar- Mas, uma vez que a ele se associe, c
mo-nos disso, com efeito, seria, desde então, a opinião falsa e o discurso
logo - perda suprema - privar-nos falso serão possíveis. O fato de serem
da filosofia. Além disso, é-nos necessá- não-seres o que se enuncia ou se repre-
rio, agora, definirmos a natureza do senta, eis o que constitui a falsidade,
discurso. Se dele fôssemos privados, quer no pensamento, quer no discurso.
recusando-lhe absolutamente o ser, TEETETO
isso significaria negar-nos toda possi- - Com efeito.
bilidade de discorrer sobre o que quer ESTRANGEIRO
que fosse, e dele estaríamos privados - Ora, se há falsidade, há engano.
se concordássemos que absolutamente TEETETO
nada se associa a nada. - Sim.
194 PLATÃO
TEETETO ESTRANGEIRO
- Sim. - Quanto aos SUjeitos que execu-
ESTRANGEIRO tam essas ações, o sinal vocal que a
- Prossigamos, a exemplo do que eles se aplica é um nome.
falamos das formas e das letras, e do TEETETO
mesmo modo refaçamos esta pesquisa, - Perfeitamente.
tomando por objetos os nomes. Este é
ESTRANGEIRO
um ponto de vista, no qual se deixa - Nomes apenas, enunciados de
entrever a solução que procuramos. princípio a fim, jamais formam um dis-
TEETETO curso, assim como verbos enunciados
- Que questão proporás, pois, a sem o acompanhamento de algum
propósito desses nomes? nome.
ESTRANGEIRO " TEETETO
- Se todos concordam, ou ne- - Eis o que eu não sabia.
nhum; ou se uns se prestam a um acor-
ESTRANGEIRO
do, e outros não. - É que, certamente, tinhas outra
TEETETO coisa em vista, dando-me, há pouco,
- A última hipótese é evidente: teu assentimento; pois o que eu queria
uns se prestam a ele; outros não. dizer era exatamente isso: enunciados
ESTRANGEIRO numa seqüência como esta, eles não
- Eis, talvez, o que entendes por formam um discurso.
isso: aqueles que, ditos em ordem,
fazem sentido, concordam; os outros, TEETETO
- Em que seqüência?
cuja seqüência não forma sentido
nenhum, não concordam. ESTRANGEIRO
- Por exemplo, anda, corre,
TEETETO
- Como assim? Que queres dizer? dorme, e todos os demais verbos que
significam ação; mesmo dizendo-os
ESTRANGEIRO
- O que julguei teres no espírito, todos, uns após outros, nem por isso
ao concordares comigo. Possuímos, na formam um discurso.
verdade, para exprimir vocalmente o TEETETO
ser, dois gêneros de sinais. -- Naturalmente.
TEETETO ESTRANGEIRO
- Quais? - E se dissermos ainda: leão,
262 a ESTRANGEIRO cervo, cavalo, e todos os demais nomes
- Os nomes e os verbos, como os que denominam sujeitos executando
chamamos. açôes, há, ainda aqui, uma série da
TEETETO qual jamais resultou discurso algum;
- Explica tua distinção. pois, nem nesta, nem na precedente, os
ESTRANGEIRO sons proferidos indicam nem ação,
- O que exprime as ações, nós nem inação, nem o ser, de um ser, ou
chamamos verbo. de um não-ser, pois não unimos verbos
TEETETO aos nomes. Somente unidos haverá o
- Sim. acordo e, desta primeira combinação
196 PLATÃO
TEETETO TEETETO
- Sim. - Certamente.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Que qualidade devemos, pois, - Ora, se não se refere a ti, não se
atribuir a um e outro? refere, certamente, a ninguém mais.
TEETETO TEETETO
- Poderemos dizer que um é falso, - Evidentemente.
outro verdadeiro. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Não discorrendo sobre pessoa
- Ora, aquele que, dentre os dois, alguma, não seria então, nem mesmo
é verdadeiro, diz, sobre ti, o que é tal um discurso. Na verdade demons-
comoé. tramos que é impossível haver discurso
TEETETO
que não discorra sobre alguma coisa.
- Claro! TEETETO
ESTRANGEIRO
- Perfeitamente exato.
- E aquele que é falso diz outra ESTRANGEIRO d
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Não nos desencorajemos, pois, - Dividimos a arte que produz as
com aquilo que resta fazer. Uma vez imagens em duas formas: uma produz
c esclarecido este ponto, recordemos a cópia, outra produz o simulacro.
nossas anteriores divisões por formas. TEETETO
- Sim.
TEETETO ESTRANGEIRO
- Exatamente que divisões? - Quanto ao sofista, embaraça-
SOFISTA 199
mo-nos sem saber em que forma este método, têm as mais próximas afi- 265 •
rados igualmente a produção e a obra pela arte que produz as coisas reais; de
de Deus. É o que sabemos, não é outro, a imagem, devida à arte que
certo? produz imagens.
TEETETO TEETETO
- Sim. - Agora compreendo melhor e
ESTRANGEIRO
estabeleço, para a arte da produção,
- Ao lado de cada uma delas vêm, duas formas, das quais cada uma é
em seguida, colocar-se suas imagens dupla; de um lado, produção divina e
que não são mais suas realidades, e produção humana; de outro, criação
que também devem a sua existência a de coisas, ou criação de certas seme-
uma arte divina. lhanças.
TEETETO ESTRANGEIRO
- Que imagens? - Muito bem; mas lembremos que
ESTRANGEIRO esta produção de imagens deveria
- Aquelas que nos vêm no sono e compreender dois gêneros: a produção
todos os simulacros que, durante o dia, de cópias e a produção de simulacros,
se formam, como se diz, espontanea- uma vez demonstrado ter o falso um
c mente: a sombra que projeta o fogo ser real de falso e assim contado, por
quando as trevas o invadem; e esta direito de sua natureza, como unidade
aparência, ainda, que produz, em su- entre os seres.
perfícies brilhantes e polidas, o concur- TEETETO
so, num mesmo ponto, de duas luzes: - Foi exatamente esse nosso ra-
sua luz própria e uma luz estranha, e ciocínio.
que opõe, à visão habitual, uma sensa- ESTRANGEIRO
ção inversa. - Ora, a demonstração foi feita e,
TEETETO por conseguinte, é incontestável nosso
- Eis, pois, as duas obras da pro- direito de distinguir essas duas formas.
dução divina: de um lado, a coisa em TEETETO
si mesma; e de outro, a imagem que - Sim.
acompanha cada coisa. ESTRANGEIRO 267 •
ESTRANGEIRO TEETETO
- Mas que dizer da figura da justi- - Está bem.
ça, e, em geral, de toda virtude? Não ESTRANGEIRO
haverá muitos que, sem a conhecer, - Ora, é da primeira que nos deve-
mas dela tendo apenas uma opinião mos ocupar, pois o sofista não per-
qualquer, se desdobram em todas as tence ao número daqueles que sabem,
SOFISTA 203
mas daqueles que se limitam a imitar. argumentos breves, obrigando seu in-
TEETETO terlocutor a se contradizer.
- Certamente. TEETETO
ESTRANGEIRO - O que dizes é bem exato.
- Examinemos, então, o doxô- ESTRANGEIRO
mimo para ver se ele é perfeito como - Que personagem, será, pois,
uma barra de ferro ou se há nele algu- para nós, o homem dos discursos lon-
ma divisão. gos? Político ou orador popular?
TEETETO TEETETO
- Examinemos. - Orador popular.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Há, realmente, e uma divisão - E como chamaremos ao outro?
268 a bem visível. Dentre estes imitadores há Sábio ou sofista?
o ingênuo, que crê ter ciência do que TEETETO
apenas tem opinião, e, além dele, outro - Sábio, exatamente, é impossível,
que, de tanto haver revolvido os argu- pois já afirmamos que ele não sabe
mentos, em si mesmo desperta uma nada. Mas, porque imita ao sábio, ele
forte desconfiança, uma viva apreen- terá um nome que se aproxime deste, e
são de ignorância pessoal, mesmo em já estou quase convencido de que é a
relação a assuntos sobre os quais, seu propósito que devemos dizer: eis,
diante dos outros, ele se dá ares de verdadeiramente, nosso famoso sofista.
sábio. ESTRANGEIRO
TEETETO - Encerraremos aqui a cadeia,
- Um e outro gênero existem, como o fizemos anteriormente, rea-
certamente, tal como dizes. tando juntos, de ponta a ponta, retros-
ESTRANGEIRO pectivamente, os elementos de seu
- Assim, a um consideraremos nome.
simples imitador, e a outro como imi- TEETETO
tador irônico? - É precisamente o que quero.
TEETETO ESTRANGEIRO
- É razoável. - Assim, esta arte de contradição
ESTRANGEIRO que, pela parte irânica de uma arte fun-
- E o gênero ao qual pertence este dada apenas sobre a opinião, faz parte
último, consideraremos único ou da mimética e, pelo gênero que produz
duplo? os simulacros, se prende à arte de criar
TEETETO imagens; esta porção, não divina mas d
estes jovens poderão ser meus parentes Sócrates, ele não teria lugar na mesma
longínquos. Dizes que um deles se pa- classificação.
rece comigo, pelos traços fisíonômi- SÓCRATES, O JOVEM
258 a COs 5'; O outro, tendo nome semelhante - Em qual, então?
ao meu, terá comigo certo parentesco. ESTRANGEIRO
E nós devemos sempre procurar reco- - Emoutra.
nhecer nossos parentes pela maneira SÓCRATES, O JOVEM
por que conversam. Com Teeteto con- - Sim, é o que parece.
versei ontem e ouvi, ainda há pouco, o ESTRANGEIRO
que te respondeu; mas do jovem Sócra- - E onde poderíamos encontrar o
tes, nada ouvi. É mister, porém, que o caminho pelo qual poderemos chegar à
conheçamos. Interroga-o tu primeiro e compreensão do que é o político? É
mais tarde responderá a mim. mister que o encontremos e que o sepa-
ESTRANGEIRO remos dos demais, diferenciando-o por
- Muito bem. Ouviste, jovem Só- aquilo que lhe é característico, para, a
crates, o que disse Sócrates? seguir, dar aos outros caminhos, que
SÓCRATES, O JOVEM dele se afastam, um caráter único espe-
- Sim. cífico a todos, de sorte a fmalmente
ESTRANGEIRO permitir ao nosso espírito classificar
- Concordas com o que ele pro- todas as ciências em duas espécies.
põe?
SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM
- Esse trabalho, caro Estrangeiro,
- Com todo o gosto.
parece-me ser teu, e não meu.
ESTRANGEIRO
- Assim se tu não te recusas, ESTRANGEIRO
- Entretanto, jovem Sócrates, en-
muito menos posso eu recusar-me. De-
contrando esse caminho, ele será tanto
pois do sofista, penso que devemos
teu quanto meu.
agora estudar o político. Dize-me,
pois: devemos ou não colocar o polí- SÓCRATES, O JOVEM
- Está bem.
tico entre os sábios?
ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM A aritmética assim como outras
- Sim.
artes que lhe são semelhantes não são
ESTRANGEIRO
- Nesse caso devemos classificar separadas da ação e dirigidas apenas
as ciências do mesmo modo como o para o conhecimento?
fazíamos ao estudar a personagem SÓCRATES, O JOVEM
precedente 6? - É verdade.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
- Creio que sim. - Entretanto, as artes que se rela-
ESTRANGEIRO cionam com a arquitetura ou com
- Mas, ao que me parece, jovem qualquer outra forma de construção
5 Também no diálogo Teeteto assinala-se a se· manual estão ligadas originalmente à
melhança fisionômica entre Sócrates e Teeteto. ação e o seu concurso à ciência faz e
(N. doT.)
6 A personagem precedente é o Sofista. (N. com que sejam produzidos corpos que
do T.) antes não existiam.
POLÍTICO 209
ca, com o papel de simples espectador, pesquisa tem por objeto o dirigente e
ou será melhor decidirmos pela arte não o oposto do dirigente. 261 a
sorte para desse modo acertar. Assim, e dar ao resto um único nome acredi-
tu, ainda há pouco, acreditaste fazer tando, desta vez ainda, que esse sim-
uma divisão e precipitaste o teu racio- ples nome fosse suficiente para criar
cínio, logo que percebeste que ele dizia um segundo gênero em face do primei-
respeito aos homens. Mas de fato, meu ro. Creio que a divisão seria melhor;
amigo, essas pequenas divisões não que melhor seguiria às formas especí-
deixam de oferecer perigo. É mais se- ficas e seria mais dicotômica se, divi-
guro proceder por partes, dividindo as dindo os números em "pares" e
metades. Assim, há mais probabilidade "ímpares", dividíssemos, do mesmo
de encontrar os caracteres específicos. modo, o gênero humano em machos e
Ora é isso que principalmente importa fêmeas; e se nos decidíssemos a não
c na nossa pesquisa. separar nem caracterizar, relativa-
SÓCRATES, O JOVEM mente aos demais, os Lídios, os Frí-
- Que queres dizer com isso? gios, ou outras unidades senão quando
ESTRANGEIRO já não fosse mais possível obter uma
- Agrada-me a tua índole, e, por divisão em que cada um dos termos
isso, falarei mais claramente. No ponto seria, ao mesmo tempo, gênero e parte. 263 •
Quadrúpedes e bípedes.
O concurso das duas majestades
266 Q ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
- Todos os seres mansos e que - Não.
vivem em rebanho já estão discrimi- ESTRANGEIRO
nados, exceto duas espécies, pois, ao - Ora, o modo de caminhar pró-
que creio, não convém incluir a família prio a um segundo gênero tem um
dos cães no número dos animais que se valor igual à diagonal daquele valor
criam em rebanhos. próprio ao nosso modo de caminhar,
SÓCRATES, O JOVEM pois que, naturalmente, ele vale duas
- Não, mas segundo que princípio vezes dois pés.
dividiremos essas duas espécies? SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO - É certo. Agora começo a com-
- Segundo o princípio que distin- preender aonde queres chegar.
gue Teeteto de ti, pois que vós ambos ESTRANGEIRO
vos ocupais da geometria. - Mas, caro Sócrates, não vemos
SÓCRATES, O JOVEM ocorrer novamente, nessa divisão, algo c
- Como? ridículo?
ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
- Pela diagonal, e depois pela dia- - Oquê?
gonal da diagonal. ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM - Colocar o gênero humano na
- Como? mesma liça e fazê-lo disputar em velo-
ESTRANGEIRO cidade com o gênero de seres ao
- A natureza do gênero humano mesmo tempo imponente e o mais
nos permitirá um modo de caminhar indolente.
diverso daquele que se exprime pelo SÓCRATES, O JOVEM
valor da diagonal, igual a dois pês", - Sim, vejo, é uma coincidência
curiosa.
8 Pé é medida grega. No Menão está substituí-
do pelo metro, a fim de facilitar a leitura do ESTRANGEIRO
diálogo pelo leitor moderno. Encontramos no - Mas como? Não é natural que o
Político idêntico quadrado ao que aparece na-
quele livro. A diagonal dessa figura é o lado mais vagaroso venha por último?
de um quadrado cuja área é o duplo da área SÓCRATES, O JOVEM
do primeiro quadrado. A digressão pela mate-
mática é puramente simbólica. A área do qua- - Sim.
drado cujo lado mede dois pés de quatro pés ESTRANGEIRO
quadrados e sua diagonal é o lado do quadra- - Mas não observas também que o
do de área dupla. Por causa desses dois núrne-
ros - dois e quatro - o autor considera a rei será ainda mais ridículo ao concor-
diagonal ,do 10 quadrado como símbolo do mo- rer com seu rebanho e ao medir-se,
do de andar dos seres de dois pés e a do 29
quadrado - cujo lado é a diagonal do 19 - sobre a pista, com o homem mais d
como símbolo do modo de andar dos quadrú- entregue a esta vida indolente".
pedes. Essas proposições provocam sorrisos
entre os ouvintes, predispondo-os a prestar mais 9 Platão refere-se aqui aos monarcas persas que
atenção. Tal método didático era empregado estão sempre cercados de ajudantes, fâmulos e
pelo autor em suas aulas. (N. do T.) companheiros. (N. do T.)
pOLíTICO 219
penas. Nessa classificação, esponta- sua vez, considerada como uma das
neamente se revelaria a arte de pasto- divisões da ciência autodiretiva, da
rear homens, e assim poderíamos des- qual é um gênero e certamente não o
cobrir o homem político e real, menor; a criação de animais nos deu a
colocando-o como condutor e entre- espécie da criação em rebanho, e a
gando-lhe, como um direito, as rédeas criação em rebanho, por sua vez, deu-
do Estado por serem homens que pos- nos a arte de criar os animais pedes-
suem a ciência quelhes é necessária. tres; e a seguir, esta arte de criar os
267 a SÓCRATES, O JOVEM animais pedestres nos deu, como seção
- Com esta discussão saldaste principal, a arte que cria a raça de ani-
220 PLATÃO
mais sem chifres; e, ainda, esta raça de procuramos; a arte que se honra por
animais sem chifres inclui uma parte dois nomes: política e real.
que só poderá ser compreendida por SÓCRATES, O JOVEM
um único termo pela adição necessária - Exatamente.
ESTRANGEIRO
de três nomes: ela se chamará "a arte
- Mas, Sócrates, essa pesquisa foi
de criar raças que não se cruzam". Por
realizada por nós assim como acabas
fim, a última subdivisão restante nos de dizer?
c. rebanhos bípedes, será a arte de dirigir SÓCRATES, o JOVEM
os homens. É precisamente o Que - Que pesquisa?
Crítica da definição, Os
rivais do político
outros animais, e sim como ciência que criação dos homens, não apenas dos
POLiTICO 221
membros do rebanho, mas também dos que 10 000 outros que pretendam
governantes? sê-lo.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
- E não teriam razão de assim - De nenhum modo.
protestar? ESTRANGEIRO
- Não teríamos nós razões para
ESTRANGEIRO
inquietação quando, ainda há pouco,
- Talvez. Haveremos de ver. Uma
nos assaltou a suspeita de que talvez
coisa, porém, sabemos, e que ninguém
houvéssemos traçado um esboço plau-
negará, é que isso também se estende
sível do caráter real mas que, no entan-
ao criador de bois. É ele que alimenta
to, não o leváramos até o retrato fiel
o seu rebanho, é ele o médico e só ele
do político, pelo fato de não o distin-
escolhe os coitos: tanto na procriação
guirmos de todos aqueles que à sua
como no nascimento, é o único par-
volta se agitam e que reclamam uma
b teiro competente. Na medida em que
parte dos seus direitos de pastor? Não
seus animais participam da sedução da
o separamos suficientemente dos seus
música, nenhum outro é mais capaz de
rivais para mostrá-lo, unicamente, na
acalmá-los e de consolá-los por meio
sua pureza?
de sons. Sabe executar excelentemente
a música de que seu rebanho gosta, SÓCRATES, O JOVEM
- Muito bem.
seja
. por intermédio de instrumentos,
.
o Recurso ao Mito
agora, deveremos conhecer, pois que é capaz. Eis por que foi animado do
ela nos será útil para definir a natureza movimento de retrocesso circular que
do rei. dentre todos é o que menos o afasta de
SOCRATES, O JOVEM
seu movimento primitivo. Ser a causa
- Disseste bem. Conta-a, e nela contínua de sua própria rotação não é
não suprimas nada! possível senão ao que rege tudo aquilo
que se move. Esse ser, porém, não
ESTRANGEIRO
pode mover-se, ora num sentido, ora
- Escuta! Este universo, em que
no sentido contrário. Por estas razões
estamos, algumas vezes é o próprio
todas não podemos afirmar que o
Deus que lhe dirige o curso e preside à
mundo seja a causa contínua de sua
sua revolução; outras vezes, termina-
própria rotação nem dizer que toda
dos os períodos que lhe foram determi-
ela, sem interrupção, é dirigida por um
nados, ele o deixa seguir; e então, por
deus nas suas revoluções contrárias e
si mesmo, o Universo retoma o seu
alternadas e muito menos que ela se 270 a
curso circular, em sentido inverso, em
deve a duas divindades cujas vontades
d virtude da vida que o anima e da inteli-
se opõem. Mas, como dizia há pouco,
gência que lhe foi dada, desde a sua
a única solução que resta é que umas
origem, por aquele que o criou. Esse
vezes ela seja dirigida por uma ação
movimento de retrocesso faz parte
estranha e divina e assim, recebendo
necessariamente da sua natureza, pelo
uma nova vida, recebe, igualmente de
motivo seguinte.
seu autor, uma nova imortalidade, que
SOCRATES, O JOVEM outras vezes, abandonado a si mesmo,
- Que motivo?
caminhe em retrocesso durante milha-
ESTRANGEIRO res e milhares de períodos, pois que a
- Somente ao que há de mais divi- sua grande massa se move num per-
no convém conservar sempre as mes- feito equilíbrio sobre um eixo extrema-
mas qualidades, permanecer no mesmo mente pequeno.
estado e ser sempre o mesmo. A natu- SOCRATES, O JOVEM
reza corpórea não participa dessa - Tudo o. que acabas de dizer pa-
ordem. O que chamamos céu e mundo, rece estar bem próximo da verdade.
apesar dos muitos dotes esplêndidos ESTRANGEIRO
que recebeu de seu criador, está preso - Prossigamos no raciocínio e
à sorte do corpo. Por isso é impossível examinemos a causa, como dissemos,
que fique eternamente alheio à mudan- de todos esses prodígios. Ele consiste
ça e, na medida de suas forças, move- no seguinte:
se no mesmo espaço, com um movi- SOCRATES, O JOVEM
mento mais idêntico e mais uno de que - Em quê?
224 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Na rotação do universo que ora - Mas não sabemos, também, que
se faz no sentido atual, ora em sentido é com grande dificuldade que a natu-
oposto. reza dos seres vivos suporta mudanças
SÓCRATES, O JOVEM profundas, numerosas e diversas ao
- Como? mesmo tempo?
E/iTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
- Essa mudança de sentido deve - Sim.
ser considerada como a mais impor- ESTRANGEIRO
tante e mais perfeita das variações a - Nessas ocasiões é fatal que a
c que está sujeito o universo, o maior e o morte faça as suas maiores devasta-
mais completo. ções entre os seres vivos, reduzindo,
SÓCRATES, O JOVEM especialmente, o gênero humano a um
- Isso é claro. número ínfimo de sobreviventes. Ao
ESTRANGEIRO realizar-se a inversão do movimento d
- Logo, deveremos supor que na- atual, os que sobrevivem sofrem toda
quela época é que se produziram as espécie de estranhos e insólitos aciden-
transformações mais importantes para tes, dos quais o mais grave, que se deve
nós que residimos e vivemos no seu à mudança de sentido do movimento
interior. do universo, é este:
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
- É claro. - Qual?
Os filhos da Terra
natureza de então, não podiam, como não foram dirigidos por um deus para
dizes, procriarem-se uns aos outros; e outros destinos.
foi, nesse tempo, que aconteceu a his- SÓCRATES, O JOVEM
tória de que se fala, de uma raça, - O que dizes se confirma perfei-
outrora nascida da própria terra; e os tamente pelo que antes afirmaste ;
homens desse tempo, nascidos do seio mas, dize-me agora se a vida que, a teu
da terra, guardaram essa lembrança ver, existia sob o império de Crono,
b que nos foi transmitida pelos nossos pertencia ao outro ciclo ou a este, pois
mais remotos antepassados, homens de que a mudança de sentido no curso dos
um tempo que se seguiu imediatamente astros e do sol aconteceu, evidente-
ao fim deste antigo ciclo. Eles são as mente, em ambos.
Os Pastores Divinos
levava sob o império de Crono; e posta seria fácil, creio. Mas, deixemos
quanto à outra, a de agora, e que, ao este problema até que encontremos
que se diz, está sob o império de Zeus, alguém, bastante hábil, que nos teste-
tu a conheces por ti mesmo. Podes munhe com que espírito os homens
dizer qual delas é a mais feliz? deste tempo procuravam o conheci-
SÓCRATES, O JOVEM mento e entre si discutiam. Quanto à
- Impossível. razão por que lembramos este mito, eu
ESTRANGEIRO a direi agora, pois já é tempo de conti-
- Queres, então, que eu mesmo o nuarmos o nosso raciocínio se quiser-
diga? mos levá-lo a bom termo.
POLÍTICO 227
o mundo abandonado
nara a sua própria lei. Então o piloto no céu, e que daí passaram ao mundo,
do' Universo, abandonando, por assim transmitindo-se aos animais. Enquanto
dizer, o leme, voltou a encerrar-se em desfrutava da assistência de seu piloto
seu posto de observação; e o mundo le- que alimentava aos seus, que viviam
vado pela sua tendência e pelo seu des- em seu seio, salvo raros fracassos, só
tino natural, moveu-se em sentido produzira grandes bens; mas uma vez
contrário. Todos os deuses locais que dele desligado, quando o mundo foi
assistiam a divindade suprema em seu abandonado a si mesmo, nos primeiros
governo, compreendendo prontamente tempos que se seguiram ainda procu-
o que se passava, abandonaram, tam- rou levar todas as coisas para o
bém eles, as partes do mundo confia- melhor; entretanto, com o avançar do
273 a das aos seus cuidados. E o mundo, tempo e do esquecimento, tornando-se
subitamente mudando o sentido de seu mais poderosos os restos de sua turbu-
movimento, de começo a fim, provo- lência primitiva que fmalmente alcan- d
cou, no seu próprio seio, um terremoto çou o seu apogeu, raros são os bens e
violento em que pereceram os animais numerosos os males que a ele se incor-
de toda espécie. Depois, ao fim de um poram, arriscando-se à sua própria
tempo suficiente, terminados os distúr- destruição e à de tudo o que ele encer-
bios e o terremoto, prosseguiu num ra. Por esse motivo, o Deus que o
movimento ordenado o seu curso habi- organizou, compreendendo o perigo
tual e próprio, zelando e governando, em que o mundo se encontra, e temen-
como senhor, tudo o que havia em seu do que tudo se dissolva na tempestade
seio, bem como a si próprio e relem- e desapareça no caos infinito da desse-
brando, tanto quanto lhe fora possível, melhança, toma de novo o leme e
as instruções de seu criador e pai, de recompondo as partes que, neste ciclo, e
Assim termina este mito, do qual a tornaram desde logo selvagens, agora
primeira parte servirá à nossa teoria do que também eles se viram sem força e
Rei. Quando o mundo, por um movi- sem proteção, os homens se tornaram c
mento reverso, desviou-se para o modo presas desses animais. Nos primeiros
atual de geração, a evolução das ida- tempos, não tiveram qualquer indús-
des parou uma segunda vez para voltar tria ou arte; e foi desde este momento
num sentido contrário àquele que de grande abandono, em que seus ali-
então seguia. Os seres vivos que se ha- mentos deixaram de vir-lhes esponta-
viam reduzido a quase nada voltaram neamente, e em que não sabiam ainda
a crescer e os corpos recém-nascidos procurá-los, pois que nenhuma necessi-
da terra tomaram-se grisalhos, defi- dade os havia, até então, obrigado a
274 a nharam-se e voltaram à terra. E todo o isso, que, segundo as antigas tradições,
resto voltou, da mesma forma em sen- nos foram dadas, pelos deuses, lições e
tido contrário, amoldando-se e regu- ensinamentos indispensáveis: o fogo
lando-se à nova evolução do universo; por Prometeu 1 2; as artes por Hefes-
e especialmente a gestação, o parto e a to 1 3 e sua companheira; as sementes e d
dirigia todo este raciocínio. No que se dele nos servindo para medir a falta
refere aos outros animais seriam neces- que cometemos ao.defmir, como o fize-
sárias muitas palavras e muito tempo mos anteriormente, o homem real e o
para dizer qual era então a condição político.
de cada espécie e por que influências SÓCRATES, O JOVEM
ela se modificou; mas relativamente - A que falta te referes, e qual a
aos homens, esta exposição será mais sua importância?
breve e mais a propósito. Uma vez pri- 12 Prometeu: gigante amigo dos homens. Doou
o fogo aos homens, contra a vontade de Zeus.
vados dos cuidados deste deus que os Nesta versão, porém, o fogo é dádiva feita aos
possuía e os mantinha sob sua guarda, homens pelos próprios deuses. (N. do T.)
13 Hefesto: deus dos ferreiros. A companheira
cercados de animais dos quais a maior de Hefesto é Atena, protetora dos trabalhos
parte era naturalmente feroz, e que se manuais femininos, como o bordado.(N. do T.)
pOLíTICO 229
sário, pois, um nome que servisse a comum a todos? Falando, pois, da arte
todos, ao mesmo tempo. que se ocupa dos rebanhos, que por
SÓCRATES, O JOVEM eles vela e deles cuida, designando a
- O que dizes é certo, desde que função que compete a todos, haveria
tal nome exista. um termo capaz de servir ao político e
ESTRANGEIRO a todos os seus rivais, e é esse, precisa-
- Como não? O cuidado para mente, o fim de nossa pesquisa.
com os rebanhos desde que não se SÓCRATES, O JOVEM
determine como alimentação ou qual- - Bem, mas como proceder então 276 a
forma nós, procurando corngir, sem minado, mas ao qual, entretanto, falta
demora, e de maneira grandiosa o erro o relevo que lhe será dado pela pintura
cometido em nossa exposição anterior, e pela harmonia de cores. E o que me-
acreditamos que para o Rei só eram lhor nos convém não é o desenho, nem
dignos os modelos de alta grandeza; e uma representação manual qualquer;
assim tomamos uma parte enorme de são as palavras e o discurso; pois que
uma lenda da qual nos servimos mais se trata de expor um assunto vivo a
do que seria necessário, alongamo-nos espíritos capazes de segui-lo. Para
na demonstração sem havermos, afi- outros, seria necessária uma represen-
nal, chegado ao fim de nosso mito. Ao tação material.
c contrário do que te parece, o nosso dis- SÓCRATES, O JOVEM
curso se assemelha a um quadro muito - É certo. Mas é preciso mostrar
bem desenhado em suas linhas exterio- então o que, segundo crês, falta em
res, de sorte a dar a impressão de ter- nossa exposição.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Seria difícil, meu caro amigo, - Sim, falarei, pois vejo que estás
tratar satisfatoriamente um assunto pronto a seguir-me. Nós sabemos,
importante sem recorrer a paradigmas. creio, que as crianças, logo que come-
Poderíamos quase dizer que cada um çam a aprender a escrita ...
de nós conhece todas as coisas como SÓCRATES, O JOVEM
sonho, mas que, à luz do despertar, se - Que vais dizer?
apercebe de nada saber.
ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM - Que elas distinguem suficiente-
- Que queres dizer?
mente bem as várias letras, nas sílabas
ESTRANGEIRO mais curtas e mais fáceis, e são capa-
- Parece-me ser uma descoberta
curiosa que me leva a falar em que zes de, a esse respeito, dar respostas
consiste, em nós, a ciência. exatas.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM 278 a
- Em quê? - Sem dúvida.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Precisarei, meu caro, de um - Entretanto, já não as distinguem
outro paradigma para explicar o meu. em outras sílabas, e pensam e falam
SÓCRATES, O JOVEM erradamente a seu respeito.
- Pois bem, fala. Não há razão SÓCRATES, O JOVEM
para hesitares ao falar comigo. - É certo.
POLÍTICO 233
o paradigma da tecedura
mentas, e, embora lhe concedam maior esclarece nem nada conclui, enquanto
importância, reivindicarão para si uma não houvéssemos afastado todas estas
grande parte. artes rivais?
SÓCRATES, O JOVEM
SÓ!2RATES, O JOVEM
- Certamente. - Tens razão.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - E não será este o momento para
- Segundo elas, as artes que fabri- assim fazer, se quisermos que a nossa
cam os instrumentos, com os quais se dissertação prossiga ordenadamente?
exerce a tecedura, hão de pretender,
SÓCRATES, O JOVEM
creia-se, serem, pelo menos, causas - Não há por que hesitar.
auxiliares de cada tecido fabricado.
ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM - Consideremos, pois, em pri-
- É certo. meiro lugar, que tudo aquilo que se
ESTRANGEIRO produz éobjeto de duas artes.
- A noção de tecedura, desta parte SÓCRATES, O JOVEM
da tecedura que escolhemos, estará - Quais?
talvez essa distinção te seja lição mamos fios da trama e dizemos que a
oportuna. arte que preside sua colocação tem por
fmalidade a fabricação da trama. 283 Q
SÓCRATES, O JOVEM
- Como fazê-lo? SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO
- Muito bem.
- Do seguinte modo: entre os pro- ESTRANGEIRO
dutos da cardadura, existe um que pos- - Eis, pois, a parte da tecedura
sui comprimento e largura, a que cha- que nos interessava, perfeitamente
mamos roca? compreensível daqui por diante. Quan-
do a operação de reunião, que é a parte
SÓCRATES, O JOVEM
- Sim. do trabalho da lã, entrelaçou a urdi-
dura e a trama, de maneira a formar
ESTRANGEIRO
- Muito bem, pela fiação rotativa um tecido, damos, ao conjunto do teci-
no fuso, que a transforma num sólido do, o nome de vestimenta de lã, e, à
fio, obteremos o fio da urdidura e a arte que o produz, o nome de tecedura.
arte que dirige esta operação é a arte SÓCRATES, O JOVEM
- Muito bem.
de fabricar urdidura.
ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM - Bem, mas então por que não
- Correto. dizer logo: "A tecedura é a arte de
ESTRANGEIRO entrelaçar a urdidura e a trama" em
- Mas todas as fibras que produ- lugar de fazer tantos rodeios e um
zem apenas fios frouxos e que possuem acervo de distinções inúteis?
justamente a flexibilidade necessária SÓCRATES, O JOVEM
para se entrelaçarem na urdidura e - A meu ver, Estrangeiro,nada há
resistirem às trações da tecedura, cha- de inútil no que dissemos.
b certo número de coisas possui algo em traços de semelhança que elas encer-
comum, não abandoná-las antes de ram, reunindo-as na essência de um gê-
haver distinguido, naquilo que tem em nero. Basta o que fica dito quanto a
comum, todas as diferenças que consti- esse problema e quanto às faltas e aos
tuem as espécies; e, com relação às excessos: observemos apenas que aqui
dessemelhanças de toda espécie, que encontramos dois gêneros de medida, c
podemos observar numa multidão, não lembrando-nos dos caracteres que lhes
nos desencorajarmos nem delas nos atribuímos.
separarmos, antes de havermos reuni- SÓCRATES, O JOVEM
do, em uma única similitude, todos os - Não os esqueceremos.
A norma verdadeira.
A síntese dialética
pesquisa sobre o político? É ela ditada das que dêem aos homens uma intui-
242 PLATÃO
longadas. Foi, pois, com o propósito são muito longas"; devemos antes
de evitar para o futuro semelhantes demonstrar que se fossem mais breves
minúcias, que fizemos todas as obser- tornariam os ouvintes mais aptos à
vações precendentes. dialética e mais hábeis em encontrar
SÓCRATES, O JOVEM raciocínio que lançassem luz sobre a
- Entendido. Continua. verdade; com relação às demais críti-
ESTRANGEIRO cas ou elogios fmgidos não com-
- Creio, pois, que tu e eu devemos preender apreciações dessa natureza.
lembrar-nos das observações agora fei- Eis-nos, entretanto, muito longe, se
tas, quando censurarmos ou aprovar- concordas comigo: retornemos, pois,
POLÍTICO 243
ao político, aplicando a ele nosso nem política; mas não há, por outro
exemplo sobre a tecedura. lado, operação alguma da arte real que
SÓCRATES, O JOVEM lhes possamos atribuir.
- Tens razão. Façamos como SÓCRATES, O JOVEM
dizes. - Não, com efeito.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Havíamos, pois, separado o Rei - Realmente é difícil a tarefa que
de todas as artes que possuem o nos propusemos, procurando distinguir
mesmo domínio e, especialmente, de este gênero dos demais.. pois não há
todas aquelas relativas aos rebanhos. nada que não se possa com alguma
Restam, entretanto, no interior da razão chamar de instrumento disto ou
cidade, as artes auxiliares e as artes daquilo. Há, entretanto, entre os obje- e
como o faziam, há pouco, aos tecelões, dores, possuem eles qualquer preten-
os fiadores, cardadores ou aqueles que são política?
executavam outros trabalhos, a que SÓCRATES, O JOVEM
nos referimos. Quanto aos demais, - Talvez sim, a comercial pelo
denominados auxiliares, foram afasta- menos.
246 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Em todo o caso, não há perigo - Em seguida, há a classe sacerdo-
de que esses assalariados e interessa- tal que, segundo afirma a crença públi-
dos, que vemos oferecer seus serviços a ca, oferece aos deuses em nosso nome
qualquer que se apresente, possuam ja- os sacrifícios que eles desejam, dirigin-
mais uma participação na função real. do-lhes as preces necessárias para que d
les que ainda não foram examinados; e - Muito bem; examinemos esses
dentre eles, em primeiro lugar, dos que reis e sacerdotes eleitos, com seus
se dedicam à arte do adivinho, prati- servidores, e além deles, um grupo
cando certamente uma ciência útil, novo e grande de pessoas que agora se
pois passam por intérpretes dos deuses manifesta, urna vez afastados os de-
junto aos homens. mais rivais.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
- Sim. - A que te referes?
pOLíTICO 247
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Certamente a pessoas estranhas. - Sim, pois o que há de estranho
SÓCRATES, O JOVEM resulta de nossa ignorância. Foi, com
- Quem são elas? efeito, o que aconteceu a mim mesmo,
ESTRANGEIRO há pouco; eu não ousava crer que
- Uma raça de tribos numerosas, repentinamente tinha diante de mim,
ao que parece à primeira vista. São ho- reunidas, as pessoas que se agitam em c
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Considerando os caracteres que - O que dissemos de início subsis-
essas formas apresentarem, opressão tirá ainda, ou já não estamos mais de
ou liberdade, pobreza e riqueza, legali- acordo?
dade ou ilegalidade, podemos dividir SÓCRATES, O JOVEM
em duas cada uma das duas primeiras - A que te referes?
formas. A monarquia apresenta duas ESTRANGEIRO
espécies às quais chamaremos tirania e - Que o governo real depende de
realeza. uma ciência. Creio que o dissemos.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
- Evidentemente. - Sim.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Em toda a cidade onde a força - E não de qualquer ciência; mas
está nas mãos de um pequeno número de uma ciência crítica e diretiva, mais
haverá ou uma aristocracia ou uma do que de qualquer outra.
oligarquia. SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM - Sim.
- Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Nesta ciência diretiva, havíamos
- Apenas, na democracia, é indife-
distinguido entre a direção das obras
292 • rente que a massa domine aqueles que
inanimadas e a dos seres vivos, e pro- c
têm fortuna, com ou sem seu assenti-
cedendo sempre por esse modo de divi-
mento, ou que as leis sejam estrita-
são, chegamos ao ponto em que esta-
mente observadas ou desprezadas; nin-
mos, no qual não perdemos de vista a
guém ousa alterar-lhe o nome.
ciência mas não nos tornamos capazes
SÓCRATES, O JOVEM de defmi-Ia com precisão suficiente.
- Éverdade.
ESTRANGEIRO SÓCRATES,OJOVEM
- E então? Alguma dessas consti- - Éexato.
tuições será exata se defmirmos sim- ESTRANGEIRO
plesmente por estes termos: "um, al- - Ora, para sermos conseqüentes
guns, muitos - riqueza ou pobreza - aos nossos princípios, não nos aperce-
opressão ou liberdade - leis escritas bemos de que o caráter que deve servir
ou ausência de leis"? para distinguir essas constituições é a
SÓCRATES, O JOVEM presença de uma ciência, e não a
- Nada o impede, realmente. "liberdade" ou a "opressão", a
ESTRANGEIRO "pobreza" ou a "riqueza", "alguns" ou
- Pensa melhor, atendendo a este "muitos"?
ponto de vista. SÓCRATES, O JOVEM d
SÓCRATES, O JOVEM - Nem se pode pretender de outra
- Qual? forma.
POLÍTICO 249
tar que numa cidade toda a multidão contra ou por nossa própria vontade,
seja capaz de adquirir essa ciência? quer nos operem, cauterizem ou nos
inflijam qualquer outro tratamento
SÓCRATES, O JOVEM
- Impossível. doloroso, quer sigam regras escritas ou
as dispensem, quer sejam pobres ou
ESTRANGEIRO
- E será que numa cidade de mil ricos, não hesitamos absolutamente em
habitantes, haveria cem ou cinqüenta chamá-los médicos, bastando para isso
capazes de chegar a adquiri-la de que suas prescrições sejam ditadas
maneira satisfatória? pela arte; que purificando-nos ou dimi-
SÓCRATES, O JOVEM
nuindo nossa gordura por qualquer
- Nesse caso, a política seria a modo, ou, ao contrário, aumentando-a,
mais fácil de todas as artes; pois sabe- pouco importa, eles o façam para o
mos muito bem que em toda a Grécia bem do corpo, melhorando seu estado, c
A ilegalidade ideal.
A força impondo o bem
coisas humanas, não admite em nenhu- mas que prescrevem, ao dirigir essas
ma arte, e em assunto algum, um abso- competições, os treinadores que as
luto que valha para todos os casos e conduzem de acordo com regras cientí-
para todos os tempos. Creio que esta- ficas.
mos de acordo sobre esse ponto. SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM - Que máximas?
- Sem dúvida. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - A eles, não parece necessário
- Ora, em suma, é precisamente considerar os pormenores dos casos
este absoluto que a lei procura, seme- individuais, formulando, para cada
lhante a um homem obstinado e igno- pessoa, prescrições especiais; ao con-
rante que não permite que ninguém trário, acreditam que é necessário ver
faça alguma coisa contra sua ordem, e as coisas de um modo geral, estabele-
não admite pergunta alguma, mesmo cendo, para a maioria dos casos e das e
em presença de uma situação nova que pessoas, preceitos que sejam úteis para
as suas próprias prescrições não ha- o corpo em geral.
viam previsto, e para a qual este ou SÓCRATES, O JOVEM
aquele caso seria melhor. - Muito bem!
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
- É verdade: a lei age sobre cada - Essa é a razão por que, na reali-
um de nós, exatamente como acabas dade, impõem a um grupo de pessoas
de dizer. as mes.mas fadigas, iniciando e paran-
ESTRANGEIRO do ao mesmo tempo a corrida, a luta
- E não é, porventura, impossível, ou qualquer outro exercício corporal.
ao que permanece sempre absoluto, SÓCRATES, O JOVEM
adaptar-se ao que nunca é absoluto? - Éverdade.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
- Assim parece. - Acontece o mesmo com o legis-
ESTRANGEIRO lador: tendo que prescrever a suas ove-
- Por que, pois, é necessário fazer lhas, obrigações de justiça e contratos
d as leis se elas não são a regra perfeita? recíprocos, jamais seria capaz, pro- 295 •
to de dizer tudo, menos que foi objeto longe de escrever um código, mas
de manobras perniciosas e ineptas por tendo sempre sua atenção voltada para
parte de médicos que as impuseram? o bem do navio e seus marinheiros,
SÓCRATES, O JOVEM estabelece a sua ciência como lei e
- Dizes a pura verdade. salva tudo o que com ele navega, assim
ESTRANGEIRO também, de igual modo, os chefes
- Ora, como chamaríamos àquele capazes de praticar esse método reali-
que peca contra a arte política? Não o zarão a constituição verdadeira, fazen-
qualificaríamos de odioso, mau e injus- do de sua arte uma força mais pode-
to? rosa do que as leis. E não será verdade
SÓCRATES,OJOVEM que os chefes sensatos podem fazer
- Exatamente. tudo, . sem risco de erro, desde que
ESTRANGEIRO observem esta única e grande regra:
- Se se quiser censurar a violência distribuir em todas as ocasiões, entre
dos que foram obrigados a transgredir todos os cidadãos, uma justiça perfei-
a lei escrita ou costumeira para agir de ta, penetrada de razão e ciência, conse-
um modo mais justo, útil e belo, guindo não somente preservá-la, mas
evitando-se a censura ridícula, não se também, na medida do possível, tor-
excluirá, de todas as afrontas possíveis ná-la melhor?
254 PLATÃO
A legalidade necessária:
os dois perigos
a uma SÓ, que é necessário pedir esta pela morte ou pelos maiores suplícios
única constituição verdadeira; e as aquele que ousar fazê-lo. Este é um
demais, finalmente, devem ser conside- segundo recurso que constitui um prin-
radas imitações que, como dissemos cípio mais justo e mais belo do que o
há pouco, reproduzem algumas vezes primeiro, que mencionamos há pouco.
os belos traços da verdadeira constitui- Resta-nos explicar como se chegou ao
ção e outras vezes a desfiguram igno- que chamamos segundo recurso. Con-
miniosamente. cordas?
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
- Não sei o que pretendes dizer - Perfeitamente.
com isso, pois nada compreendi ESTRANGEIRO
mesmo a respeito dessas "imitações" - Voltemos, pois, às imagens in-
de que falamos há pouco. dispensáveis ao nosso propósito de
ESTRANGEIRO descrever os chefes de predicados
- Seria pernicioso suscitar seme- reais.
lhantes discussões para rejeitá-las em SÓCRATES, O JOVEM
seguida, em lugar de prosseguir mos- - Que imagens?
d trando qual o erro que se comete ESTRANGEIRO
agora, a esse respeito. - A do verdadeiro piloto e a do
SÓCRATES, O JOVEM médico que vale por outras. Conside-
- Que erro? remos a hipótese que vamos imaginar,
ESTRANGEIRO a esse respeito.
- Eis, pelo menos, o que nos é SÓCRATES, O JOVEM
necessário procurar, embora não nos - Que hipótese?
POLÍTICO 255
As constituições imperfeitas
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Esses códigos não seriam, pois, - Anteriormente, entretanto, con-
em cada domínio, imitações da verda- cordamos em que a massa jamais seria
de executadas o mais perfeitamente capaz de assimilar arte alguma.
possível, sob a inspiração daqueles que SÓCRATES, O JOVEM
sabem? - Continuamos de acordo.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
- Sem dúvida. - Se existe pois uma arte real, a
ESTRANGEIRO massa dos ricos ou do povo jamais se
- Entretanto, se bem nos lembra- apropriará dessa ciência política.
mos, havíamos dito que o homem SÓCRATES, O JOVEM
competente, o verdadeiro político, ins- - Não seria possível.
pirar-se-â na maioria dos casos unica-
ESTRANGEIRO
mente em sua arte e não se preocupará, - É necessário pois que tais simu-
de modo algum, com a lei escrita se lhe lacros de constituições, para imitar o
parecer que um novo modo de agir mais perfeitamente possível esta cons-
d valerá mais, na prática, do que as pres- tituição verdadeira - o governo do 30/.
crições redigidas por ele e promul- único competente -procurem, uma vez
gadas para o tempo de sua ausência. estabelecidas suas leis, jamais fazer
SÓCRATES, O JOVEM algo contra as leis escritas e os cos
- Foi, realmente, o que dissemos. tumes nacionais.
ESTRANGEIRO
- Quando o primeiro indivíduo ou SÓCRATES, O JOVEM
- Disseste bem.
a primeira massa, possuindo leis, resol-
vem agir contrariamente a elas, acredi- ESTRANGEIRO
tando assim agir melhor, não proce- - Quando pois são os ricos que
dem, dentro de seu alcance, da mesma realizam esta imitação, a constituição
forma como o político verdadeiro? se chama uma aristocracia; mas se não
observam as leis, será uma oligarquia.
SÓCRATES, O JOVEM
- Perfeitamente. SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO
- Provavelmente.
- Agindo, por ignorância, ao pro- ESTRANGEIRO
curar imitar a verdade, eles a imitarão - Se, porém, governa um chefe
erradamente. Mas se agirem com com- único, de acordo com as leis, imitando
e petência, em lugar de uma imitação, o chefe competente, chamamo-lo rei, -b
não teremos a própria realidade em sem servir-nos de nomes diferentes
toda a sua verdade? para os casos em que esse monarca,
SÓCRATES, O JOVEM respeitador das leis, seja guiado pela
- Perfeitamente. ciência ou pela opinião.
258 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
- Entre a ciência que decide se é - Mas que pensar desta outra
necessário ou não aprender e aquela faculdade?
que ensina, declaras, pois, que é à pri- SÓCRATES, O JOVEM
meira que nós devemos dar a primazia. - Qual?
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
- Certamente. - A de saber como fazer guerra
ESTRANGEIRO
àqueles a quem decidimos fazê-la:
- Dá-se o mesmo entre aquela que diríamos que a guerra depende de uma
decide da necessidade ou não de per- arte ou que esta arte lhe é estranha?
suadir e aquela que sabe persuadir? SÓCRATES, O JOVEM
262 PLATÃO
Como poderíamos considerá-la desses atos, e aí revelando aquilo que é
estranha à arte quando ela é a causa da próprio da virtude judiciária, que nem
estratégia e de toda operação bélica? presentes nem temores, piedades, ódios
ESTRANGEIRO
ou amores de espécie alguma poderão
- Mas a arte que sabe e pode deci- levar a violar voluntariamente o que
dir se é necessário fazer a guerra ou foi estabelecido pelo legislador nas
viver em paz é a mesma ou é neces- decisões que devem fazer entre as quei-
sário distingui-la? xas opostas dos querelantes?
SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM
- Distingui-la-emos, necessaria- - Não, sua força não se estende além
mente, para sermos conseqüentes co- do que dizes.
nosco mesmos. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Vemos, assim, que os juízes não
305 a -Afirmaremos, pois, que ela diri- se elevam à força real: são apenas
ge a outra, se quisermos permanecer guardiães das leis e subordinados a
fiéis às nossas afirmativas preceden- essa força.
tes? SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM - Aparentemente.
- É minha opinião. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - O que nos resta verificar, após
- Entretanto, considerando a sa- havermos assim examinado todas as
bedoria e a vastidão da arte bélica e ciências, é que nenhuma delas nos apa-
seu conjunto, que outra ciência pode- rece como a ciência política. A verda- d
ríamos dizer sua soberana, a não ser a deira ciência real não possui, com efei-
verdadeira ciência real? to, obrigações práticas: dirige, ao
SÓCRATES, O JOVEM contrário, aquelas que existem para
- Nenhuma outra. realizar essas obrigações, pois sabe
ESTRANGEIRO que ocasiões são favoráveis ou não
- Não colocaríamos, pois, no mesmo para iniciar ou levar adiante os gran-
plano que a política, uma ciência que a des empreendimentos e as demais ape-
ela é apenas subordinada, a ciência dos nas executarão suas ordens.
generais? SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM - Tens razão.
- Claro que não. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Assim, as ciências que acaba-
- Adiante examinaremos, tam- mos de passar em revista, se bem que
bém, a força que possuem os juízes nenhuma delas seja senhora de si
quando julgam corretamente. mesma nem das demais, possuem,
SÓCRATES, O JOVEM entretanto, cada uma delas, seu gênero
- Muito bem. de atividade que lhe dá, justamente,
ESTRANGEIRO seu nome particular.
- Estende-se ela além das decisões SÓCRATES, O JOVEM
em matéria de contratos, decisões - Aparentemente, pelo menos.
baseadas em artigos de leis que ele re- ESTRANGEIRO
cebe prontos das mãos do rei legisla- - Mas àquela que dirige a todas,
dor, julgando da justiça ou injustiça que tem o cuidado das leis e dos assun-
POLÍTICO 263
mentos úteis e bons e, quer sejam estes pelo ímpeto de natureza má, ao ateís-
semelhantes ou dessemelhantes, fundi- mo, à imoderação e à injustiça, deles
los todos numa obra que seja perfeita- se livrando a ciência real, por senten-
mente una por suas propriedades e ças de morte ou exílio e por penas as
estrutura. mais infamantes.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
- Claro! - Essa é, pelo menos, a doutrina
ESTRANGEIRO usual.
- Nossa política, a política verda- ESTRANGEIRO
deiramente conforme à natureza, ja- - Aqueles que permanecem na
mais consentiria em constituir uma ci- ignorância e abjeção, ela submeterá ao
dade formada de bons e maus. Ao jugo da escravidão.
contrário, começaria, evidentemente,
SÓCRATES, O JOVEM
por submetê-los à prova do jogo, e, ter- - Muito bem.
minada essa prova, confiá-los-ia a edu-
cadores competentes e habilitados para ESTRANGEIRO
esse serviço. Reservaria, entretanto, a - Quanto aos demais, suficiente-
si o governo e a direção, assim como mente bem nascidos para que uma boa b
faz o tecedor com relação aos cardado- formação possa levá-los às virtudes
res e a todos os demais auxiliares que generosas e para que um método hábil
preparam os materiais que ele urdirá, possa amalgamá-los uns aos outros, se
mantendo-se constantemente junto se inclinarem mais para a energia, pela
e deles para governar e dirigir todos os rigidez de seu caráter, a ciência real
seus movimentos, e determinando a marcará o seu lugar na urdidura; os
cada um as obrigações que julga neces- outros que se inclinam mais para a
sárias ao seu próprio trabalho de moderação constituem, para essa
tecedura. mesma ciência, e prosseguindo em
nossa comparação, o tecido flexível e
SÓCRATES, O JOVEM
- Perfeitamente. brando da trama. Sendo opostas suas
tendências, a política se esforça por
ESTRANGEIRO
- Ora, assim também, ao que me uni-los e entrelaçá-los da seguinte
parece, fará a ciência real com relação maneira.
a todos aqueles que, sob a égide das SÓCRATES, O JOVEM
leis, ministram a instrução e a educa- - Que maneira?
ção: reservará a si a autoridade direti- ESTRANGEIRO
va, não permitindo treinamento algum - Reúne, em primeiro lugar, se-
que não tenda a facilitar sua própria gundo as afinidades, a parte eterna de
POLÍTICO 267
sua alma com um fio divino, e em vida em cidade, ao passo que, privado
seguida, depois dessa parte divina, une das luzes que apontamos, atrairia a si,
a parte animal com fios humanos. com justiça, a humilhante fama de
SÓCRATES, O JOVEM tolo?
- Que queres novamente dizer? SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO - Perfeitamente.
- Se uma opinião realmente ver- ESTRANGEIRO
dadeira e firme se estabelece nas - Não será necessário afirmar,
almas, a propósito do belo, do bom, do agora, que este laço jamais unirá de
justo e de seus opostos, digo que algo maneira durável, nem os maus, entre
divino se realizou numa raça demonía- si, nem os maus com os bons, e que
ca. ciência alguma jamais pensará seria-
SOCRATES, O JOVEM mente em servir-se de pessoas desta
- Isto, seguramente, convém dizer. espécie?
ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
- Ora, não sabemos que somente Como pretendê-lo, com efeito?
o político e o sábio legislador têm esse ESTRANGEIRO 310 a