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TÍTULO: A CONSTRUÇÃO DO PERFIL DO USUÁRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL: A


FUNÇÃO DOS CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE OFICIAIS E “OFICIOSOS”

Autora: Daguimar de Oliveira Barbosa1

Tema: Política Social

Instituição: Universidade Federal Fluminense / Programa de Estudos Pós-graduados


em Política Social

E-mail: daguibarbosa@yahoo.com.br

Palavras-Chave: gênero; assistência social; monoparentalidade feminina.

Resumo:A assistência social brasileira vem se constituindo como um campo dos


particularismos.Atualmente um perfil predominante de ser família vem sendo veiculado
como uma característica particular desta política: a monoparental feminina. Será a
necessidade o único critério de elegibilidade da assistência social,ou dele ainda depende
outros critérios.Este artigo visa problematizar a existência de perfisde usuários da
assistência social, tidos como absolutos construídos atravésdos critérios de elegibilidade,
tanto os oficiais, como os “oficiosos”. Como esses perfis são construídos? Existem perfis
hegemônicos e subordinados? Como a veiculação de critérios moralmente construídospode
excluir ou marginalizar mulheres e homens, que possuem posições diferentes de gênero?
Será que a constatação daausência de homens no CadÚnico justificaria por si só, a
prevalência da monoparentalidade feminina na proteção social básica? Será a
monoparentalidade feminina uma condição estática de ser família a qual as mulheres pobres
estariam fadadas? Desse modo,pretendo apontar mecanismos que visualizem como a
existência decritérios de elegibilidade informais e oficiaisque conformam perfis de
demandatáriosna assistência, informam muito pouco sobre a realidade do seu público-alvo.

Palavras-Chave: gênero; assistência social; monoparentalidade feminina.

1. Construindo o problema de pesquisa

A assistência social historicamente confirma-se como um campo feminizado. Foi a


partir de uma aproximação profissional com o CRAS que pude observar como se operava
no cotidiano institucional a feminização da proteção social básica. Exatamente por ser
sabido da existência histórica da pobreza feminina, fui expectadora do acesso e uso
majoritariamente, realizadopor mulheres com vários filhos. Contudo, me indagava, se a
pobreza atinge indiferentemente, mulheres e homens, onde estão os homens pobres, e até
que ponto a atuação profissional e as diretrizes dos programas poderiam interferir nisso
tudo? Também questionava o argumento baseado na monoparentalidade feminina, como
fenômeno endêmico a territórios vulneráveis, nos quais se instalam os CRASpara explicar a

1 Assistente Social, Especialista em Terapia de Família pela UCAM/Niterói, mestranda em Política Social pela
ESS/UFF. Contato: daguibarbosa@yahoo.com.br
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presença maciça de mulheres nesses equipamentos.A recorrenteexplicação vinculada


àmonoparentalidade feminina produz uma composição familiar estática e particular da
assistência, que vem se refletindo como uma realidade absoluta.Portanto, como se dá o
processo de construção desse perfil familiar que se apresenta tão natural e presente na
assistência social? Esta e as questões levantadas acima são muito complexas e exigem um
acumulo substancial de material,por ora, me aterei a duas questões: por que os homens não
aprecem na assistência? E o que isto tem a ver com a representação predominante de que
as famílias atendidas pela assistência são em sua grande maioria monoparental feminina?
Numa oportunidade de trabalho no Centro de Referência de Atendimento à Mulher
(CODIM-NIT), no município de Niterói, reencontrei as beneficiárias do PBF, num outro
universo institucional, no qual elas não se sentiam preocupadas em assumir quando
perguntadas se o companheiro/marido estava ou não no CadÚnico. Comumente, os homens
não eram informados no cadastro. A partir desse episódio continuei a me perguntar sobre os
critérios de elegibilidades dos programas e projetos, formal e “oficiosamente” estabelecidos.
Como eles forjavam formas de ser família que negam parentescos e afinidades com outros
homens e mulheres? Como critérios pessoalíssimos com base em discursos marcados por
gênero institucionalizam uma ideologia de gênero moralmente construída que excluem
mulheres e homens pobres de proteção social?
Para tentar responder as questões levantadas acima, realizei duas entrevistas,
embora seja um quantitativo muito pequeno, a pretensão no futuro é de ampliar o número de
entrevistas para aprofundar qualitativamente os temas elencados. As usuárias entrevistadas
são beneficiárias do Programa Bolsa Família/PBF e acompanhadas pela CODIM/NIT. A
partir de um levantamento dos atendimentos que realizei enquanto assistente social, durante
o ano de 2011, entre o período de março a agosto na Coordenação dos Direitos das
Mulheres de Niterói/CODIM-NIT,pude quantificaralgumas informações sobre os
atendimentos que realizei. No total atendi sessenta e sete (67) mulheres, deste número
realizei o primeiro atendimento de cinquenta e sete (57) usuárias, dez (10) já eram
acompanhadas pela CODIM, onze (11) usuárias deste universo são beneficiárias PBF. Das
onze (11) mulheres beneficiárias, seis (6) declararam durante atendimento que tinham algum
tipo de relacionamento conjugal, mas não haviam informado ao CadÚnico a existência de
um companheiro ou marido no lar. Portanto, quero convidar os leitores a entender através
das narrativas oraisas possibilidades de explicação para essa escolha.A maior parte desta
análise situa-se no campo dos estudos de gêneros, história oral e antropologia.
Nestapesquisa, trabalhei com o conceito de gênero, cuja noção assume gênero
como culturalmente construído. Os movimentos feministas e os movimentos de mulheres,
preocupados com as desigualdades presentes nas relações de poder entre os
sexos,favoreceram a construção do conceito de gênero pela Teoria Feminista. O conceito de
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gênero passa a ser amplamente utilizado entre teóricos e militantes feministas no final da
década de 70. Gênero (gender) é uma categoria teórica e analíticade interseção com eixos
como classe, raça/etnia, imprescindível aos estudos sobre as relações entre masculino e
feminino inscritas sob o signo do essencialismo.

Lembremos que gênero emerge, na década de 1970, como o termo


usado para teorizar a questão da diferença sexual. Foi inicialmente
utilizado pelas feministas americanas, sendo inúmeras as suas
contribuições: a ênfase no caráter fundamentalmente social e cultural
das distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da
naturalização; a precisão emprestada à idéia de assimetria e de
hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a
dimensão das relações de poder; o relevo ao aspecto relacional entre
as mulheres e os homens, ou seja, de que nenhuma compreensão
de qualquer um dos dois poderia existir através de um estudo que os
considerassetotalmente em separado, aspecto essencial para
“descobrir a amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual
nas várias sociedades e épocas, achar qual o seu sentido e como
funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la”. Acresce-
se a significação emprestada por esses estudos à articulação do
gênero com a classe e a raça/etnia. Interesse indicativo não apenas
do compromisso com a inclusão da fala dos oprimidos, como da
convicção de que as desigualdades de poder se organizam, no
mínimo, conforme estes três eixos (Scott, 1991:1-2). (FACINA &
SOIHET, 2004, p. 2)

3. A sacralização da maternidade: um processo de longa duração histórica

Para ilustrar como nós profissionais,por vezes nos posicionamos, consciente e


inconscientemente, através de discursos estruturados pela diferença de gênero (MOORE,
2000) frente às questões que trabalhamos, narrarei um episódio interessante. Certa vez, no
trabalho como assistente social da Coordenação dos Direitos das Mulheres de
Niterói/CODIM-NIT,no ano de 2011,vivenciei uma situação profissionalbastante provocativa
academicamente. Tal experiência reforçou a minha crença, de que a presença de
representações e práticas sociais baseadas em estereótipos de gêneroorientam
encaminhamentosnão muito inusitados no universo dasinstituições.
Num dia do meu plantão atendi uma moça de 27a A.F., mineira, residente em Niterói
há algum tempo. De acordo com a usuária, ela já havia encontrado com umaparte da equipe
técnica (advogada, psicóloga e outra assistente social) da instituição anteriormente, em
ocasião na qual foi informada da possibilidade de perder a guarda de seus filhos. Relatou
que atendeu à solicitação de comparecimento encaminhada pelainstituição, pois sua ex-
sogra a avó paterna das crianças recorreu à CODIM com a demanda de guarda dos netos,
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alegando que desejava cuidar dosmesmosaqui no Rio para a nora, mas ela discordara. A
usuária relatou que estava separada do pai dos seus filhos (também seu agressor) e havia
enviado as duas crianças, uma de seis e outra de quatro anos de idade para a casa de seus
pais em Minas Gerais, argumentou que não contava com nenhuma rede aqui no Rio, por
isso preferiu transferir sua maternidade2à sua mãe em detrimento da sogra. A usuária
demonstrava-se preocupada com a guarda dos filhos e aflita com a situação em que se
encontrava.
Acredito que existem relações de reciprocidade e solidariedade de entre noras e
sogras, relações possíveis de serem travadas, mas nesse caso percebi que essas duas
mulheres não possuíam um vínculo que permitisse tal partilha de cuidadoscom as crianças.
Encaminhei a usuária para a orientação jurídica e devidamente orientada parecia mais
aliviada e demonstrava-se mais confiante sobre o caso referente à guarda dos filhos.
Em determinado momento a equipe técnica discutiu o caso em tela tendo sido
ponderado sobre o bem-estar das crianças, e também argumentado que a mudança das
crianças para um lar “estranho” poderia provocar muito sofrimento, tendo em vista, que até
então elas conviviam com a avó paterna. A equipe ficou dividida, algumas profissionais
acreditavam que as crianças estariam mais protegidas e confortáveis com uma avó que
osconheciam desde pequenos, no caso a avó paterna aqui do Rio de Janeiro.O fato de a
usuária ter enviado as crianças para tão longe dela provocou estranhamento à equipe, que
se somou equivocadamente, ao fato, da mesma estar em um novo relacionamento,
conforme “acusa” a família do ex-companheiro.A existência de um novo namoradoe a
distância dos sujeitos que lhe conferem a materialização da função materna parece que
para alguns são mais do que indícios que apontam sem sombra de dúvidas para
anegligência da mãe má (BADINTER,1985).
Em suma, não cabe a nós julgarmos se a mesma era uma mãe má ou uma mãe boa,
baseada no fato dela não ter ficado com os filhos no Rio, ou por não ter se submetido à rede
constituída pela família do seu ex-companheiro.Enfim, neste episódio o desfecho foi a favor
do reconhecimento ao direito que ambas as usuárias possuíam, independente das práticas
e discursos diferentes e concorrentes sobre o que é ser uma mãe que cada uma delas
tenha. Se a usuária A.F. não tivesse tido acesso e uso ao atendimento teoricamente
destinado a todas as mulheres, seus direitos teriam sido violados.Por isso, chamo a atenção
para o fato de que perspectivas de gênero introjetadas, que por ventura possamos adotar

2 O conceito maternidade transferida implica a transferência de cuidados com crianças de uma mulher para
outra.Mulheres de camadas médias e altas realizam a saída do espaço privado para o público através da
remuneração de outras mulheres que assumem a responsabilidade com o cuidado da sua casa e de seus filhos.
Mulheres pobres para poderem fazer o mesmo percurso, em geral recorrem às redes sociais baseadas em
vínculos de parentesco, afinidade, reciprocidade e compadrio.
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como critérios de elegibilidade para o acesso de certos serviços socioassistenciaispodem


provocar a negação de direitos.
3.1. Mãe máVERSUS Mãe boa

Esta comunicação não pretende criar discursos maniqueístas, ou valorar como


positivo ou negativo qualquer posicionamento manifestado.Meu objetivo évisualizar a
continuidade histórica na representação construída acerca da antinomia mãe má e mãe boa.
Com base nesta oposição,ao final do século XVIII assistiremos a transformação das
mentalidades sobre a concepção de infância e, por conseguinte da função materna e do
papel do pai (BADINTER, 1985).
Badinter, através do seu exame historiográfico sobre o mito do amor materno mostra
como a representação hegemônica de maternidade baseada num amor incondicional
inerente às mulheres por seus filhos é o resultado de uma construção de longa duração
histórica.

Ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção


de que o instinto materno é um mito. Não encontramos nenhuma
conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a
extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura,
ambições ou frustrações. Como, então não chegar à conclusão,
mesmo que ela pareça cruel, de que o amor materno é apenas um
sentimento e, como tal, essencialmente contingente? Esse
sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostrar-se
forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende
da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal
nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno
não é inerente às mulheres. É ‘adicional’. (BADINTER, 1985, p. 367)

Até então, antes do século XVIII, a mortalidade infantil era alarmante, os pais em
geral, pouco olhavam ou cuidavam dos seus filhos, só no século XIX nasce a medicina
infantil, enquanto especialidade e em 1872 surge a palavra “pediatria” (BADINTER, 1985, p.
80). Portanto, se agora as crianças passam a exigir cuidados, a mãe torna-se a protagonista
nesse processo. Desde então, preconiza-se a proteção à infância proporcionalmente ao
estímulo às responsabilidades maternas.

Após 1760, abundam as publicações que recomendam às mães


cuidar pessoalmente dos filhos e lhes “ordenam” amamentá-los. Elas
impõem, à mulher, a obrigação de ser mãe antes de tudo, e
engendram o mito que continuará bem vivo duzentos anos mais
tarde: o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe
pelo filho. (BADINTER, 1985, p. 145)

O esforço em incutir uma identidade materna de acordo com as prescrições da


época apoiou-se num discurso de culpa e estigmatização das mulheres, que embora
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biologicamente preparadas para procriar, demonstravam que não bastava nascer uma
criança para nascer uma mãe.
No decorrer dos séculos a maternidade assumiu um caráter sacrossanto, que exigia
habilidades e inúmeros requisitos, se uma mulher não os possuía era imediatamente
recriminada. Nas palavras de Badinter “da responsabilidade à culpa”(BADINTER, 1985, p.
271).
Da responsabilidade à culpa, parece que foi a mesma transição denunciada pela
família do ex-marido da usuária A.F. à CODIM. Ainda hoje, no século XXI, quando
conveniente, apresenta-se como condenável a mãe trabalhadora, vista como uma mãe má,
sobretudo, se ela se afasta das crianças sob o argumento de que está trabalhando, este
definitivamente é lido como a negação do dever materno.

Quaisquer que sejam os seus motivos, o trabalho feminino é


condenado pelos moralistas, que mal admitem que ele possa ser
uma necessidade vital. O doutor Bertillon afirma que "a esposa não
deve ser primeiro operária, comerciante, camponesa ou mulher de
sociedade; ela deve antes de tudo ser mãe". MaSée pensa da
mesma maneira: "o destino da criança, a felicidade da família
dependem muito mais de sua presença constante do que do ganho
produzido por seu trabalho fora de casa.(BADINTER, 1985, p. 278)

Em suma, esta experiência demonstra o caráter sacrossanto da maternidade


incorporado como natural no decorrer dos séculos, como aponta Badinter. O modo como
vemos a função materna é indissociável da forma pela qual construímos nossas
representações de gênero, como estruturamos papéis sociais como hegemônicos ou
subordinados (consciente e inconscientemente), através de oposições binárias
essencializadas. Portanto, sugiro como exercício, o exercício da reflexão, que nos possibilite
entender e nos perguntar como construímos representações sociais tomadas como
absolutas, vale relembraruma das premissas da Filosofia: a prática precípua de realizar
perguntas.

4. Monoparentalidade feminina: um perfil particular da assistência social

Para começar, cabe explicar que são consideradas famílias monoparentais aquelas
que vivem com um único progenitor com um ou mais filhos menores de idade. A expressão
monoparentalidade surgiu na metade dos anos sessenta do século XX, importada por
sociólogas feministas dos países anglo-saxões (VITALE, 2002). Embora, num primeiro
momento, famílias chefiadas por mulheres confundam-se com famílias monoparentais, elas
não se enquadram na definição de monoparentalidade descrita acima. Vitale destaca as
implicações vinculadas à monoparentalidade, uma diz respeito ao gênero: “Ao se vincular
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monoparentalidade e feminino fortalece-se a idéia de que as mulheres (e não os homens)


são responsáveis pelas famílias? A monoparentalidade está se construindo como uma
‘especificidade’ do feminino? (VITALE, 2002, p. 49-50). A autora chama a atenção para o
fato da noção de monoparentalidade ter associação com sexo e pobreza. Vale ressaltar, que
a existência da pobreza feminina é um fenômeno histórico, que atinge profundamente os
lares nos quais as mulheres são chefes de família e vivem em situação monoparental.
Portanto, monoparentalidade, sexo e pobreza possuem uma perversa associação.
Famílias monoparentais femininas e pobreza acabam, de um lado,
por construir outro estigma, o de que as mulheres são menos
“capazes” para cuidar de suas famílias ou para administrá-las sem
um homem. De outro, é apontado que as mulheres, hoje, ganharam
maior independência e, portanto, podem assumir suas famílias. No
entanto, enquanto houver a associação maciça entre
monoparentalidade e pobreza – e os dados do Censo 2000
confirmam, em especial quando distribuída por regiões do país –
acaba por fortalecer-se muito mais a adjetivação dessas famílias
como vulneráveis ou de risco do que como potencialmente
autônomas. (VITALE, 2002, p. 51)

O estigma acerca da “incapacidade” feminina lhe confere o pronto encaminhamento


para as políticas de assistência, enquanto os homens para as políticas de trabalho, o que
evidencia a construção de sociabilidades distintas, cuja distinção principal se dá através do
sexo. A construção da socialização masculina está atrelada ao trabalho assalariado,
enquanto a socialização feminina ocorre através do cuidado compulsório, destinado ás
crianças e demais membros da família e da comunidade, correspondendo a uma
complementariedade entre os sexos, baseada na divisão sexual do trabalho. Enquanto as
mulheres são vistas e lidas por diversos ângulos, que até acabam por estigmatiza-las, os
homens pobres são invisíveis no campo da proteção social básica.

A “invisibilidade” de parentesco e/ou relacionamento no campo da assistência social


registrada nos prontuários de instituições e CadÚnico, nos quais as mulheres constam como
únicas cuidadoras e provedoras de seus lares, vem na mão da intensificação da
centralidade feminina, especificamenteaquela representada como solitária e abandonada,
associada estritamente ao estado de pobreza.Nesta direção, atualmente acompanhamosa
veiculação de um perfil estático das famílias da assistência. Um perfil baseado na
prerrogativa da monoparentalidade feminina fortemente influenciada por um programa de
transferência de renda, como é o Bolsa Família, queacaba por repercutir na recusa da
parentalidade em várias dimensões. Comumente, são as mulheres-mães com seus filhos,
crianças e adolescentes que compõem as famílias PBF, ou seja, filhos, sobrinhos, irmãos
maiores de idade são deixados de fora, principalmente companheiros ou maridos, pois
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representam a presença mesmo que simbólica de um provedor, o mesmo ocorre com


mulheres adultas que morem com a pretensa beneficiária do programa.

4.1. Duas histórias - duas experiências com o PBF

Durante uma entrevista realizada em janeiro neste ano de 2012 com uma usuária da
CODIM e do CRAS/Centro, beneficiária do Programa Bolsa Família/PBF, a minha primeira
informante nesta pesquisa, pude conhecer a sua experiência de inserção no programa e
verificar como se dá a caracterização das famílias beneficiárias PBF, em específico em
monoparentais femininas. Esta primeira informante tem 39a,branca, é natural de Curitiba,
tem três filhos (um rapaz de 19a, uma menina de 10a, e a caçula de 08a, só as meninas
vivem com ela), possui segundo grau incompleto, é do lar, mas realiza “bicos”, ou seja,
atividades informais, como lavar roupa pra fora, fazer bolo, bombom, dar faxina, vender
colares que a própria produz:
“E vou fazendo o que eu posso por fora com o salário que eu ganho
da Bolsa Família, entendeu?”

“Tenho tudo escondido.” (risos) – [Nesse momento, afirma que


esconde do companheiro toda a renda que vem a obter].

“(...) Eu limpo casa. (...) Eu lavo roupa. Ah, tem uns... aprendi a fazer
um colar de, de, de... é trabalho manual!”

A informante também vendeu o cabelo de uma das filhas há pouco tempo para
conseguir algum dinheiro. Sobre os colares de pano, que confecciona,se remete muita
satisfeita ao negócio bem sucedido:

“(...) Eu vendi todos eles. No final do ano vendi todos! Até... eu vendo
há dez reais cada um. (...) Dá pra tirar um bom dinheirinho, por
semana R$ 50,00, R$ 100,00, dependendo de quanto vende,
entendeu?”

Esta usuária vive maritalmente há cerca dez anos com um homem, que lhe agride há
nove anos verbal e fisicamente, sua filha caçula é filha do casal. Depois do
acompanhamento na CODIM, em função da violência doméstica e familiar que sofre fala
sobre o quê mudou para ela:

“É... hoje eu não me importo se ele sair da minha casa, entendeu?”


“(...) De falar pra mim: “olha, eu, eu vou embora!” – Vai! Entendeu?”
“Eu me importava! Porque as frequências das sessões da terapia do
psicólogo faz a diferença, entendeu? Porque você acaba vendo que
você não pode viver em função daquilo ali. O amor é eterno
enquanto dura! Passei a aprender, entendeu? O meu durou pouco,
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muito pouco (risos). Um ano, depois nove anos de surra, mas eu vou
fazer o quê? Custei aprender.”

A informante recebe há cerca de um ano R$ 134,00 do Programa Bolsa Família e


está inscrita no CRAS/Centro há dois anos, verbaliza que fez por duas vezes a inscrição
para receber o benefício, na primeira vez o pedido foi indeferido, na segunda aprovado. De
acordo com a usuária a renda per capita da sua família foi acima do limite estabelecido para
o recebimento do benefício. Na segunda tentativa ela informou ao Programa que estava
sozinha com as crianças, a atualização favoreceu a inserção na folha de pagamento do
programa. Quando perguntada se o seu companheiro sabe da existência do benefícioa
usuária fica aparentemente, incomodada e tende a ser muito breve nas suas respostas. Em
princípio afirma que não colocou o companheiro no cadastro, pois ele lhe agride, contudo
conforme ela mesma coloca, foi orientada por alguém no Conselho Tutelar a tirar o nome
dele.A informante tem bastante receio de que o companheiro descubra a existência do
benefício:
“(...) Por que, como é que eu vou falar que eu tenho? Aí ele vai me
forçar pegar aquele dinheiro pra botar dentro de casa. (...) Ele não
sabe. Eu minto, eu digo que eu não tenho. E já falei pras... as irmãs
dele sabe que eu recebo. E falei pra elas: se você contar que eu
recebo você nunca mais vê as meninas.”

Quando perguntada sobre como atualizou o seu cadastro, senão teve problemas, ela
responde brevemente: “Eu fui lá e falei que ele me abandonou que eu fui chutada.” Logo em
seguida completa: “Aí a necessidade faz a questão”.
Outra experiência registrada por meio do depoimento oral, em entrevista também
realizada neste ano, com uma senhora beneficiária do PBFaponta certa semelhança à
realidade da primeira informante. As duas informantes são usuárias do CRAS/Centro e da
CODIM/NITe não informaram seus companheiro/marido ao CadÚnico para o recebimento do
Bolsa Família. Ambas são vítimas de violência doméstica e familiar, ambas veem no
benefício a única possibilidade de autonomia frente a perversidade que encobre um
relacionamento baseado na violência. Esta segunda informante tem 58a, é branca, casada,
possui ensino fundamental incompleto, não tem filhos, não tem profissão, é do lar, mas
realiza bicos, como faxinas, vende latinhas que ela mesma recolhe:

“Quando eu vendo latinha, né, que eu cato, cato, mas fica juntando,
né? Aí quando eu vendo, às vezes faz uns cem reais, dependendo aí
do preço do quilo da latinha, né? Que tem isso também. E... bicos
assim ó: faxina pinta de cinquenta, eu ajudo a minha sobrinha a fazer
a faxina que ela também faz e ela racha a faxina comigo. É assim.
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(...) É agora no momento. De primeira eu fazia sozinha. Aí era de


cinquenta, quarenta, dependendo do local e a faxina, né?”

Diferentemente, da primeira informante, esta senhora fez a inscrição no PBF quando


ainda era solteira, fato que ela enfatiza recorrentemente, a mesma recebe o benefício de
acordo com ela há mais de dez anos. Relata que está casada de cinco a sete anos, não
sabe afirmar com certeza, afirma que conheceu o marido realizando faxinas na casa do
mesmo, contudo está se divorciando, a separação e o divórcio estão em andamento
atualmente. O estopim da separação foi o cancelamento do Plano de Saúde da usuária pelo
marido, de acordo com ela, casou-se muito preocupada com a saúde e interessada na
assistência médica que viria a receber como dependente. De faxineira remunerada tornou-
se esposa e dona de casa sem direito e sem dinheiro. Foi em função do cancelamento do
Plano que ela buscou a CODIM/NIT há quase um ano atrás, tendo em vista a sua
necessidade de realizar acompanhamento médico. A usuária ficou abalada, mas o desfecho
dos conflitos foi o acordo de separação. De acordo com ela, o marido desejava se separar a
algum tempo, mas ela, embora sofresse violência se submetia a toda situação, em função
do Plano de Saúde que necessita ter. Para pressionar uma separação o marido da
informante cancelou definitivamente o seu Plano de Saúde.
Esta segunda informante recebe a quantia de R$70,00, o benefício básico, destinado
às famílias em situação de extrema pobreza. Verbaliza que o marido nunca prover suas
necessidades, além de lhe agredir física e moralmente constantemente:

“Porque eu já... porque quando eu fiz eu era solteira. (...) Depois eu


casei. E como ele não me ajuda em nada. Nunca me ajudou em
nada, eu continuei pegando. Entendeu?”

A informante em tela ficou muito preocupada em justificar a ausência do seu marido


no Programa Bolsa Família e finalizou seu depoimento da seguinte forma:

“Ah, minha observação é isso: que eu sei que eu teria que né, que
cancelar no caso quando eu casei. Né isso? Mas eu preciso desse
dinheirinho, como precisei desde o começo que fiz, porque eu casei,
mas ele não me dá nada, continuo com a mesma situação. Tá. Só
isso.”

Estas mulheres recorrem ao trabalho informal e ao PBF para obterem um pouco de


dignidade e autonomia econômica, contudo estes instrumentos de sobrevivência possuem
prazo de validade para acabar. As duas usuárias possuem problemas de saúde que
comprometem seriamente o desempenho das atividades que atualmente exercem em
específico o trabalho doméstico ou faxina. A primeira informante tem nódulos nos dois
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joelhos, a segunda está com um problema no pulmão e se locomove com muita dificuldade,
de acordo com ela está com um problema num dos joelhos também. Infelizmente, a
feminização da pobreza avança para um futuro que anuncia a miséria de muitas mulheres.
Durante a III Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres de Niterói que ocorreu em
julho de 2011, sob o tema de abertura “Autonomia Econômica e Igualdade no Mundo do
Trabalho: mulher e pobreza extrema”, a Conferencista Profª. Drª. Hildete Pereira de Melo
apresentou a seguinte comunicação socializada nos Grupos de Trabalho: “Pobreza e
gênero: que relação é essa?” destacando diversos aspectos sobre a condição feminina no
mundo do trabalho, dentre eles enfatizou de acordo com dados da PNAD/IBGE, 2009, que:

Outra questão, que penaliza as mulheres devido à precarização das


relações de trabalho é que dos 40,7 milhões de pessoas sem-
previdência no Brasil, 16,8 milhões são mulheres. Apenas 46% da
população ocupada (34,481 milhões) contribuí para a previdência
social, destas 45% são mulheres e 55% são homens com carteira de
trabalho assinada.A situação é particularmente critica para as
trabalhadoras domésticas, as trabalhadoras sem remuneração e
trabalhadoras para o auto-consumo, que trabalham por conta-
própria, sem nenhuma proteção social. Em cada uma dessas
categorias a previdência não chega a 30% dessas mulheres. (MELO,
2011)

A falta de oportunidade de trabalho formal com garantias previdenciárias, que


nenhuma das duas informantes possui, é uma utopia da atual sociedade globalizada que
vem caracterizando a assistência social como o campo por excelência que concentra uma
massa de mulheres, cuja, mão-de-obra não é absorvida pelo mercado de trabalho e que só
encontra através da transferência de renda e do trabalho informal a possibilidade de
subsistir precariamente.
5. ConsideraçõesFinais:

A construção social de um perfil de usuários impulsionada por critérios de


elegibilidade oficiais e “oficiosos” como os baseados em representações essencializadas
sobre gênero contribuem para uma dinâmica perversa da política de assistência social, onde
o reconhecimento ao direito está subordinado a três prerrogativas, associadas, sobretudoàs
mulheres: pobreza ou miséria, desemprego e abandono parental. Três prerrogativas
ancoradas na diferenciação de gênero, a pobreza e o desemprego feminino são histórica e
estatisticamente maior do que dos homens, o que torna imprescindível como enfatiza Melo
(2011) uma política de gênero no mundo do trabalho, o abandono parental feminino (tanto
por companheiro ou marido, tanto por familiares, às vezes em função de mudança de
residência) é quase que um apelo preconizado por programas que centralizam na mulher
toda a responsabilidade parental em detrimento do estímulo à responsabilidade parental
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masculina. Portanto, a defesa da igualdade de gênero é indispensável à igualdade de


responsabilidades nas relações parentais.
Saber que a Assistência Social enquanto política pública constrói perfis particulares e
institucionalizados de usuários que não correspondem à realidade, é importante, pois
favorece a problematização de questões relevantes que ficam encobertas por falsas
aparências. A invisibilidade destas questões também é sustentada por um perfil socialmente
construído, pois quando estamos na assistência e não vemos demanda do campo da
violência doméstica e familiar, e isto não causa estranhamento, num país onde milhares de
mulheres de todas as classes morrem impunimente diariamente.Talvez acreditando que esta
demanda não chegue porque todas as mulheres supostamente atendidas não têm
parceiros, devemos nos indagar no mínimo o quê está acontecendo.
Portanto, quando os homens são invisíveis na assistência todo o caráter relacional
entre homem e mulher é negado, diluindo-se várias questões pertinentes e inerentes ao
universo da garantia e reconhecimento de direitos de mulheres e de homens, como é o caso
da violência doméstica silenciada na assistência, em geral omitida pela preocupação de
perder o benefício do PBF, única fonte de autonomia econômica.
Embora, as questões de gênero no âmbito da assistência social possam parecer que
recebam atenção secundária, é através do gênero, que esta política vem forjando formas de
desigualdade de acesso, impregnadas também por noções pessoalíssimas orientadas pela
diferenciação de gênero.

6. Referências Bibliográficas:

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Serviço Social) – Escola de Serviço Social, UFF, Niterói: 2° semestre de 2006.
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