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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Lucas Di Vaio Souza e Silva Valente


180042564

BREVE ANÁLISE DO SISTEMA JURÍDICA SEGUNDO O PARADIGMA


KELSEN-LUHMANNIANO
Um olhar sistêmico e normativista sobre os Direito

Brasília

2020
1. Resumo
Este trabalho tem como objetivo ilustrar brevemente um esboço do que se poderia
chamar de uma teoria geral do Direito, em razão de a investigação a ser feita aqui buscar
identificar as características que identificam um determinado ordenamento como sendo, de
fato, jurídico; isto é, observar-se-á o que há de comum entre todos os ordenamentos jurídicos
com o fim de podermos descrever, de forma geral e abstrata, ainda que resumida, o que torna
o Direito aquilo que ele é e não um outro conjunto de diferenças. Para tanto, recorrer-se-á à
abordagem sistêmica de Niklas Luhmann, por meio da qual será definido o marco teórico
central deste artigo: o Direito como sistema da sociedade. A discussão prosseguirá pela teoria
normativista de Hans Kelsen, que contribui sobretudo com sua “dinâmica jurídica” para a
elucidação de muitos dos aspectos específicos do funcionamento do sistema jurídico, em
especial dos ordenamentos positivos. Enfim, resgataremos aqui o pensamento de célebres
eruditos do passado, que influenciaram tanto suas épocas, quanto as épocas que se lhes
sucederam e faremos breve abordagem do tema da justiça na discussão jurídica, pois, ao que
parece, historicamente este tópico dela não se desvincula.

Ademais, a presente análise almeja demonstrar como as diversas escolas e tipos de


pensamento jurídicos (positivismo, naturalismo e realismo, sobretudo) integram-se a essa
teoria geral – isto é, analisar-se-á a contribuição de cada um desses paradigmas para a análise
da ipseidade do Direito. Isso não significa dizer que o que se pretende demonstrar aqui é o
Direito como grande colcha de retalhos teórica, mas sim que indagações feitas pelo
naturalismo, por exemplo, não foram satisfatoriamente respondidas pelos positivistas
clássicos e tampouco que as soluções apresentadas por estes a todas os questionamentos
jurídicos encontram-se isentas de lacunas.

2. Introdução
O Direito, ao longo da experiência histórica humana, apresenta-se com as mais variadas
feições, à medida que transitamos pelas diversas sociedades e pelo tempo. Vários foram os
empreendimentos que se propuseram a estuda-lo, a explica-lo e a analisa-lo enquanto tal, a
partir de uma observação de seu funcionamento em relação aos demais desdobramentos do
convívio social. Todavia, poucos destes esforços chegaram a contemplar aquilo que definimos
como a ipseidade do Direito, isto é, a coisidade deste sistema social. Este é, precisamente, o
atributo que faz do Direito o que ele é: Direito; diferenciando-o da economia, da moral, da
religião, da política.
Nesse sentido, afirma-se aqui que as principais escolas e modelos de pensamento
jurídico, como o positivismo e o naturalismo, não obstante tenham chegado a certos aspectos
inerentes ao Direito, não chegaram a um resultado plenamente satisfatório, uma vez que
ignoraram ou combateram muitas características fundamentais e inerentes à prática jurídica
como um todo. Analisando a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann e acoplando a ela os
esforços normativistas de Hans Kelsen, é possível chegar a uma visão satisfatória daquilo que
realmente é o Direito: um sistema autopoiético fechado. Vendo-o dessa maneira, é possível
compreender a realidade deste sistema e as formas como interage com os demais sistemas
existentes, configurando a realidade complexa em que nos encontramos. Ademais, a visão em
questão possibilita um olhar sobre outras correntes de pensamento, permitindo a compreensão
e a distinção de seus “erros” e “acertos”.

3. Desenvolvimento
3.1. Apresentando os sistemas luhmannianos
A seguir, apresentar-se-á em linhas gerais o que são os sistemas tal como os entende
Luhmann, a fim de enquadrar nossa apresentação do Direito nos moldes por ele estabelecidos
e disso extrair certas implicações. Um sistema, como define Luhmann1 é tautologicamente a
diferença entre sistema e entre o ambiente que o rodeia. Em outros termos, há um sistema e há
aquilo que não é um sistema e o ambiente é precisamente aquilo que não é sistema e sistema é
precisamente aquilo que não é ambiente. Este raciocínio tautológico funda o sistema e ele
advém de uma simples observação que se faz sobre a realidade: algo é o que é e não é o que
não é ( [A = A] => ~[A = ~A] ).
A tautologia acima é melhor ilustrada pelo raciocínio de G. S. Brown, que ilustra o que
é sistema a partir de sua máxima draw a distinction, que consiste, basicamente, em formar dois
lados em uma folha de papel com um único espaço: o que estiver de um lado do papel pertence
ao sistema e o que estiver do outro lado do papel não pertence. É o mesmo raciocínio encontrado
no mito fundacional de Roma: Rêmulo e Rômulo traçaram uma fronteira e disseram que de um
lado teriam seu território e que do outro seria território estrangeiro. Pode-se, portanto,
caracterizar o sistema como uma forma de dois lados (sistema/ambiente), sendo precisamente
este binômio aquilo que chamaremos de código operacional do sistema. A título de exemplo, o
código do Direito é legal/ilegal – o sistema jurídico existe dentro deste limite, fora dele não há
Direito enquanto sistema.

1
LUHMANN, 2016.
Nesse sentido, uma forma simples de definir sistema é observando-o a partir de suas
diferenças em relação ao ambiente que o circunda, formado também por outros sistemas.
Sistemas sem diferenças entre si são o mesmo sistema, sistemas sem diferenças com o ambiente
são o ambiente. O sistema jurídico, de que ora tratamos, não se confunde com outros sistemas
normativos, nos dias de hoje, como a moral em razão de, à diferença deste, possuir um aparato
coercitivo próprio e uma autoridade legiferante, por meio da qual, e somente dela, são emitidas
normas válidas como jurídicas.
De forma geral, um sistema é este conjunto de diferenças próprias, diferentes das demais
diferenças existes, por mais redundante que este enunciado soe. Dentre os vários tipos de
sistema, apresentar-se-ão agora os fechados, em razão de o Direito se enquadrar, nos dias de
hoje, nesta classificação. Um sistema fechado possui três características principais –
autorreferência, recursividade e circularidade – decorrentes de seu fechamento operativo e de
sua autopoiese. Estes dois últimos conceitos dizem respeito ao fato de o sistema reproduzir, de
forma operativamente independente, suas próprias diferenças.
A reprodução autopoiética é um conceito tomado emprestado da Biologia2 e utilizado
por ela para descrever a reprodução celular, que ocorre a partir de mecanismos próprios e de
forma operacionalmente independente, isto é, uma célula se reproduz conforme os ditames de
seu material genético e segundo os processos iniciados a partir dele (produção de RNA, envio
de RNAm para mitocôndrias, produção de proteínas, metilação de certos trechos do DNA para
recombinar as unidades produtoras de proteína, entre outros procedimentos). Cumpre notar que
a célula depende de certos materiais para se reproduzir e para, inclusive, permanecer viva, como
certos sais minerais, determinada quantidade de água, uma concentração específica de
substâncias variadas e assim por diante; o que, todavia, não influencia na forma como a célula
se reproduzirá: ela opera segundo seu DNA, fazendo uso dos elementos listados acima.
Ilustramos, portanto, nossa ideia de independência operacional e a diferenciamos de
independência causal (ora, para que uma máquina tire uma foto, é necessário que se clique no
botão, mas feito este clique a foto será tirada da maneira que a câmera “quiser”, isto é, pela
lente e não pelo revestimento de plástico, pois este é o procedimento de operação da câmera3).
A independência operacional é o que caracterizamos como autopoiese do sistema. O
fechamento operativo giram em torno desta noção: além de definir que o sistema possui
processos próprios para sua reprodução, afirma-se que os sistemas operativamente fechados “se

2
LUHMANN, 2016
3
Ibid.
fiam em própria rede de operações para a produção de suas próprias operações e, nesse sentido,
reproduzem-se”4. É possível notar, então, que o fechamento operativo é a condição para a
autopoiese e para a distinção do sistema em sistema fechado. A partir do processo ora em
questão é que surgem as características suprareferidas (autorreferências, recursividade e
circularidade).
Partamos para a explicação destes conceitos: autorreferência é basicamente a distinção
entre o que sistema é e o que o sistema não (é a própria distinção entre sistema e não-sistema).
Tomando como exemplo o Direito, vejamos como ele faz este processo de autorreferência:
suponhamos um homem de calças verdes que matou uma mulher de calça laranja, após ser por
ela traído, o que lhe deixou especialmente enraivecido – o que seria jurídico (ao menos em se
tratando do direito brasileiro) nesta situação, isto é, o que seria filtrado pelo código lícito/ilícito?
Ora, teríamos, da descrição apresentada, apenas o seguinte: um homem sob violenta emoção
cometeu um homicídio, após ser traído pela vítima. A razão de tanto é que, conforme as normas
do Direito pátrio, um homicídio, mesmo cometido sob violenta emoção, é crime5. Em outras
palavras, o sistema sempre filtra do substrato fático apresentado pela sociedade aquilo que se
enquadra dentro código que o funda, que o diferencia de outros sistemas.
Esta seleção de fatos nos remete à circularidade, que é a troca de informações entre
ambiente e sistema, a qual consiste basicamente em o sistema poder comunicar algo ao
ambiente e receber comunicações dele de volta, apreendidas e compreendidas segundo as
operações e segundo o correlato do próprio sistema. No caso acima, o Direito tem a capacidade
de olhar para um evento da sociedade, mas a informação gerada em seu interior é feita segundo
seu correlato fundador. A circularidade, portanto, está intimamente associada à recursividade,
que consiste em o sistema operacionalmente fechado utilizar ferramentas disponíveis no próprio
sistema para efetuar suas próprias operações e segundo seus próprios critérios operacionais. Por
exemplo, o Direito e a religião aplicam sanções, mas o primeiro o faz por meio do devido
processo legal ou administrativo, ao passo que o segundo, tomando o judaísmo antigo por
exemplo, utiliza a forma que Moisés utilizava, isto é, o próprio líder local julga e pune. Nesse
sentido, o Direito tem uma operação própria (punição) e forma específica de operar esta
operação (o processo). Utilizando um sistema social que não é normativo como exemplo,
peguemos a ciência: a ciência apreende fatos da realidade, como o homicídio relatado acima,
mas não no sentido de gerar imputações, mas sim no sentido de fazer sobre ele juízos de fato,

4
Ibid. p. 59.
5
CP, 121, §1º.
como a gravidade do ferimento letal, o estado psíquico do assassino, e ela o faz seguindo o
processo do método científico, que busca a comprovação de hipóteses estabelecidas a partir da
experimentação e da verificação empírica. Não é difícil notar, então, que a recursividade é
fundamental para que o sistema realize a autorreferência, uma vez que, não o fazendo, não seria
capaz de perpetuar sua diferença fundante, isto é, seu código (basta imaginar o Direito
trabalhando sem imputações, somente com descrições, tal como a ciência o faz).
Nesse sentido, tem-se que as operações que um sistema realiza são discriminatórias, no
sentido de sempre diferenciarem o que é sistema e o que não é sistema, ao passo que tais
operações são elas próprias produtos da diferença sistema-ambiente, isto é, ao passo que elas
próprias são diferenças do sistema em relação ao ambiente. A circularidade do sistema, isto é,
sua interação e sua observação do ambiente é uma operação constante de discriminação, uma
vez que um observador só é capaz de observar na medida em que se distingue de seu objeto de
observação, i.e., na medida em que ele não se confunde com aquilo que observa. Daí que o
autor diz que “os conceitos de observação e autorreferência implicam-se mutuamente6.
Os sistemas dependem de seu fechamento operativo para existirem enquanto tais, não
de suas estruturas. De fato, as estruturas do sistema são mais um produto de suas operações e
podem ser utilizadas e reutilizadas na autopoiese sistêmica. E.g., o que faz o Direito ser o que
é não é o tribunal ou o parlamento, mas com certeza estas são estruturas jurídicas, isto é,
estruturas do sistema jurídico. A diferença fundamental entre dois sistemas é seu fechamento
operativo diferente, ou seja, sua autopoiese própria.
Acima se falou de uma dependência causal do sistema relação ao ambiente – que, vale
ressaltar, é diferente de dependência operativa. No caso do Direito, a “sociedade [...] aparece

como ambiente do sistema legal”17. Nesse sentido se faz necessário compreender a operação
básica do sistema social, a qual compõe parte do Direito: as comunicações sociais. A
transmissão de informações entre diversos sistemas – que se dá por meio de significantes
(veículos que transmitem o significado) e que se completa com a preensão da informação – é o
que se considera aqui como comunicação. O elemento comunicativo está presente no processo
de circularidade, ou seja, na interação do sistema com o ambiente; mas também encontra-se no
processo de diferenciação sistêmica, na medida em que certas informações específicas passam
a ser reproduzidas por processos específicos. A informação nada mais é que a seleção de um
estado do sistema e um mesmo evento pode gerar informações diversas. A detonação de um
homem bomba pode transmitir informações diversas, uma vez que significa coisas diversas para

6
LUHMANN, 2016, p. 69.
sistemas diferentes. Para o sistema religioso do islamismo (para os setores radicais), tal atentado
é visto como um gesto glorioso e de fé. Para o sistema das religiões cristãs, tal evento é tido
como algo terrorífico e abominável. Já para a medicina (área do sistema das ciências exatas, na
medida em que é a aplicação do conhecimento desse sistema), o que interessa é o tipo de dano
infligido às pessoas e os meios para repará-lo. Em suma, um evento transmite várias
informações, as quais dependem do sistema para serem caracterizadas enquanto tal, uma vez
que o evento em si é o que é e não necessariamente significa algo7.
Um sistema não é uma unidade perfeita, capaz de lidar com todas as adversidades
valendo-se de suas operações e de seus correlatos próprios. Ele não é invencível, imperecível.
As informações são operadas por cada sistema de acordo com suas estruturas próprias, as quais
nem sempre conseguem responder aso estímulos dos eventos ocorridos, tal como um animal
que não consegue suportar um aumento de temperatura muito alto ou muito súbito, ou como
celular, que não consegue operar se receber como estímulo uma queda, ou ainda como um
sistema político, após uma revolução.
Por fim, por mais que suas operações sejam fechadas em si próprias, o sistema não é
isolado do ambiente ao seu redor. A circularidade possibilita a troca e apreensão de informações
vindas do exterior do sistema, bem como possibilita o acoplamento de sistemas. Tomemos o
caso de acoplamentos do Direito e da Economia, como um contrato de fusão de empresas:
ambos sistemas estarão processando estes eventos segundo suas operações próprias, sem com
isso se fundirem um ao outro.

3.2. O Direito segundo Kelsen


Em sua Teoria Pura do Direito, especificamente no capítulo que trata da Dinâmica
Jurídica8, Hans Kelsen investiga o que caracteriza o Direito enquanto tal, à diferença de outros
sistemas normativos, e o que uma ciência do Direito deveria tomar como alvo de suas pesquisas.
Para este autor, o ordenamento jurídico é um sistema escalonado de normas que se inserem em
um silogismo normativo9 (cadeia de validade e eficácia) que se estende desde uma norma dita
fundamental até à norma proferida judicialmente. Nesse sentido, para que uma norma seja tida
como jurídica, segundo este pensamento, ela tem de necessariamente estar contida nos
raciocínios acima relatados e explicar-se-á o porquê.

7
Ibid.
8
KELSEN, 2003.
9
Ibid., p. 237.
Por que uma norma da Igreja e uma norma do Direito brasileira não são ambas jurídicas?
Por que somente a última possui tal caráter e, portanto, as implicações jurídicas que só normas
de Direito possuem? Por que um acordo de cavalheiros ou as ordens de um pai a seu filho não
são igualmente jurídicas à ordem de uma autoridade judiciária, como um juiz ou um
desembargador? Em virtude de que operação o sistema do Direito diz o que é e o que não é
parte dele? Ora, Luhmann nos diz acima que o pertencimento a um sistema se dá a partir da
existência de uma diferença em relação ao ambiente, que no caso em questão é o código
lícito/ilícito. Chegamos, pois, à resposta: as autoridades e normas observadas acima não são
jurídicas por não tomarem parte nesse código.
Para que qualquer norma seja válida em um ordenamento jurídico, ela tem de estar em
conformidade com a norma fundamental10. Esta norma não possui um conteúdo objetivo que
determina as demais normas constantes no ordenamento jurídico, mas somente detém um
comando, qual seja “obedeça à autoridade legiferante”. É uma regra que “determina como
devem ser criadas as normas gerais e individuais de um ordenamento fundado sobre esta
norma fundamental11”. A norma fundamental, nessa sorte, limita-se a delegar autoridade a
alguém ou a algum corpo de pessoas ou ainda a algum documento. Tal norma é pressuposta
globalmente, de sorte que sua eficácia global é o que determina a eficácia global do
ordenamento jurídico.
Em um exemplo dado pelo próprio Kelsen, conseguimos compreender melhor seu
conceito de norma fundamental12: um pai ordena a seu filho que vá à escola, ao que este
pergunta por que deve ir à escola, obtendo como resposta do pai “porque eu estou mandando e
você, como filho, deve obedecer a mim, como pai”. O filho, então, questiona: por que devemos
obedecer aos pais? E obtém como resposta que o Senhor ordenou que obedecêssemos aos
nossos pais, ao que o filho nada mais pergunta. A satisfação obtida nesta resposta, à diferença
da obtida pela primeira, é fundada na pressuposição de que devemos obedecer ao Senhor. Um
ateu, que não pressupõe esta obediência, não se daria por satisfeito com a resposta de seu pai.
Tomando por exemplo a derrocada do Império Brasileiro, vemos que as autoridades do
momento não pressupunham mais a autoridade legiferante do imperador Dom Pedro II e de seu
corpo legislativo. Não vendo mais autoridade em seus mandos, mas sim em um outro modelo,
o republicano, depuseram o saudoso monarca e fundaram um ordenamento jurídico sobre uma
nova norma fundamental, que conferia autoridade à Constituição de 1891.

10
Ibid., pp. 218-221.
11
Ibid., p. 219.
12
Kelsen, 2003, p. 219.
Nesse sentido, fica claro que para Kelsen as normas jurídicas não valem por terem um
determinado conteúdo13, mas por estar em conformidade com a norma fundamental do Direito.
Nesse sentido, são normas jurídicas aquelas que são feitas conformes um ato especial de criação
e não conforme seu conteúdo específico. Em outras palavras, o Direito, na qualidade de sistema,
admite qualquer conteúdo como jurídico; qualquer conduta humana pode ser alvo de uma
norma. Não é, portanto, nesta visão, a moralidade que determina a constituição do Direito, isto
é, não é o sistema (ou os diversos sistemas) da moral que determinam extrajuridicamente o que
é jurídico. Tampouco é a justiça que faz tal determinação, mas sim o próprio Direito, por meio
dos mecanismos supracitados.
É possível, então, responder às perguntas feitas acima: por que uma norma da Igreja e
outra do direito brasileiro não são simultaneamente jurídicas? Ora, hoje elas não o são em face
de a Constituição brasileira, atual autoridade legiferante, ordenar um Estado Laico e em razão
de, em última análise, haver a pressuposição global de validade, bem como eficácia igualmente
global, da norma fundamental “obedeça à constituição de 1988”. Já durante o Reinado de
Portugal, a Igreja podia emitir normas jurídicas, pois o Direito assim permitia. Da mesma
natureza é a resposta para os demais questionamentos: o Direito pátrio não coloca sob as ordens
paternas um vínculo jurídico aos filhos, tampouco abarca o acordo de cavalheiros no Direito
dos Contratos ou em qualquer outro tipo de caracterização jurídica..
Resta, por fim, Resta por fim definir mais um aspecto da norma fundamental kelseniana
e de sua teoria da fundamentação do Direito nela: a norma fundamental estabelece aquilo que
será o correlato do Direito, isto é, a forma pela qual o Direito interpretará os eventos e as
irritações vindos da sociedade e do mundo (como uma batida de carro e um deslizamento de
terra sobre uma rodovia). Todavia, a teoria de Kelsen não é correlacionista, uma vez que uma
norma fundamental não é redutível à outra e que o autor não generaliza uma mesma norma
fundamental a todos os ordenamentos jurídicos existentes. Em outras palavras, diferentemente
do que os realistas tentaram fazer com a experiência do common law (ao enfatizarem
demasiadamente os juízes e seus papéis no Direito) e que os positivistas tentaram fazer com o
a autoridade estatal (reduzindo toda a experiência jurídica a relações com o Estado e colocando-
o como única fonte de Direito do ordenamento, ou pelo menos como sendo a fonte mais
relevante), Kelsen constata um fenômeno puramente social: em um dado lugar, a autoridade
legislativa está nas mãos de uma dada pessoa, ao passo que em outro lugar, tal autoridade está
nas mãos de dada instituição – e assim por diante. Ele reconhece que as fontes de Direito estão

13
KELSEN, 2003, p. 221.
associadas a uma pressuposição de validade dos comandos de certas autoridades e de
obediência a certos costumes, tão somente isso. Ele não define uma estrutura específica, da qual
a compreensão do Direito se faria dependente. Tal consideração é compartilhada pelo Realismo
Complexo, isto é, uma contingência com ordem é vista na norma fundamental kelseniana.
O que se tratou acima foi a questão da validade das normas jurídicas, mas não a questão
da eficácia destas. Ora, definimos que um ordenamento jurídico se mantém de pé quando sua
norma fundamental tem eficácia global, mas não chegamos a tratar de o que seria e como se
daria esta eficácia, bem como a eficácia de outras normas. Como se pôde perceber acima, uma
norma fundamental ineficaz não mantém um ordenamento sendo jurídico, ou seja, as normas
de um ordenamento só “valem se esta ordem jurídica é eficaz, que dizer, enquanto esta ordem
jurídica é eficaz”64. Nesse sentido, há, para o funcionamento normal de uma ordem de Direito,
a necessidade de uma eficácia global da norma fundamental. Desse modo é que e.g. uma
constituição antiga (como a de 1891) não vale hoje, bem como as normas nela fundamentadas
(na medida em que ainda se fundamentam nela).
Cumpre, porém, estabelecer a diferenciação de eficácia global e eficácia total. É
inconcebível um ordenamento em que literalmente todos os membros da comunidade obedeçam
às leis e demais normas jurídicas. Nesse sentido, diz-se que as normas não são completamente
eficazes. Tal fato, por sua vez, não é suficiente para anular um ordenamento inteiro, i.e., não
corresponde à ineficácia local de uma norma a ineficácia global do ordenamento, embora o
inverso, por evidente, seja verdadeiro14. É em virtude disso que, por exemplo, o
descumprimento de normas de trânsito não gera um colapso do Direito pátrio.

3.3. Direito e Justiça


Aproveitando as observações de Luhmann e Kelsen sobre o Direito, é oportuno realizar
breve apresentação de como ambos os pensadores tratam do tema justiça e Direito. Ora,
segundo estes autores, as normas morais de justiça não podem configurar uma determinação
para o direito que surja de fora dele, isto é, não se pode entender a justiça no direito como uma
invasão do ambiente no sistema, mas como uma operação particular e própria do sistema
jurídico.

14
Os códigos que subsistem na troca de ordenamentos jurídicos, como o antigo código civil, que datava de
1973, não se tornam ineficazes localmente com a derrocada de seus ordenamentos em face de a nova norma
fundamental e suas autoridades legiferantes assimilares tais diplomas normativas; ocorre, portanto, uma
espécie de validação pelo sistema daquilo que, originalmente, não lhe pertencia, ou melhor, que não foi por ele
fabricado.
Segundo Kelsen, a ciência do Direito pode, em uma abordagem sociológica, estudar
aquilo que, no presente e no passado, foi tido como justo ou injusto, que foi designado justiça
e, partindo disso, buscar a obtenção de um conceito geral de justiça, o qual
“será [...] o conceito de um norma essencialmente geral que, sob
determinados pressupostos, prescreve um determinado tratamento dos homens sem
afirmar algo sobre a natureza e o modo deste tratamento – pelo que, neste aspecto,
se revela completamente vazia de conteúdo”15.
Para entender o que o autor quer dizer com o excerto em questão, temos de analisar o
que ele chama de normas de justiça do tipo metafísico e normas de justiça racionais, as quais
ele adota. As primeiras são normas que se apresentam, pela sua própria natureza, como
procedentes de uma instância transcendente, existente para além do conhecimento humano
experimental, isto é, são normas fundadas em ou postas por um todo absoluto e independente
do ser humano, bem como por ele incompreensível. Tais normas são metafísicas quanto à
proveniência e quanto ao conteúdo e dependem não da indústria do intelecto, mas sim da
aceitação da justiça que elas constituem. “O ideal desta justiça é, como a instância da qual ele
provém, absoluto: de conformidade com o seu próprio sentido imanente, exclui a possibilidade
de qualquer outro ideal de justiça”16. No Cristianismo, portanto, não se pode questionar se Deus
é ou não justo, mas somente aceitar; assim como não se pode questionar se seguir seus
mandamentos é ou não justiça, por exemplo.
O segundo tipo, as normas ditas racionais, não dependem da crença ou da pressuposição
da existência de instâncias ou normas transcendentais, “pelo fato de poderem ser pensadas como
estatuídas por atos humanos postos no mundo da experiência e poderem ser entendidas pela
razão humana, isto é, ser concebidas racionalmente”17. Kelsen traz alguns exemplos de normas
racionais de justiça que aparecem com frequência ao longo da experiência jurídica humana: as
fórmula suum cuique (dar a cada um o que lhe pertence), a regra de ouro (não fazer aos outros
o que não se quer que seja feito a si), o imperativo categórico kantiano, o princípio retributivo,
a justiça aristotélica da mesotese, entre vários outros exemplos.
O problema de todos estes princípios e formulações é que eles são raciocínios
tautológicos, isto é, eles não saem de si próprios e não dizem nada para além deles mesmos, de
sorte que sempre têm de vir acompanhados. A descrição dada por Luhmann da justiça se
assemelha à de Kelsen. Ele faz um paralelo com aquilo que este autor chamou de justiça

15
KELSEN, 1998, p.16.
16
Ibid., p. 17.
17
Ibid., p. 17.
metafísica e diz que “no lugar das presunções sobre a natureza, entram suposições sobre a
autoespecificação da fórmula. Portanto, as fórmulas de contingência têm a forma de uma
conclusão circular”18, isto é, uma tautologia.
Ora, dar a cada um o que lhe cabe parece algo intuitivo, mas a isso se segue a pergunta
“o que cabe a cada um?”. Para Polemarco19, justo é dar aos amigos o bem e aos inimigos o mal,
já que o que se deve aos amigos é o bem e aos inimigos o mal (este raciocínio, inclusive, mescla-
se com o ideal de retribuição). Para outros, a posse de cada um pode variar. Um escravo
mereceria um tratamento pior que o de um jagunço, em tempos de Brasil colonial, e mulheres,
até pouco tempo atrás, não seriam merecedoras de respeito em razão do tipo de roupa que
utilizavam. Nessa sorte, dar a cada um o que lhe cabe nada mais seria do que tratar mal ao negro
escravizado e desrespeitar a mulher em razão das roupas que ela usa. Nesse sentido, percebe-
se uma discrepância entre a máxima em si do suum cuique e dos conteúdos que podem ser
utilizados para preenche-la. Raciocínio semelhante se aplica à mesotese: só se pode fazer o
balanço entre dois vícios, a fim de achar a virtude, se já se conhece o que é vício. Este, então,
não é conhecido pela mesotese, mas é um dado dentro de sua fórmula.
É nesse sentido que afirmamos acima, nas palavras de Kelsen, que as normas de justiça
racionais seriam desprovidas de um conteúdo prévio e que demandariam um conteúdo externo
a si para serem preenchidas. Nem mesmo o princípio da igualdade escapa a este raciocínio, pois
os iguais são definidos por conceitos externos ao princípio da igualdade e é fácil demonstrar
isso: ninguém é absolutamente igual, somos sistemas diferentes, temos elementos em nós que
diferem de elementos correspondentes funcionalmente dos demais por suas particularidades
próprias. Algumas pessoas são pretas, outras amarelas, outras brancas e outras vermelhas; entre
os pretos, existe uma miríade de etnias (inclusive conflitantes, como é o caso dos Tutsis e
Rundus de Ruanda), bem como entre os brancos (um italiano e um inglês são etnicamente
distintos entre si e distintos de um russo) e entre os demais agrupamentos humanos também
percebemos essa diversidade. Entre pessoas de um mesmo país, verifica-se diferença de
sotaque, de renda, de altura, de nível sociocultural, de expectativa de vida, de qualidade de vida,
entre outros. Mesmo entre gêmeos univitelinos as diferenças são patentes, como nas digitais e
nas personalidades. Então quem o que define o que é igualdade? Quais desigualdades são
desconsideradas para darmos sentido a este princípio? A seleção de desigualdades a serem
desconsideradas se dá por normas jurídicas.

18
LUHMANN, 2016, p. 293.
19
PLATÃO, p. 10, 322a.
Outro aspecto da igualdade é que ela é consequência lógica da generalidade da norma.
A igualdade perante a lei, afirma Kelsen20, difere da igualdade na lei. Em um Estado em que o
voto seja facultado a homens, mas não a mulheres, um juiz que permita a um homem, mas não
à sua esposa votar não viola o princípio da igualdade perante a lei, embora o tratamento seja
desigual entre os cônjuges. Haveria a dita violação caso o juiz permitisse a um homem o voto
a outro não. “Com efeito, a igualdade perante a lei não significa outra coisa que não a aplicação
legal, isto é, correta, da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter”21. A lógica por
trás deste raciocínio é a de que, preenchidos certos pressupostos na lei, deve-se observar certos
efeitos. No exemplo dado pelo autor, o pressuposto do voto é o sexo. Haveria desigualdade se
duas pessoas que preenchessem os mesmos pressupostos obtivessem resultados diversos, daí
que se deduz um funcionamento defeituoso, incorreto do sistema.

4. Conclusão
Acima pudemos observar aquelas que parecem as descrições mais fiéis à realidade do
sistema jurídico. Os estudos de Luhmann e Kelsen possibilitaram a desvinculação do estudo do
Direito de qualquer tipo de determinação que não fosse aquela própria do sistema jurídico.
Ambos pensadores tiraram o véu de psicologismo, subjetividade e de crença aplicados com
frequência ao estudo desta realidade social. O que não confere à sua descrição uma pretensão
de absoluta ou de imutável: pelo contrário, sua análise mantém-se fiel à verificação do substrato
fático do sistema jurídico, que está em constante mudança.
É interessante, inclusive, notar como suas teorias podem ser aplicadas sem nenhum
problema a ordenamentos jurídicos do passado. O próprio Kelsen o faz quando se refere à
fórmula de justiça empregada pelo antigo Aristóteles22 – denuncia ele que aquilo que se tinha
como absoluto, em verdade, se o pressupunha como tal. Nesse sentido, embora assumidamente
o mesotes tenha um caráter tautológico, as conclusões feitas por meio dele por Aristóteles foram
aquelas baseadas em ideais de justiça já fixados por diversos conceitos e normas éticas em vigor
na sociedade grega daquela época. Raciocínio semelhante aplica-se ao pensamento
plantonista23, tomista24 e contratualista25. Nesse sentido, a Teoria Pura kelseniana e a Teoria
dos Sistemas logrou sucesso ao descrever o esqueleto de todo direito humano: um sistema de

20
Ibid., p. 60.
21
Ibid.
22
KELSEN, 1998, pp. 29 a 31.
23
PLATÃO, A REPÚBLICA.
24
AQUINO, SUMMA TEOLÓGICA, Volume 2.
25
LOCKE, 1998.
normas jurídicas, fundado em um pressuposto global e transcendental de obediência a uma
norma ou autoridade legiferante. No que pese a determinações de conteúdo, pouco se teria a
dizer, uma vez que ele é contingente como a sociedade que lhe dá substrato e, portanto, pode
ser com frequência mudado (tal como o é de fato).
Referências Bibliográficas

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, volume 2. São Paulo: Loyola, 2009 (Tratado da Lei).

KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (Segundo Tratado, Capítulos I
ao V).

LUHMANN, Niklas. O Direito da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (Livros I – Definições


de Justiça).

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