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O edifício Treloar ficava, e ainda fica, na Rua Oliver, perto da Sexta, na Zona Oeste.

A calçada na frente fora feita com blocos de borracha em preto e branco, que agora
arrancavam para doar ao governo, e um homem pálido, sem chapéu, com cara de fiscal
de imóveis, observava o serviço com um ar de quem tinha o coração partido por tal
visão.
Passei por ele, atravessei upa arcada de lojas de classe e entrei num saguão
imenso, em negro e dourado. A Companhia Gillerlain ficava no sétimo andar, em frente,
por trás de portas duplas de vidro, de vaivém, com esquadrias de platina. A sala de
recepção tinha tapetes chineses, paredes de um prateado fosco, móveis angulosos
mas trabalhados, reluzentes esculturas abstratas em pedestais, e um alto mostruário
numa vitrine triangular, no centro. Em prateleiras, degraus, ilhas, promontórios de
espelhos brilhantes, parecia haver todo tipo de exóticos frascos e caixas jamais criados.
Eram cremes, pós, sabonete, e colônias para toda estação e ocasião. Perfumes em
frascos longos e tão finos que parecia que um sopro os despedaçaria, e outros em
vidrinhos pastel, enfeitados com vistosos laços de cetim, como menininhas numa aula
de dança. O clímax da coisa parecia ser algo muito pequeno e simples, num vidro
âmbar quadrado. Ficava no meio, à altura dos olhos, com um bocado de espaço para
si, e chamava-se Gillerlain Regai, a Champanha dos Perfumes. Era decididamente o
quente. Uma gota daquilo na cava do pescoço, e róseas pérolas combinadas
começariam a cair sobre a pessoa como chuva de verão.
Uma lourinha muito elegante sentava-se num canto distante, a uma mesinha de
PBX, atrás de uma grade, bem longe de qualquer safadeza. A uma mesa de tampo liso,
alinhada com as portas, via-se uma coisinha adorável, alta, esbelta e de cabelos
negros, que se chamava, segundo a placa gravada e meio enviesada em cima da
mesa, Srta. Adrienne Fromsett.
Vestia um tailleur executivo cinza aço, e sob a jaqueta uma camisa azul escuro e
uma gravata masculina de um tom mais claro. As pontas do lenço dobrado no bolso de
cima pareciam afiadas o bastante para cortar pão. Usava um brace- lete de fecho e
nenhuma outra jóia. Os cabelos negros, repartidos, caíam-lhe em ondas soltas, mas
não descuidadas. Tinha uma suave pele de marfim e sobrancelhas um tanto severas, e
grandes olhos negros que pareciam capazes de pegar fogo na hora e no lugar certos.
Depositei meu cartão simples, o sem a metralhadora no canto, na mesa e pedi
para falar com o Sr. Derace Kingsley. Ela olhou o cartão e disse:
— Tem hora marcada?
— Não.
— Ê muito difícil falar com o Sr. Kingsley sem hora marcada.
Não era algo que eu pudesse contestar.
— Qual é o seu tipo de negócio, Sr. Marlowe?
— Pessoal.
— Muito bem. O Sr. Kingsley conhece o senhor, Sr. Marlowe?
— Não creio. Talvez tenha ouvido falar no meu nome. Pode dizer que venho da
parte do Tenente M'Gee.
— E o Sr. Kingsley conhece o Tenente M’Gee?
Pôs meu cartão ao lado de uma pilha de cartas recém- datilografadas. Reclinou-
se para trás, estendeu um braço sobre a mesa e bateu levemente com um lapisinho
dourado.
Dei-lhe um sorriso. A lourinha no PBX virou o ouvido em forma de concha e deu
um sorrisinho fofo. Parecia brincalhona e ávida, mas não inteiramente segura de si,
como um gatinho novo numa casa onde não dão muita bola para gati- nhos.
— Espero que conheça — eu disse. — Mas talvez o melhor modo de descobrir seja
perguntar a ele.
Ela rabiscou rapidamente três letras, para não j‘ogar o
tinteiro todo em cima de mim. Tornou a falar, sem erguer o olhar.
— O Sr. Kingsley está numa reunião. Vou mandar o seu cartão quando tiver uma
oportunidade.
Agradeci e fui sentar numa poltrona de cromo e couro muito mais confortável do
que parecia. Passou o tempo, e o silêncio caiu sobre a cena. Ninguém entrou ou saiu. A
mão elegante da Srta. Fromsett mexia-se sobre seus papéis, e as disfarçadas
espiadelas da gatinha do PBX chegavam às vezes a ser audíveis, como os cliques dos
plugues dos telefones entrando e saindo.
Acendi um cigarro e puxei um cinzeiro de pé para junto da poltrona. Os minutos
passavam vagarosamente. Com os dedos nos lábios, examinei o lugar. Nada se podia
dizer de uma coisa daquelas. Tanto podiam estar faturando milhões quanto ter o
delegado na sala dos fundos, com a cadeira reclinada contra o cofre.
Meia hora e três ou quatro cigarros depois, abriu-se uma porta atrás da mesa da
Srta. Fromsett e saíram dois homens andando de costas, rindo. Um terceiro segurava a
porta para eles e ajudava-os a rir. Todos apertaram-se as mãos e os dois homens
saíram atravessando a sala. O terceiro desfez imediatamente o riso do rosto e pareceu
nunca ter dado um sorriso na vida. Era um cara alto, de terno cinza, que não admitia
brincadeiras.
— Alguma ligação? — perguntou, numa áspera voz de mando.
A Srta. Fromsett disse baixinho:
— Um Sr. Marlowe deseja falar com o senhor. Da parte do Tenente M’Gee. O
assunto é pessoal.
- Nunca ouvi falar dele — ladrou o homem alto. Pegou meu cartão, nem sequer
olhou para mim e retornou ao seu escritório. A porta fechou-se sobre o dispositivo
pneumático e fez um som que parecia “fuei”. A Srta. Fromsett me deu um doce e triste
sorriso, que lhe devolvi sob a forma de um olhar obsceno. Devorei outro cigarro, e
passou-se mais u.n. tempo, cambaleante. Eu começava a gostar muito da Con.
•anhia Gillerlain.
Dez minutos depois, a mesma porta abriu-se de novo e o chefão disparou para
fora com o chapéu na cabeça e 'osnou que ia cortar o cabelo. Começou a cruzar o
tapete chu’ês num
passo gingado e atlético, percorreu cerca de metade da distância até a porta, e
então parou de chofre e dirigiu-se ao lugar onde eu estava sentado.
— Queria falar comigo?
Tinha cerca de um metro e noventa, e não havia muita coisa nele que fosse mole.
Os olhos eram de um cinza pétreo, com centelhas de luz glacial neles. Enchia um
enorme terno de flanela cinza claro, com estreitas riscas de giz, e enchia-o com
elegância. Seus modos diziam que era durão de se lidar.
Levantei-me.
— Se o senhor é o Sr. Derace Kingsley.
— Quem diabos pensava que eu fosse?
Deixei-o aplicar esse truque e dei-lhe outro cartão, aquele com o troço impresso.
Ele o pegou na pata enorme e fez uma carranca, ao olhá-lo.
— Quem é M'Gee? — ladrou.
— Só um cara que eu conheço.
— Estou fascinado — disse, dando uma olhada à Srta. Fromsett lá atrás. Ela gostou.
Gostou muitíssimo. — Mais alguma coisa que queira dizer sobre ele?
— Bem, chamam-no de M'Gee Violetas. Porque mastiga pequenas pastilhas para
a garganta que cheiram a violetas. É um homem grande, de cabelos lisos e prateados,
e uma boca pequena feita para beijar bebês. Da última vez que o viram usava um terno
azul alinhado, sapato marrom de bico largo, chapéu mole de feltro cinza, e fumava ópio
num cachimbo curto de espuma.
— Não gosto de seus modos — disse Kingsley, numa voz com a qual se podia
quebrar uma noz.
— Não faz mal. Não os estou vendendo.
Ele recuou como se eu segurasse uma cavala pescada há uma semana debaixo
de seu nariz. Após um instante, deu-me as costas e disse por cima do ombro:
— Vou lhe dar exatamente três minutos. Sabe Deus porque.
Retornou, queimando o tapete, passou pela mesa da Srta. Fromsett, chegou à
sua porta, abriu-a e b n ''-a com força em minha cara. A Srta. Fromsett gostou disso
* . .<Am, mas achei que agora havia um sorrisozinho irônico por dos olhos dela.
2
O escritório particular era tudo que um escritório particular deve ser. Comprido,
pouca luz, silencioso e com ar condicionado, as venezianas cinzentas meio fechadas
para conter o fulgor de julho. As cortinas cinzentas combinavam com o carpete cinza.
Viam-se um grande cofre preto e prateado no canto e uma fileira baixa de arquivos que
combinavam exatamente com o cofre. Na parede, um imenso retrato pintado de um
velho de bico cinzelado, suíças e colarinho de ponta virada. O pomo de Adão que
emergia do colarinho parecia mais duro que o queixo da maioria das pessoas. A placa
embaixo do retrato dizia: “Sr. Matthew Gillerlain, 1860-1934”.
Derace Kingsley marchou a passos bruscos para trás de uma mesa executiva que
valia uns oitocentos dólares e plantou o traseiro numa poltrona alta de couro. Agarrou
um charuto de uma caixa de cobre e mogno, aparou-o e acendeu-o com um grosso
isqueiro de cobre, de mesa. Não tinha pressa. Não se importava com o meu tempo.
Quando acabou de fazer isso, recostou-se, soprou um pouco de fumaça e disse:
— Sou um homem de negócios. Não faço rodeios. O senhor é um detetive com
licença, segundo diz o seu cartão. Me mostre alguma coisa que prove isso.
Puxei minha carteira e entreguei-lhe coisas que provavam. Ele as olhou e as
atirou de volta por cima da mesa. O invólucro de celulóide com a cópia fotostática da
licença caiu no chão. Ele não se deu o trabalho de desculpar-se.
— Não conheço M’Gee — disse. — Conheço o delegado Petersen. Pedi o nome de
um homem de confiança para fazer um serviço. Suponho que seja você esse homem.
— M’Gee está na subdelegacia de Hollywood. No escritório do delegado. Pode
conferir isso.
— Não é necessário. Creio que você serve, mas não banque o espertinho comigo.
E lembre-se que, quando eu contrato um homem, é para servir a mim. Faz
exatamente o que eu digo a ele e mantém a boca fechada. Senão dá o fora
rapidinho. Está claro? Espero não estar sendo demasiado duro com o senhor.
— Por que não deixar isso em aberto? — perguntei. Ele franziu a testa e disse, de
mau jeito:
— Quanto cobra?

— Vinte e cinco por dia, mais despesas. Oito centavos por quilômetro e meio rodados em meu carro.
— Absurdo! Caro demais, muito. Quinze por dia e só. Ê o bastante. Pago a gasolina, numa base razoável, do
modo como estão as coisas agora. Mas nada de passeios por aí.
Soprei uma nuvenzinha cinza de fumaça e abanei-a com a mão. Não disse nada. Ele parecia um pouco
surpreso por eu não dizer nada.
Curvou-se sobre a mesa e apontou com o charuto.
— Ainda não contratei o senhor, mas, se contratar, o serviço é absolutamente
confidencial. Nada de discutir o assunto com seus amigos tiras. Está entendido?
— Que é exatamente que o senhor quer, Sr. Kingsley?
— Que lhe importa? O senhor faz todo tipo de trabalho de detetive, não faz?
— Não todo tipo. Só os do tipo bastante honesto.
Ele me fixou olho a olho, a mandíbula tensa. Os olhos cinza tinham uma aparência
opaca.
— Por exemplo, não faço serviços para divórcios — eu disse. — E recebo cem
dólares de sinal... de estranhos.
— Bem, bem — ele disse, numa voz subitamente baixa. — Bem, bem.
— E quanto ao senhor ser duro demais comigo, a maioria dos clientes começa ou
ensopando minha camisa de lágrimas ou berrando comigo para mostrar quem é o
chefão. Mas de modo geral terminam bastante razoáveis... quando ainda estão vivos.
— Bem, bem — ele tornou a dizer, na mesma voz macia, e prosseguiu fixando-me.
— Perde muitos deles? — perguntou.
— Não quando me tratam bem.
— Aceite um charuto.
Peguei um charuto e o pus no bolso.
— Quero que o senhor encontre minha mulher. Está desaparecida há um mês.
— Tudo bem. Vou encontrar sua mulher.
Ele tamborilou na mesa com ambas as mãos. Fixava-me firmemente.
— Acho que encontrará mesmo. — Depois deu um sorriso. — Ninguém me faz
baixar a voz assim há quatro anos.
Eu não disse nada.

— Ao diabo com tudo isso — ele disse. — Gostei. Gostei muito. — Passou a mão pelo
denso cabelo negro. — Ela está desaparecida há um mês inteiro. Numa cabana que
temos nas montanhas. Perto de Puma Point. Conhece Puma Point?
Eu disse que conhecia.
— Nossa casa fica a quatro quilômetros e meio da aldeia, sendo parte deles por
uma estrada particular. Fica num lago particular. Lago Little Fawn. Eu e mais dois
amigos erguemos uma represa para melhorar a propriedade. Eu sou dono da terra com
os outros dois. Ê muito grande, mas sem infra- estrutura, e agora vai ficar assim por
algum tempo, é claro. Meus amigos têm cabanas, eu tenho uma, e um cara chamado
Bill Chess mora com a mulher numa outra, sem pagar aluguel, e cuida do lugar. É um
veterano de guerra inválido, que vive de pensão. Ê só o que tem por lá. Minha mulher
subiu em meados'de maio, desceu duas vezes em fins de semana, devia descer a 12
de junho para uma festa e nunca apareceu. Não a vejo desde então.
— Que providências tomou?
— Nenhuma. Não fiz coisíssima nenhuma. Nem sequer subi lá. — Aguardou,
querendo que eu perguntasse porque.
Perguntei: — Por quê?
Ele empurrou sua poltrona para trás, a fim de abrir uma gaveta fechada a chave.
Retirou um papel dobrado e passou-o para mim. Desdobrei e vi que era um formulário
de telegrama. A mensagem fora passada de El Paso, a 14 de junho, às 9hl9m da
manhã. Endereçada a Derace Kingsley, Carson Drive 965, Beverly Hills, e dizia:
“CRUZANDO FRONTEIRA PARA OBTER DIVÓRCIO MÉXICO PT VOU CASAR
COM CHRIS PT BOA SORTE ADEUS CRYSTAL.”
Deixei o papel no meu lado da mesa, e ele me entregou um grande instantâneo,
bastante nítido, em papel brilhante, que mostrava um homem e uma mulher sentados
na areia embaixo de um guarda-sol. O homem estava de calção e a mulher com o
que parecia um maio muito ousado, de tecido lustroso, branco, colado na pele. Uma
loura esguia, jovem e bem feita, sorrindo. O homem era um garotão forte, moreno e
bonitão, com belos ombros e pernas, cabelos negros lisos e
dentes muito brancos. Um metro e noventa daquele tipo padrão de destruidor de lares. Braços para apertar os outros
e todo o cérebro no rosto. Segurava na mão um par de óculos escuros e sorria para a câmera com um sorriso
escolado e fácil.
— Essa aí é Crystal — disse Kingsley — e esse é Chris Lavery. Ela pode ficar com ele, e ele com ela, e ao diabo
com os dois.
Coloquei a fotografia sobre o telegrama.
— Tudo bem. Qual é o galho?
— Não tem telefone lá em cima — ele disse — e a coisa pela qual ela ia descer não
tinha nenhuma importância. Assim, recebi o telegrama antes de pensar muito no
assunto. E me surpreendí muito pouco. Crystal e eu não estamos bem há anos. Ela vive
a vida dela e eu a minha. Ela tem seu próprio dinheiro, e bastante. Cerca de vinte mil
por ano, de uma corporação holding da família que possui valiosos arrendamentos de
petróleo no Texas. Ela se vira por aí, e eu sabia que Lavery era um de seus casos.
Poderia ficar um pouco surpreso pelo fato dela se casar mesmo com ele, porque o cara
não passa de paquerador profissional. Mas a coisa parecia normal até agora, entende?
— Eaí?
— Nada, por duas semanas. Aí o Prescott Hotel, em San Bernardino, entrou em
contato comigo e disse que um Pa- ckard Clipper registrado em nome de Crystal
Grace Kingsley, no meu endereço, estava abandonado na garagem, e me perguntou
o que fazer. Eu disse a eles que guardassem o carro e mandei um cheque. Não havia
nada demais nisso também. Imaginei que ela ainda estava fora de casa, e que, se
tivessem ido de carro, afinal, teriam ido no de Lavery. Mas anteontem encontrei
Lavery defronte do Athletic Club, aqui na esquina. Ele disse que não sabia por onde
andava Crystal.
Kingsley lançou-me uma olhada rápida e estendeu a mão para uma garrafa e dois
copos pintados sobre a mesa. Serviu duas doses e empurrou uma para mim. Ergueu
o seu copo contra a luz e disse lentamente:
— Lavery disse que não tinha fugido com ela, não a via há dois meses, não tivera
nenhuma comunicação com ela, de nenhum tipo.
— E o senhor acreditou nele?

Kingsley assentiu com a cabeça, franzindo o cenho, tomou sua bebida e empurrou o copo para um lado. Provei
a minha. Era scotch. Scotch não muito bom.
— Se acreditei nele — disse — e provavelmente errei fazendo isso, não foi porque
fosse o tipo de cara em quem a gente tem de acreditar. Longe disso. Foi porque é um
filho da puta imprestável que acha o máximo comer as mulheres dos amigos e se gabar
disso. Acho que teria ficado roxo de prazer se pudesse me dar esse golpe e anunciar
que tinha feito minha mulher fugir com ele e me deixar. Eu conheço esses caras, e
conheço esse muito bem. Ele cobriu um setor para nós por algum tempo e teve
problemas o tempo todo. Não podia passar sem a ajuda do escritório. E além de tudo
isso, tem esse telegrama de El Paso, do qual falei a ele e perguntei porque achava que
adiantava mentir a respeito.
— Talvez ela tenha dado o fora nele — eu disse. — Isso ia feri-lo no seu ponto fraco:
seu complexo de Casanova. Kingsley animou-se um pouco, mas não muito.
Balançou a cabeça.
— Mesmo assim, eu ainda acreditava mais do que desacreditava nele. O senhor
vai ter de provar que estou errado. Isso é parte do motivo pelo qual preciso do
senhor. Mas tem outro ângulo, ainda mais inquietante. Eu tenho um bom emprego
aqui, mas é apenas um emprego. Não posso agüen- tar um escândalo. Estaria fora
daqui num minuto se minha mulher se envolvesse com a polícia.
— Polícia?
— Entre as outras atividades dela — disse Kingsley, sombriamente — minha mulher
de vez em quando acha tempo para cometer pequenos furtos em lojas de
departamentos. Acho que é uma espécie de ilusão de grandeza que dá nela quando
bebe demais, mas acontece, e já tivemos algumas cenas bastante desagradáveis em
escritórios de gerentes. Até agora, consegui impedir que fizessem acusações formais
contra ela, mas se uma coisa dessas acontecesse numa cidade estranha, onde
ninguém a conhecesse... — Ergueu as mãos e deixou-as cair com um barulho na
mesa — bem, podia ser um caso de prisão, não podia?
— Já tiraram algum dia as impressões digitais dela?
— Nunca foi presa.

— Não é a isso que estou me referindo. Ãs vezes, nas grandes lojas de departamentos, eles exigem, para não
fazer acusações formais, que a pessoa lhes forneça as impressões digitais. Isso assusta os amadores e cria um
arquivo de clep- tomaniacos na associação de proteção deles. Quando as impressões aparecem um certo número
de vezes, eles caem em cima da pessoa.
— Nada disso aconteceu com ela, que eu saiba.
— Bem, acho que podemos praticamente afastar o ângulo dos furtos em lojas por
enquanto — eu disse. — Se ela fosse presa, teria sido revistada. Mesmo que os tiras
deixassem que ela usasse o nome de Jane Qualquer Coisa no livro de ocorrências,
provavelmente entrariam em contato com o senhor. E também ela começaria a gritar
por socorro quando se visse numa fria. — Bati no formulário azul e branco do
telegrama. — E isso já tem um mês. Se o que o senhor está pensando acontecesse
por volta dessa época, o caso já teria sido resolvido a esta altura. Se ela não tivesse
antecedentes, teria saído com uma repreensão e uma sentença suspensa.
Ele serviu outra dose para ajudá-lo com sua preocupação.
— Está me fazendo sentir melhor — disse.
— Muitas outras coisas podem ter acontecido. Ela fugiu com Lavery e eles se
separaram. Fugiu com outro cara qualquer e o telegrama é uma piada. Fugiu
sozinha ou com uma dona. Ou então ela bebeu demais e está escondida em alguma
clínica particular fazendo um tratamento. Ela se meteu numa fria da qual não temos
a menor idéia. Ou foi assassinada.
— Deus do céu, não diga uma coisa dessas — exclamou Kingsley.
— Por que não? A gente tem de levar isso em conta. Eu tenho uma idéia muito
vaga da Sra. Kingsley... acho que é jovem, bonita, inquieta e pirada. Bebe e faz
coisas perigosas quando bebe. É uma otária com os homens e pode se meter com
um estranho que talvez seja um criminoso. Confere?
Ele assentiu com a cabeça. — Cada palavra do que você disse.
— Quanto dinheiro ela teria consigo?
— Gostava de andar com muito. Tinha seu próprio banco e sua própria conta
bancária. Podia ter qualquer quantidade de dinheiro.

- Filhos?
— Não.
— O senhor controla os negócios dela?
Ele abanou a cabeça.
— Não tem nenhum... a não ser passar cheques, sacar dinheiro e gastar. Jamais investe um centavo. E o dinheiro
dela certamente nunca me serviu para nada, se é o que está pensando. — Fez uma pausa, e depois disse: — Não
pense que eu não tentei. Sou humano, e não tem graça nenhuma ver vinte mil por ano descer pelo ralo, sem nada
em troca a não ser ressacas e namoradinhos do tipo de Chris Lavery.
— Como é o seu contato com o banco dela? Podería conseguir um extrato dos
cheques que ela sacou nos últimos dois meses?
— Não me dariam. Tentei conseguir uma informação desse tipo antes, quando
achei que ela estava sendo chanta- geada. Me deram o maior gelo.
— Podemos conseguir isso — eu disse — e podemos precisar, também. Significa
que teremos de ir ao Departamento de Pessoas Desaparecidas. O senhor não
gostaria disso?
— Se eu gostasse, não teria chamado o senhor.
Assenti, reuni minhas provas e guardei-as no bolso.
— Há mais ângulos nessa história do que eu posso ver agora — disse —, mas vou
começar falando com Lavery, e depois dando um pulo até o Lago Little Fawn, para
fazer perguntas por lá. Vou precisar do endereço de Lavery e um bilhete para o
homem que toma conta de sua cabana na montanha.
Ele pegou um papel de carta com monogramas em sua mesa, escreveu e passou-
o para mim. Li: “Caro Bill: Esta é para lhe apresentar o Sr. Philip Marlowe, que deseja
dar uma olhada na propriedade. Por favor, mostre a ele minha cabana e ajude-o de
todos os modos. Seu, Derace Kingsley”.
Dobrei o papel e coloquei-o no envelope que ele endereçara enquanto eu lia.
— E as outras cabanas lá em cima? — perguntei.
— Não tem ninguém lá, este ano, até agora. Um dos caras trabalha para o governo
em Washington, e o outro está em Fort Leavenworth. As mulheres estão com eles.
— Agora o endereço de Lavery.
Ele olhou um ponto bem aHma de minha cabeça.
— É em Bay City. Sei ir até a casa, mas esqueci o endereço. Creio que a Srta. Fromsett pode dar isso ao senhor.
Não precisa saber para quê. Provavelmente vai querer saber. E o senhor disse que quer cem dólares?
— Correto — eu disse. — Mas foi só uma coisa que eu disse quando o senhor me espezinhava.
Ele deu um sorrisinho. Levantei-me e hesitei junto à mesa, olhando-o. Após um instante, disse:
— O senhor não está escondendo nada, está? Alguma coisa importante?
Ele olhou o seu polegar.
— Não. Não estou escondendo nada. Estou preocupado, e quero saber por onde
ela anda. Estou preocupado de verdade. Se descobrir alguma coisa, o que quer que
seja, me telefone a qualquer hora, de dia ou de noite.
Eu disse que faria isso, apertamos as mãos, atravessei de volta o longo e frio
escritório e saí para a sala onde a Srta. Fromsett se sentava elegantemente à sua
mesa.
— O Sr. Kingsley acha que a senhorita pode me dar o endereço de Chris Lavery
— disse, e fiquei observando o seu rosto.
Ela estendeu a mão bem devagar para um livro de endereços de couro marrom e
virou as páginas. Tinha a voz contida e fria quando falou.
— O endereço que temos é Rua Altair 623, em Bay City. Telefone: Bay City
12523. O Sr. Lavery nos deixou há mais de um ano. Talvez tenha se mudado.
Agradeci-lhe e andei em direção à porta. De lá, olhei para trás, para ela. A moça
se sentava muito quieta, com as mãos cruzadas sobre a mesa, fitando o espaço.
Um par de manchas rubras queimava nas suas faces. Tinha os olhos distantes e
amargos.
Fiquei com a impressão de que o Sr. Chris Lavery nào era uma lembrança
agradável para ela.

3
A Rua Altair fica na borda do V que forma a extremidade interna de um profundo
canyon. Ao norte, via-se a fria e
azul extensão da baía, até a ponta acima de Malibu. Ao sul, a cidade praieira de Bay City espalhava-se numa
encosta escarpada acima da rodovia à beira-mar.
Era uma rua curta, com três ou quatro quadras, e terminava numa grade alta de
ferro, cercando uma grande propriedade. Além das pontas douradas da grade eu via
árvores e arbustos, um trecho de gramado e parte de uma estrada de acesso curva,
mas não dava para ver a casa. No lado da rua Altair que dava para o continente, as
casas eram bem cuidadas e bastante grandes, mas os poucos bangalôs esparsos na
beira do canyon não eram grande coisa. Na curta meia quadra que terminava na grade
de ferro havia apenas duas casas, em lados opostos da rua e quase diretamente
defronte uma da outra. A menor era a de número 623.
Passei por ela, de carro, dobrei no meio círculo pavimentado no fim da rua, voltei
e estacionei defronte ao terreno vizinho à casa de Lavery. A casa era construída
para baixo, dando um desses efeitos de vinha suspensa, com a porta da frente um
pouco abaixo do nível da rua, o pátio no telhado, os quartos de dormir no porão e a
garagem parecendo a caçapa do canto de uma mesa de sinuca. Uma primavera
púrpura farfalhava contra a parede da frente, e um gramado coreano orlava as
pedras chatas da calçada da frente. A porta era estreita, gradeada e com um arco
em lanceta por cima. Abaixo da grade via-se uma aldrava de ferro. Bati com ela.
Nada aconteceu. Toquei a campainha ao lado da porta e ouvi-a soar lá dentro,
não muito distante; esperei e nada aconteceu mais uma vez. Tornei a bater com a
aldrava. Nada, ainda. Voltei à calçada lá em cima, passei para a garagem e ergui a
porta o bastante para ver que o carro, com pneus de faixas brancas, estava lá
dentro. Voltei à porta da frente.
Um elegante Cadillac negro saiu da garagem defronte, deu marcha-à-ré, virou e
aproximou-se da casa de Lavery, diminuiu a marcha, e um homem magro, de óculos
escuros, olhou-me intensamente, como se eu não tivesse nada que estar ali. Lancei-
lhe meu olhar de aço e ele seguiu seu caminho. Desci a calçada de Lavery outra vez
e bati mais um pouco com a aldrava. Dessa vez obtive resultados. A portinhola abriu-
se, e vi-me olhando um belo par de olhos brilhantes, através das barras da grade.
— Você faz um barulho dos diabos — disse uma voz.

— O Sr. Lavery?
Ele disse que era o Sr. Lavery e perguntou-me o que desejava. Enfiei um cartão
pela grade. Uma grande mão morena pegou o cartão. Os brilhantes olhos castanhos
retornaram e uma voz disse:
— Sinto muito. Não preciso de nenhum detetive hoje, obrigado.
— Estou trabalhando para Derace Kingsley.
— Ao diabo com vocês dois — ele disse, e bateu a portinhola.
Apoiei-me na campainha ao lado da porta, tirei um cigarro com a mão livre, e
acabava de acender o fósforo na madeira do umbral da porta quando ela se abriu com
um safanão e um sujeito grandão, de calção de banho, partiu para cima de mim.
Retirei o polegar da campainha e sorri para ele.
— Que é que há? — perguntei. — Está com medo?
— Toque essa campainha de novo — ele disse — e eu o jogo do outro lado da rua.
— Não seja criança — eu disse. — Você sabe perfeita- mente bem que eu vou
conversar com você e você comigo.
Tirei o telegrama azul e branco do bolso e segurei-o diante dos brilhantes olhos
castanhos dele. Ele o leu de mau humor, mordeu o lábio e rosnou:
— Oh, pelo amor de Deus, entre então.
Manteve a porta aberta, e entrei, passando por ele, numa sala agradável e pouco
iluminada, com um tapete chinês cor de damasco que parecia caro, poltronas fofas,
vários abajures brancos e grandes, um amplo Capehart no canto, um sofá- cama
comprido e muito largo em mohair castanho claro sarapintado de marrom escuro, e
uma lareira com grade de cobre e um console de madeira branca. Havia fogo por
trás da grade, parcialmente oculto por um vaso de manzanita. A planta estava
amarelando em alguns lugares, mas ainda era bonita. Viam-se uma garrafa de Vat-
69 e copos numa bandeja, e um balde de gelo de cobre numa mesinha baixa, feita
de nó de nogueira, com tampo de vidro. A sala ia até o fundo da casa, e terminava
num arco aberto através do qual apareciam três janelas estreitas e uns poucos
palmos superiores do corrimão branco da escada que levava para baixo.

Lavery fechou a porta e sentou-se no sofá. Pegou um cigarro de uma caixa de prata
trabalhada, acendeu-o e olhou- me irritado. Sentei-me à sua frente e examinei-o. Tinha
tudo em matéria da boa aparência que o instantâneo indicara. Um tórax magnífico,
coxas magníficas. Os olhos eram castanhos, e as escleróticas ligeiramente branco-
cinza. O cabelo era mais para comprido, um pouco encaracolado nas têmporas. A pele
morena nào mostrava sinal algum de degeneraçào. Era um belo pedaço de carne, mas,
para mim, apenas isso. Entendia que as mulheres o achassem uma coisa de
enlouquecer.
— Por que não dizer à gente onde ela está? De qualquer modo, vou acabar
descobrindo mesmo, e se você disser agora, a gente não chateia mais você.
— Seria preciso mais que um xereta particular pra me chatear — ele disse.
— Não, não seria. Um detetive particular pode chatear qualquer um. É persistente
e está acostumado a esnobes. O tempo dele é pago, e ele tanto pode usar esse
tempo pra chatear você quanto pra qualquer outra coisa.
— Escute — ele disse, curvando-se para a frente e apontando o cigarro para mim.
— Eu sei o que diz esse telegrama, mas é um logro. Eu não fui para El Paso com
Crystal Kingsley. Não a vejo há muito tempo... muito antes da data desse telegrama.
Não tive nenhum contato com ela. Já disse isso a Kingsley.
— Ele não tinha de acreditar em você.
— Por que eu iria mentir pra ele? — Parecia surpreso.
— Por que não?
— Escute — disse, ansioso — pode parecer assim para você, que não a conhece.
Kingsley não a controla de jeito nenhum. Se ele não gosta da maneira como ela se
comporta, tem um remédio. Esses maridos possessivos me enojam.
— Se você não foi pra El Paso com ela — perguntei —, por que ela enviou esse
telegrama?
— Não faço a menor idéia.
— Vamos, você pode inventar melhor que isso — eu disse. Indiquei o arbusto de
manzanita na lareira. — Pegou aquilo no Lago Little Fawn?
— Os morros em volta daqui estão cheios de manzanita
— ele disse desdenhosamente.
— Mas ela nào floresce assim aqui embaixo.

Ele riu.
— Estive lá em cima na terceira semana de maio. Se quer saber. Suponho que pode descobrir isso. Foi a última
vez que vi Crystal.
— Não tinha nenhuma idéia de se casar com ela?
Ele soprou a fumaça e disse através dela:
— Pensei nisso, sim. Ela tem dinheiro. E dinheiro é sempre útil. Mas seria um meio
duro demais de conseguir.
Assenti com a cabeça, mas nada disse. Ele olhou o pé de manzanita na lareira e
reclinou-se para trás, soprando a fumaça no ar e mostrando-me a forte linha morena
de sua garganta. Após um instante, como eu continuava sem dizer nada, ele começou
a ficar inquieto. Deu uma olhada no cartão que eu lhe dera e disse:
— Então você se vende pra desencavar sujeira? Vai indo bem no negócio?
— Nada de que me vangloriar. Um dólar aqui, outro ali...
— Todos eles bastante enlameados.
— Escute, Sr. Lavery, não precisamos entrar numa briga. Kingsley acha que você
sabe onde está a mulher dele mas não quer dizer. Ou por maldade ou por uma
questão de delicadeza.
— Qual das duas ele prefere? — escarneceu o bonitão de rosto bronzeado.
— Não se importa, contanto que obtenha a informação. Nào se importa muito com
o que você e ela fazem juntos, ou se fogem ou se ela se divorcia. Quer apenas ter
certeza de que tudo está bem, e que ela não se acha em nenhum tipo de encrenca.
Lavery pareceu interessado.
— Encrenca? Que tipo de encrenca? — Lambeu a palavra em torno dos lábios
morenos, saboreando-a.
— Talvez você não saiba o tipo de encrenca em que ele está pensando.
— Me diga então — ele pediu sarcasticamente. — Eu adoraria saber de algum tipo
de encrenca que não conhecesse.
— Está indo muito bem — eu disse. — Não tem tempo pra falar de assuntos sérios,
mas sempre tem pra uma pia- dinha. Se acha que poderiamos tentar fisgar você
porque cruzou a fronteira estadual com ela, esqueça.
— Vá se lixar, seu sabidào. Teria de provar que eu pa- guei o frete, senão isso não significaria coisa alguma.
— Este telegrama tem de significar alguma coisa — eu disse teimosamente. Pareceu-me que já tinha dito isso
antes, várias vezes.
— É provavelmente apenas um embuste. Ela é cheia de truquezinhos desses.
Todos tolos, e alguns maldosos.
— Não vejo nenhum sentido neste aqui.
Ele bateu a cinza do cigarro cuidadosamente no tampo de vidro da mesa.
Lançou-me um rápido olhar de baixo para cima e desviou imediatamente os
olhos.
— Dei o bolo nela — disse, devagar. — Podia ser uma idéia dela de me
fazer voltar pra ela. Eu devia dar um pulo lá em cima num fim de semana.
Não fui. Eu estava... enjoado dela.
Eu disse: — Hum-hum — e lancei-lhe um longo e firme olhar. — Não gosto
muito disso. Preferiría que você tivesse ido para El Paso com ela, os dois
brigassem e se separassem. Pode contar desse jeito?
Ele corou vigorosamente por trás do bronzeado.
— Saco — disse. — Já lhe falei que não fui a parte alguma com ela. A parte
alguma. Pode se lembrar disso?
— Vou me lembrar quando acreditar.
Ele se curvou para bater a cinza do cigarro. Levantou-se com um
movimento ágil, sem pressa alguma, apertou o cinto de seu roupão e
mudou-se para a ponta do sofá.
— Estâ bem — disse, numa voz límpida e contida. — Dê o fora. Se
evapore. Já escutei o bastante dessa tolice de terceira classe. Está
desperdiçando o meu tempo e o seu... se é que o seu vale alguma coisa.
Levantei-me e dei-lhe um sorriso.
— Não muito, mas, valha o que valer, estou sendo pago por ele. Por
acaso não teriam tido, por exemplo, algum incidente desagradável numa
loja de departamentos... digamos, no balcão de meias ou de jóias?
Ele me olhou cuidadosamente, franzindo as sobrancelhas para baixo,
nos cantos, e apertando a boca.
— Não estou entendendo — disse, mas havia preocupação por trás da
voz.
— Era só o que eu queria saber — eu disse. — E obri
gado pela atenção que me deu. A propósito, em que ramo de negócio esta você... depois que deixou Kingsley?
— Que diabos lhe interessa isso?
— Nada. Mas é claro que sempre posso descobrir — eu disse, e adiantei-me um pouco em direção à porta, não
muito.
— .No momento não estou fazendo nada — disse, friamente. — Espero uma patente na Marinha a qualquer dia.
— Você deve ser bom nisso.
— Ê. Adeus, xereta. E não se dê o trabalho de voltar. Não vou estar em casa.
Fui até a porta e abri-a. Ela pegava no batente de baixo,
devido à umidade da praia. Quando a
segurei aberta, olhei para ele, lâ atrás.
Estava de pé ali, os olhos entrecerrados,
cheio de fúria contida.
— Posso ter de voltar. Mas não será
apenas para trocar piadinhas. Será porque
descobri alguma coisa que precisa ser
discutida.
— Quer dizer então que acha que estou
mentindo — disse, selvagemente.
— Acho que você está escondendo
alguma coisa. Já olhei rostos demais pra
não saber. Talvez não seja nada da
minha conta. Mas, se for, é provável que o
tenha de me expulsar de novo. a
— Será um prazer — ele disse. — E da uu
próxima vez traga alguém pra levá-lo pra e
casa. No caso de cair sobre o traseiro e ro a
esparramar os miolos.
Então, sem qualquer motivo que eu da
pudesse perceber, cuspiu no tapete A
diante de seus pés. do
Aquilo me chocou. Era como ver o na
verniz descascando e revelando um
moleque arruaceiro de beco. Ou como oe
ouvir uma mulher aparentemente uir
refinada começar a expressar-se em sas
palavrões. . da
— Adeus, garoto bonito — eu.disse, e ugir
deixei-o parado ali. Fechei a porta, tive a
de dar um puxão para fazê-la fechar, e nte
subi o caminho até a rua. Fiquei parado s
na calçada olhando a
casa defronte. ue
a1
de
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o

ima-

4
Era uma casa larga e baixa, com paredes de estuque rosa desbotado, que se
tornara um agradável tom pastel, e complementada por um verde fosco nos
umbrais das janelas. O telhado era de telhas verdes, redondas e rústicas. Viam-se
uma porta da frente bem recuada, e ladeada de mosaicos de pedaços
multicoloridos de ladrilhos, e um jardinzinho na frente, por trás de um baixo muro
de estuque encimado por uma grade de ferro que a umidade da praia começara a
enferrujar. Fora do muro, à esquerda, ficava a garagem para três carros, com uma
porta abrindo para dentro do pátio e um caminho de concreto que ia dali até a
porta lateral da casa.
Embutida no portal do portão via-se uma plaqueta de bronze que dizia: “Albert
S. Almore, Médico”.
Enquanto permanecia ali parado, olhando o outro lado da rua, o Cadillac
negro que eu vira antes dobrou a esquina ronronando e desceu a quadra.
Diminuiu a marcha e começou a fazer a curva aberta para entrar na garagem,
mas achou que meu carro atrapalhava a manobra e foi até o fim da rua e fez o
retorno no amplo espaço em frente à grade de ferro ornamental. Voltou devagar
e entrou no terço vazio da garagem do outro lado.
O homem magro, de óculos escuros, percorreu a calçada até em casa,
levando uma maleta de ntédico de alça dupla. A meio caminho diminuiu o passo
para me olhar, do outro lado da rua. Fui para o meu carro. Na casa, ele meteu a
chave na porta e, ao abri-la, tornou a me olhar.
Entrei no Chrysler e fiquei sentado lá dentro, fumando e tentando decidir se
valia a pena contratar alguém para seguir Lavery. Decidi que não valia, não do
jeito que as coisas pareciam até então.
As cortinas se moveram numa janela de baixo, perto da porta lateral em que
o Dr. Almore entrara. Uma mão magra puxava-as para o lado, e assim ficou por
algum tempo, antes de deixá-las cair.
Eu olhava a casa de Lavery. Daquele ângulo, via que a varanda de serviço
dele dava para um lance de degrau de madeira pintada, que levavam a uma
calçada de concreto inclinada, terminando no beco pavimentado embaixo.
Olhei de novo a casa do Dr. Almore, do outro lado, ima
ginando se ele conhecia Lavery e quanto. Provavelmente conhecia-o, já que suas casas eram as
únicas da quadra. Mas, sendo médico, nada me diria sobre ele. Olhando, vi que as cortinas que haviam
sido afastadas estavam agora inteiramente puxadas para os lados.
A parte do meio da janela tripla que elas tapavam não tinha tela. Por trás dela o
Dr. Almore, parado, olhava-me fixamente do outro lado, o rosto magro muito franzido.
Bati a cinza do cigarro do lado de fora da janela e ele se voltou bruscamente e se
sentou a uma mesa. A maleta de alça dupla estava à sua frente. Sentava-se
rigidamente, tamborilando na mesa, ao lado da maleta. Estendeu a mão para o
telefone, tocou-o e tornou a retirá-la. Acendeu um cigarro e sacudiu o fósforo
violentamente, depois andou até a janela e fixou-me por mais algum tempo.
Aquilo estava ficando interessante, quando nada porque ele era médico. Os
médicos, em geral, são os homens menos curiosos do mundo. Quando ainda
internos, ouvem segredos suficientes para satisfazê-los pelo resto da vida. O Dr.
Almore parecia interessado em mim. Mais que interessado, preocupado.
Estendi a mão para ligar a chave, e então a porta de Lavery abriu-se, recolhi a
mão e tornei a me recostar. Lavery subiu em passo acelerado a calçada de sua
casa, disparou um olhar rua abaixo e voltou-se para entrar em sua garagem.
Vestia-se como eu o vira. Tinha uma toalha felpuda e uma manta de sauna no
braço. Ouvi a porta da garagem erguer-se, depois a porta do carro abrir-se e
fechar-se, e em seguida o roncar e tossir do motor dando a partida. Subiu de ré a
rampa até a rua, uma fumaça branca saindo da traseira. Era um belo
conversivelzinho azul, com a capota arriada e a negra e lisa cabeça de Lavery
apenas surgindo acima. Ele usava agora elegantes óculos, de hastes muito largas.
O conversível desceu a rua chispando e dançou na curva.
Nada havia naquilo que me interessasse. O Sr. Christo- pher Lavery dirigia-se à
beira do vasto Pacífico, para deitar-se ao sol e exibir às garotas o que elas não
precisavam, necessariamente, continuar perdendo.
Devolvi minhas atenções ao Dr. Almore. Ele estava ao telefone agora, não falando, mas segurando-o ao ouvido,
fumando e esperando. Depois curvou-se para a frente, como a
gente faz quando a voz volta, ouviu, desligou e anotou alguma coisa numa prancheta à sua frente. Em
seguida surgiu sobre a mesa um pesado livro de bordas amarelas, que ele abriu exatamente no meio. Ao fazer
isso, deu uma rápida olhada para fora da janela, direta ao Chrysler.
Encontrou o que procurava no livro, curvou-se sobre ele e rápidos rolos de fumaça pairaram no ar acima
das páginas. Anotou alguma coisa, guardou o livro e tornou a pegar o telefone. Discou, esperou, pôs-se a
falar apressado, baixando a cabeça e fazendo gestos no ar com o cigarro.
Concluiu o telefonema e desligou. Reclinou-se para trás e ficou ali sentado,
meditando, fitando a mesa, mas sem esquecer de olhar pela janela a cada meio
minuto. Esperava, e eu esperava com ele, sem motivo algum. Os médicos fazem
muitas chamadas telefônicas, falam com muita gente. Os médicos olham por
suas janelas da frente, franzem o cenho, demonstram nervosismo, têm coisas a
esconder e exibem a tensão. Os médicos são apenas pessoas, nascidas para
sofrer, travando a longa e triste luta como o resto de nós.
Mas havia alguma coisa, no modo como aquele se comportava, que me
intrigava. Olhei o relógio, decidi que era hora de comer alguma coisa, acendi
outro cigarro e não me mexi.
Levou cerca de cinco minutos. E aí um sedã verde dobrou a curva em
velocidade e desceu a rua. Encostou diante da casa do Dr. Almore e sua
comprida antena traseira balançou. Um homenzarrão de cabelo louro-areia
saltou e foi até a porta da frente do Dr. Almore. Tocou a campainha e abaixou-
se para acender um fósforo no degrau. Virou a cabeça e olhou para o outro lado
da rua, exatamente onde eu estava.
A porta abriu-se e ele entrou na casa. Uma mão invisível juntou as cortinas
na janela do gabinete do Dr. Almore e ocultou-o. Fiquei sentado ali, olhando o
revestimento das cortinas queimado pelo sol. Mais algum tempo transcorreu,
devagarinho.
A porta da frente tornou a abrir-se e o homenzarrão desceu os degraus
como quem não quer nada e atravessou o portão. Jogou o cigarro longe e alisou
os cabelos. Encolheu os ombros uma vez, beliscou a ponta do queixo e
atravessou a rua em diagonal. Seus passos, naquele silêncio, ressoavam sem
pressa e distintos. As cortinas do Dr. Almore tornaram a abrir-se lá atrás. O
médico, na janela, olhava.

Uma enorme mão sardenta surgiu na janela do carro junto ao meu cotovelo. Um rosto enorme, com rugas
profundas, pairavam acima dela. O homem tinha olhos de um azul metálico. Olhava-me firmemente e falou numa
voz profunda e áspera.
— Esperando alguém? — perguntou.
— Não sei — eu disse. — Estou?
— Eu faço as perguntas.
— Ora, macacos me mordam — eu disse. — Então esta é a resposta para a
pantomima.
— Que pantomima? — Ele me lançou um olhar duro, direto e inamistoso, com
aqueles olhos muito azuis.
Apontei para o outro lado da rua com meu cigarro.
— Nellie Nervosinha e o telefone. Chamando os tiras, depois de
conseguir meu nome no Auto Club, provavelmente, e depois olhando na
lista telefônica. Que é que há?
— Me mostre sua carteira de motorista.
Retribuí-lhe o olhar fixo.
— Vocês costumam mostrar uma carteira... ou bancar o durão é a única
identificação que precisam?
— Se eu tiver de endurecer, meu chapa, você vai saber.
Eu me curvei para a frente, liguei a chave e apertei o botão de partida. O motor
pegou e ficou roncando.
— Desliga esse carro — disse o homem selvagemente, e pôs o pé no estribo.
Tornei a desligar o motor, reclinei-me e olhei para ele.
— Saco, quer que eu tire você daí e jogue na rua?
Peguei minha carteira e entreguei-a ele. Ele tirou o invólucro de
celulóide e olhou a carteira de motorista, depois virou o invólucro e olhou a
cópia fotostática de minha licença, atrás. Enfiou-a desdenhosamente na
carteira e entregou-me. Guardei-a. A mão dele desapareceu e tornou a
aparecer com um distintivo da polícia, azul e dourado.
— Degarmo, tenente-detetive — disse, com sua voz pesada e brutal.
— É um prazer conhecer você, tenente.
— Corta essa. Agora me diga por que está aqui vigiando a casa de Almore.
— Não estou vigiando a casa de Almore, como diz, tenente. Jamais ouvi falar de
Almore, e não sei de motivo algum pelo qual devesse vigiar a casa dele.

Ele virou a cabeça para cuspir. Era o meu dia de encontrar cuspidores.
— Qual é a sua então? Não gostamos de xeretas profissionais por aqui. Não temos nenhum na cidade.
— É mesmo?
— É, é mesmo. Assim, vamos logo, desembuche. A não ser que queira um
passeio até o clube e suar debaixo daquelas luzes fortes.
Não lhe respondi.
— O pessoal dela contratou você? — ele perguntou de repente.
Balancei a cabeça.
— O último cara que tentou, terminou num bando de acorrentados na
manutenção de estradas, queridinho.
— Acho que é uma boa — eu disse — se ao menos soubesse do que se trata.
Tentou o quê?
— Tentou apertar ele — ele disse, numa voz sumida.
— É uma pena que eu não saiba como — eu disse. — Ele parece fácil da gente
apertar.
— Esse tipo de papo não vai levar a nada — ele disse.
— Tudo bem. Vamos dizer o seguinte: eu não conheço o Dr. Almore,
nunca ouvi falar dele e não estou interessado nele. Estou aqui visitando um
amigo e olhando a paisagem. Se estou fazendo qualquer outra coisa,
simplesmente não é de sua conta. Se você não gosta disso, o melhor a
fazer é levar o caso à delegacia central e consultar o oficial de plantão.
Ele moveu um pé, pesadamente, no estribo, e pareceu em dúvida.
— Jogo limpo? — perguntou devagar.
— Jogo limpo.
— Ah, diabos, o sujeito é maluco — disse de repente, e olhou para trás,
por cima do ombro. — Ele devia consultar um médico. — Riu, sem nenhuma
alegria no riso. Tirou o pé de meu estribo e alisou o cabelo areia. — Vá indo,
dê o fora — disse. — Fique fora de nosso território e não vai fazer nenhum
inimigo.
Tornei a apertar o botão de partida. Quando o motor se pôs a ronronar
baixinho, eu disse:
— Como vai Al Norgaard atualmente?
Ele me olhou surpreso.

— Conhece Al?
— É. Ele e eu traWhamos num caso aqui há u ns dois anos... quando Wax era chefe
de polícia.
— Al está na polícia militar. Eu queria estar — disse, amargamente. Começou a
afastar-se, e depois girou rapidamente nos calcanhares. — Vá indo, dê o fora antes
que eu mude de idéia — disse com rispide^.
Atravessou pesadamente a rua e o portão do Dr. Almore. Soltei o freio de mão
e afastei-me. De volta à cidade, fiquei ouvindo meus pensamentos, que entravam
e saíam cer- tinhos, como as mãos magras e nervosas do Dr. Almore puxando as
bordas das cortinas.
De volta a Los Angeles, fiz um lanche e subi para o meu escritório no Edifício
Cahuenga, para ver se havia correspondência. Liguei para Kingsley de lá.
— Estive com Lavery — disse a ele. — Ele me contou sujeira suficiente para
parecer franco. Tentei apertá-lo um pouco, mas não deu em nada. Ainda me
agrada a idéia de que eles brigaram e se separaram, e de que ele ainda espera
fazer as pazes com ela.
— Então ele deve saber onde ela está — disse Kingsley.
— Poderia, mas não bate. A propósito, aconteceu uma coisa meio
esquisita na rua de Lavery. Lá só tem duas casas. A outra pertence a um
tal Dr. Almore. — Contei-lhe em poucas palavras a coisa meio esquisita.
Ele ficou calado por um instante, e depois disse:
— Ê o Dr. Albert Almore?
— É.
— Ele foi médico de Crystal por algum tempo. Foi lá em casa várias
vezes, quando ela estava... bem, quando ela tinha bebido demais. Achei
que era um tanto apressado demais com a seringa. A mulher dele... deixe
ver, aconteceu alguma coisa com a mulher dele. Oh, sim, cometeu suicídio.
Perguntei: — Quando?
— Não me lembro. Há muito tempo. Nunca conheci socialmente o casal. Que
vai fazer agora?
Disse-lhe que ia ao Lago Puma, embora fosse um tanto tarde, naquele dia,
para começar.
Ele disse que eu teria bastante tempo, pois na montanha se tinha mais uma
hora de luz do dia.
Eu disse que isso era ótimo e desliguei.

5
San Bernardino torrava e brilhava no calor da tarde. O ar estava quente o
bastante para me criar bolhas na língua. Eu o cortava arquejando em meu
carro; parei apenas o tempo suficiente para comprar um quartilho de uísque,
prevendo um desmaio antes de chegar às montanhas, e iniciei a longa subida
até Crestline. Em vinte e três quilômetros a estrada se elevara mil e seiscentos
metros, mas mesmo assim estava longe de ser fresca. Quarenta e cinco
quilômetros montanha acima levaram-me aos altos pinheiros e a um lugar
chamado Bubbling Springs. Tinha uma loja de tábuas e uma bomba de
gasolina, mas parecia o paraíso. Dali em diante, foi fresco até o fim.
A represa do Lago Puma tinha uma sentinela armada em cada ponta e
uma no meio. A primeira que encontrei me fez fechar todas as janelas do
carro antes de atravessar a barragem. A cerca de cem metros da represa
uma corda com flutuadores de cortiça impedia os barcos de passeio de
chegarem mais perto. Além desses detalhes, a guerra não parecia ter afetado
muito o Lago Puma.
Canos navegavam na água azul, e barcos a remo, com motores de popa,
roncavam, e lanchas velozes, exibindo-se como crianças, levantavam
grandes ondas de espuma em curvas fechadas, as garotas dentro delas
gritando e riscando a água com as mãos. Sacolejando na esteira das
lanchas, as pessoas que haviam pago dois dólares por uma licença de pesca
tentavam reaver dez centavos de peixe com gosto de cansaço.
A estrada contornava um grande afloramento de granito e descia até uns
prados de mato bravo nos quais crescia o que restava de iris silvestres,
búgulas, castilejas do deserto, ervas- pombinhas e poejos. Altos pinheiros
amarelados espetavam o límpido céu azul. A estrada tornava a descer até o
nível do lago, e a paisagem começava a encher-se de garotas em calções
vistosos, redes no cabelo, lenços de camponesas, sandálias de solas
grossas e gordas coxas brancas. As pessoas que andavam de bicicleta
oscilavam cuidadosamente na rodovia, e de vez em quando um pássaro
ansioso passava tirando fino numa motoneta.
A um quilômetro e meio da aldeia juntava-se à estrada
uma outra menor, que serpeava de volta às montanhas. Uma rústica
placa de madeira embaixo da placa da rodovia dizia: Lago Little Fawn, 1,5
quilômetro. Tomei essa. Cabanas esparsas empoleiravam-se nas
encostas no primeiro meio quilômetro, e depois nada. Finalmente, outra
estrada muito estreita desembocava naquela e outra rústica placa de
madeira dizia: Lago Little Fawn. Estrada Particular. Não Entre.
Virei o Chrysler para essa e segui vagarosa e cuidadosamente, contornando
imensas rochas nuas de granito, uma pequena cachoeira, e atravessando um
labirinto de negros carvalhos, pau-ferro, manzanita e silêncio. Um gaio cantou num
galho e um esquilo me armou uma carranca e bateu a pata, irado, no cone de
pinheiro que segurava. Um pica-pau de crista vermelha parou de bater no seu tronco
o tempo suficiente para me olhar com um olho de conta, esconder-se atrás do tronco
e tornar a me olhar com o outro. Cheguei a uma cancela com cinco barras e outra
placa.
Além da cancela, a estrada serpeava uns duzentos metros, por entre
árvores, e depois, logo abaixo, via-se um lago- zinho oval, no fundo de um
cenário de árvores, rochas e mato bravo, como uma gota de orvalho colhida
numa folha enrolada. Na ponta mais próxima havia uma tosca represa de
concreto, com um corrimão de corda em cima e uma velha roda de moinho
d’água do lado. Junto a isso via-se uma pequena cabana de pinho nativo,
ainda com a casca.
Do outro lado do lago, a uma longa distância pela estrada e a uma curta
pelo alto da represa, uma grande cabana de sequóia dominava a água;
mais além, separadas uma da outra, mais duas cabanas. A grande tinha
janelas com venezianas amarelo-laranja, e uma outra de doze painéis que
dava para o lago.
Na outra extremidade do lago, do outro lado da represa, via-se o que
parecia um pequeno ancoradouro e um coreto. Uma placa de madeira torta,
ali, exibia grandes letras pintadas em branco: Acampamento Kilkare. Eu não
via sentido algum naquilo, naquelas redondezas, e assim saltei do carro e
comecei a descer em direção à cabana mais próxima. Em algum lugar, às
minhas costas, um machado batia.
Bati na porta da cabana. O machado parou. Uma voz de homem gritou
de alguma parte. Sentei-me numa pedra e acendi um cigarro. Ouvi passos
que se aproximavam por trás
da cabana, passos desiguais. Apareceu um homem de rosto rude e pele
morena, trazendo um machado de dois gumes. Era de compleição pesada,
não muito alto, e capengava ao andar, dando à perna direita um ligeiro
impulso a cada passo e movendo o pé num breve arco. Tinha o queixo
escuro, não barbeado, uns olhos azuis firmes, e cabelos revoltos que se
enroscavam sobre as orelhas, precisando desesperadamente de um bom
corte. Usava calças azuis de brim, e uma camisa azul aberta no musculoso
pescoço. Um cigarro pendia do canto da boca. Falava numa voz contida,
apesar de urbana.
— Sim?
— Sr. Bill Chess?
— Eu mesmo.
Levantei-me, tirei a carta de apresentação de Kingsley do bolso e a
entreguei. Ele olhou enviesado para o papel, depois entrou capengando na
cabana e voltou com uns óculos empo- leirados no nariz. Leu a nota
cuidadosamente, e tornou a ler. Colocou-a no bolso da camisa, abotoou-o e
pôs a mão em cima.
— É um prazer conhecer o senhor, Sr. Marlowe. Apertamos as mãos. A dele
parecia uma grosa de madeira.
— Quer ver a cabana do Sr. Kingsley, não é? É um prazer mostrar ao
senhor. Ele não vai vender, pelo amor de Deus? — Olhou-me firmemente e
indicou o lago com o polegar.
— Podería — eu disse. — Tudo está à venda na Califórnia.
— Ora, se não é verdade. Aquela é a dele... aquela coisa ali de sequóia.
Revestida com pinho nodoso, forro de compensado, alicerces e varandas de
pedra, banheiro completo com chuveiro, janelas em toda a volta, grande
lareira, fogão a óleo no quarto grande... e, irmão, é preciso na primavera e no
outono... fogão misto, a gás e a lenha, tudo de primeira classe. Custa cerca de
oito mil, e isso é um bocado de dinheiro por uma cabana na montanha. E
reservatório de água privativo nas montanhas.
— E luz elétrica e telefone? — perguntei, apenas para ser amistoso.
— Luz elétrica, claro. Não tem telefone. Ninguém pode
arranjar um agora. Se pudesse, ia custar muito estender os fios até aqui.
Olhou para mim com olhos azuis firmes e eu o olhei também. Apesar de sua
aparência curtida, parecia dado à bebida. Tinha a pele grossa e reluzente, veias
muito pronunciadas, aquele brilho luminoso nos olhos.
— Perguntei: — Não tem ninguém morando aqui agora?
— Não. A Sra. Kingsley esteve aqui há algumas semanas. Desceu a
montanha. Acho que volta qualquer dia desses. Ele não disse?
Fiz um ar de surpresa.
— Por quê? Ela vem com a cabana, na compra?
Ele armou uma carranca, depois jogou a cabeça para trás e caiu na risada.
O rugido de sua gargalhada era como um trator soltando descarga.
Despedaçou o silêncio da mata.
— Jesus, se isso não é um chute no traseiro! — arquejou.
— Ela vem com a... — Deu outro berro, e a boca fechou-se, como uma
armadilha.
— É, é uma bela cabana — disse, olhando-me cautelosamente.
— Camas confortáveis? — perguntei.
Ele se curvou para a frente e sorriu.
— Quem sabe o senhor não gostaria de uma cara quebrada? — disse.
Olhei-o boquiaberto.
— Essa foi rápida demais pra mim — eu disse. — Nem vi por onde passou.
— Como lá ia eu saber se as camas são confortáveis? — ele rosnou,
curvando-se um pouco de modo a poder atingir- me com uma forte direita, se a
coisa chegasse a isso.
— Não sei por que o senhor não saberia — eu disse. — Não vou insistir nesse
ponto. Posso descobrir pessoalmente.
— É — ele disse com amargor. — Acha que não posso farejar um detetive
quando vejo um? Brinquei de esconde- esconde com eles em todos os
Estados da União. Uma ova pra você, meu chapa. E uma ova pra Kingsley.
Quer dizer então que ele contrata um espião pra vir aqui e ver se estou usando
os pijamas dele, hem? Escute, meu chapa, eu posso ter uma perna dura e
tudo mais, mas as mulheres que eu pego...
Estendi a mão, esperando que ele nào a arrancasse e a jogasse no lago.

— Está indo por caminho errado — eu disse. — Não vim aqui investigar sua
vida amorosa. Nunca vi a Sra. Kingsley. Nunca vi o Sr. Kingsley até hoje de
manha. Qual é o problema com você?
Ele baixou os olhos e esfregou maldosamer.te as costas da mão na boca,
como se quisesse machucar-se. Depois ergueu a mão diante dos olhos e
fechou-a com força, tornou a abri-la e olhou fixamente os dedos. Eles tremiam
um pouco.
— Desculpe, Sr. Marlowe — disse devagar. — Tomei umas e outras a noite
passada e fiquei com uma ressaca daquelas. Estou aqui sozinho há um mês,
e já comecei até a falar sozinho. Me aconteceu uma coisa.
— Algo que um trago possa ajudar?
Os olhos dele entraram em agudo foco sobre mim, fais- cando.
— Tem aí?
Tirei o quartilho de uísque de centeio do bolso e segurei-o de modo que
ele visse o selo verde na tampa.
— Eu não mereço isso. Diabos, não mereço. Espere que eu vou pegar dois
copos, ou prefere entrar na cabana?
— Gosto daqui fora. Estou aproveitando a paisagem.
Girou a perna dura, entrou em sua cabana e voltou trazendo dois copos
pequenos. Sentou-se na pedra junto a mim, cheirando a suor seco.
Tirei a tampa da garrafa e servi uma dose grande para ele e uma pequena
para mim. Batemos os copos e bebemos. Ele rolou a bebida na língua, e um
sorriso triste pôs um pouco de sol em seu rosto.
— Rapaz, essa é da garrafa certa — disse. — Me pergunto o que me fez
falar daquele jeito. Acho que a gente fica meio bravo sozinho aqui em cima.
Sem companhia, sem verdadeiros amigos, sem esposa. — Fez uma pausa e
acrescentou, com um olhar enviesado: — Especialmente sem esposa.
Mantive os olhos na água azul do pequeno lago. Debaixo de um rochedo
que se projetava sobre a água um peixe saltou, num lance de luz e num
círculo de rugas que se expandiam. Uma leve brisa agitava as copas dos
pinheiros com um ruído de suave marulho.
— Ela me deixou — ele disse, devagar. — Me deixou há um mês. Sexta-
feira, 12 de junho. Um dia que vou lembrar sempre.

Fiquei rígido, mas não demasiado para pôr mais uísque no copo vazio dele.
Sexta-feira, 12 de junho, era o dia em que a Sra. Kingsley devia ir à cidade para
uma festa.
— Mas o senhor certamente não quer saber disso — ele disse. E havia em seus
olhos azuis desbotados o profundo anseio de falar sobre o assunto, tão evidente
quanto podia ser.
— Não é da minha conta — eu disse. — Mas se fizesse você se sentir melhor...
Ele assentiu com vigor.
— Dois caras se encontram num banco de jardim — disse — e começam a falar
de Deus. Já notou isso? Caras que não falam de Deus nem com o melhor amigo.
— Eu sei.
Ele bebeu mais um gole e olhou para o outro lado do lago. ... .
— Ela era uma garota ótima — disse baixinho. — Tinha a língua um pouco afiada,
às vezes, mas uma garota ótima. Foi amor à primeira vista, comigo e Muriel.
Encontrei ela num bar em Riverside, há um ano e três meses. Não era o tipo de
bar onde a gente espera encontrar uma garota como Muriel, mas foi assim que
aconteceu. A gente se casou. Eu amava ela. Sabia que estava bem arrumado. E
era cafajeste demais pra enganar ela.
Mexi-me um pouco, para mostrar-lhe que continuava ali, mas não disse
nada, temendo quebrar o sortilégio. Fiquei sentado com a bebida intocada
na mão. Gosto de beber, mas não quando os outros me usam como um
diário. Ele prosseguiu, tristemente:
— Mas você sabe o que acontece no casamento... qualquer casamento.
Depois de um tempo, um cara como eu, um imprestável comum que nem
eu, quer apalpar uma perna. Uma outra perna. Talvez seja sujeira, mas é
assim que é.
Olhou-me, e eu disse que já ouvira falar nisso.
Ele virou o segundo copo. Passei-lhe a garrafa. Um gaio subiu um pinheiro
saltando de galho em galho, sem mover as asas ou sequer parar para equilibrar-
se.
— É — disse Bill Chess. — Todos esses caipiras são meio doidos, e estou ficando assim também. Aqui estou eu
sentado muito bem, sem aluguel pra pagar, um bom cheque de aposentadoria todo mês, metade do meu dinheiro
em bônus de guerra, casado com uma linda lourinha tão bonita quanto
qualquer uma que o senhor já tenha visto, e o tempo todo estou maluco e não sei. Vou atrás daquilo —
Indicou a cabana de sequóia do outro lado do lago, que estava ficando da cor de sangue de boi à luz da
tarde. — Bem no pátio da frente — disse — bem debaixo de minhas janelas, e uma galinha exibida que não
vale mais que uma folha de grama. Jesus, que idiota um cara pode ser.
Tomou seu terceiro copo e equilibrou a garrafa numa pedra. Pescou um cigarro
no bolso da camisa, riscou um fósforo no polegar e tirou rápidas baforadas.
Respirei com a boca aberta, calado como um assaltante atrás de uma cortina.
— Droga — ele disse afinal —, qualquer um podia ver que, se eu queria fazer uma
cagada, tinha de ir pelo menos um pouco longe de casa, pra pegar uma coisa
diferente, pelo menos. Mas a mulherzinha dali do outro lado não é nem isso. Ê
loura, como Muriel, o mesmo tamanho, o mesmo tipo, quase a mesma cor dos
olhos. Mas, irmão, como é diferente daí pra frente. Bonita, claro, mas não mais
bonita do que ninguém, e nem metade disso pra mim. Bem, lá estou eu,
queimando lixo na tal manhã, cuidando de minha vida, até onde cuido dela. E ela
sai pela porta de trás da cabana usando um pijama desses que mostram tudo, tão
fino que a gente pode ver os biquinhos rosas dos peitos contra o pano. E diz
naquela voz dengosa, de gente que não presta: “Tome um trago, Bill. Não trabalhe
tanto numa manhã tão bonita”. E eu, que gosto demais de um trago, vou até a
porta da cozinha e tomo. E depois tomo outro, e mais outro, e aí já estou dentro de
casa. E quanto mais perto chego dela, mais os olhos dela falam em quarto.
Parou e varreu-me com um duro olhar firme.
— O senhor me perguntou se as camas lá eram confortáveis e eu fiquei bravo.
O senhor não queria dizer nada. É que eu estava cheio de lembrar. Ê... a cama
em que eu estive era confortável.
Parou de falar, e deixei as palavras pairarem no ar. Elas caíram lentamente, e
em seguida veio o silêncio. Ele se curvou para pegar a garrafa em cima da pedra
e olhá-la. Parecia lutar com ela, em sua mente. O uísque ganhou a parada, como
sempre acontece. Ele tomou um longo gole bravo direto da garrafa, e depois
torceu a tampa com firmeza, como se aquilo significasse alguma coisa. Pegou
uma pedra e jogou-a na água.

— Atravesso a represa de volta — disse lentamente, numa voz já pastosa pelo


álcool. — Venho suave como uma nova cabeça de pistão. Estou saindo impune de
uma coisa. Nós homens podemos nos enganar tanto nessas coisinhas, não é?
Não vou me safar de jeito nenhum. De nada. Ouço Muriel me dizer, e ela nem
sequer ergue a voz. Mas diz coisas sobre mim mesmo que eu nem imaginava.
Oh, sim, estou me safando daquilo lindamente.
— Aí ela deixou você — eu disse, quando ele se calou.
— Naquela mesma noite. Eu nem estava aqui. Me sentia mesquinho demais
pra ficar nem que fosse meio sóbrio. Saltei no meu Ford, fui para o lado norte do
lago, me enturmei com dois vagabundos iguais a mim e tomamos o maior porre.
Não que isso me fizesse algum bem. Lá pelas quatro da manhã, voltei pra casa
e Muriel tinha ido embora, tinha feito as malas e ido embora. Deixou só um
bilhete na mesa e um pouco de creme facial no travesseiro.
Tirou um pedaço de papel amassado de uma velha carteira e passou-o para
mim. Estava escrito a lápis em papel pautado de azul, de uma caderneta de
anotações. Dizia: “Sinto muito, Bill, mas eu prefiro morrer a viver com você por
mais tempo. Muriel.”
Devolvi-o.
— E lá do outro lado? — perguntei, indicando o outro lado do lago com o
olhar.
Bill Chess pegou uma pedra e tentou fazê-la deslizar sobre a água, mas
não conseguiu.
— Lá, nada — disse. — Ela fez as malas e desceu na mesma noite. Nào tornei
a ver ela de novo. Não quero tornar a ver ela. Não recebi uma palavra de
Muriel por todo um mês, nem uma só palavra. Não tenho a menor idéia de
onde ela está. Com algum outro cara, talvez. Espero que ele trate ela melhor
do que eu tratei.
Levantou-se, tirou umas chaves do bolso e balançou-as.
— Portanto, se quiser atravessar e olhar a cabana de Kingsley, nada lhe
impede. E obrigado por ouvir a novela. E obrigado pela bebida. Tome. — Pegou
a garrafa e me entregou o que restava do quartilho.

Descemos a encosta até a beira do lago e o estreito topo da represa. Bill


Chess girava a perna dura à minha frente, segurando o corrimão de corda
preso em mourões de ferro. Num determinado ponto, a água passava por cima
do concreto, num lento redemoinhar.
— Vou abrir a comporta um pouco de manhã — ele disse por cima do ombro.
— É só pra isso que serve essa maldita coisa. Uma equipe de cinema pôs ela
aqui há três anos. Fizeram um filme aqui. Aquele ancoradourozinho lá
embaixo, na outra ponta, é outra coisa deles. A maior parte do que fizeram foi
desmontado e levado, mas Kingsley fez com que deixassem o ancoradouro e
a roda d'água. Dá ao lugar um toque diferente.
Subi atrás dele um lance de pesados degraus de madeira até a varanda
da cabana de Kingsley. Ele abriu a porta e entramos num ambiente silencioso
e cálido. A sala fechada estava quase quente. A luz que se filtrava pelas
venezianas desenhava estreitas barras no chão. A sala de estar era
comprida, alegre, e tinha tapetes índios, móveis montanheses acolchoados,
com juntas de metal, cortinas de chita, um piso de madeira simples, muitos
abajures e um barzinho embutido, com tamboretes redondos, num canto. A
sala estava limpa e arrumada, e não tinha a menor aparência de haver sido
abandonada de repente.
Entramos nos quartos. Dois deles tinham camas separadas, e um uma
grande cama de casal, com uma colcha creme, bordada com lã cor de
ameixa. Era o quarto principal, segundo Bill Chess. Numa cômoda de
madeira envernizada via-se artigos de toucador, acessórios de aço
inoxidável, com esmalte verde jade, e uma variedade de cosméticos. Dois
potes de creme facial ostentavam a ondulada marca dourada da Gillerlain.
Todo um lado do quarto era coberto de armários com portas corrediças. Abri
um deles e dei uma olhada. Parecia estar cheio de roupas femininas do tipo
que se usam em locais de veraneio. Bill Chess observava-me com um ar
azedo, enquanto eu as revirava. Fechei a porta e abri uma gaveta de
sapatos embaixo. Continha pelo menos meia dúzia de pares, de aparência
nova. Fechei a gaveta com esforço e me endireitei.

Bill Chess estava firmemente plantado à minha frente, com o queixo projetado
para fora e as duras mãos fechadas em punhos nos quadris.
— Pra que queria olhar as roupas da dona? — perguntou numa voz irada.
— Tenho meus motivos — eu disse. — Por exemplo, a Sra. Kingsley não foi pra
casa quando partiu daqui. O marido não a vê desde aquele dia. Não sabe onde
ela está.
Ele deixou cair os punhos e os torceu lentamente nos lados.
— Detetive mesmo — rosnou. — O primeiro palpite é sempre certo. E eu
desembuchei tudo. Rapaz, se não me abri com você. Nellie com as tranças
soltas. Rapaz, eu sou um carinha esperto!
— Eu sei guardar um segredo tão bem quanto qualquer outro — eu disse e,
passando por ele, entrei na cozinha.
Havia um grande fogão verde e branco, uma pia de pinho amarelo laqueado,
um aquecedor de água automático na varanda de serviço, e do outro lado da
cozinha uma alegre sala de desjejum, com muitas janelas e um caro conjunto de
plástico para o café da manhã. As prateleiras eram alegres, com pratos e copos
coloridos e um jogo de travessas de estanho.
Tudo na mais perfeita ordem. Não havia xícaras ou pratos sujos na tábua de
secar, copos manchados ou garrafas vazias de bebida em volta. Não se via
formigas ou moscas. Fosse qual fosse a vida desregrada a que a Sra. Derace
Kingsley se entregasse, conseguia fazer isso sem deixar atrás a sujeira habitual
de Greenwich Village.
Voltei à sala de estar, saí de novo para a varanda da frente e esperei que Bill
Chess fechasse a porta. Depois que ele fez isso e se voltou para mim, com sua
carranca no lugar, eu disse:
— Não pedi a você que botasse o eoração pra fora e espremesse pra mim,
mas também não tentei deter você. Kingsley não precisa saber que a mulher
dele deu em cima de você, a não ser que tenha muito mais coisa por trás disso
do que estou vendo agora.
— Vá pro inferno — ele disse, e a carranca permaneceu exatamente onde
estava.
— Tudo bem, vou pro inferno. Haveria alguma possibi
lidade de sua mulher e a mulher de Kingsley terem partido juntas?
— Não estou entendendo.
— Depois que você saiu pra afogar suas mágoas, elas podiam ter tido uma
briga, feito as pazes e chorado no ombro uma da outra. Depois, a Sra. Kingsley
pode ter levado sua esposa lá pra baixo. Ela tinha de ter algum transporte pra ir
embora, nào?
Soava tolo, mas ele pareceu levar a coisa muito a sério.
— Não. Muriel não era de chorar no ombro de ninguém. Quando fizeram ela,
esqueceram as lágrimas. E se quisesse chorar num ombro, não ia escolher
uma mulher dessas. Quanto ao transporte, ela tem um Ford dela mesma. Não
ia poder dirigir facilmente o meu, porque os controles são adaptados pra minha
perna dura.
— Foi só uma idéia que me passou.
— Se passar uma outra, deixe passar direto.
— Pra um cara que conta todos os podres da vida na frente de completos
estranhos, você é um bocado susceptível.
Ele deu um passo na minha direção.
— Tá achando ruim?
— Escute aqui, companheiro — eu disse. — Estou dando um duro danado
pra achar que você é um cara legal, no fundo. Me dê uma mãozinha, tá?
Ele respirou fundo por um momento, e depois deixou cair as mãos e
abriu-as, sem jeito.
— Rapaz, eu ilumino a tarde de qualquer um — suspirou. — Quer voltar
contornando o lago?
— Claro, se sua perna agüentar.
— Já agüentou muitas vezes antes.
Partimos lado a lado, tão amigos outra vez como cachor- rinhos novos. Isso
provavelmente duraria todos os primeiros cinqüenta metros. A estrada, que
mal dava para a passagem de um carro, pendia acima do nível do lago e
escondia-se entre altos penhascos. Mais ou menos na metade do caminho
para o lado oposto, outra cabana, menor, erguia-se numa fundação de rocha. A
terceira ficava muito além do fim do lago, num trecho de terreno quase plano.
Ambas estavam fechadas, e pareciam desocupadas há muito tempo.
Bill Chess disse, após um ou dois minutos:
— A galinha deu o fora?

— É o que parece.
— Você é um tira dé verdade ou particular?
— Particular.
— Ela fugiu com outro cara?
— Eu diría que é provável.
— Ê claro que fugiu. Está na cara. Kingsley devia imaginar isso. Ela tinha um
monte de amigos.
— Aqui em cima?
Ele nào me respondeu.
— Algum deles se chamava Lavery?
— Eu nào tinha como saber — ele disse.
— Ela nào fazia segredo nenhum sobre esse — eu disse.
— Enviou um telegrama de El Paso dizendo que ia com ele pro México. —
Tirei o telegrama do bolso e estendi-o. Ele mexeu no bolso para tirar os
óculos e parou para ler. Devol- veu-me o papel, tornou a guardar os óculos,
e ficou olhando a água azul.
— Esse é um segredinho pra compensar o que me contou—eu disse.
— Lavery esteve aqui em cima uma vez — ele disse devagar.
— Ele admite que a viu há uns dois meses, provavelmente aqui em
cima. Mas diz que não a viu mais desde então. Não sabemos se podemos
acreditar nele. Não há motivo pra acreditar nem pra não acreditar.
— Então ela não está com ele?
— Ele diz que nào.
— Não acho que ela ia se incomodar com essa bobagem de casamento
— ele disse, sobriamente. — Uma lua-de-mel na Flórida era mais do jeito
dela.
— Mas você nào pode me dar nenhuma informação positiva? Não a viu
partir nem ouviu alguma coisa que parecesse autêntica?
— Nada — ele disse. — E se soubesse, duvido que dissesse. Eu posso
ser sujo, mas não desse tipo.
— Bem, obrigado por tentar — eu disse.
— Não devo nenhum favor a você — ele disse. — Vá pro inferno, você e todos
os malditos xeretas.
— Lá vamos nós de novo — eu disse.
Havíamos chegado agora ao fim do lago. Deixei-o parado ali e encaminhei-
me até o pequeno ancoradouro. Curvei-me
sobre o corrimão de madeira no fim dele e vi que o que parecia um coreto
eram apenas dois pedaços de parede escorados que se encontravam em
ângulo obtuso, voltados para a represa. Cerca de dois palmos de telhado
projetavam-se da parede, como um beirai. Bill Chess aproximou-se por trás de
mim e curvou-se no corrimão a meu lado.
— Não é que eu não agradeça pelo uísque — disse.
— Ê. Tem peixe nesse lago?
— Algumas velhas trutas bastardas e espertas. Não ,se renovam. Não sou lá
muito de peixe. Não ligo pra eles. Desculpe por ter engrossado de novo.
Dei um sorriso e recostei-me no corrimão e fiquei olhando a água funda e
parada lá embaixo. Era- verde, quando a gente olhava de cima para baixo.
Havia um redemoinho lá embaixo, e um vulto esverdeado e veloz movia-se na
água.
— É o Vovozão — disse Bill Chess. — Veja só o tamanho daquele velho
bastardo. Devia se envergonhar de ficar tão gordo assim.
Embaixo da água via-se o que parecia um piso subaquático. Eu não via
sentido naquilo. Perguntei a ele.
— Era um ancoradouro de lancha antes de se fazer a represa, que
ergueu tanto o nível da água que o velho ancoradouro ficou quase dois
metros abaixo.
Um barco de fundo chato se balançava preso a uma corda puída,
amarrada a um mourão no ancoradouro. Repousava na água quase
imóvel, mas não inteiramente. O ar era pacífico, calmo e ensolarado, e
continha um silêncio que a gente não tem nas cidades. Eu ficaria horas ali,
sem fazer nada, a não ser esquecer Derace Kingsley, a mulher dele e os
namorados dela.
Ouvi um movimento brusco a meu lado e Bill Chess disse:
— Olhe lá! — numa voz que rosnava como o trovão nas montanhas.
Seus dedos fortes enfiaram-se na carne de meu braço, até que comecei a
ficar bravo. Ele se inclinara muito para fora do corrimão, olhando fixo para
baixo como um gavião, o rosto tão pálido quanto o bronzeado permitia. Olhei
para baixo como ele, para dentro da água, na borda do ancoradouro
submerso.
Alguma coisa ondulava languidamente, emergindo da escuridão, na borda daquela plataforma verde e
afundada;
hesitou e tornou a desaparecer, ondeando, embaixo do ancoradouro.
Aquela alguma coisa parecera demais com um braço humano.
Bill Chess empertigou o corpo rigidamente. Virou-se sem emitir um som e
voltou capengando pelo ancoradouro. Cur- vou-se sobre uma pilha de pedras
soltas e pegou uma. De onde eu estava, ouvia seus arquejos. Pegou uma pedra
grande, levantou-a até a altura do peito e voltou com ela. Devia pesar uns
cinquenta quilos. Os músculos do pescoço dele saltavam como cordas sob lona,
abaixo da pele morena esticada. Cerrava os dentes e a respiração sibilava por
entre eles.
Chegou ao fim do ancoradouro, endireitou-se e ergueu a pedra bem alto.
Manteve-a por um instante preparada, os olhos fixos lá embaixo, medindo. A
boca emitiu um vago som angustiado, o corpo projetou-se com força para a
frente contra o trêmulo corrimão, e a pesada pedra abateu-se sobre a água.
Sua queda nos cobriu de respingos. A pedra caiu direta e certeira, e bateu
na beira do tabuado submerso, quase exatamente onde tínhamos visto a coisa
ondular para fora e para dentro.
Por um momento, a água foi um borbulhar confuso, depois as rugas
alargaram-se afastando-se, tornando-se cada vez menores com um vestígio
de espuma no meio, e ouviu-se um som abafado de madeira quebrando-se
embaixo d’água, um som que pareceu chegar-nos muito tempo depois daquele
em que devíamos ouvi-lo. Uma velha tábua podre irrompeu de repente na
superfície, projetou para fora um palmo de ponta dentada, tornou a cair com
um barulho seco e flutuou.
O fundo tornou a clarear. Alguma coisa, que não era uma tábua, movia-se
lá embaixo. Ergueu-se lentamente, com um langor de infinita indiferença —
uma coisa comprida e contorcida que rodopiava preguiçosamente na água
enquanto subia. Rompeu a superfície casualmente, levemente, sem pressa. Vi
lã, encharcada e negra, uma jaqueta de couro mais negro que tinta, uns
calções. Vi sapatos e algo que se estufava nauseantemente entre os sapatos e
as bainhas do calção. Vi uma onda de cabelos louros escuros espalhar-se na
água, e parar por um breve instante, como num efeito calculado, e depois
voltar a redemoinhar numa massa.

A coisa rolou mais uma vez, um braço bateu pouco acima da superfície, e o
braço terminava numa mão inchada, a mão de um monstro. Depois surgiu o
rosto. Uma massa de polpa cinza inchada, sem feições, sem olhos, sem boca.
Um borrão de matéria cinza, um pesadelo com cabelos humanos.
Via-se um grosso colar de pedras verdes no que fora um pescoço, pedras
grandes e rústicas meio enterradas na carne, com alguma coisa que brilhava
unindo umas às outras.
Bill Chess agarrava-se ao corrimão, e seus dedos pareciam ossos polidos.
— Muriel! — disse a voz dele, coaxando. — Meu Deus, é Muriel!
A voz parecia chegar-me de uma longa distância, por trás de uma
montanha, através de uma densa e silenciosa floresta.

Atrás da janela do barraco de tábuas, via-se a ponta de um balcão com


uma pilha de pastas de papel. A metade de cima da porta, de vidro, tinha
letras em tinta negra descascada. Chefe de Polícia. Chefe dos Bombeiros.
Delegado Municipal. Câmara de Comércio. Nos cantos de baixo, havia um
cartão da USO e um emblema da Cruz Vermelha pregados no vidro.
Entrei. Havia uma estufa num canto e uma escrivaninha de tampo
corrediço no outro, atrás do balcão. Na parede, um grande mapa do distrito,
e ao lado uma tábua com quatro ganchos, de um dos quais pendia uma
pesada jaqueta. No balcão, ao lado das pastas empoeiradas, viam-se a
caneta, o mataborrão sujo e o vidro de tinta viscosa costumeiros. A parede
dos fundos, ao lado da mesa, estava coberta de números de telefone
riscados fundo, que durariam tanto quanto madeira e pareciam ter sido
escritas por uma criança.
À mesa sentava-se um homem numa cadeira de braços de madeira e
com as pernas, de trás e da frente, apoiadas em pranchas, como esquis.
Junto à perna direita do homem via-se uma escarradeira suficientemente
grande para conter um rolo de mangueira de borracha. Na cabeça, ele usava
um chapéu Stetson jogado para trás, e as grandes mãos sem pêlos,
confortavelmente trançadas sobre a barriga, acima do cós da calça
cáqui que se esgarçara de tanto lavar há anos. A camisa combinava com
a calça, só que parecia mais desbotada ainda, abotoada até o grosso
pescoço e sem nenhuma gravata. Os cabelos eram de um castanho de rato,
exceto nas têmporas, onde tinham a cor de neve antiga. Sentava-se mais
sobre a nádega esquerda do que sobre a direita, porque usava um coldre por
dentro do bolso traseiro direito, e meio palmo de um quarenta e cinco subia e
comprimia-lhe as sólidas costas. A estrela na parte esquerda do peito tinha
uma ponta torta.
Ele tinha orelhas grandes e olhos amistosos, a queixada mastigava
lentamente, e sua aparência era tão perigosa quanto a de um esquilo, e muito
menos nervosa. Gostei de tudo nele. Curvei-me sobre o balcão, olhei-o, ele me
olhou, acenou com a cabeça e disparou meio quartilho de sumo de tabaco rente
à perna direita, na escarradeira. A coisa fez um som nojento de algo caindo
n’água.
Acendi um cigarro e olhei em volta, buscando um cinzeiro.
— Experimente jogar no chão, filho — disse o homenzarrão amistoso.
— É o xerife Patton?
— Delegado e subxerife. O que quer de lei que a gente tenha por aqui, sou
eu mesmo. Pelo menos, até as próximas eleições. Tem aí uns dois bons
rapazes concorrendo contra mim, desta vez, e é possível que eu leve um
banho. O emprego paga oitenta por mês, com cabana, lenha e eletricidade.
Não tem trigo nessas velhas montanhazinhas.
— Ninguém vai vencer o senhor — eu disse. — O senhor vai ter um bocado de
publicidade.
— É mesmo? — ele perguntou, indiferentemente, e tornou a arruinar a
escarradeira.
— Quer dizer, se sua jurisdição se estende até o Lago Little Fawn.
— A casa de Kingsley. Claro. Algum problema por lá, filho?
— Tem uma mulher morta no lago.
Isso o abalou até a medula. Ele destrançou as mãos e coçou uma orelha.
Levantou-se, agarrando-se aos braços da cadeira e escoiceando-a habilmente
para trás. De pé, era um homem grande e duro. A gordura era pura jovialidade.

— Alguém que eu conheça? — perguntou, pouco à vontade.


— Muriel Chess. Acho que o. senhor a conhece. A mulher de Bill Chess.
— E, conheço Bill Chess. — A voz endureceu um pouco.
— Parece suicídio. Ela deixou um bilhete que soa como se estivesse indo
para longe. Mas pode ser um bilhete de suicida também. Não está muito bonita
de se ver. Esteve muito tempo dentro d’água, cerca de um mês, a julgar pelas
circunstâncias.
Ele coçou a outra orelha.
— E que circunstâncias seriam essas? — Agora vasculhava meu rosto com
os olhos, lenta e calmamente, mas avaliando. Não parecia ter pressa alguma
de soprar o apito.
— Eles tiveram uma briga há um mês. Bill foi pra margem norte do lago e
ficou por lá algumas horas. Quando voltou, ela tinha ido embora. E ele nunca
mais a viu.
— Eu sei. Quem é você, filho?
— Meu nome é Marlowe. Vim de Los Angeles para examinar a propriedade.
Trouxe um bilhete de Kingsley para Bill Chess. Ele me levou para ver o lago e
fomos até aquele anco- radourozinho que o pessoal do cinema construiu.
Estávamos apoiados no corrimão, olhando a água lá embaixo, quando uma
coisa que parecia um braço acenou de debaixo do tablado submerso, o velho
ancoradouro. Bill jogou uma pedra grande em cima do tablado e o corpo subiu.
Patton olhava-me sem mover um músculo.
— Escute, xerife, não seria melhor dar um pulo até lá? O homem está meio
maluco com o choque, e está lá completamente só.
— Quanto ele bebeu?
— Muito pouco, quando saí. Eu tinha um quartilho, mas bebemos a maior
parte dele conversando.
Ele foi até a escrivaninha de tampo corrediço e abriu uma gaveta. Retirou
três ou quatro garrafas e segurou-as contra a luz.
— Esta belezinha está quase cheia — disse, indicando uma delas. — Uísque
Mount Vernon. Isso deve segurar ele. O município não me dá verba pra bebida
de emergência, de modo que tenho de pegar um pouquinho aqui e ali. Eu
mesmo
não consumo. Nunca pude entender por que as pessoas se deixam entupir disso.
Pôs a garrafa no bolso traseiro esquerdo, fechou a gaveta e suspendeu a
passagem no balcão. Pregou um cartão do lado de dentro do painel de vidro da
porta. Dizia: Volto em Vinte Minutos — Talvez.
— Vou dar um pulo lá embaixo e trazer o Dr. Hollis — disse. — Volto logo e pego
você. Aquele é o seu carro?
— Ê.
— Pode vir junto então, quando eu passar na volta.
Entrou num carro com sirene, duas luzes vermelhas, dois faróis de milha, uma
placa vermelha e branca de bombeiro, uma nova sirene contra ataques aéreos
em cima, três machados, dois grossos rolos de corda e um extintor de incêndio
no banco de trás, gasolina, óleo de reserva e latas d’água num suporte sobre o
estribo, um pneu sobressalente a mais amarrado no normal, o estofo saindo dos
assentos em bolos sujos, e um dedo de poeira sobre o que restava da pintura.
Atrás do canto de baixo do pára-brisas, à direita, via-se um cartão branco
com maiúsculas em letra de forma. Dizia:
“ELEITORES, ATENÇÃO! MANTENHAM JIM PAT- TON COMO
DELEGADO. ELE ESTÂ VELHO DEMAIS PARA IR TRABALHAR.”
Virou o carro e desceu a rua num redemoinho de poeira branca.

Parou na frente de uma casa de esquadrias brancas do outro lado do


depósito. Entrou na casa branca e acabou saindo com um homem que entrou
para o banco de trás, junto com os machados e as cordas. O carro oficial voltou
rua acima e eu o segui. Passamos pela rua principal em meio a calças largas,
calções, malhas de marinheiro francês, lenços de cabeça, joelhos nodosos e
lábios escarlates. Depois da aldeia, subimos um morro poeirento e paramos
numa cabana. Patton tocou delicadamente a sirene, e um homem de macacão
azul desbotado abriu a porta.

— Entre aí, Andy. Trabalho.


O homem de macacão azul assentiu, taciturno, e entrou curvado na cabana.
Voltou usando um chapéu de caçador de leões cinza-ostra e enfiou-se atrás do
volante do carro de Pat- ton, enquanto o xerife deslizava para o assento ao lado. O
homem tinha cerca de trinta anos, moreno, flexível, com a aparência ligeiramente
suja e subnutrida do pessoal da região.
Partimos para o Lago Little Fawn comigo comendo poeira suficiente para fazer
uma fornada de adobes. Na cancela de cinco barras, Patton saltou e abriu para
nós e descemos até o lago. O xerife tornou a saltar, foi até a beira d'água e olhou
em direção ao pequeno ancoradouro. Bill Chess estava sentado, nu, no piso do
ancoradouro, com a cabeça nas mãos. Via-se algo estendido nas tábuas
molhadas a seu lado.
— Podemos ir de carro mais um pouco adiante — disse Patton.
Os dois carros desceram até a extremidade do lago e nós quatro saltamos no
ancoradouro atrás de Bill Chess. O médico parou para tossir forte num lenço, e
depois olhou-o pen- sativamente. Era um homem anguloso, de olhos de sapo,
com um rosto triste e doentio.
A coisa que fora uma mulher jazia de rosto para baixo nas tábuas, com uma
corda passada por baixo dos braços. A um lado, viam-se as roupas de Bill
Chess. A perna dura, coberta de cicatrizes no joelho, estendia-se diante dele,
enquanto a outra se curvava para cima, apoiando a cabeça dele. Bill não se
moveu nem ergueu o olhar quando descemos às suas costas.
Patton tirou o quartilho de Mount Vernon do bolso de trás, destampou-o e
entregou-o a ele.
— Beba à vontade, Bill.
Pairava no ar um cheiro horrível, nauseante. Bill Chess parecia não notá-lo,
nem Patton, nem o médico. O tal Andy pegou um cobertor marrom empoeirado
no carro e jogou-o por cima do cadáver. Depois, sem uma palavra, foi vomitar
embaixo de um pinheiro.
Bill Chess sorveu um longo gole e ficou ali sentado, segurando a garrafa
contra o joelho dobrado. Começou a falar numa voz dura como pau, sem olhar
para ninguém, sem dirigir-se a ninguém em particular. Falou da briga e do que
acontecera depois, mas não do motivo pelo qual acontecera.

Nào falou da Sra. Kingsley nem de passagem. Disse que, depois que eu o
deixara, ele pegara uma corda, dcspira-se, caíra n’água e retirara a coisa.
Puxara-a para a margem, pusera-a nas costas e carrcgara-a para o
ancoradouro. Nào sabia dizer por que fizera isso. Tornara a cair n’água depois.
Não precisava nos explicar porquê.
Patton pôs um pedaço de fumo de mascar na boca e mastigou-o em
silêncio, os olhos calmos cheios de nada. Depois cerrou os dentes com força e
curvou-se para puxar o cobertor de cima do cadáver. Virou-o cuidadosamente,
como se ele fosse desmanchar-se. O sol do fim da tarde faiscou no colar de
grandes pedras verdes, parcialmente enterradas no pescoço inchado. As
pedras eram rústicas e sem brilho, como pedra-sabão ou falso jade. Uma
corrente dourada, com um fecho em forma de águia incrustada de pequenos
brilhantes, juntava as pontas. Patton endireitou as costas largas e assoou o
nariz num lenço marrom.
— Que acha, Doc? — perguntou ao médico.
— Do quê?
— Causa e hora da morte.
— Não seja idiota, Jim Patton.
— Não pode dizer nada, hem?
— Apenas olhando isso? Deus do céu!
Patton deu um suspiro.
— Parece afogada, sem dúvida — admitiu. — Mas a gente nunca sabe. Já
teve casos em que a vítima foi esfaqueada ou envenenada, ou alguma
coisa assim, e depois jogada na água para parecer uma coisa diferente.
— Vocês têm muito disso por aqui? — o médico perguntou
malignamente.
— O único assassinato autêntico que já tive aqui em cima — disse
Patton, olhando Bill Chess pelos cantos dos olhos — foi o velho Dad
Meacham lá na margem norte. Ele tinha um barraco em Sheedy Canyon,
fazia um pouco de garimpagem no verão, numa concessão que tinha num
velho terreno de aluvião no vale, perto de Belltop. As pessoas deixaram de
ver ele por algum tempo em fins de outono, e depois caiu uma pesada
nevasca e o telhado dele afundou de um lado. Por isso a gente foi lá
escorar um pouco a casa, imaginando que Dad tinha descido a montanha
durante o inverno sem dizer a ninguém, que é como esses velhos
garimpeiros
fazem as coisas. Bem, por Deus, o velho Dad jamais desceu a
montanha. Lá estava ele na cama, com a maior parte de um machado
enfiada na nuca. A gente nunca descobriu quem fez aquilo. Alguém
imaginou que ele tinha um saquinho de ouro escondido, das garimpagens
de verão.
Olhou pensativamente para Andy. O homem de chapéu de caçador de leões
apalpava um dente. Disse:
— Claro que a gente sabe quem foi que fez aquilo. Foi Guy Pope. Só que Guy
morreu de pneumonia nove dias antes da gente achar Dad Meacham.
— Onze dias — disse Patton.
— Nove — disse o homem com chapéu de caçador de leões.
— Isso foi há seis anos, Andy. Seja como você queira, filho. Como acha que
Guy Pope fez a coisa?
— A gente encontrou cerca de três onças de pequenas pepitas na cabana de
Guy, junto com um pouco de ouro em pó. E no aluvião de Guy nunca teve nada
maior que grãos de areia. Dad tinha pepitas do peso de um penny, muitas
vezes.
— Bem, assim é que são as coisas — disse Patton, e sorriu para mim de um
modo vago. — Os caras sempre esquecem alguma coisa, não é? Por mais
cuidado que tenham.
— Conversa de tira — disse Bill Chess repugnado, vestiu as calças e sentou-
se de novo para pôr os sapatos e a camisa. Depois de vestido, levantou-se e
curvou-se para pegar a garrafa, tomou um bom gole e depositou a garrafa
cuidadosamente nas tábuas. Estendeu os punhos peludos para Patton.
— É desse jeito que vocês tiras pensam, ponha as algemas e vamos acabar
logo com isso — disse, numa voz selvagem.
Patton ignorou-o, foi até o corrimão e olhou para baixo.
— Lugar engraçado, pra se achar um cadáver — disse. — Não tem corrente
aqui que valha a pena falar, mas o pouco que tem seria em direção à represa.
Bill Chess baixou os punhos e disse baixinho:
— Foi ela mesma que quis, seu maldito idiota. Muriel era uma excelente
nadadora. Ela mergulhou, se meteu debaixo das tábuas lá embaixo e
simplesmente respirou a água. Tem de ser. Não tem outro jeito.

— Eu nào diria exatamente isso, Bill — respondeu Pat- ton suavemente. Tinha
os olhos vazios como pratos novos. Andy balançou a cabeça. Patton olhou-o
com um sorriso matreiro.
— Matutando de novo, Andy?
— Foi nove dias, estou dizendo a você. Eu contei pra trás — disse
taciturnamente o homem com o chapéu de caçador de leão.
O médico ergueu os braços e afastou-se, com uma mão na cabeça. Cuspiu
no lenço outra vez, e outra vez olhou-o com apaixonada atenção.
Patton piscou para mim e cuspiu por cima do corrimão.
— Vamos passar a esse aí, Andy.
— Já tentou arrastar um cadáver dois metros abaixo d'água?
— Não, não posso dizer que já tentei, Andy. Algum motivo pelo qual não se
pudesse fazer isso com uma corda?
Andy deu de ombros.
— Se foi com uma corda, tem marcas no corpo. Se a pessoa vai se
denunciar desse jeito, por que se dar o trabalho de encobrir o crime?
— Questão de tempo — disse Patton. — O cara tem de fazer seus arranjos.
Bill Chess rosnou para eles e estendeu a mão para pegar a garrafa.
Olhando aqueles solenes rostos montanheses, eu não poderia dizer o que
realmente pensavam. Patton disse suavemente:
— Falaram alguma coisa de um bilhete.
Bill Chess remexeu em sua carteira e retirou a folha dobrada de papel
pautado. Patton pegou-a e leu-a vagarosamente.
— Não parece ter data nenhuma — observou.
Bill Chess balançou a cabeça sombriamente.
— É. Ela partiu há um mês, 12 de junho.
— Já tinha deixado você uma vez, não tinha?
— É. — Bill Chess olhou-o fixamente. — Me embebedei e desabei. Pouco
antes da primeira neve em dezembro passado. Ela ficou fora uma semana, e
voltou toda embonecada. Disse que precisava se afastar um pouco, e ficou
aquele tempo com uma garota com quem trabalhava em Los Angeles.
— Como era o nome dessa pessoa? — perguntou Patton.

— Ela nunca me disse, e eu nunca perguntei. O que Muriel fazia estava bem pra mim.
— Claro. Deixou bilhete dessa vez, Bill? — perguntou Patton com voz macia.
— Não.
— Este bilhete aqui parece muito antigo — disse Patton, mostrando-o.
— Andei com ele um mês — rosnou Bill Chess. — Quem disse a você que ela
me deixou antes?
— Esqueci — disse Patton. — Você sabe como é, num lugar como este. Não
tem muita coisa que as pessoas não notem. A não ser, talvez, no verão, quando
tem um bocado de estranhos por aí.
Ninguém disse coisa alguma por algum tempo, e depois Patton falou,
ausentemente:
— Disse que ela foi embora a 12 de junho? Ou só acha que ela foi embora
nesse dia? Você falou que o pessoal do outro lado do lago estava lá na época?
Bill Chess ergueu o olhar para mim e seu rosto tornou a ensombrecer-se.
— Pergunte a esse espião aí... se é que ele já não lhe deu o serviço.
Patton não me olhou de modo algum. Olhou a linha de montanhas muito
além do lago. Disse delicadamente:
— O Sr. Marlowe aqui não me disse nada, Bill, a não ser como o corpo surgiu
na superfície da água e de quem era. E que Muriel tinha ido embora, segundo
você pensava, e deixado um bilhete que você mostrou a ele. Não creio que
tenha alguma coisa errada nisso, tem?
Houve outro silêncio, e Bill Chess baixou o olhar para o cadávei coberto com
a manta a alguns palmos de distância. Cerrou o: punhos, e uma grossa lágrima
rolou-lhe pela face.
— A ora. Kingsley estava aqui — ele disse. — Desceu a montanha no mesmo
dia. Não tinha ninguém nas outras cabanas. Os Perry e os Farquar ainda não
estiveram aqui este ano.
Patton assentiu com a cabeça e ficou calado. Uma espécie de vazio pesado
pairava no ar, como se alguma coisa que não fora dita estivesse clara para
todos eles e não precisasse ser dita.
Depois Bill Chess disse, enlouquecido:

— Me prendam, seus filhos da puta! Ê claro que fui eu quem fez isso. Eu
afoguei ela. Era minha garota e eu amava ela. Eu sou um patife, sempre fui,
sempre vou ser, mas mesmo assim eu amava ela. Talvez vocês tiras não
compreendam isso. Mas não se dêem o trabalho de tentar. Me prendam,
malditos!
Ninguém disse coisa alguma.
Bill Chess baixou o olhar para seu duro punho moreno. Girou-o
maldosamente e atingiu-se a si mesmo no rosto, com toda a força.
— Seu maldito filho da puta — arquejou num ríspido sussurro.
O nariz começou a sangrar lentamente. Ele ficou ali parado, o sangue
escorrendo pelo lábio, pelo canto da boca, até a ponta do queixo. Uma gota
caiu lentamente na camisa. Patton disse em voz baixa:
— Vou ter de levar você lá pra baixo, pra interrogar, Bill. Você sabe disso. A
gente não está acusando você de nada, mas o pessoal lá embaixo tem de falar
com você.
Bill Chess disse, numa voz densa:
— Posso mudar de roupa?
— Claro. Vá com ele, Andy. E veja o que pode arranjar para enrolar o
que ele tem aqui.
Eles se afastaram pela trilha à beira do lago. O médico pigarreou e
olhou para a água por cima da amurada e deu um suspiro.
— Vai querer mandar o cadáver lá pra baixo em minha ambulância, não vai?
Patton balançou a cabeça.
— Não. Este é um município pobre, Doc. Imagino que a senhora pode viajar
mais barato do que o que você cobra por essa ambulância.
O médico afastou-se dele furioso, dizendo por cima do ombro:
— Me informe se quiser que eu pague o funeral.
— Isso não é jeito de falar — disse Patton com um suspiro.
O Indian Head Hotel era um prédio marrom, numa esquina, do outro lado do
novo salão de dança. Estacionei na frente dele, usei a sua sala de repouso para
lavar o rosto e as mãos e retirar as agulhas de pinheiro dos cabelos, antes de
passar ao restaurante e bar vizinho ao saguão. Todo o lugar transbordava de
homens de jaqueta esporte e cheirando a bebida, e de mulheres que davam
risadas estridentes, exibiam unhas vermelhas como sangue de boi e sujeira nos
nós dos dedos. O gerente da casa, um cara grosseiro e caixa baixa, em mangas
de camisa e com um charuto mastigado, patrulhava o salão com olhos vigilantes.
No caixa, um homem de cabelos claros lutava para ouvir as notícias da guerra
num rádio tão cheio de estática quanto o purê de batata estava cheio de água. No
canto mais ao fundo do salão, uma banda caipira de cinco membros, vestidos com
paletós brancos que caíam mal e camisas púrpura, tentava fazer-se ouvir acima da
algazarra do bar, com um vítreo sorriso para dentro do nevoeiro de fumaça de
cigarros e do zumbido de vozes alcoolizadas. Em Puma Point, o verão, essa
estação adorável, estava a todo vapor.
Engoli o que chamavam de um jantar simples, bebi um conhaque para
rebatê-lo e saí para a rua principal. Era ainda pleno dia, mas alguns dos
anúncios de neon já estavam acesos, e a tarde passava sob o alegre barulho de
buzinas de automóveis, gritos de crianças, bolas de boliche rolando, rifles 22
estalando nas galerias de tiro, vitrolas automáticas tocando feito doidas, e por
trás de tudo isso, no lago, o áspero rugir ladrado das lanchas a motor voando
para parte alguma e agindo como se disputassem corridas com a morte.
Em meu Chrysler, sentava-se uma garota esbelta, de aparência séria e
cabelos castanhos, calças largas, fumando um cigarro, conversando com um
vaqueiro de hotel-fazenda sentado no estribo. Contornei o carro e entrei. O
vaqueiro afastou-se, puxando as calças jeans para cima. A garota não se
mexeu.
— Eu sou Birdie Keppel — ela disse, alegremente. — Sou esteticista aqui
durante o dia, e de noite trabalho no jornal Puma Point Banner. Desculpe estar
sentada em seu carro.
y Tudo bem — eu disse. — Quer só ficar sentada ou quer ir a algum lugar?
— Pode descer a rua um pedaço, até um lugar mais tranqüilo, Sr. Marlowe. Se tiver a gentileza de
conversar comigo.
— As informações correm rápido aqui em cima — eu disse, e liguei o carro.
Passei pelo correio e cheguei a uma esquina onde uma seta azul e branco,
com a palavra “Telefone”, indicava uma estreita estrada abaixo, em direção ao
lago. Dobrei nela, passei na descida pela agência da telefônica, que era uma
cabana de madeira com um minúsculo gramado cercado na frente, passei por
outra pequena cabana e parei diante de um imenso carvalho, que lançava
seus galhos até o outro lado da estrada, uns bons quinze metros acima.
— Aqui está bom, Srta. Keppel?
— Senhora. Mas pode me chamar de Birdie. Todo mundo chama. Aqui
está ótimo. Ê um prazer conhecer o senhor, Sr. Marlowe. Soube que vem de
Hollywood, aquela cidade do pecado.
Estendeu uma firme mão morena e eu a apertei. O trabalho de enfiar
grampos de bobs em louras gordas havia-lhe proporcionado um aperto de
mão semelhante ao de pinças de pegar gelo.
— Estive falando com Doc Hollis — ela disse — sobre a pobre Muriel
Chess. Achei que o senhor podería me fornecer alguns detalhes. Pelo que
sei, foi o senhor quem achou o corpo.
— Na verdade, foi Bill. Eu só estava com ele. A senhora falou com Jim
Patton?
— Ainda não. Ele desceu a montanha. De qualquer modo, não acho que
Jim fosse me dizer muita coisa.
— Ele quer ser reeleito — eu disse. — E você é uma jornalista.
— Jim não é político, Sr. Marlowe, e eu dificilmente poderia me dizer uma
jornalista. O jornalzinho que tiramos aqui é coisa muito amadora.
— Bem, que deseja saber? — Ofereci-lhe um cigarro e acendi-o.
— O senhor poderia simplesmente me contar a história.

— Eu subi aqui com uma carta de Derace Kingsley para examinar a propriedade dele. Bill
Chess me mostrou tudo, começou a falar comigo, disse que a mulher dele o tinha abandonado e me mostrou o
bilhete que ela deixou. Eu tinha uma garrafa e ele castigou firme. Estava um bocado por baixo. A bebida o
relaxou mas estava solitário e louco pra falar, de qualquer modo. Foi isso que aconteceu. Eu não o conhecia.
Voltando pela extremidade do lago, a gente saiu no ancoradouro e Bill localizou um braço ondulando para fora
do tablado embaixo d'água. Acontece que o braço pertencia ao que restava de Muriel Chess. Acho que isso é
tudo.
— Eu soube por Doc Hollis que ela estava dentro d'água há muito tempo. Em
adiantado estado de decomposição, e essa coisa toda.
— Ê. Provavelmente durante todo o mês que ele achava que ela tinha ido
embora. Não há motivo pra pensar diferente. O bilhete é um bilhete de suicida.
— Alguma dúvida a esse respeito, Sr. Marlowe?
Olhei-a de lado. Olhos negros pensativos miravam-me por baixo do cabelo fofo.
O crepúsculo começara a baixar agora, muito devagar. Não se dera mais que uma
leve mudança no tom da luz.
— Acho que a polícia sempre tem dúvidas nesses casos
— eu disse.
— E o senhor?
— Minha opinião não serve pra nada.
— Mas pelo que serve?
— Só conheci Bill Chess hoje de tarde. Ele me pareceu um rapaz de
temperamento instável, e, segundo suas próprias palavras, não é exatamente um
santo. Mas parece que estava apaixonado pela mulher. E não consigo imaginar ele
rondando um mês por aí, sabendo que a mulher estava apodrecendo dentro d'água
debaixo daquele ancoradouro. Saindo da cabana para o sol, olhando aquela mansa
água azul, vendo na mente o que estava embaixo dela e o que acontecia ao corpo.
E sabendo que foi ele quem pôs ela ali.
— Eu também não — disse Birdie Keppel baixinho. — Nem ninguém. E, no
entanto, sabemos aqui dentro que já aconteceram coisas dessas, e que tornarão a
acontecer. O senhor está no ramo de imóveis, Sr. Marlowe?
— Não.
RAYMOND CHANDLER
— No que trabalha, se é que posso perguntar?
— Prefiro não dizer.
— Isso é quase o mesmo que dizer — ela disse. — Além disso, Doc Hollis ouviu o senhor dizer o seu nome
completo a Jim Patton. E nós temos uma lista telefônica de Los Angeles em nosso escritório. Não falei disso a
ninguém.
— É muita bondade sua.
— E mais ainda: não vou falar — ela disse. — Se não quiser que eu fale.
— Quanto vai me custar?
— Nada — ela disse. — Absolutamente nada. Não sou lá uma jornalista muito
boa. E não publicamos nada que possa embaraçar Jim Patton. Ele é o sal da terra.
Mas isso revela alguma coisa, não revela?
— Não tire nenhuma conclusão errada — eu disse. — Eu não tinha nenhum
interesse em Bill Chess.
— Nem em Muriel Chess?
— Por que ia ter algum interesse em Muriel Chess?
Ela bateu cuidadosamente a cinza do cigarro no cinzeiro embaixo do painel do
carro.
— Seja como quiser — disse. — Mas aqui vai uma questãozinha pro senhor
pensar, se já não sabe. Esteve aqui há cerca de um mês e meio um tira de Los
Angeles chamado De Soto, um grandalhão muito do mal educado. A gente não
gostou dele e não cooperou muito com ele. Quer dizer, nós três lá da redação do
Banner. Ele trouxe uma fotografia e disse que estava procurando uma mulher
chamada Mildred Havilland. Assunto da polícia. Era uma foto comum, um
instantâneo ampliado, não uma foto da polícia. Ele disse que tinha informações de
que a mulher estava aqui em cima. A foto parecia um bocado com Muriel Chess.
O cabelo parecia arruivado e com um penteado muito diferente do que ela usava
aqui, as sobrancelhas depiladas formando uns arcos finos. Isso muda muito uma
mulher. Mas parecia um bocado com a mulher de Bill Chess. •
Tamborilei na porta do carro e, após um momento, disse:
— Que foi que vocês disseram a ele?
— Não dissemos nada. Primeiro, a gente não tinha certeza. Segundo, ninguém
gostou dos modos dele. Terceiro, mesmo que a gente tivesse certeza e eu
gostasse dos modos dele, provavelmente ninguém ia pôr ele em cima dela. Por
que
a gente faria isso? Todo mundo já fez alguma coisa da qual se arrepende. Veja eu. Fui casada uma vez...
com um professor de línguas clássicas na Universidade de Redlands. — Deu uma risadinha.
— Podia ter conseguido uma reportagem — eu disse.
— Claro. Mas aqui em cima a gente é simplesmente gente.
— Esse tal De Soto falou com Jim Patton?
— Claro, deve ter falado. Jim não comentou isso.
— Ele mostrou o distintivo a vocês?
Ela pensou um pouco e depois balançou a cabeça.
— Não me lembro dele ter feito isso. A gente simplesmente aceitou a palavra
dele. Sem dúvida agia como um tira durão da cidade.
— Pra mim, isso parece mais um indício de que não era. Alguém falou a
Muriel sobre esse cara?
Ela hesitou, olhando em silêncio através do pára-brisa por um momento,
antes de virar a cabeça e assentir.
— Eu falei. Não era nada da minha conta, era?
— Que foi que ela disse?
— Não disse nada. Deu uma risadinha embaraçada, como se eu tivesse feito
uma brincadeira de mau gosto. E depois se afastou. Mas eu tive a impressão de
que passou uma expressão esquisita pelos olhos dela, só por um instante.
Ainda não está interessado em Muriel Chess, Sr. Marlowe?
— Por que devia me interessar? Nunca ouvi falar dela até subir aqui hoje de
tarde. Palavra de honra. E nunca ouvi falar de ninguém chamada Mildred
Havilland tampouco. Levo a senhora de volta à cidade?
— Oh, não, obrigada. Vou a pé. São apenas alguns passos. Muito obrigada
ao senhor. Espero que Bill não se meta numa enrascada. Especialmente uma
enrascada desagradável como esta.
Saltou do carro e ficou apoiada num pé só, depois jogou a cabeça para trás
e riu.
— Dizem que eu sou uma esteticista muito boa — disse.
— Espero ser. Como entrevistadora, sou horrível. Boa noite.
Eu disse boa noite e ela se afastou, mergulhando no entardecer. Fiquei ali sentado, observando-a, até que
alcançou a rua principal e dobrou a esquina, desaparecendo. De

pois saltei do Chrysler e fui até a pequena cabana rústica da Companhia Telefônica.

10
Um alce domesticado, com uma coleira de cachorro no pescoço, cruzou a
estrada à minha frente. Dei um tapinha no áspero pescoço peludo e entrei na
Telefônica. Uma garota baixinha, de calças largas, estava numa mesinha
trabalhando com uns livros. Cobrou-me a tarifa para Beverly Hills e deu- me as
moedas para o telefone. A cabine ficava do lado de fora, encostada à parede da
frente da cabana.
— Espero que goste daqui — ela disse. — É muito tran- qüilo, muito repousante.
Tranquei-me na cabine. Por noventa centavos, podia falar com Derace
Kingsley durante cinco minutos. Ele estava em casa, e a ligação se fez
rapidamente, mas cheia da estática das montanhas.
— Descobriu alguma coisa aí em cima? — ele me perguntou, com uma voz de
três coquetéis. Parecia novamente duro e confiante.
— Descobri coisas demais — eu disse. — E de modo nenhum o que a gente
queria. Está sozinho?
— Que importância tem isso?
— Pra mim, nenhuma. Mas sei o que vou dizer. O senhor, não.
— Bem, vá em frente, seja lá o que for — ele disse.
— Tive uma longa conversa com Bill Chess. Ele estava solitário. A mulher o
deixou... há um mês. Tiveram uma briga, ele saiu e tomou um pileque; quando
voltou, ela tinha ido embora. Deixou um bilhete dizendo que preferia morrer a
viver mais tempo com ele.
— Acho que Bill bebe demais — disse a voz de Kingsley, muito distante.
— Quando ele voltou, as duas mulheres tinham ido embora. Ele não tem idéia para onde a Sra. Kingsley foi.
Lavery esteve aqui em cima em maio, mas não depois disso. Ele próprio admitiu. Podia, é claro, ter voltado quando
Bill estava fora, bêbado, mas não havería muito sentido nisso e teria de haver dois carros para descer a montanha.
E eu pensei que
possivelmente a Sra. K. e Muriel Chess poderíam ter partido juntas, só que Muriel tinha o carro dela. Mas
essa idéia, por menos válida que fosse, foi varrida por outro acontecimento. Muriel Chess não partiu de jeito
nenhum. Afundou no seu laguinho privado. Retornou à superfície hoje. Eu estava lá.
— Meu Deus! — Kingsley pareceu adequadamente horrorizado. — Quer dizer que ela se afogou?
— Talvez. O bilhete que deixou pode ser um bilhete de suicida. Tanto pode ser
lido como uma coisa quanto como outra. O corpo estava preso embaixo daquele
velho ancoradouro submerso embaixo do atual. Foi Bill quem localizou um braço
se movendo lá, quando a gente estava parado no ancoradouro olhando a água lá
embaixo. Ele a tirou para fora. Prenderam-no. O pobre coitado está um bocado
abalado.
— Meu Deus! — Kingsley tornou a dizer. — Acho que deve estar mesmo.
Parece que ele... — Fez uma pausa, quando a operadora entrou na linha e exigiu
outros quarenta e cinco centavos. Pus duas moedas de vinte e cinco e a linha
ficou livre.
— Parece o quê?
Subitamente bastante clara, a voz de Kingsley disse:
— Que ele a matou?
— Bastante — eu disse. — Jim Patton, o delegado daqui, não gosta do fato de
o bilhete não ser datado. Parece que ela o deixou uma vez antes, por causa de
uma mulher. Patton tem certa suspeita de que Bill guardou um bilhete antigo. De
qualquer modo, levaram-no até San Bernardino, lá embaixo, pra um
interrogatório, e mandaram o corpo lá pra baixo também, pra autópsia.
— E que acha o senhor? — ele perguntou, devagar.
— Bem, foi o próprio Bill quem encontrou o cadáver.
Não precisava me levar até aquele ancoradouro. Ela podia ter ficado dentro
d'água muito mais tempo, ou pra sempre. O bilhete pode estar velho porque Bill
o guardava na carteira e tirava de vez em quando, matutando sobre ele. Tanto
podia não ter data desta vez quanto da outra. Acho que o mais comum é os
bilhetes desse tipo não terem data. As pessoas que os escrevem geralmente
estão com pressa e não se preocupam com datas.
— O corpo deve estar muito decomposto. Que é que eles podem descobrir
agora?

— Não sei até onde estão bem equipados. Acho que podem descobrir se morreu afogada. E se tem algum
sinal de violência que não tenha sido desfeito pela água e a decomposição. Podem saber se ela recebeu um tiro
ou foi esfaqueada. Se o osso hióide da garganta foi quebrado, podem supor que ela foi estrangulada. O
principal pra nós é que vou ter de dizer porque vim cá pra cima. Vou ter de depor num inquérito.
— Isso é mau — rosnou Kingsley. — Muito. Que planeja fazer?
— Na volta pra casa vou parar no Hotel Prescott e ver se posso pescar mais
alguma coisa. Sua mulher e Muriel Chess eram amigas?
— Acho que sim. Crystal é muito fácil de se conviver a maior parte do tempo.
Eu mal conheci Muriel Chess.
— O senhor algum dia conheceu uma dona chamada Mildred Haviland?
— Quê?
Repeti o nome.
— Não — ele disse. — Tem algum motivo pra que eu devesse ter conhecido?
— Toda pergunta que eu faço o senhor me responde com outra — eu disse.
— Não, não tem nenhum motivo pelo qual o senhor devesse conhecer Mildred
Haviland. Especialmente se mal conhecia Muriel Chess. Telefono pro senhor
pela manhã.
— Telefone — ele disse, e hesitou. — Sinto muito que tenha tido de se meter
numa encrenca dessas — acrescentou, hesitou de novo, disse boa-noite e
desligou.
A campainha tornou a tocar e a operadora de interurbano disse que eu
enfiara cinco centavos a mais. Eu disse o tipo de coisa que provavelmente
enfiaria numa fenda daquela. Ela não gostou.
Saí da cabine e aspirei um pouco de ar. O alce domesticado de coleira de
couro estava parado num buraco da cerca no fim da calçada. Tentei afastá-lo
do caminho, mas ele simplesmente me escorou e não arredou pé. Assim,
saltei a cerca, voltei ao Chrysler e dirigi de volta à aldeia.
Uma lâmpada, pendurada no teto, ardia no quartel-general de Patton, mas a cabana estava vazia, e
ainda se via seu aviso de “ Volto em Vinte Minutos'" pregado por trás do vidro da porta. Continuei descendo até
o ancoradouro de barcos e
mais além, até a beira da margem deserta. Alguns barcos e lanchas a motor ainda zanzavam pela
água sedosa. Do outro lado do lago, minúsculas luzes amarelas começavam a aparecer em cabanas de
brinquedo, penduradas em miniaturas de encostas. Uma única estrela, baixa, luzia acima da crista das
montanhas. Um tordo empoleirara-se no topo de um pinheiro de mais de trinta metros e esperava que
escurecesse o suficiente para soltar seu canto de boa-noite.
Em pouco tempo já escurecera o bastante e ele cantou e partiu para as invisíveis profundezas do céu.
Lancei meu cigarro na água imóvel a curta distância, tornei a entrar no carro e voltei em direção ao Lago Little
Fawn.

11

O portão do outro lado da estrada estava fechado a cadeado. Pus o Chrysler


entre dois pinheiros, saltei-o e segui pé ante pé pela beira da estrada, até ver de
repente logo abaixo o brilho do pequeno lago. A cabana de Bill Chess estava às
escuras. As outras três, do outro lado, pareciam sombras abruptas contra o
afloramento de granito. A água reluzia branca no ponto onde transbordava, numa
fina película, por cima da represa, e caía quase silenciosamente pela face externa
em declive até o rio abaixo. Pus-me à escuta, mas não ouvi som algum.
A porta da frente da cabana de Chess estava fechada a chave. Fui até o fundo
e descobri um bruto de um cadeado pendurado na de trás. Corri as paredes,
tateando as telas das janelas. Estavam todas fechadas. Uma janela mais acima
não tinha tela, uma janelinha dupla, de bangalô, na altura da metade da parede
norte. Mas também estava trancada. Fiquei parado, à escuta, por mais algum
tempo. Não soprava nenhuma brisa, e as árvores permaneciam tão silenciosas
quanto suas sombras.
Tentei enfiar uma lâmina de faca entre as duas metades da janelinha. Nada. O ferrolho recusava-se a mover-
se. Encostei-me à parede, pensei um pouco, e aí, de repente, peguei uma pedra grande e bati com ela no ponto
onde as duas folhas de encontravam, no meio. O ferrolho saltou da madeira seca com um barulho de coisa
despedaçada. A janela escancarou-
se para dentro, para as trevas. Ergui-me até o batente e passei uma perna, dormente, espremendo-a
pela abertura. Rolei e deixei-me cair no aposento. Virei-me, grunhindo um pouco devido ao exercício naquela
altitude, e pus-me novamente à escuta.
Um facho de luz brilhante atingiu-me direto nos olhos. Uma voz muito calma disse:
— Se eu fosse você, ficava exatamente onde está, filho. Deve estar totalmente exausto.
A lanterna pregava-me contra a parede como uma mosca esmagada. Então o
interruptor de luz estalou e um abajur de mesa acendeu-se. A lanterna apagou-se.
Jim Patton sentava- se numa velha poltrona Morris, marrom, junto à mesa. Uma
toalha marrom franjada pendia da ponta da mesa e tocava-lhe o grosso joelho. Ele
usava as mesmas roupas da tarde, com o acréscimo de uma jaqueta de couro
que devia ter sido nova um dia, digamos, durante o primeiro mandato de Grover
Cle- veland. Tinha as mãos vazias, a não ser pela lanterna. Os olhos também
vazios, A queixada movia-se num ritmo lento.
— Que é que você tem em mente, filho... além de arrom- bamento e invasão?
Peguei uma cadeira, instalei-me nela, apoiei os braços no encosto e olhei a
cabana em volta.
— Tive uma idéia — disse. — Pareceu muito boa por algum tempo, mas acho
que já posso ir esquecendo.
A cabana era maior do que parecia de fora. A parte em que eu me achava era
a sala de estar, que continha algumas peças de móveis modestas, um tapete
velho no assoalho de pinho, uma mesa redonda contra a parede do fundo e duas
cadeiras encostadas nela. Por uma porta aberta, via-se a quina de um grande
fogão negro.
Patton assentiu com a cabeça e seus olhos me estudaram sem rancor.
— Ouvi um carro se aproximando — disse. — Eu sabia que tinha de vir para cá.
Mas você se esgueira bem. Não ouvi suas pisadas. Tenho andado um tanto
curioso sobre você, filho.
Eu não disse nada.
— Espero que não se importe de eu lhe chamar de “filho” — ele disse. — Eu não consigo tomar tanta intimidade,
mas peguei esse hábito, e parece que não consigo me
livrar dele. Qualquer um que não tenha uma longa barba branca nem artrite é “filho” pra mim.
Eu disse que ele podia me chamar de qualquer coisa que lhe viesse à cabeça. Não era susceptível. Ele
deu uma risadinha.
— Tem um monte de detetives na lista telefônica de Los Angeles — ele disse. — Mas um deles se chama
Marlowe.
— Que foi que levou o senhor a procurar?
— Acho que se pode chamar isso de pura curiosidade. Além do que Bill Chess
me disse que você era uma espécie de tira. Você mesmo não se deu o trabalho
de me dizer.
— Eu ia chegar lá — eu disse. — Sinto ter chateado você.
— Não me chateou. Não me chateio facilmente. Tem alguma identificação?
Tirei minha carteira e mostrei-lhe uma coisa e outra.
— Bem, você tem um bom físico pro trabalho — ele disse, satisfeito. — E sua
cara não diz muita coisa. Acho que pretendia revistar a cabana.
— É. .
— Já xeretei um bocado por aí. Simplesmente voltei e vim direto pra cá. Quer
dizer, parei em minha cabana um instante e depois vim. Mas não creio que
possa deixar você revistar a casa. — Coçou a orelha. — Quer dizer, ao diabo se
sei se posso ou não. Vai dizer quem contratou você?
— Derace Kingsley. Pra localizar a mulher dele. Ela deu o fora nele há um
mês. Partiu daqui. Assim, comecei por aqui. Parece que ela fugiu com um
homem. O homem nega. Eu pensei que alguma coisa aqui em cima podia me
dar uma pista.
— E deu?
— Não. Ela pode ser seguida definitivamente até San Bernardino, e depois El
Paso. Ali termina a pista. Mas só estou começando.
Patton levantou-se e destrancou a porta da cabana. O cheiro penetrante dos
pinheiros invadiu a casa. Ele cuspiu para fora, tornou a sentar-se e alisou o
cabelo de rato por baixo do Stetson. Sua cabeça, sem chapéu, tinha a aparência
indecente das que só raramente são descobertas.
— Não tinha interesse nenhum em Bill Chess?
— Nenhum, absolutamente.

— Creio que vocês fazem um bocado de casos de divórcio — ele disse. — Trabalhinho meio mal cheiroso,
na minha opinião.
Deixei passar essa.
— Kingsley não é de pedir auxílio à polícia pra encontrar a mulher, é?
— Dificilmente — eu disse. — Ele a conhece bem demais.
— Nada do que você disse explica lá muita coisa porque queria revisitar a
cabana de Bill — ele disse, ponderadamente.
— Só que eu sou maníaco por xeretar.
— Diabos — ele disse —, pode apresentar um motivo melhor.
— Digamos que estou interessado em Bill Chess, então. Mas só porque ele
está encrencado e num caso um tanto patético... apesar de ser um consumado
patife. Se ele matou a mulher, deve ter alguma coisa que aponte nessa direção.
Se não, deve ter alguma coisa pra indicar essa outra direção também.
Ele inclinou a cabeça de lado, como um pássaro vigilante.
— Como, por exemplo, que tipo de coisa?
— Roupas, jóias pessoais, artigos de toalete, tudo que uma mulher leva
consigo quando vai embora e não pretende voltar.
Ele se reclinou vagarosamente.
— Mas ela não foi embora, filho.
— Então essas coisas ainda deviam estar aqui. Mas se estivessem aqui, Bill
teria notado que ela não levou. Saberia que ela não tinha ido embora.
— Diabos, não gosto disso, nem de uma maneira nem de outra.
— Mas se ele a assassinou — eu disse — então teria de se livrar dessas coisas
que ela devia ter levado consigo, se tivesse ido embora.
— E como imagina que ele faria isso, filho? — O abajur amarelo tornava
bronzeado um lado do rosto dele.
— Pelo que sei, ela tinha um carro Ford próprio. Com exceção do carro, era
de esperar que ele queimasse o que pudesse queimar e enterrasse na mata o
que não pudesse.

Jogar no lago seria muito perigoso. Mas não podia queimar e enterrar o carro dela. Podia guiá-lo?
Patton pareceu surpreso.
— Claro. Ele não pode dobrar a perna direita no joelho, e assim não podia usar o pedal do freio com
facilidade. Mas podia se arranjar com o freio de mão. A única diferença no Ford de Bill é que o pedal do freio
fica do lado esquerdo da haste do volante, junto da embreagem, pra ele poder comprimir os dois juntos com
um pé só.
Bati a cinza do meu cigarro numa jarrinha azul que contivera antes meio quilo
de mel de laranja, segundo o pequeno rótulo dourado.
— Se livrar do carro era o grande problema dele — eu disse. Aonde quer que
levasse, ia ter de voltar, e preferia não ser visto voltando. È se simplesmente
abandonasse ele numa rua, digamos, lá em San Bernardino, o carro ia ser
encontrado e identificado bem depressa. Bill tampouco querería isso. A melhor
saída era livrar-se dele, num vendedor de carros frios, mas provavelmente não
conhece nenhum. Assim, as possibilidades são de que tenha escondido o carro
na mata, a uma distância que possa ser feita a pé daqui. E uma distância dessas,
pra ele, não seria muito grande.
— Pra um cara que diz que não está interessado, você faz uns cálculos muito
precisos em tudo isso — disse Patton, secamente. — Assim, agora está com o
carro escondido na mata. E daí?
— Ele precisa pensar na possibilidade de alguém encontrar o carro. A mata é
isolada, mas os guardas florestais e os lenhadores andam por ela de vez em
quando. Se o carro for descoberto, é melhor que se encontrem as coisas de
Muriel dentro dele. Isso lhe dá umas duas saídas... nenhuma delas muito
brilhante, mas pelo menos possíveis. Uma, que ela foi assassinada por um
desconhecido, que armou tudo pra implicar Bill quando e se o assassinato fosse
descoberto. A segunda, que Muriel cometeu suicídio mesmo, mas armou tudo pra
que ele fosse incriminado. Um suicídio de vingança.
Patton pensou nisso tudo com calma e atenção. Foi até a porta, para dar
outra cusparada. Sentou-se e tornou a alisar o cabelo. Olhou-me com sólido
ceticismo.
A primeira é possível que seja como você diz — admi
tiu
. — Mas só um pouco, e não tenho ninguém em mente pro serviço. Tem esse detalhezinho do bilhete pra
resolver.
Balancei a cabeça.
— Digamos que Bill já tivesse o bilhete há algum tempo. Digamos que ela foi embora, como ele pensa,
sem deixar um bilhete. Depois de um mês sem qualquer notícia dela, talvez ele ficasse preocupado e inseguro
o bastante pra mostrar o bilhete, achando que isso servia de proteção pra ele caso alguma coisa tivesse
acontecido a ela. Ele não disse nada disso, mas era o que podia ter em mente.
Patton balançou a cabeça. Não gostava da coisa. Eu também não. Ele disse
lentamente:
— Quanto à outra idéia, é simplesmente maluca. Se matar e arranjar as
coisas pra que outra pessoa seja acusada de assassinato não se encaixa nas
minhas idéias simples da natureza humana, de jeito nenhum.
— Então suas idéias sobre a natureza humana são simples demais — eu
disse. — Porque já aconteceu antes, e quando aconteceu, quase sempre foi
trabalho de mulher.
— Não. Eu sou um homem de cinqüenta e sete anos, e já vi um monte de
gente doida, mas não dou um níquel por isso aí. A versão que eu gosto é a de
que ela planejou ir embora e escreveu o bilhete, mas ele pegou ela antes dela
dar o fora, ficou furioso e acabou com a raça dela. Depois, pode ter feito tudo
isso aí que você disse.
— Eu não a conheci. Portanto, não posso ter a mínima idéia do que ela podia
fazer. Bill disse que encontrou ela numa espelunca de Riverside há coisa de um
ano. Ela talvez tenha uma longa e complicada história antes disso. Que tipo de
garota era ela?
— Uma loura muito da bacana, quando se arrumava. Relaxou um pouco com
Bill. Uma garota discreta, com um rosto que sabia guardar seus segredos. Bill diz
que ela tinha um gênio ruim, mas eu nunca vi nada disso. Vi muito mau gênio foi
nele.
— E você achou que ela se parecia com a fotografia da tal Mildred Haviland?
A queixada parou de mastigar e ele comprimiu a boca com força. Muito
lentamente, recomeçou a ruminar.
Diabos — disse. — Vou ter o cuidado de olhar embaixo da cama antes de me deitar hoje de noite. Pra ter
cer
teza de que você não está lá. Onde conseguiu essa informação?
— Uma garota simpática chamada Birdie Keppel me disse. Me entrevistou durante o trabalho de tempo
parcial pro jornal. Falou por acaso que um tira de Los Angeles chamado De Soto andou por aí mostrando a
fotografia.
Patton deu um tapa no gordo joelho e curvou os ombros para a frente.
— Cometi um erro nesse caso — disse sobriamente cometi um dos meus erros.
O grandalhão mostrou o retrato e pra quase todo mundo na cidade, antes de
mostrar a mim. Isso me deixou um tanto magoado. Parecia um pouco com Muriel,
mas não o bastante para a gente ter certeza absoluta. Perguntei a ele porque
estava procurando ela. Ele disse que era assunto da polícia. Eu disse que também
era do ramo, de uma maneira ignorante e caipira, mas era. Ele disse que tinha
instruções pra localizar a mulher, e era só o que sabia. Talvez tenha errado em me
cortar assim. Assim, acho que errei dizendo que não conhecia ninguém que
parecesse com aquele retratinho.
O homenzarrão calmo sorriu vagamente para o canto do teto, depois baixou
os olhos e fixou-me.
— Agradeço a você se respeitar essa confidência, Sr. Marlowe. Fez um bom
trabalho nos seus cálculos, também. Já foi por acaso alguma vez ao Lago Coon?
— Nunca ouvi falar.
— Cerca de um quilômetro e meio lá pra trás — ele disse, indicando um ponto
por cima do ombro com o polegar — tem uma estradinha estreita na mata que vira
para o oeste. A gente pode dirigir por ela e não ver a entrada nas árvores. Ela
sobe cerca de cento e cinqüenta metros em mais um quilômetro e meio e
desemboca no Lago Coon. Lugarzinho simpático. As pessoas sobem até lá pra
fazer piquenique de vez em quando, mas não com muita freqüência. Come muito
pneu. Tem lá dois ou três laguinhos rasos cheios de casas. Mesmo agora tem
neve nos lugares à sombra. Tem um bocado de cabanas de troncos caindo aos
pedaços desde que consigo lembrar, e um grande prédio que a Universidade
Montclair usava como acampamento de verão, talvez há uns dez anos. Não o
usam há muito tempo. Esse prédio fica recuado do lago, entre árvores grandes. No fundo
tem uma tavanderia com

uma velha caldeira enferrujada, e junto dela um grande barraco de madeira com porta corrediça sobre
rolamentos. Foi feita pra ser uma garagem, mas guardavam lenha lá dentro e fechavam quando acabava a
temporada. Lenha é uma das poucas coisas que as pessoas roubam aqui em cima, mas aqueles que podiam
roubar de uma pilha não iam arrombar uma fechadura pra roubar. Acho que você imagina o que encontrei
nesse barraco.
— Eu pensava que você tinha descido até San Bernar- dino.
— Mudei de idéia. Não parecia direito deixar Bill descer lá com o corpo da
mulher dele no fundo do carro. Por isso mandei ela na ambulância de Doc e
mandei Bill com Andy. Imaginei que devia dar mais uma olhada em volta antes de
apresentar a coisa ao xerife e ao juiz de instrução.
— O carro de Muriel estava no barraco.
— É. E duas malas não fechadas no carro. Cheias de roupa, e jogadas às
pressas, me pareceu. Roupas de mulher. O problema, filho, é que nenhum
estranho podia saber daquele lugar.
Concordei com ele. Patton enfiou a mão no bolso enviesado da jaqueta e
tirou de lá um pequeno bolo de papel de seda. Abriu-o na palma da mão e
estendeu-a.
— Dê uma olhada nisso.
Aproximei-me e olhei. O que estava no papel era uma fina corrente de ouro,
com um minúsculo fecho pouco maior que um dos elos. O ouro tinha sido partido,
deixando o fecho intato. A corrente parecia ter uns quinze centímetros de
comprimento. Tanto nela como no papel havia traços de pó branco.
— Onde acha que encontrei isso? — perguntou Patton. Peguei a corrente e
tentei encaixar as pontas quebradas.
Não se ajustavam. Não fiz comentário algum sobre isso, mas umedeci um dedo,
toquei no pó e provei-o.
— Numa caixa ou lata de açúcar de confeiteiro — disse eu. — A corrente é de
tornozelo. Algumas mulheres nunca as tiram, como alianças. Quem tirou esta
não tinha a chave.
— Que deduz disso?
— Não muita coisa. Não tinha sentido algum Bill quebrá-la e arrancá-la do
tornozelo de Muriel e deixar aquele colar verde no pescoço. Não hnha sentido nenhum a
p
rôpria
uma velha caldeira enferrujada, e junto dela um grande barraco de madeira com porta corrediça sobre
rolamentos. Foi feita pra ser uma garagem, mas guardavam lenha lá dentro e fechavam quando acabava a
temporada. Lenha é uma das poucas coisas que as pessoas roubam aqui em cima, mas aqueles que
podiam roubar de uma pilha não iam arrombar uma fechadura pra roubar. Acho que você imagina o que
encontrei nesse barraco.
— Eu pensava que você tinha descido até San Bernar- dino.
— Mudei de idéia. Não parecia direito deixar Bill descer lá com o corpo da
mulher dele no fundo do carro. Por isso mandei ela na ambulância de Doc e
mandei Bill com Andy. Imaginei que devia dar mais uma olhada em volta antes de
apresentar a coisa ao xerife e ao juiz de instrução.
— O carro de Muriel estava no barraco.
— Ê. E duas malas não fechadas no carro. Cheias de roupa, e jogadas às
pressas, me pareceu. Roupas de mulher. O problema, filho, é que nenhum
estranho podia saber daquele lugar.
Concordei com ele. Patton enfiou a mão no bolso enviesado da jaqueta e
tirou de lá um pequeno bolo de papel de seda. Abriu-o na palma da mão e
estendeu-a.
— Dê uma olhada nisso.
Aproximei-me e olhei. O que estava no papel era uma fina corrente de ouro,
com um minúsculo fecho pouco maior que um dos elos. O ouro tinha sido partido,
deixando o fecho intato. A corrente parecia ter uns quinze centímetros de
comprimento. Tanto nela como no papel havia traços de pó branco.
— Onde acha que encontrei isso? — perguntou Patton. Peguei a corrente e
tentei encaixar as pontas quebradas.
Não se ajustavam. Não fiz comentário algum sobre isso, mas umedeci um dedo,
toquei no pó e provei-o.
— Numa caixa ou lata de açúcar de confeiteiro — disse eu. — A corrente é de
tornozelo. Algumas mulheres nunca as tiram, como alianças. Quem tirou esta
não tinha a chave.
— Que deduz disso?
— Não muita coisa. Não tinha sentido algum Bill quebrá-la e arrancá-la do tornozelo de Muriel e deixar aquele
colar verde no pescoço. Não tinha sentido nenhum a própria
Muriel arrancar... caso tivesse perdido a chave... e escondê-la pra ser achada. Ninguém ia fazer uma
busca meticulosa o suficiente pra encontrar a corrente se não se encontrasse o corpo dela primeiro. Se foi
Bill quem quebrou, ele a teria jogado no lago. Agora, se Muriel quisesse manter a corrente, mas escondida
de Bill, tem algum sentido o lugar onde foi escondida.
Patton pareceu intrigado dessa vez.
— Porquê?
— Porque é um esconderijo de mulher. Açúcar de confeiteiro é usado pra fazer
glacê de bolo. Um homem jamais iria olhar ali. Foi muita astúcia encontrar, xerife.
Ele deu um sorrisozinho encabulado.
— Ora, derrubei a caixa e o açúcar derramou. Não fosse isso, e acho que
nunca encontraria. — Tornou a enrolar o papel e a enfiá-lo no bolso. Levantou-se,
com um ar de quem põe fim à conversa.
— Vai ficar aqui em cima ou vai lá pra baixo, Sr. Mar- lowe?
— Vou voltar à cidade. Até você precisar de mim pro inquérito. Suponho que
vai precisar.
— Isso é lá com o juiz de instrução, claro. Se tiver a bondade de fechar essa
janela que você arrombou, eu vou apagar esta lâmpada e fechar a casa.
Fiz o que ele mandou, e ele ligou a lanterna e apagou a lâmpada. Saímos e
ele experimentou a porta da cabana, para assegurar-se de que estava fechada
mesmo. Fechou delicadamente a porta de tela e ficou olhando para o outro lado
do lago enluarado.
— Não imagino que Bill pretendesse matar ela — disse tristemente. — Ele pode
esganar uma garota até a morte sem querer de modo algum. Tem mãos fortes
demais. Uma vez feito isso, ia ter de usar o pouco de cérebro que Deus lhe deu
pra encobrir o que fez. Eu me sinto muito mal sobre isso, o que não altera os fatos
e as probabilidades. Tudo é simples e natural, e as coisas simples e naturais
geralmente se revelam as certas.
Eu disse:
— Pra mim, ele teria fugido. Não vejo como poderia suportar ficar aqui.

Patton cuspiu sobre o vulto negro de um arbusto de manzanita. Disse devagar:


— Ele tinha uma pensão do governo, e ia ter de fugir disso também. E a maioria dos
homens suporta o que tem de suportar, quando a coisa se apresenta e encara eles de
frente. Como estão fazendo agora no mundo todo. Bem, boa noite pra você. Vou
descer a pé até aquele ancoradourozinho e ficar lá algum tempo ao luar, me sentindo
mal. Uma noite como esta, e a gente tem de pensar em assassinatos.
Afastou-se silenciosamente para dentro das sombras, tornando-se ele próprio
uma delas. Fiquei ali parado, até perdê-lo de vista, e depois voltei ao portão fechado
e saltei-o. Entrei no carro e voltei à cidade, procurando um lugar para esconder-me.

12
Trezentos metros além da cancela uma trilha estreita, coberta de pardas folhas
de carvalho do outono passado, contornava uma rocha de granito e desaparecia.
Segui-a e fui sacolejando por sobre as pedras do afloramento uns quinze ou vinte
metros, depois virei o carro em torno de uma árvore e estacionei-o de frente para a
direção de onde viera. Apaguei as luzes, desliguei o motor e fiquei ali sentado, à
espera.
Passou-se meia hora. Sem fumar, pareceu um longo tempo. Então ouvi, bem
longe, o motor de um carro ser ligado e aumentar de barulho, até que os fachos
brancos dos faróis passaram abaixo de mim, na estrada. O som morreu na distância
e uma leve nuvem de poeira pairou no ar por algum tempo depois de ele ter
passado.
Saltei do carro, andei de volta até a cancela e a cabana de Chess. Um forte
empurrão abriu a janela dessa vez. Saltei para dentro de novo e apontei a lanterna
que trouxera comigo para o abajur de mesa do outro lado da sala. Acendi a lâm pada e
fiquei um momento à escuta. Não ouvi nada e encaminhei-me para a cozinha.
Acendi uma lâmpada suspensa sobre a pia.
A caixa junto ao fogão estava cheia de lenha bem arrumada. Não se via pratos
sujos na pia, nem panelas cheirando mal no fogão. Bill Chess, solitário ou não,
mantinha sua casa
A DAMA DO LAGO
em boa ordem. Uma porta abria-se para o quarto de dormir, e dali uma outra, muito estreita, conduzia a um
banheiro, que fora evidentemente acrescentado bem recentemente à cabana. O forro limpo de compensado
revelava isso. O banheiro não me disse nada.
O quarto tinha uma cama de casal, uma cômoda de pinho com um espelho
redondo, um armário, duas cadeiras de espaldar reto e uma cesta de papel
metálica. Havia dois tapetes de retalhos no chão, um em cada lado da cama. Nas
paredes, Bill Chess pregara com percevejos um conjunto de mapas da guerra, da
revista National Geographic. Via-se um babado vermelho e branco, de aparência
ridícula, sobre a penteadeira.
Remexi nas gavetas. Um estojo de imitação de couro, com uma variedade de
vistosas bijuterias, não fora levado. Havia essas coisas habituais que as mulheres
usam no rosto, nas unhas e nas sobrancelhas, e pareceu-me que havia demais
delas. Mas era apenas um palpite. O armário continha roupas de mulher e de
homem, não muitas. Bill Chess tinha uma camisa quadriculada muito berrante, com
colarinho engomado combinando, entre outras coisas. Por baixo de uma folha de
papel de seda azul, num canto, encontrei algo de que não gostei. Uma calcinha de
seda cor de pêssego, aparentemente nova em folha, com babados de renda.
Naquele ano não se deixavam para trás muitas calcinhas de seda, não uma mulher
que estivesse em seu juízo certo.
Isso parecia ruim para Bill Chess. Imaginei o que Patton pensara.
Retornei à cozinha e vasculhei as prateleiras abertas acima e ao lado da pia.
Estavam cheias de latas e jarras de suprimentos domésticos. O açúcar de
confeiteiro ocupava uma caixa quadrada com a tampa rasgada. Patton tentara
limpar o que derramara. Junto ao açúcar havia sal, borato de sódio, bicarbonato de
sódio, maizena, açúcar mascavo e essas coisas. Qualquer coisa podería estar
escondida em qualquer um deles.
Fechei os olhos, estendi o dedo ao acaso, e ele caiu no bicarbonato de sódio. Peguei um jornal de detrás da
caixa de lenha, abri-o ejoguei o bicarbonato da caixa. Mexi-o com uma colher. Parecia haver uma quantidade
indecente de bicarbonato de sódio, mas só isso. Enfiei-o de volta na caixa e expe
rimentei o borato de sódio. Nada além de borato de sódio. A terceira vez é a da sorte. Tentei a maizena.
Muito pó fino, mas nada além de maizena.
Um som de passos distantes congelou-me até os tornozelos. Estendi a mão, apaguei a luz e esgueirei-me
de volta à sala de estar, para apagar a luz dali também. Tarde demais para adiantar alguma coisa, claro. Os
passos voltaram a soar, abafados e cautelosos. Os cabelos de minha nuca se arrepiaram. Fiquei à espera,
no escuro, com a lanterna na mão esquerda. Arrastaram-se dois longos e mortais
minutos. Passei parte desse tempo respirando, mas não todo.
Não poderia ser Patton. Ele se dirigiría à porta, a abriría e me diria. Os passos
abafados e cautelosos pareciam mover- se ora para um lado, ora para outro, um
movimento, uma longa pausa, outro movimento, outra longa pausa. Esgueirei- me
até a porta e girei a maçaneta silenciosamente. Depois escancarei-a de vez e
investi com a lanterna.
O facho de luz transformou em lâmpadas douradas um par de olhos. Houve um
salto e uma batida de cascos lá atrás, entre as árvores. Era apenas um alce
curioso.
Tornei a fechar a porta e segui o facho da lanterna de volta à cozinha. O
pequeno círculo de luz pousou diretamente sobre a caixa de açúcar de confeiteiro.
Acendi a luz novamente, peguei a caixa e esvaziei-a sobre o jornal.
Patton não fora fundo o bastante. Tendo encontrado uma coisa por acidente,
presumira que era só aquilo mesmo. Aparentemente, não notara que devia haver
algo mais.
Outro embrulhinho de papel de seda apareceu no fino açúcar branco refinado.
Sacudi-o, para tirar o açúcar, e abri-o. Continha um minúsculo coração de ouro,
não maior que a unha do dedo mínimo de uma mulher.
Pus o açúcar de volta na caixa, com uma colher, e a caixa de volta na
prateleira, e embolei o jornal e o enfiei no fogão. Voltei à sala de estar e acendi o
abajur de mesa. À luz mais forte, a minúscula gravação nas costas do minúsculo
coração de ouro mal podia ser lida sem uma lente de aumento.
Era em letras a mão. Dizia: “4/ para Mildred. 28 de junho de 1938. Com todo o
meu amor."
Al para Mildred. Al de tal para Mildred Haviland. Mildred Haviland era Muriel
Chess. Muriel Chess estava morta
— duas semanas depois de um tira chamado De Soto ter andado à procura dela.
Fiquei ali, segurando o coraçãozinho, perguntando-me o que aquilo tinha a ver comigo. Perguntando-me,
sem o menor vislumbre de idéia.
Tornei a embrulhá-lo, deixei a cabana e voltei à aldeia.
Patton estava em seu escritório, telefonando, quando cheguei lá. A porta fora
trancada. Tive de esperar enquanto ele falava. Após algum tempo, desligou e veio
destrancar a porta.
Passei por ele, depus o embrulhinho de papel em cima do balcão e abri-o.
— O senhor não foi fundo o bastante naquele açúcar refinado — eu disse.
Ele olhou o coraçãozinho de ouro, olhou para mim, foi para trás do balcão e
pegou uma lente de aumento barata em sua mesa. Estudou as costas do coração.
Largou a lente e franziu o cenho para mim.
— Eu devia ter imaginado que, se você queria revistar aquela cabana, ia revistar
mesmo — disse mal-humorado. — Não vai criar problemas pra mim, vai, filho?
— O senhor devia ter notado que as pontas quebradas da corrente não se
ajustavam — eu disse.
Ele me olhou tristemente.
— Filho, eu não tenho os seus olhos. — Empurrou o coraçãozinho de um lado
para outro com o dedão quadrado. Olhava-me, e não disse nada.
Eu disse:
— Se achava que a corrente de tornozelo podia causar ciúmes em Bill, eu
também... contanto que ele algum dia visse. Mas falando estritamente ao acaso,
estou disposto a apostar que ele nunca viu, que nunca ouviu falar de Mildred
Haviland.
Patton disse vagarosamente:
— Parece que eu devo ao tal De Soto uma desculpa, não é?
— Se o encontrar algum dia.
Ele me lançou outro longo olhar vazio e eu o devolvi na mesma moeda.
— Não me diga, filho — disse. — Deixe ver se adivinho sozinho que voce tem uma idéia
n v h
o in a em folha sobre teso.
ww-w • > t a T\n t *nn
RAYMOND CHANDLER
— É. bí11 não matou a mutoer (iete.
— Não?
— Não. Ela foi morta por uma pessoa de seu passado. Uma pessoa que perdeu a
pista dela e depois tornou a encontrar, e descobriu que ela tinha se casado com outro
homem e não gostou disso. Uma pessoa que conhecia essa região aqui em cima... e
sabia de um bom lugar pra esconder o carro e as roupas. Uma pessoa cheia de ódio
e que sabia dissimular. Que a convenceu a jr embora com ele, e quando tudo estava
pronto e o bilhete escrito, pegou-a pelo pescoço e lhe deu o que achava que ela
merecia, e jogou o corpo no lago e seguiu seu caminho. Gosta?
— Bem — ele disse, judiciosamente — isso torna as coisas meio complicadas, não
acha? Mas não tem nada impossível nisso aí. Nadinha impossível.
— Quando se cansar disso, me diga. Terei mais alguma coisa — eu disse.
— Tenho toda certeza de que terá — ele disse, e pela primeira vez, desde que eu
o conhecera, riu.
Tornei a dizer boa-noite e saí, deixando-o lá a movimentar a mente com a
energia bruta de um lavrador arrancando um toco.

13
Por volta das onze horas, desci a rampa até embaixo e estacionei num dos
espaços em diagonal ao lado do Prescott Hotel, em San Bernardino. Tirei uma
valise da mala, e dei apenas três passos com ela quando um boy de calças
pregueadas, camisa branca e gravata preta tomou-a de minhas mãos.
O recepcionista de plantão era um homem de cabeça de ovo sem qualquer
interesse em mim ou em qualquer outra coisa. Usava calça de um terno de linho
branco e bocejou quando me entregou a caneta e olhou à distância, como se
lembrasse a infância.
O boy e eu subimos num elevador até o segundo andar e caminhamos uns dois
blocos, dobrando cantos. À medida que andávamos, a temperatura tornava-se cada
vez mais quente.

A DAMA DO LAGO
O boy abriu a porta de um quarto do tamanho de um quarto de criança com uma
janela que dava para um poço de ventilação. A entrada do ar condicionado, num
canto do teto, tinha mais ou menos o tamanho de um lenço de mulher. O pedaço de
fita atado a ele flutuava debilmente, apenas o bastante para mostrar que algo se
movia.
O boy era alto, magro, amarelo, não muito jovem, e tão frio quanto uma fatia de
gelatina de frango. Remoendo goma de mascar, pôs minha valise numa poltrona,
ergueu o olhar para a grade e depois ficou me olhando. Tinha os olhos da cor de um
gole d'água.
— Talvez eu devesse ter pedido um dos quartos de um dólar — eu disse. — Este
aqui parece apertado.
— Acho que o senhor teve sorte de achar até este. A cidade está abarrotada por
causa da feira.
— Traga ginger ale, copos e gelo pra gente — eu disse.
— Pra gente?
— Quer dizer, se você bebe.
— Acho que podia me arriscar, já que é tão tarde.
Saiu. Tirei o paletó, a gravata, a camisa e a camiseta, e andei em volta, na
quente corrente de ar que entrava pela porta aberta. A corrente cheirava a ferro
quente. Entrei de lado no banheiro — que era desse tipo — e aspergi-me com água
que devia ser fria, mas estava morna. Respirava já um pouco mais livremente,
quando o alto e lânguido boy voltou com uma bandeja. Fechou a porta e eu tirei
uma garrafa de uísque de cevada. Ele preparou duas doses e demos os habituais
sorrisos insinceros sobre elas e bebemos. O suor me corria da nuca pela espinha
abaixo, e já estava a meio caminho de minhas meias antes que eu depusesse o
copo. Mas eu me sentia melhor assim mesmo. Sentei-me na cama e olhei o boy.
— Quanto tempo pode ficar?
— Fazendo o quê?
— Lembrando coisas.
— Não sirvo nada pra isso — ele disse.
— Eu tenho dinheiro pra gastar — eu disse — à minha maneira, meio peculiar. —
Saquei a carteira das costas e espalhei sobre a cama notas de dólares, de
aparência cansada.
— Desculpe — disse o boy. — Achei que o senhor fosse um tira.
Não seja tolo — eu disse. — Você nunca viu um tira jogando paciência com seu dinheiro. Pode me chamar
de investigador.
— Estou interessado — ele disse. — A bebida faz minha cabeça funcionar.
Dei-lhe uma nota de um dólar.
— Experimente isso em sua mente. Posso lhe chamar de Big Tex, de Houston?
— De Amarillo — ele disse. — Não que isso tenha importância. E que tal acha meu
sotaque do Texas? A mim me causa náuseas, mas vejo que as pessoas gostam.
— Fique com ele — eu disse. — Ainda não fez ninguém perder um dólar.
Ele deu um sorriso e enfiou a nota de um dólar dobrada direitinho no bolsinho do
relógio das calças.
— Que fazia você sexta-feira, 12 de junho? — perguntei- lhe. — De tardezinha ou
ao anoitecer. Era uma sexta-feira.
Ele bebericou seu drinque e pensou, balançando o gelo delicadamente e
bebendo por cima da goma de mascar.
— Estava aqui mesmo, no turno das seis às doze — disse.
—• Uma loura esbelta, bonita, se hospedou aqui e ficou até a hora do trem
noturno para El Paso. Acho que deve ter tomado esse, porque estava em El Paso
domingo de manhã. Chegou dirigindo um Packard Clipper, registrado em nome de
Crystal Grace Kingsley, Carson Drive 965, Beverly Hills. Pode ter se registrado com
esse nome, ou com outro qualquer, e também pode nem ter se registrado. O carro
dela ainda está na garagem do hotel. Eu gostaria de falar com os rapazes que a
receberam e a viram sair. Isso vale outro dólar... só pra pensar a respeito.
Separei outro dólar de minha exposição, e a nota entrou
, no bolso dele com um som de lagartas brigando.
— Pode ser — ele disse, calmamente.
Largou o copo e deixou o quarto, fechando a porta. Acabei minha bebida e servi
outra. Fui ao banheiro e joguei mais um pouco d ’água no peito. Quando fazia isso, o
telefone na parede tocou e eu me enfiei no minúsculo espaço entre a porta do
banheiro e a cama para responder.
A voz do Texas disse:
— Foi Sonny. Ele foi convocado na semana passada.

A DAMA DO LAGO
Outro ara que a ente cham
c g a de Les foi quem deu as contas dela na saída.
— Tudo bem. Mande ele aqui, pode ser?
Eu brincava com minha segunda bebida, pensando na terceira, quando bateram na porta e abri para um
ratinho de olhos verdes, com uma boca feminina, franzida.
Ele entrou quase dançando, e ficou parado olhando para mim, com um leve sorriso.
— Bebe?
— Claro — ele disse friamente. Serviu-se de uma dose generosa e acrescentou
um nadinha de ginger ale, engoliu a mistura num longo sorvo, enfiou um cigarro
entre os labio- zinhos suaves e riscou um fósforo quase ainda dentro do bolso.
Soprou a fumaça e olhou para mim. Pelo canto do olho viu o dinheiro na cama, sem
olhá-lo diretamente. No bolso de sua camisa, em vez de um número, estava
bordada a palavra CapOão.
— Você é Les? — perguntei.
— Não. — Fez uma pausa. — Não gostamos de tiras por aqui — acrescentou. —
Não temos um na casa e não gostamos de tiras que trabalham pra outras pessoas.
— Obrigado — eu disse. — Ê só isso.
— Hum? — A pequena boca contorceu-se de um modo desagrad ável.
— Dê o fora — eu disse.
— Eu achava que o senhor queria falar comigo — ele deu um sorrisozinho.
— Você é o chefe dos boys?
— Exato.
— Eu queria lhe pagar uma bebida. Queria lhe dar um dólar. Aqui, olhe. —
Segurei uma nota na frente dele. — Obrigado por vir.
Ele pegou o dólar e embolsou-o, sem uma palavra de agradecimento. Ficou ali
parado, a fumaça saindo-lhe das narinas, os olhos apertados e maus.
— O que eu disse está valendo — ele disse.
— Vale até onde você pode impor — eu disse. — E isso não quer dizer muito. Já
teve sua bebida e pegou sua grana. Agora pode ir dando o fora.
Ele se virou com um rápido dar de ombros e esgueirou-se silenciosamente para fora do quarto.

Passaram-se quatro minutos, e veio outra batida, bem de leve. O boy alto entrou sorrindo. Afastei-me dele e
tornei a sentar-me na cama.
— Não foi com a cara de Les, hem?
— Não muito. Ele ficou satisfeito?
— Acho que ficou. O senhor sabe como são os chefes. Têm de ter a fatia deles. Talvez seja melhor o senhor
me chamar de Les, Sr. Marlowe.
— Então foi você quem fez as contas dela.
— Não, isso foi só uma desculpa. Ela não se registrou na recepção. Mas eu me
lembro do Packard. Ela me deu um dólar pra guardar ele e tomar conta das coisas
dela até a hora do trem. Jantou aqui. Um dólar faz com que se lembrem da gente
nesta cidade. E estão falando que o carro está aí há muito tempo.
— Que aparência tinha ela?
— Usava um conjunto preto e branco, mais branco que preto, e um chapéu
panamá com uma fita preto e branco. Uma dona loura e bonita como o senhor
disse. Mais tarde tomou um táxi pra estação. Pus as malas dela dentro. Tinham
iniciais, mas sinto muito não me lembrar delas.
— Me agrada que você não se lembre — eu disse. — Seria bom demais. Tome um
gole. Que idade teria ela?
Ele lavou o outro copo e serviu uma dose civilizada para si.
— É difícil dizer a idade de uma mulher hoje em dia — disse. — Acho que tinha uns
trinta anos, pouco mais, pouco menos.
Enfiei a mão no bolso para pegar o instantâneo de Crystal e Lavery na praia e
entreguei-o a ele.
Ele olhou a foto demoradamente, afastou-a dos olhos, aproximou-a.
— Não precisa jurar no tribunal — eu disse.
Ele balançou a cabeça, assentindo.
— Não gostaria. Essas lourinhas são tão parecidas, que uma mudança de roupa,
de luz ou de maquiagem torna todas elas inteiramente iguais ou inteiramente
diferentes. — Hesitava, olhando o instantâneo.
— Que é que preocupa você? — perguntei.
— Estou pensando no cara desta foto. Ele entra na história?

A DAMA DO LAGO
— Vâ em frente — eu disse.
— Acho que esse cara falou com ela no saguão, e jantou com ela. Um bonitão alto, com o corpo de um peso-
leve. Foi no táxi com ela também.
— Tem absoluta certeza disso?
Ele olhou o dinheiro sobre a cama.
— Muito bem, quanto vai custar? — perguntei cansado.
Ele se enrijeceu, largou o instantâneo, tirou as duas notas dobradas do bolso e
jogou-as na cama.
— Obrigado pela bebida — disse — e vá pro inferno. — Dirigiu-se à porta.
— Ora, vamos, sente-se e não seja tão melindroso — eu rosnei.
Ele se sentou e ficou me olhando, de olhos duros.
— E não seja tão sulista — eu disse. — Vivo mergulhado entre boys de hotéis há
anos. Se encontrei um que não conta mentiras, isso é ótimo. Mas não pode esperar
que eu espere encontrar um que não faça trapaça.
Ele deu um sorriso vagaroso e assentiu com um movimento rápido. Tornou a
pegar o instantâneo e me olhou por cima dele.
— O cara da foto é o mesmo — disse. — Tenho mais certeza do que sobre a dona.
Mas tem outra coisa que me fez lembrar dele. Me deu a impressão de que a dona
não gostou que ele se dirigisse a ela tão abertamente no saguão.
Pensei nisso e decidi que não significava muita coisa. Ele podia ter-se atrasado,
ou ter faltado a um outro encontro anterior. Disse:
— Tem um motivo pra isso. Você notou as jóias que a dona usava? Anéis,
brincos, alguma coisa que chamasse a atenção ou fosse valiosa?
Ele disse que não notara.
— Os cabelos dela eram compridos ou curtos, lisos, ondulados ou cacheados, o
louro era natural ou oxigenado?
Ele riu.
— Diabos, esse último ponto aí a gente não pode saber, Sr. Marlowe. Mesmo
quando é natural, elas querem mais claro. Quanto ao resto, o que me lembro é que
eram mais pra compridos, como estão usando agora, um pouco dobrados para
dentro nas pontas, e mais pra lisos. Mas posso ter me
enganado. — Tornou a olhar o instantâneo. — Aqui está puxado pra trâs. Não se pode ver nada.
— Certo — eu disse. — Só perguntei pra saber se você não observou coisa demais.
O cara que nota detalhes demais é uma testemunha tão indigna de confiança quanto
o que não vê nada. Quase sempre está inventando metade do que diz. O seu
depoimento confere, considerando-se as circunstâncias. Muito obrigado.
Devolvi-lhe seus dois dólares e mais uma nota de cinco para acompanhar os
outros. Ele me agradeceu, acabou sua bebida e saiu de mansinho. Acabei a minha,
tornei a me lavar e decidi que preferia dirigir até em casa a dormir naquele buraco.
Pus a camisa e o paletó e desci a escada com a valise.
O rato ruivo chefe dos boys era o único boy no saguão. Levei minha valise até a
recepção, e ele não se moveu para tomá-la de minhas mãos. O recepcionista de
cabeça de ovo me aliviou de dois dólares sem sequer olhar para mim.
— Dois dólares pra passar a noite nesta espelunca — eu disse —, quando poderia
ter de graça uma bela e arejada lata de lixo.
O recepcionista bocejou, teve uma reação retardada e disse animado:
— Isso aqui fica muito frio lá pelas três da manha. Daí em diante, até as oito, ou
mesmo nove, é bastante agradável.
Enxuguei a nuca e cambaleei para fora, até o carro. Até o assento do carro
estava quente, à meia-noite.
Cheguei em casa por volta das quinze para as cinco, e Hollywood estava uma
geladeira. Mesmo Pasadena parecera fria.

14
Sonhei que estava nas profundezas de uma água verde e gelada, com um
cadáver debaixo do braço. O cadáver tinha cabelos louros e compridos, que
flutuavam diante de meu rosto. Um peixe enorme, com olhos esbugalhados e corpo
indistinto, coberto de escamas reluzentes de putrescência, nadava em torno,
lançando olhares malévolos como um velho devasso. Quando eu já estava para
explodir de falta de ar, o cadáver ressuscitou debaixo de meu braço e vi-me lutando
com o peixe, enquanto o corpo rolava sem parar dentro d’água, volteando seus
longos cabelos.
Acordei com a boca entupida com o lençol e ambas as mãos agarradas à
cabeceira da cama, puxando com força. Os músculos me doíam quando as soltei e
baixei. Levantei-me, andei pelo quarto e acendi um cigarro, sentindo o carpete sob os
pés descalços. Acabado o cigarro, voltei para a cama.
Eram nove horas quando tornei a acordar. O sol batia-me no rosto. O quarto
estava quente. Tomei um chuveiro, bar- beei-me, vesti-me em parte e preparei a
refeição matinal de torrada, ovos e café na kitchenette. Quando já acabava, ouvi
uma batida na porta do apartamento.
Fui abrir com a boca cheia de torrada. Era um homem magro e de aparência
séria, num severo terno cinza.
— Floyd Greer, tenente, Departamento Central de Investigações — disse, e entrou
na sala.
Estendeu uma mão seca e apertei-a. Ele se sentou na borda de uma poltrona,
do jeito que eles costumam fazer, e ficou virando o chapéu nas mãos, olhando-me
com aquele calmo olhar fixo que eles têm.
— Recebemos um telefonema de San Bernardino sobre aquele caso no Lago
Puma. A mulher afogada. Parece que você estava por lá quando acharam o corpo.
Assenti e disse:
— Aceita um café?
— Não, obrigado. Tomei o desjejum há duas horas. Peguei meu café e sentei-me
defronte dele, na sala.
— Pediram à gente pra dar uma conferida em você — disse. — Dar umas dicas
sobre você.
— Claro.
— Foi o que fizemos. Parece que você tem uma carteira de saúde 1 npa, no que
nos diz respeito. Mas é uma espécie de coincidência um cara como você estar por lá
quando acharam o cadáver.
— Eu sou assim mesmo — eu disse. — Um cara de sorte.
— Por isso eu pensei em dar uma passada e dizer alô.
— Isso é ótimo. Ê um prazer conhecer você, tenente.
— Uma espécie de coincidência — ele tornou a dizer, balançando a cabeça. —
Estava lá em cima a negócios, por assim dizer?

— Se estava, meus negócios nada tinham a ver com a garota que se afogou, até
onde eu sei.
— Mas não tem certeza?
— Até a gente concluir um caso, jamais pode ter certeza de quais são as
ramificações, pode?
— Correto. — Ele girou a aba do chapéu entre os dedos de novo, como um
vaqueiro tímido. Nada havia de tímido em seus olhos.
— Eu gostaria de ter certeza de que, se essas ramificações de que fala por acaso
envolverem os assuntos dessa mulher afogada, você nos informará.
— Espero que possa confiar nisso — eu disse.
Ele estufou o lábio inferior com a língua.
— Nós gostaríamos de mais do que uma esperança. Neste momento, você não
gostaria de falar?
— Neste momento, eu não sei nada que Patton não saiba.
— Quemé?
— O delegado de Puma Point.
O homem magro e sério sorriu tolerantemente. Estalou uma junta e, depois de
uma pausa, disse:
— O promotor de San Bernardino provavelmente vai querer conversar com você...
antes do inquérito. Mas não será tão breve. Neste momento, estão tentando colher
impressões digitais. Emprestamos um técnico a eles.
— Vai ser difícil. O cadáver está muito decomposto.
— A gente faz isso toda hora — ele disse. — Criaram o sistema lá em Nova Iorque,
onde toda hora retiram gente de dentro d'água. Cortam pedaços da pele dos dedos e
endurecem em uma solução pra curtir, e depois fazem carimbos. De modo geral,
funciona muito bem.
— Você acha que essa mulher tinha alguma espécie de ficha?
— Ora, nós sempre retiramos as impressões de um cadáver — ele disse. — Você
devia saber disso.
Eu disse:
— Eu não conhecia a dona. Se achou que eu conhecia, e que era por isso que
estava lá em cima, nada feito.
— Mas você não gostaria de dizer exatamente por que estava lá em cima — ele
insistiu.
— Então pensa que estou mentindo pra você — eu disse.

Ele girou o chapéu sobre o dedo ossudo.


— Me entendeu errado, Sr. Marlowe. Nós não pensamos coisa alguma. O que fazemos
é investigar e descobrir. Essa coisa é pura rotina. Você devia saber disso. Já anda por
aí há muito tempo. — Levantou-se e pôs o chapéu. — Podería me informar se tiver de
deixar a cidade. Eu ficaria agradecido.
Eu disse que informaria e fui até a porta com ele. O homem saiu baixando a
cabeça e com um meio sorriso triste. Olhei-o afastar-se languidamente pelo corredor
e apertar o botão do elevador.
Voltei à kitchenette para ver se ainda havia café. Havia cerca de dois terços de
uma xícara. Pus creme e açúcar e levei a xícara até o telefone. Disquei para a
Central de Polícia no centro da cidade, pedi o Departamento de Investigações, e
depois o Tenente Floyd Greer.
A voz disse:
— O Tenente Greer não está no momento. Serve outro?
— De Soto está?
— Quem?
Repeti o nome.
— Qual é a patente e o departamento dele?
— Alguma coisa à paisana.
— Fique na linha.
Esperei. A voz masculina zumbida voltou algum tempo depois e disse:
— Qual é a gozação? Nós não temos nenhum De Soto na lista. Quem está
falando?
Desliguei, acabei meu café e disquei o número do escritório de Derace Kingsley.
A suave e fria Srta. Fromsett disse que ele acabara de chegar, e passou-me para ele
sem um murmúrio.
— Bem — ele disse, alto e vigoroso no início de um novo dia. — Que descobriu no
hotel?
— Ela ficou lá a noite toda. E Lavery se encontrou com ela lá. O boy que me deu
o serviço introduziu o Lavery na história por si mesmo, sem nenhuma pergunta
minha. Ele jantou com ela e saiu com ela num táxi pra estação ferro- vmria.
— Bem, eu devia saber que ele estava mentindo — disse Kingsley, lentamen e. —
Tive a impressão de que ficou sur
preso quando lhe falei do telegrama de El Paso. Estava apenas deixando essa
impressão entrar em foco. Mais alguma coisa?
— Não nesse ponto. Recebi a visita de um tira hoje de manhã, me dando a conferida
habitual e me avisando que não deixasse a cidade sem dizer a ele. Tentou descobrir
por que fui a Puma Point. Eu não disse, e como ele nem sabia da existência de Jim
Patton, é evidente que Patton não falou a ninguém.
— Jim faria o que pudesse pra ser decente a esse respeito — disse Kingsley. — Por
que me perguntou ontem à noite sobre o tal nome... Mildred qualquer coisa?
Contei-lhe a história, abreviando-a. Falei-lhe do carro e das roupas de Muriel
Chess encontrados, e onde.
— A coisa parece ruim pra Bill — ele disse. — Eu conheço o Lago Coon, mas jamais
me ocorrería usar aquele velho barraco... ou sequer que existia um velho barraco. A
coisa não apenas parece ruim, parece premeditada.
— Discordo disso. Supondo que ele conhecesse bem a região, não era preciso
muito tempo pra ele vasculhar na mente um esconderijo adequado. Estava muito
limitado em relação a distâncias.
— Talvez. Que planeja fazer agora? — ele perguntou.
— Ir atrás de Lavery de novo, é claro.
Ele concordou com que era isso que eu tinha de fazer. Acrescentou:
— Esse outro caso, por mais trágico que seja, não é de nossa conta, é?
— Não, a não ser que sua mulher soubesse algo a respeito.
A voz dele soou áspera, dizendo:
— Escute aqui, Marlowe, acho que posso entender seu instinto de detetive pra atar
tudo que acontece num nó compacto, mas não deixe que ele arraste você. A vida não
é assim’, de modo algum... não a vida que eu tenho conhecido. Ê melhor deixar os
assuntos da família Chess para a polícia e manter seu cérebro trabalhando no caso
da família Kingsley.
— Tudo bem — eu disse.
— Não pretendo ser dominador — ele disse.
Eu dei uma gostosa gargalhada, disse até logo e desli- guei. Acabei de vestir-me
e desci até a garagem para pegar o Chrysler. Parti de novo para Bay City.

15

Passei pelo cruzamento da Rua Altair até onde a rua que a cruzava alcançava a
beira do canyon e terminava num estacionamento semicircular, com uma calçada e
uma branca cerca de madeira em torno. Fiquei ali sentado no carro durante algum
tempo, pensando, olhando o mar e admirando as encostas azuis das montanhas que
desciam até o oceano. Tentava decidir-me sobre se tratava Lavery com luvas ou
continuaria usando as costas da mão e a ponta da língua. Decidi que não tinha nada a
perder com uma aproximação suave. Se isso não desse resultado — e não acreditava
que desse — a natureza poderia seguir o seu curso, e podíamos botar pra quebrar.
A avenida pavimentada que descia até metade da encosta, abaixo das casas na
borda de fora, estava vazia. Abaixo dela, na rua seguinte da encosta, dois garotos
jogavam um bumerangue encosta acima e corriam atrás dele com a quantidade
habitual de cotoveladas e insultos mútuos. Mais abaixo ainda, via-se uma casa cercada
de árvores e de um muro de tijolos vermelhos. Vislumbrava-se roupas lavadas
estendidas em varais no quintal, e dois pombos saltitavam pela vertente do telhado
abaixo, balançando as cabeças. Um ônibus amarelo e marrom passou sacolejando pela
rua em frente da casa de tijolos e parou, e um homem muito velho desceu com lento
cuidado e instalou-se firmemente no solo, batendo com uma pesada bengala, antes de
começar a arrastar-se encosta acima.
O ar estava mais límpido que no dia anterior. A manhã era pura tranqüilidade.
Deixei o carro onde estava e percorri a Rua Altair até o número 623.
As venezianas da frente estavam abaixadas, e a casa tinha uma aparência
sonolenta. Desci o gramado coreano, apertei a campainha e vi que a porta não estava
inteiramente fechada. Empenara-se na moldura, como acontece com a maioria das
portas, e a lingüeta do trinco ficava um pouco acima da parte do encaixe. Lembrei-me
de que ela quisera emperrar no dia anterior, quando eu saía.
Dei um leve empurrão na porta, e ela se moveu para dentro com um leve estalido.
A sala além estava escura, mas das janelas do lado oeste vinha um pouco de
claridade. Nin-

guém respondera a meu chamado. Não tornei a chamar. Empurrei mais um pouco a
porta e entrei.
A sala tinha um cheiro cálido abafado, cheiro de manhã avançada numa casa ainda
não aberta. A garrafa de Vat-69 na mesa junto ao sofá estava quase vazia, e uma
outra, cheia, esperava ao lado. O balde de gelo de cobre tinha um pouco d'água no
fundo. Dois copos haviam sido usados, e meio sifão de água com gás.
Arrumei a porta do jeito que a encontrara e fiquei ali parado, escutando. Se Lavery
estivesse fora, pensei em arriscar-me a revistar o lugar. Não tinha muita coisa contra
ele, mas provavelmente o bastante para que não chamasse a polícia.
No silêncio, passava o tempo. Passava no seco zumbido do relógio elétrico sobre
o console da lareira, na buzina distante de um automóvel em Aster Drive, no zumbido
de zangão de um avião sobrevoando os pés das encostas de um lado a outro do
canyon, no súbito ligar e ronronar da geladeira elétrica na cozinha.
Avancei sala adentro e fiquei espiando em torno, sem escutar nada, a não ser
aqueles sons fixos próprios da casa, que nada tinham a ver com as pessoas dentro
dela. Comecei a atravessar o tapete em direção ao arco no fundo.
Uma mão enluvada surgiu na vertente do corrimão branco de metal, na borda do
arco, onde começava a escada. Surgiu e parou. Moveu-se, e apareceram um chapéu
de mulher, e em seguida um rosto. A mulher subiu calmamente a escada. Subiu até
em cima, dobrou pelo arco adentro e continuou, parecendo não me ver. Era uma
mulher esbelta, de idade incerta, cabelos castanhos revoltos, um borrão vermelho na
boca, ruge demais nas faces, olhos sombreados. Usava um conjunto de lã xadrez azul
que fazia um contraste dos diabos com o chapéu púrpura, que tentava o possível para
grudar-se ao lado da cabeça.
Ela me viu e não se deteve, não mudou de expressão, nerr. um mínimo. Avançou
lentamente sala adentro, mantendo a mão direita afastada do corpo. A esquerda
mostrava a luva marrom que eu vira no corrimão. A luva direita que fazia par com ela
envolvia o cabo de uma pequena automática.
Ela parou então, curvou o corpo para trás, e um som angustiado lhe saiu da boca.
Depois ela deu uma risadinha,
uma risadinha estridente e nervosa. Apontou a arma para mim, e veio firmemente
ao meu encontro.
Fiquei olhando a arma, sem gritar.
A mulher aproximou-se. Quando estava próxima o suficiente para cochichar,
apontou a arma para minha barriga e disse:
— Eu só queria o meu aluguel. A casa parece bem cuidada. Nada quebrada. Ele
sempre foi um inquilino arrumado e cuidadoso. Eu só não queria que o aluguel ficasse
atrasado demais.
Um sujeito de voz mais ou menos tensa e infeliz disse polidamente:
— Quanto tempo ele está atrasado?
— Três meses — ela disse. — Duzentos e quarenta dólares. Oitenta dólares é
bastante razoável para uma casa bem mobiliada como esta. Tive alguma dificuldade
para receber antes, mas sempre correu bem. Ele me prometeu um cheque hoje de
manhã.
— No telefone — eu disse. — Hoje de manhã.
Mexi-me um pouco, de um modo mais ou menos disfarçado. Pretendia aproximar-
me o suficiente para bater de lado na arma, desviá-la, e depois saltar rápido antes que
ela pudesse tornar a apontá-la. Nunca tive muita sorte com essa técnica, mas a gente
tem de tentar de vez em quando. Aquele parecia o momento de tentar.
Aproximei-me cerca de um palmo, mas não o suficiente para um primeiro
movimento. Disse:
— E a senhora é a proprietária?
Não olhava diretamente para a arma. Tinha uma leve, levíssima esperança de que
ela não soubesse que a apontava para mim.
— Ora, sem dúvida. Sou a Sra. Fallbrook. Quem achava o senhor que eu era?
— Bem, achei que devia ser a proprietária — eu disse. — Com a senhora falando de
aluguel e essa coisa toda. — Mais pouco além de um palmo à frente. Um belo e
tranqüilo esforço. Seria uma vergonha desperdiçá-lo.
— E quem é o senhor, se posso perguntar?
— Vim cobrar a prestação do carro — eu disse. — A porta estava aberta só um
pouquinho, e eu empurrei. Não sei porquê.
Armei uma expressão de homem da financeira que veio cobrar a prestação do
carro. Um tanto durão, mas disposto a me abrir num sorriso.
— Quer dizer que o Sr. Lavery está atrasado com as prestações do carro? — ela
perguntou, parecendo preocupada.
— Um pouco. Não muito — eu disse, tranqüilizadora- mente.
Estava pronto agora. Tinha a distância certa e precisa da velocidade certa. Só
precisava de um golpe limpo e duro de dentro para fora, contra a arma. Comecei a
levantar o pé do tapete.
— Sabe — ela disse —, engraçada esta arma. Achei ela na escada. Coisa
desagradável, cheia de óleo, não é? E o carpete da escada é de um chenille cinza bem
bonito. Muito caro.
E me entregou a arma.
Estendi a mão para ela, rígida como uma casca de ovo, e quase tão quebradiça.
Peguei a arma. Ela cheirou com desgosto a luva que envolvera o cabo. E prosseguiu
conversando exatamente no mesmo tom de tonta sensatez. Meus joelhos estalaram,
relaxando.
— Bem, evidentemente é muito mais fácil pro senhor
— disse. — Sobre o carro, quero dizer. Simplesmente toma ele de volta, se tiver de
fazer isso. Mas leva tempo e dinheiro para a gente despejar um inquilino. Pode surgir
rancor e as coisas se estragam, às vezes de propósito. O tapete nesta sala custa mais
de duzentos dólares, de segunda mão. Ê só um tapete de juta, mas tem uma cor linda,
não acha? Ninguém diz que é de juta, e de segunda mão. Mas isso também é tolice,
porque são sempre de segunda mão, depois que a gente usa eles. E ainda por cima
vim a pé até aqui, pra economizar pneu pro governo. Podia ter tomado um ônibus uma
parte do caminho, mas os diabos desses ônibus nunca aparecem, a não ser na direção
contrária.
Eu mal ouvia o que ela dizia. Depois de certa altura, era como as ondas quebrando
em algum lugar, fora das vistas. A pistola é que me interessava.
Puxei o pente. Estava vazio. Virei a arma e olhei a câmara. Esvaziada. Cheirei a
extremidade do cano. Fedia. Enfiei a arma no bolso. Uma automática 25 de seis tiros.
Inteiramente descarregada, e há não muito tempo. Mas tampouco na última meia
hora.
— Ela foi disparada? — perguntou a Sra. Fallbrook, de uma maneira agradável. — Ê
claro que espero que não.
— Algum motivo pelo qual devesse ter sido? — perguntei. Tinha a voz firme, mas o
cérebro ainda dava saltos.
— Bem, estava jogada na escada — ela disse. — Afinal de contas, as pessoas
disparam elas.
— Como isso é verdade. Mas o Sr. Lavery provavelmente estava com o bolso
furado. Ele não está em casa, está?
— Oh, não. — Ela balançou a cabeça e pareceu desapontada. — E não acho que
seja muito direito da parte dele. Me prometeu o cheque e eu vim a pé até...
— Quando a senhora telefonou pra ele? — perguntei.
— Ora, ontem de noite. — Ela franziu o cenho, não gostando daquelas perguntas
todas.
— Ele deve ter recebido um chamado e saiu — eu disse.
Ela fixou o olhar num ponto entre meus grandes olhos castanhos.
— Escute, Sra. Fallbrook — eu disse. — Não vamos ficar com rodeios por mais
tempo. Não é que eu não goste. E não é que goste de dizer isso. Mas a senhora não
atirou nele, atirou? Porque ele lhe devia três meses de aluguel.
Ela se sentou muito vagarosamente na borda de uma poltrona e passou a ponta
da língua pelo talho escarlate que era a sua boca.
— Ora, que insinuação mais completamente horrível — disse, irada. — Não creio que
o senhor seja decente mesmo. O senhor não disse que a arma não foi disparada?
— Todas as armas já foram disparadas alguma vez. Todas as armas já estiveram
carregadas alguma vez. Esta aqui não. está carregada.
— Bem, então... — ela fez um gesto de impaciência e cheirou a luva suja de óleo.
— Está certo, tive uma idéia errada. Só uma brincadeira, de qualquer modo. O Sr.
Lavery estava fora e a senhora entrou em casa. Sendo a proprietária, tem uma chave.
Correto?
— Eu não pretendia interferir — ela disse, mordendo um dedo. — Talvez não
devesse ter feito isso. Mas tenho o direito de ver como estão conservando as coisas.

— Bem, a senhora já viu. E tem certeza de que ele não está em casa?
— Não olhei debaixo das camas ou dentro da geladeira — ela disse friamente. —
Como ele não respondeu à campainha, gritei do alto da escada. Depois desci para a
sala de baixo e tornei a chamar. Dei até uma espiada no quarto. — Baixou os olhos,
como envergonhada, e torceu a mão sobre o joelho.
— Bem, é isso — eu disse.
Ela assentiu, animada.
— Sim, é isso. Como disse que se chamava?
— Vance — eu disse. — Philo Vance.
— E pra que companhia trabalha, Sr. Vance?
— Estou desempregado agora — eu disse. — Até que o comissário de polícia volte a
entrar numa enrascada.
Ela pareceu espantada.
— Mas o senhor disse que veio cobrar uma prestação do carro.
— É um emprego de tempo parcial — eu disse. — Um bico.
Ela se levantou e me olhou firmemente. Sua voz mostrou- se fria quando disse:
— Então, nesse caso, acho que é melhor o senhor ir embora agora.
Eu disse: — Acho que podia dar uma olhada por aí primeiro, se não se importa.
Pode haver alguma coisa que a senhora não tenha visto.
— Não creio que isso seja necessário — ela disse. — Esta casa é minha. Ficarei
agradecida se o senhor for embora agora, Sr. Vance.
Eu disse: — E se eu não for, a senhora chamará alguém pra me obrigar. Torne a
se sentar, Sra. Fallbrook. Vou apenas dar uma olhada. Esta pistola, sabe, é um tanto
esquisita.
— Mas eu já lhe disse que achei ela caída na escada — ela disse, furiosa. — Não sei
nada sobre ela. Não sei nada sobre arma nenhuma. Eu... eu nunca disparei uma em
minha vida. — Abriu uma grande sacola azul, puxou um lenço e assoou-se.
Isso é o que a senhora diz — eu disse. — Eu não tenho de aceitar.

Ela estendeu a mão esquerda para mim num gesto patético, como a mulher infiel
áeEastLynne.
— Oh, eu não devia ter entrado! — exclamou. — Foi horrível de minha parte. Eu sabia
que era. O Sr Lavery vai ficar furioso.
— O que a senhora não devia ter feito — eu disse — era me deixar descobrir que a
arma estava vazia. Até então, estava com tudo nas mãos.
Ela bateu o pé. Era só o que faltava à cena. Aquilo tornava-a perfeita.
— Ora, seu sujeito inteiramente antipático — guinchou. — Não se atreva a tocar em
mim! Não dê um só passo em minha direção! Não fico nem mais um minuto nesta casa
com o senhor. Como se atreve a ser tão insultante...
Conteve a voz e cortou-a em pleno ar como uma tira de borracha. Depois baixou a
cabeça, com o chapéu púrpura e tudo, e lançou-se para a porta. Ao passar por mim,
estendeu o braço como para torcer o meu, mas não estava perto o bastante e não me
movi. Ela escancarou a porta e precipitou-se por ela e pela rampa acima até a rua. A
porta fechou-se vagarosamente e ouvi os passos apressados dela acima do som da
porta fechando-se.
Passei a unha pelos dentes e comprimi a ponta do queixo com o nó de um dedo,
escutando. Não ouvia nada próximo que se pudesse ouvir. Uma automática de seis
tiros, inteiramente descarregada.
— Tem alguma coisa — disse a mim mesmo — inteiramente errada nesta cena.
A casa parecia agora anormalmente quieta. Atravessei o tapete damasco e o arco
até o alto da escada. Fiquei parado ali mais um instante e tornei a escutar.
Dei de ombros e desci silenciosamente a escada.

16
O salão de baixo tinha uma porta em cada extremo e duas no meio, lado a lado. Uma delas era um armário de roupa
branca, e a outra estava trancada a chave. Fui até o fim e olhei dentro de um quarto de reserva, de cortinas fechadas e
nenhum sinal de ter sido usado. Voltei à outra extremidade do
salão e dei com um segundo quarto com uma larga cama, um espelho sobre a penteadeira e uma comprida
lâmpada fluorescente acima do espelho. No canto, via-se sobre a penteadeira um galgo de cristal, e junto a ele
uma caixa de cristal com cigarros.
Havia talco espalhado sobre a mesa da penteadeira. Uma toalha pendurada sobre
a cesta de roupa suja continha uma marca de batom. Na cama, via-se travesseiros lado
a lado, com depressões que podiam ter sido feitas por cabeças. A ponta de um lenço
de mulher surgia por baixo de um dos travesseiros. Um pijama negro jazia atravessado
nos pés da cama. Um vestígio um tanto acentuado de perfume pairava no ar.
Perguntei-me o que a Sra. Fallbrook pensara de tudo aquilo.
Voltei-me e olhei-me no comprido espelho de uma porta de armário, pintada de
branco e com uma maçaneta de cristal. Girei a maçaneta, usando um lenço, e olhei
dentro. O armário, revestido de cedro, estava cheio de roupas masculinas. Sentia-se
um amistoso cheiro de lã. Mas não havia apenas roupas masculinas.
Via-se também um conjunto feminino preto e branco, mais branco que preto,
sapatos preto e branco embaixo, um chapéu Panamá com uma fita preto e branco na
prateleira de cima. E outras roupas femininas também, mas não as examinei.
Fechei a porta do armário e saí do quarto, o lenço pronto para outras maçanetas
que aparecessem.
A porta pegada ao armário de roupa branca, a fechada a chave, tinha de ser o
banheiro. Forcei-a, mas ela continuou fechada. Curvei-me e vi que havia uma
pequena abertura, em forma de fenda, no meio da maçaneta. Soube então que a
porta era fechada apertando-se um- botão no meio da maçaneta, por dentro, e que a
fenda se destinava a uma chave metálica lisa, que abriria a porta caso alguém
desmaiasse lá dentro ou as crianças se trancassem e ficassem impossíveis.
A chave para aquilo devia ficar na prateleira de cima do armário de roupa branca,
mas não estava. Tentei a lâmina de minha faca, mas era fina demais. Voltei ao quarto
e peguei uma lima de unha chata na penteadeira. Funcionou. Abri a porta do
banheiro.

Um pijama masculino cor de areia fora jogado sobre uma cesta de roupa suja
pintada. No chão via-se um par de chinelos verdes. Na beira da pia, uma lâmina de
barbear e um tubo de creme destampado. A janela do banheiro estava fechada, e havia
um cheiro penetrante que não se parecia com qualquer outro cheiro.
Três cápsulas de balas jaziam, brilhantes e cor de cobre, nos ladrilhos verdes do
piso do banheiro, e havia um buraco perfeito no vidro fosco da janela. À esquerda e um
pouco acima da janela viam-se dois lugares esburacados no reboco, onde o branco
aparecia por trás da pintura, e onde alguma coisa, como uma bala, penetrara.
A cortina do banheiro era de seda verde e branco oleada, pendia de argolas de
cromo brilhantes e estava puxada, fechando a entrada para o chuveiro. Corri-a para
um lado, as argolas fazendo um leve ruído rascante, que por algum motivo soou
indecentemente alto.
Senti meu pescoço estalar um pouco quando me abaixei. Ele estava ali, sim,
senhor — não poderia estar em nenhum outro lugar. Enroscado no canto, sob as duas
torneiras brilhantes, a água pingando lentamente em seu peito, do chuveiro de cromo.
Tinha os joelhos dobrados, mas frouxos. Os dois buracos no peito nu eram
escuros e azulados, e ambos bastante próximos do coração para tê-lo matado. O
sangue parecia ter sido lavado.
Os olhos tinham uma aparência curiosamente animada e expectante, como se
sentisse o cheiro do café da manhã e estivesse indo tomá-lo.
Trabalho limpo e eficiente. A gente acabava de se barbear, despia-se para uma
ducha, encostava-se à cortina do chuveiro para ajustar a temperatura da água. A
porta abre-se atrás e alguém entra. Esse alguém parece ter sido uma mulher. Tem
uma arma. A gente olha a arma e ela a dispara.
Erra três tiros. Parece impossível, a tão curta distância, mas erra. Talvez aconteça
sempre. Ando por aí há tão pouco tempo.
O cara não tem para onde correr. Pode lançar-se contra ela, se é desse tipo de
cara, e se estiver preparado para isso. Mas encostado às torneiras do chuveiro,
mantendo a cortina fechada, está sem equilíbrio. E também é possível que esteja
meio petrificado de pânico, se é como todas as outras pessoas. Assim, não tem para onde correr, a não ser para dentro do
chuveiro.
É
para °nde ele corre. Corre até on de pod^ mas um box de chuveiro é um lugar
apertado, e a parede de azulejos o detém. O cara está de costas contra a última parede
que existe agora. Inteiramente sem espaço, e sem vida. E aí vêm mais dois tiros,
possivelmente três, e o cara escorrega pela parede abaixo, com os olhos nem mesmo
assustados, a essa altura. São apenas os olhos vazios de um morto.
Ela estende a mão e fecha o chuveiro. Prepara a fechadura da porta do banheiro.
Ao sair, joga a pistola vazia no carpete da escada. Deve ter-se preocupado. A pistola
provavelmente é do cara.
Isso é certo? É melhor que seja.
Curvei-me e puxei o braço dele. Nem gelo podería ser mais frio ou rígido. Saí do
banheiro, deixando-o sem trancar. Não havia nenhuma necessidade de trancá-lo agora.
Só dar trabalho aos tiras.
Entrei no quarto e puxei o lenço de debaixo do travesseiro. Era uma peça
minúscula de linho com uma franja vermelha, bordada. As duas iniciais, achavam-se
cosidas no canto, em vermelho. A.F.
— Adrienne Fromsett — eu disse. E ri. Um riso meio fantasmagórico.
Sacudi o lenço, para retirar um pouco do perfume, dobrei, enrolei-o em papel de
seda e guardei-o no bolso. Subi de volta à sala de estar e remexi na escrivaninha junto
à parede. Não tinha cartas interessantes, números de telefone ou caixas de fósforos
provocantes. Ou, se tinha, não os achei.
Olhei o telefone. Estava numa mesinha junto à parede ao lado da lareira. Tinha um
fio comprido, para que o Sr. Lavery pudesse deitar-se com ele no sofá, um cigarro entre
os lábios morenos e macios, uma bebida gelada sobre a mesa, e bastante tempo para
uma demorada conversa com uma amigui- nha. Uma conversa descontraída, lânguida,
flerteira, divertida, não muito sutil nem muito grossa, do tipo que ele devia gostar.
Tudo isso desperdiçado, também. Fui do telefone para a porta e preparei a
fechadura de modo a poder entrar de novo e trancá-la, puxando-a com força sobre o
batente até que o
trinco pegasse. Subi a rampa e fiquei parado ao sol, olhando a casa do Dr. Almore
do outro lado da rua.
Ninguém berrou nem saiu gritando porta afora. Ninguém soprou um apito de policial.
Tudo estava em silêncio, ensolarado e calmo. Nenhuma causa para excitação. É
apenas Marlowe, encontrando outro cadáver. A essa altura, já faz isso mais ou menos
bem. Marlowe-um-assassinato-por-dia, é como o chamam. Já andam com um rabecão
atrás dele para ir pegando o que ele encontra.
Um cara muito simpático, de uma certa maneira rebuscada.
Voltei ao cruzamento, entrei em meu carro, liguei-o, manobrei e afastei-me dali.

17
O boy do Athletic Club voltou em três minutos com um aceno para que eu o
seguisse. Subimos até o quarto andar, dobramos um canto e ele me mostrou uma
porta entreaberta.
— Dobre à esquerda, senhor. Faça o mínimo de barulho que puder. Alguns dos
membros estão dormindo.
Entrei na biblioteca do clube. Tinha livros por trás de portas de vidro e revistas
numa comprida mesa central, além de um retrato iluminado do fundador. Estantes de
livros projetando-se para fora cortavam a sala num certo número de pequenas
alcovas, e nas alcovas havia poltronas de couro de espaldar alto, de um tamanho e
maciez incríveis. Em várias das poltronas, velhos camaradas ressonavam
pacificamente, os rostos púrpura de alta pressão, roncos débeis saindo-lhes pelas
narinas franzidas.
Subi alguns palmos e esgueirei-me contornando para a esquerda. Derace
Kingsley estava na última alcova, na outra extremidade da sala. Dispusera duas
poltronas lado a lado, de frente para o canto. Sua cabeçorra escura mal aparecia
acima do topo de uma delas. Esgueirei-me para a que estava vazia e dei-lhe uma leve
sacudidela.
— Fale baixo — ele disse. — Esta sala é para cochilos após o almoço. Então, que é
que há? Quando contratei o senhor, foi pra me poupar de encrencas, não pra
aumentar as
que eu já tinha. Fez com que eu desfizesse um compromisso importante.
— Eu sei — eu disse, e aproximei o rosto do dele. O homem cheirava a highballs, de
uma maneira agradável.
— Ela atirou nele.
As sobrancelhas de Kingsley saltaram, e seu rosto assumiu uma aparência pétrea.
Cerrou os dentes. Aspirou baixinho e torceu a manzorra sobre o joelho.
— Continue — disse, numa voz do tamanho de uma bola de gude.
Olhei por cima do encosto de minha poltrona. O ronca- dor mais próximo estava
ferrado no sono, soprando os enca- necidos pêlos das narinas para dentro e para fora
ao respirar.
— Ninguém atendeu no apartamento de Lavery — eu disse. — Porta ligeiramente
aberta. Mas notei ontem que ela pega no batente. Empurrei e abri. Sala escura, dois
copos usados. Casa muito quieta. Num momento, uma mulher esguia e morena,
chamada Sra. Fallbrook, proprietária do apartamento, surgiu subindo a escada, com a
luva em volta do cabo de uma arma. Disse que tinha vindo cobrar três meses de
aluguel atrasados. Usou a chave dela pra entrar. A sugestão é de que se arriscou a
xeretar pela casa e ver como estavam as coisas. Peguei a arma e descobri que tinha
sido disparada recentemente, mas não disse isso a ela. Ela disse que Lavery não
estava em casa. Me livrei dela deixando-a apavorada, e ela sumiu à toda. Pode
chamar a polícia, mas é muito mais provável que vá caçar borboletas e esqueça a
coisa toda... a não ser o aluguel.
Fiz uma pausa. Kingsley tinha o rosto voltado para mim, e os músculos da
queixada projetavam-se com a força que cerrava os dentes. Os olhos pareciam
nauseados.
— Desci. Sinais de que uma mulher passou a noite na casa. Pijama, pó facial,
perfume e essa coisa toda. Banheiro fechado, mas não trancado. Três cápsulas
vazias no chão, dois tiros na parede, um na janela. Lavery no box do chuveiro, nu e
morto.
— Meu Deus! — sussurrou Kingsley. — Quer dizer que ele esteve com uma mulher
na noite passada, e que ela atirou nele hoje de manhã, no banheiro?
— Exatamente, o que achava que eu estava tentando dizer? — perguntei.
Fale
baixo — ele gemeu. — Ê um choq^ naturalmente. Por que no banheiro?
— Fale baixo — eu disse. — Por que não no banheiro. Pode pensar num lugar onde
um homem estivesse mais inteiramente indefeso?
Ele disse: — O senhor não sabe se foi uma mulher que atirou nele. Quer dizer, não
tem certeza, tem?
— Não — eu disse. — Isso é verdade. Pode ter sido alguém que usou uma arma
pequena e a descarregou descuidadamente pra fazer parecer trabalho de mulher. O
banheiro fica na encosta, dando para o espaço, e não creio que alguém que não
estivesse em casa» ouvisse facilmente os tiros lá embaixo. A mulher que passou a
noite lá pode ter saído... ou então, nem precisa ter havido mulher nenhuma. As
aparências podem ter sido forjadas. O senhor podería ter atirado nele.
— Por que eu iria querer atirar nele? — ele quase baliu, comprimindo fortemente os
joelhos um no outro. — Sou um sujeito civilizado.
Isso não parecia merecer discussão, tampouco. Eu disse:
— Sua mulher tem uma arma?
Ele voltou um rosto infeliz para mim e disse opacamente:
— Meu Deus, homem, o senhor não pode realmente pensar isso!
— Bem, ela tem?
Ele extraiu as palavras em pequenos pedaços ásperos:
— Sim... tem. Uma pequena automática.
— O senhor a comprou aqui mesmo?
— Eu... eu não a comprei de modo algum. Tomei de um bêbedo numa festa em
San Francisco, há uns dois anos. Ele a brandia pra todos os lados, achando aquilo
muito engraçado. Nunca devolvi a arma a ele. — Beliscou a dura queixada até que os
nós dos dedos ficaram brancos. — Ele provavelmente nem se lembra quando ou como a
perdeu. Era desse tipo de bêbedo.
— Isso está funcionando quase perfeitamente demais — eu disse. — O senhor podia
reconhecer essa arma?
Ele pensou muito, projetando a queixada para fora e semicerrando os olhos. Olhei por sobre o encosto da cadeira de
novo. Um dos velhos roncadores despertara com um ronco que quase o jogara fora da poltrona. Tossiu, coçou o nariz
com a mão murcha e remexeu no colete, tirando um relógio de ouro. Olhou-o sombriamente, guardou-o e
voltou a dormir.
Enfiei a mão no bolso e pus a pistola na mão de Kingsley. Ele a olhou com um ar de infelicidade.
— Não sei — disse lentamente. — Parece com ela, mas não posso dizer.
— Tem o número de série do lado — eu disse.
— Ninguém se lembra dos números de série de armas.
— Eu esperava que o senhor não se lembrasse — eu disse. — Isso iria me deixar
muito preocupado.
Ele fechou a mão em torno da arma e a depôs a seu lado, na poltrona.
— Rato sujo — disse. — Acho que deu o fora nela.
— Não estou entendendo — eu disse. — Esse motivo não servia pro senhor porque o
senhor é um cara civilizado. Mas servia pra ela.
— Não é o mesmo motivo — ele cortou. — E as mulheres são mais impetuosas que
os homens.
— Como os gatos são mais impetuosos que os cachorros.
— Como?
— Algumas mulheres são mais impetuosas que alguns homens. Só isso. Vamos ter
de encontrar um motivo melhor, se quer que sua mulher tenha feito isso.
Ele virou a cabeça o bastante para me dar um olhar olho a olho, no qual não havia
nenhum ar de brincadeira. Brancos crescentes vincavam-lhe os cantos da boca.
... — Esta não me parece uma boa ocasião pra piadinhas — ele disse. — Não podemos
deixar a polícia pegar essa arma. Crystal tinha uiha licença e a arma estava registrada.
Assim, eles sabèrao o numero, mesmo que eu não saiba. Não podemos deixá-los
pegar a arma.
— Mas a Sra. Fallbrook sabe que eu tinha a arma.
Ele balançou a cabeça, obstjnadamente.
— Vamos ter de correr esse risco. Sim, èu sei que o senhor está se arriscando.
Pretendo recompensar o senhor por isso. Se se pudesse falsificar as coisas pra parecer
suicídio, eu diria para pôr a arma de volta. Mas do jeito que você diz, é impossível.
— Não. Ele teria de errar os tiros em si mesmo nas primeiras três vezes. Mas eu
não posso encobrir um assassi-
A DAMA DO LAGO
nato, mesmo por um bônus de dez dólares. A pistola vai ter de voltar.
— Eu pensava em mais que isso — ele disse, baixinho. — Pensava em quinhentos dólares.
— O que esperava comprar com isso, exatamente?
Ele se inclinou para perto de mim. Tinha os olhos sérios e sombrios, mas não duros.
— Tem alguma coisa no apartamento de Lavery, tirando a pistola, que possa
indicar que Crystal esteve lá ultimamente?
— Um vestido preto e branco, e um chapéu como o que o boy de San Bernardino
disse que ela usava. Pode ter uma dúzia de coisas que eu não saiba. Quase
certamente impressões digitais. O senhor diz que ela nunca foi fichada, mas isso não
significa que não consigam as impressões digitais pra conferir. O quarto dela em casa
deve estar cheio de impressões. O mesmo acontece com a cabana no Lago Little
Fawn. E o carro dela.
— Devemos pegar o carro... — ele começou a dizer. Eu o detive.
— Não adianta. Tem muitos outros lugares, demais. Que tipo de perfume ela usa?
Ele pareceu perdido por um instante.
— Oh... Gillerlain Regai, o Champanha dos Perfumes — disse com indiferença. —
Um Chanel número qualquer coisa de vez em quando.
— Como é esse perfume de vocês?
— Uma espécie de sândalo.
— O quarto rescende a ele — eu disse. — Me pareceu perfume barato. Mas não sou
juiz nesses assuntos.
— Barato? — ele disse, atingido até a medula. — Meu Deus, barato? Cobramos
trinta dólares a onça por ele.
— Bem, aquela coisa cheira mais como de três dólares o galão.
Ele pôs as mãos com força nos joelhos e balançou a cabeça.
— Estou falando de dinheiro — disse. — Quinhentos dólares. Um cheque agora
mesmo.
Deixei a oferta cair no chão, ondulando como uma pena suja. Um dos velhos
camaradas atrás de nós levantou-se trô-

pego e saiu da sala tateando cuidadosamente o caminho. Kingsley disse com gravidade:
— Eu contratei o senhor pra me proteger de escândalos, e evidentemente pra
proteger minha mulher, se ela precisasse. Não por culpa sua, a possibilidade de evitar
o escândalo se fez em pedaços. Trata-se agora do pescoço de minha mulher. Eu não
acredito que ela tenha atirado em Lavery. Não tenho motivo pra acreditar nisso.
Nenhum mesmo. Simplesmente sinto a convicção. Ela pode ter até estado lá na noite
passada, essa arma pode ser até dela. Isso não prova que ela matou ele. Ela seria tão
descuidada com a arma quanto com tudo mais. Qualquer um podia ter se apoderado
dela.
— Os tiras lá embaixo não vão fazer muita força pra acreditar nisso — eu disse. —
Se o que encontrei é um espécime exemplar, eles simplesmente vão pegar a primeira
cabeça que virem e começar a trabalhar com os cassetetes. E a dela vai ser sem
dúvida a primeira cabeça que vão ver quando examinarem a situação.
Ele apertou as mãos uma contra a outra. Sua infelicidade tinha um sabor teatral,
como a miséria tão freqüentemente tem.
— Estou com o senhor até um certo ponto — eu disse. — O cenário armado lá é
quase bom demais, à primeira vista. Ela deixa lá roupas que foi vista usando, e que
provavelmente podem ser identificadas. Deixa a pistola na escada. Ê difícil acreditar
que tenha sido tão burra assim.
— O senhor me dá um pouco de ânimo — disse Kingsley, exausto.
calosas de alegria. E evidentemente vão localizar a arma, e se for a dela...
Ele mergulhou a mão na poltrona a seu lado, para pegar a arma.
— Não — eu disse. — Eles precisam ter a pistola. Marlowe pode ser um cara muito
esperto e gostar muito do senhor pessoalmente, mas não pode arriscar a supressão de
uma prova tão vital como a arma que matou o homem. O que quer que eu faça tem de
ser na base de que sua mulher é uma suspeita óbvia, mas de que essa obviedade pode
estar errada.
Ele gemeu e estendeu a manzorra com a pistola. Peguei-a e guardei-a. Depois
tornei a tirá-la e disse:
— Me empreste seu lenço. Não quero usar o meu. Pode ser investigado.
Ele me emprestou um lenço branco duro de goma e eu limpei a pistola toda,
cuidadosamente, e deixei-a cair em meu bolso. Devolvi-lhe o lenço.
— Minhas impressões não são problema — eu disse. — Mas não quero as suas nela.
Eis a única coisa que posso fazer. Voltar lá, recolocar a pistola e chamar a lei.
Acompanhá-los e deixar as peças caírem onde se encaixam. A história vai ter de
surgir. O que eu fazia lá e porquê. Na pior das hipóteses, eles a encontrarão e
provarão que ela o matou. Na melhor, irão encontrá-la muito mais rápido do que eu
podería e deixarão que eu use minhas energias pra provar que ela não o matou, o
que significa, na verdade, provar que outra pessoa matou. Topa isso?
Ele assentiu lentamente. Disse:
— Sim... e os quinhentos estão de pé. Pra provar que Crystal não o matou.
— Não espero ganhar esse dinheiro — eu disse. — Pode ir entendei do isso logo. Até
onde a Srta. Fromsett conhecia Lavery? Fora das horas de serviço?
O rosto dele endureceu, os punhos tornaram-se duros bolos sobre as coxas. Nada
disse.
— Ela pareceu meio esquisita quando pedi o endereço dele ontem de manhã — eu
disse.
Ele deixou escapar a respiração lentamente.
— Como se tivesse um gosto ruim na boca — eu disse. — Como um romance que
gorou. Estou sendo muito direto?
As narinas dele tremeram um pouco, e a respiração pro
vocou nelas um ruído, por um momento. Depois ele relaxou e disse baixo:
— _Ela... ela o conheceu mais ou menos bem... em certa época. Ê uma moça que faz o que quer nesses
assuntos. Acho que Lavery era um cara fascinante... pras mulheres.
— Vou precisar conversar com ela.
— Por quê? — perguntou rispidamente. Manchas vermelhas surgiram em suas faces.
— Não se preocupe com o motivo. É meu trabalho fazer todo tipo de perguntas a
todo tipo de pessoas.
— Converse com ela então — disse, contidamente. — Na verdade, ela conhecia os
Aimorés. Conhecia a mulher de Almore, aquela que se matou. Lavery também a
conhecia. Isso pode ter alguma ligação com esse caso?
— Não sei. Está apaixonado por ela, não está?
— Me casaria com ela amanhã, se pudesse — ele disse rigidamente.
Assenti e levantei-me. Olhei a sala às minhas costas. Estava quase vazia agora.
Na outra extremidade, duas velhas relíquias ainda sopravam bolhas. O resto dos
velhos viciados em poltronas macias cambaleara de volta ao que quer que fizessem
quando conscientes.
— Só tem uma coisa — eu disse, olhando para Kingsley. — Os tiras ficam muito
hostis quando a gente demora em chamá-los após um assassinato. Teve demora
desta vez, e vai ter mais. Eu gostaria de descer até lá como se fosse a primeira vez
hoje. Acho que posso conseguir, se deixar a tal Fallbrook de fora.
— Fallbrook? — Ele mal sabia do que eu falava. — Quem diabos... oh, sim, já me
lembro.
— Bem, não se lembre. Tenho quase certeza de que jamais ouvirão um pio dela.
Não é do tipo que se mete com a polícia por vontade própria.
— Compreendo — ele disse.
— Tome cuidado como vai agir então. Vão lhe fazer perguntas antes de dizerem
ao senhor que Lavery está morto, antes que me deixem entrar em contato com o
senhor... até onde sabem. Não caia em nenhuma armadilha. Se cair, não vou poder
achar nenhuma saída. Vou estar é ferrado.
— O senhor pode me telefonar da casa lá embaixo... antes de chamar a polícia —
ele disse, razoavelmente.

— Eu sei. Mas o fato de não ligar contará a meu favor. E eles vão verificar os chamados telefônicos, é uma das
primeiras coisas que fazem. E se eu chamar o senhor de qualquer outra parte, é o mesmo que admitir que vim aqui
ver o senhor.
— Entendo. Pode confiar em mim pra controlar a situação.
Apertamos as mãos e deixei-o parado ali, de pé.

18
O Athletic Club ficava numa esquina do lado oposto da rua e quatro quadras
distante do edifício Treloar. Atravessei e segui a pé para o norte até a entrada. Tinham
acabado de aplicar concreto rosa onde havia antes a calçada de borracha. O trecho
estava cercado, deixando um estreito passadiço para se entrar e sair do prédio. O
espaço estava congestionado de empregados de escritório que voltavam do almoço.
A sala de recepção da Gillerlain Company parecia ainda mais vazia do que no dia
anterior. A mesma lourinha fofa se achava instalada atrás do PBX no canto. Deu-me
um rápido sorriso e eu lhe fiz a saudação do pistoleiro, um dedo duro apontado para
ela, os três dedos de baixo dobrados e o polegar mexendo-se para cima e para baixo,
como um pistoleiro do Oeste armando o cão de sua arma. Ela riu gostosamente, sem
emitir um som. Aquilo era mais diversão do que o que ela tivera em uma semana.
Indiquei a mesa vazia da Srta. Fromsett e a lourinha assentiu, enfiou um plugue e
falou. Abriu-se uma porta, e a Srta. Fromsett saiu ondulando elegantemente até a sua
mesa, sentou se e deu-me a atenção de seus olhos frios e expectantes.
— 5im, Sr. Marlowe? O Sr. Kingsley não está, sinto muito.
— Acabo de falar com ele. Onde podemos conversar?
— Conversar? '
— Tenho uma coisa pra mostrar a você.
— Oh, tem? — Ela me olhou, pensativamente. Muitos caras provavelmente haviam
tentado mostrar-lhe coisas, incluindo águas-fortes. Em outra oportunidade, não me
desa^ gradaria fazer uma tentativa também.
— Negócios — eu disse. — Negócios do Sr. Kingsley.
Ela se levantou e abriu a portinhola na grade.
— Então podemos entrar no gabinete dele.
Entramos. Ela segurou a porta para mim. Ao passar, aspirei. Sândalo. Eu disse:
— Gillerlain Regai, o Champanha dos Perfumes?
Ela deu um débil sorriso, segurando a porta.
— Com o meu salário?
— Não falei nada sobre seu salário. A senhorita não parece uma garota que tenha
de comprar seus perfumes.
— Sim, é isso mesmo — ela disse. — E, se quer saber, detesto usar perfume no
escritório. É ele quem me obriga.
Atravessamos o comprido gabinete na penumbra e ela pegou uma cadeira no fim
da mesa. Sentei onde me sentara no dia anterior. Olhamos um para o outro. Ela'usava
marrom nesse dia, com folhas de renda no pescoço. Parecia um pouco mais calorosa,
mas nada que se assemelhasse a um incêndio na pradaria.
Ofereci-lhe um dos cigarros de Kingsley. Ela aceitou, acendeu-o com o isqueiro
dele, e reclinou-se.
— Não precisamos perder tempo com rodeios — eu disse. — A senhorita já sabe a
esta altura quem eu sou e o que estou fazendo. Se não sabia ontem de manhã, é
apenas porque ele adora bancar o chefão.
Ela baixou os olhos para a mão que repousava em seu joelho, depois ergueu-os
e sorriu quase timidamente.
— É um grande sujeito — disse. — Apesar de gostar de bancar o executivo durão. É
o único a quem engana com isso, afinal. E se ao menos o senhor soubesse o que ele
aturou daquela vagabundinha... — Balançou o cigarro. — Bem, talvez seja melhor
deixar isso de lado. Por que queria falar comigo?
— Kingsley disse que a senhorita conheceu os Aimorés.
— Conheci a Sra. Almore. Quer dizer, encontrei com ela umas duas vezes.
— Onde?
— Na casa de um amigo. Por quê?
— Na casa de Lavery?
— Não vai se tornar insolente, vai, Sr. Marlowe?
— Não sei qual seria a sua definição para isso. Vou tratar de negócios como
negócios, não como diplomacia internacional.
A DAMA DO LAGO
— Muito bem. — Ela assentiu levemente. — Foi na casa de Chris Lavery, sim. Eu ia lá... uma vez ou outra. Ele
dava coquetéis.
— Então Lavery conhecia os Aimorés... ou a Sra. Aimoré.
Ela enrubesceu muito de leve. — Sim. Muito bem.
— E um bocado de outras mulheres... muito bem, também. Não duvido disso. A Sra.
Kingsley também a conhecia?
— Sim, melhor que eu. As duas se tratavam pelos primeiros nomes. A Sra. Almore
morreu, o senhor sabe. Cometeu suicídio, cerca de um ano e meio atrás.
— Alguma dúvida a esse respeito?
Ela ergueu as sobrancelhas, mas a expressão me pareceu artificial, como se
apenas combinasse com a minha pergunta, formalmente.
Disse:
— Tem algum motivo particular pra fazer essa pergunta, dessa forma particular?
Quer dizer, tem alguma coisa a ver... com o que o senhor está fazendo?
— Não creio. Ainda não sei se tem. Mas ontem o Dr. Almore chamou um tira só
porque eu olhei pra casa dele. Depois de descobrir, pela placa de meu carro, quem eu
era. C tira foi muito rude comigo, só por estar ali. Não sabia o que eu estava fazendo e
eu não disse que tinha visitado Lavery. Mas o Dr. Almore devia saber disso. Tinha me
visto na frente da casa de Lavery. Ora, por que ia precisar chamar um tira? E por que o
tira achou oportuno dizer que o último cara que tentou espremer Almore acabou numa
turma de acorrentados na manutenção de estradas. E por que o tira iria me perguntar
se o pessoal dela... se referindo aos parentes da Sra. Almore, suponho... tinha me
contratado? Se puder me responder uma dessas perguntas, eu posso saber se é da
minha conta.
Ela pensou por um momento, dando-me uma ligeira olhada enquanto pensava, e
depois tornando a desviar os olhos.
— Só me encontrei com a Sra. Almore duas vezes — disse lentamente. — Mas acho
que posso responder às suas perguntas... todas elas. A última vez que a vi foi na casa
de Lavery, como disse, e havia um bocado de gente lá. Muita bebida e conversa em
voz alta. As mulheres sem os maridos, e os maridos sem as mulheres. Tinha um
homem chamado
Brownwell que estava muito ruim. Soube que está na marinha agora. Ficava alfinetando a Sra. Almore sobre
as atividades do marido dela. Parece que ele era um desses médicos que passam a noite correndo de um lado pro
outro, com um estojo cheio de agulhas hipodérmicas, evitando que o pessoal avan- çadinho daqui veja elefantes cor
de rosa no café da manhã. Florence Almore disse que não ligava pra forma como o marido
conseguia dinheiro, contanto que tivesse muito e ela pudesse gastar à vontade. Estava
alta também, e imagino que já não era lá muito legal quando estava sóbria. Uma dessas
garotas magrelas e reluzentes que riem demais e se esparramam todas nas poltronas,
mostrando um bocado de perna. Uma loura de cabelos muito claros, muito bronzeada e
com olhos indecentemente azuis, como os de um bebê. Bem, Brownwell disse a ela
que não se preocupasse, sempre seria um bom negócio. Entrar e sair da casa do
paciente em quinze minutos, a preços que variavam de dez a cinqüenta por visita. Mas
disse que tinha uma coisa que intrigava ele: como era que um médico podia conseguir
tanto tóxico sem contatos com o submundo. Perguntou à Sra. Almcojejg recebiam
muitos gangsters pra jantar em casa. Ela jogou um^ copo de uísque na cara dele.
Dei um sorriso, mas a Srta. Fromsett não. Ela esmagou o cigarro no grande
cinzeiro de cobre e vidro de Kingsley e me olhou sobriamente.
— Muito justo — eu disse. — Quem não jogaria, a menos que tivesse um grande
punho para usar?
— É. Poucas semanas depois Florence Almore foi encontrada morta na garagem,
tarde da noite. A porta da garagem estava fechada, e o motor do carro ligado. — Parou
e ume- deceu levemente os lábios. — Foi Chris Lavery quem a encontrou. Ao voltar
pra casa, sabe Deus a que hora da manhã. Ela estava caída no piso de concreto, de
pijama, com a cabeça debaixo de um cobertor, que também cobria o cano de
descarga do carro. O Dr. Almore estava fora. Não saiu nada do caso nos jornais, a
não ser que ela tinha morrido de repente. Foi tudo bem abafado.
Ergueu um pouco as mãos trançadas e deixou-as cair lentamente no colo de novo.
Eu disse:
— Tinha alguma coisa errada no caso, então?

— As pessoas acharam que sim, mas sempre acham. Algum tempo depois eu soube o que passava por ser a
verdade. Encontrei esse tal de Brownwell na Rua Vine e ele me convidou pra tomar uma bebida. Eu não gostava
dele, mas tinha meia hora disponível. Sentamos no fundo do bar do Levy e ele me perguntou se me lembrava da
garota que jogara a bebida em sua cara. Eu disse que me lembrava. A conversa então prosseguiu mais ou menos da
seguinte maneira. Me lembro muito bem.
“Brownwell disse: ‘Nosso amigo Chris Lavery está numa boa, se perder as
namoradinhas pode passar pra droga'.
“Eu disse: ‘Acho que não estou entendendo'.
“Ele disse: ‘Bem, talvez não queira entender. Na noite que a tal Almore morreu,
tinha estado na espelunca de Lou Condy, perdendo até a camisa na roleta. Deu um
faniquito nela, que disse que a roleta estava viciada e fez um escândalo. Condy
praticamente teve de arrastá-la pra fora do gabinete dele. Alcançou o Dr. Almore
através do Plantão de Médicos, e algum tempo depois ele apareceu. Deu uma injeção
nela, com aquelas ativas agulhas dele. Depois foi embora, deixando que Condy a
levasse pra casa. Parece que tinha um caso muito urgente. Por isso Condy a levou pra
casa e a enfermeira do consultório do doutor apareceu, pois tinha sido chamada por
ele, e Condy a levou pra cima, e a enfermeira colocou-a na cama. Condy voltou pras
fichas dele. Portanto, ela teve de ser carregada pra cama, e na mesma noite se
levantou, desceu até a garagem da família e se matou com monóxido. Que acha
disso?'. Brownwell me perguntou.
“Eu disse: ‘Não sei de nada a esse respeito. Como o senhor sabe?'
“Ele disse: ‘Conheço um repórter de um trapo de lá a que chamam de jornal. Não
teve inquérito nem autópsia. Se fizeram algum teste, ninguém foi informado a respeito.
Eles têm juiz de instrução fixo lá. Os papa-defuntos é que se revezam no papel de juiz
de instrução, por uma semana cada. São muito subservientes à camarilha política,
naturalmente. Ê fácil arrumar uma coisa dessa numa cidadezinha, se alguém com
alguma importância quer a arrumação. E Condy tinha muita nessa época. Não queria a
publicidade de uma investigação, nem o médico queria' .”

A Srta. Fromsett parou de falar e esperou que eu dissesse alguma coisa. Como eu não disse, ela prosseguiu:
— Suponho que o senhor sabe o que tudo isso queria dizer pra Brownwell.
— Claro. Almore acabou com ela, e depois ele e Condy pagaram o acobertamento. Já se fez isso em cidades
mais limpas do que Bay City jamais tentou sequer ser. Mas essa não é a história toda, é?
— Não. Parece que os pais da Sra. Almore contrataram um detetive particular. Era
um cara que tinha um serviço de vigia noturno lá embaixo, e na verdade foi o segundo
homem na cena naquela noite, depois de Chris. Brownwell disse que ele devia ter
conseguido algum tipo de informação, mas nunca teve a oportunidade de usar.
Prenderam-no por dirigir bêbedo e ele pegou uma condenação.
— Perguntei: — Isso é tudo?
Ela assentiu com a cabeça.
— E se acha que lembrei bem demais, é parte de meu serviço me lembrar de
conversas.
— O que eu estava pensando é que isso não significa, necessariamente, muita
coisa. Não vejo onde tem de envolver Lavery, mesmo sendo ele quem a achou. Seu
amigo fofoqueiro Brownwell parece pensar que o que aconteceu pode dar a alguém
uma oportunidade de chantagear Almore. Mas teria de haver alguma prova,
especialmente quando a gente quer espremer uma pessoa que já se limpou com a lei.
A Srta. Fromsett disse:
— Também penso assim. E gostaria de pensar que chantagem era um dos
truquezinhos sujos que Chris Lavery não aceitava muito. Acho que é tudo que posso
lhe dizer, Sr. Marlowe. E tenho de ficar de fora.
Começou a se levantar. Eu disse:
— Não é tudo, exatamente. Tenho uma coisa pra mostrar a você.
Tirei o paninho perfumado que estava debaixo do travesseiro de Lavery e me
curvei para soltá-lo na mesa à frente dela.

19
Ela olhou o lenço, olhou para mim, pegou um lápis e revirou o pedaço de linho
com a ponta de borracha.
m

109
— Que é que tem nele? — perguntou. — Inseticida?
— Um tipo de sândalo, me pareceu.
— Um sintético barato. Repulsivo é uma palavra branda pra isso. E por que queria que eu visse esse lenço, Sr.
Mar- lowe? — Tornou a reclinar-se e fixou-me com os olhos frios e parados.
— Encontrei-o na casa de Chris Lavery, debaixo do travesseiro da cama dele. Tem suas iniciais.
Ela desdobrou o lenço, sem tocá-lo, com a ponta de borracha do lápis. Seu rosto
tornou-se um tanto fechado e tenso.
— Tem duas letras bordadas — disse, numa voz fria e irada. — Por acaso são as
mesmas letras das minhas iniciais. É isso que quer dizer?
— Correto — eu disse. — Ele provavelmente conhece meia dúzia de mulheres com
as mesmas iniciais.
— Então vai se tornar desagradável, afinal — ela disse baixinho.
— O lenço é seu... ou não é?
Ela hesitou. Estendeu a mão para a mesa, e muito silenciosamente tirou outro
cigarro e acendeu-o com um fósforo. Sacudiu lentamente o fósforo, olhando a pequena
chama lamber o palito.
— Sim, é meu. Devo ter deixado cair lá. Foi há muito tempo. E garanto ao senhor
que não fui eu que o pus debaixo de um travesseiro na cama de Chris Lavery. Era o
que o senhor queria saber?
Eu não disse nada, e ela acrescentou:
— Ele deve ter emprestado a alguma mulher... que gosta desse tipo de perfume.
— Tenho na mente uma imagem dessa mulher — eu disse. — E ela não combina
muito com Lavery.
Ela franziu um pouco o lábio superior. Era um lábio superior longo. Eu gosto de
lábios superiores longos.
— Eu acho que o senhor devia trabalhar mais um pouco a imagem mental que faz
de Chris Lavery. Qualquer sinal de refinamento que tenha notado é mera coincidência.
— Isso não é bonito de dizer sobre um morto — eu disse.
Por um momento, a Srta. Fromsett apenas ficou ali sentada, olhando-me como se
eu não tivesse dito nada e ela esperasse que eu dissesse alguma coisa. Depois, um
pequeno calafrio começou a correr pelo pescoço e passou por todo o seu

corpo. Ela cerrou os punhos, e o cigarro curvou-se. Ela baixou o olhar para ele e jogou-o no cinzeiro com um
movimento súbito do braço. J
— Atiraram nele dentro do chuveiro — eu disse. — E parece que a coisa foi feita por uma mulher que passou a
noite lá. Ele acabava de se barbear. A mulher deixou uma pistola na escada e esse lenço na cama.
Ela se mexeu muito de leve em sua poltrona. Tinha os olhos inteiramente vazios agora. O rosto parecia frio
como uma escultura.
— E esperava que eu pudesse lhe dar alguma informação sobre isso? — perguntou-
me amargamente.
— Escute aqui, Srta. Fromsett, eu gostaria de ser brando e sutil sobre isso,
também. Gostaria de fazer esse tipo de jogo, pelo menos uma vez, do jeito que uma
pessoa como a senhorita gostaria que fosse feito. Mas ninguém vai me deixar fazer
isso... nem os clientes, nem os tiras, nem as pessoas contra as quais estou jogando.
Por mais que eu tente ser simpático, sempre acabo com o nariz enfiado na sujeira e o
polegar buscando o olho de alguém.
Ela assentiu, como se mal tivesse me ouvido.
— Quando atiraram nele? — perguntou, e teve outro calafrio.
— Hoje de manhã, suponho. Não muito depois que ele se levantou. Eu disse que
ele tinha acabado de se barbear e ia tomar uma ducha.
— Isso — ela disse — provavelmente teria sido muito tarde. Estou aqui desde as oito
e meia.
— Não pensei que fosse a senhorita quem atirou nele.
— Muitíssima bondade sua. Mas é o meu lenço, não é? Embora não seja o meu
perfume. Mas não creio que os policiais sejam muito sensíveis à qualidade dos
perfumes... ou a qualquer outra coisa.
— Não... e isso vale pra detetives particulares também — eu disse. — Entende bem
isso?
— Deus — ela disse, e levou as costas da mão à boca.
— Atiraram nele cinco ou seis vezes — eu disse. — E só acertaram dois tiros. Ele
estava acuado no box do chuveiro. Acho que foi uma cena bem terrível. Um dos lados
estava com muito ódio. Ou tinha uma mente de muito sangue frio.

— Era muito fácil odiar ele — ela disse, vaziamente. — E venenosamente fácil de amar. As mulheres... mesmo as
decentes... cometem erros tão horrorosos em relação aos homens.
— O que a senhorita está me dizendo é que um dia achou que amava esse homem, mas agora não achava
mais, e que não atirou nele.
— 6. — A voz dela agora estava leve e seca, como o perfume que não gostava de
usar no escritório. — Estou certa de que o senhor vai respeitar essa confidência. — Deu
um breve sorriso amargo. — Morto — disse. — Sujeitinho medíocre, egoísta, vulgar,
desagradável, lindo e traidor. Morto, frio e liquidado. Não, Sr. Marlowe, eu não atirei
nele.
Fiquei à espera, deixando que ela mesma se esgotasse. Após um momento, ela
disse baixinho:
— O Sr. Almore já sabe?
Assenti.
— E a polícia, claro.
— Ainda não. Pelo menos não por mim. Fui eu que encontrei ele. A porta da casa
não estava fechada direito. Entrei. Encontrei ele.
Ela pegou o lápis e futucou novamente o lenço.
— O Sr. Kingsley sabe sobre esse lenço perfumado?
— Ninguém sabe disso, a não ser eu e a senhorita, e quem pôs ele lá.
— Bondade sua — ela disse secamente. — E foi bondade também pensar o que
pensou.
— A senhorita tem um certo ar de distanciamento e dignidade que me agrada — eu
disse. — Mas não me entenda errado. Que esperava que eu pensasse? Puxo o lenço de
debaixo do travesseiro, farejo, estendo e digo: “Ora, ora, com as iniciais da Srta.
Fromsett e tudo. Ela deve ter conhecido /Lavery, talvez muito intimamente. Digamos, só
pra constar, tão intimàmente quanto minha mente suja pode imaginar. E isso é muita
intimidade. Mas isso é perfume sintético barato, de sândalo, e a Srta. Fromsett não
usaria perfume barato. E estava debaixo do travesseiro de Lavery e a Srta. Fromsett
simplesmente nunca guarda seus lenços debaixo do travesseiro de um homem.
Portanto, isso não tem absolutamente nada a ver com a Srta. Fromsett. É apenas uma
ilusão de ótica”.

— Oh, cale a boca — ela disse.


Dei um sorriso.
— Que tipo de moça pensa que eu sou? — ela disparou.
— Apareci tarde demais pra lhe dizer isso.
Ela corou, mas delicadamente, e dessa vez no rosto todo. Depois:
— Tem alguma idéia de quem foi?
— Idéias, mas apenas isso. Receio que a polícia vai achar tudo simples. Algumas
das roupas da Sra. Kingsley estão penduradas no armário de Lavery. E quando eles
souberem da história toda... incluindo o que aconteceu no Lago Little Fawn ontem...
receio que simplesmente passem a mão nas algemas. Mas primeiro vão ter de achá-la.
Embora isso não seja tão difícil assim pra eles.
— Crystal Kingsley — ela disse com uma vo, vazia. — Então nem disso ele foi
poupado.
Eu disse: — Não tem de ser assim. Podia ser uma motivação inteiramente diferente,
algo de que a gente não sabe nada. Pode ter sido um cara como o Dr. Almore.
Ela ergueu rapidamente a cabeça, depois balançou-a.
— Podia ser — insisti. — Não sabemos nada que desminta isso. Ele esteve um
bocado nervoso ontem, pra um homem que não tem nada a temer Mas é claro, não só
os culpados têm medo.
Levantei-me e tamborilei na borda da mesa, olhando-a de cima para baixo. Tinha
um belo pescoço. Indicou o lenço.
— E isso aí? — perguntou maquinalmente.
— Se fosse meu, eu lavaria esse perfume barato dele.
— Tem de significar alguma coisa, não tem? Pode significar muita coisa.
Eu dei uma risada.
— Não creio que signifique coisa alguma. As mulheres vivem deixando lenços por
aí. Um cara como Lavery podia colecioná-los e guardar numa gaveta com um sache de
sân- dalo. Alguém podia encontrar e tirar um pra usar. Ou ele podia emprestá-los, pra
desfrutar as reações às iniciais de outra garota. Acho que era uma espécie de patife.
Adeus, Srta. Fromsett, e obrigado por conversar comigo.
Comecei a sair, mas parei e perguntei a ela:
— Ouviu por acaso o nome do repórter lá emoaixo que deu a Brownwell toda essa
informação?

Ela balançou a cabeça.


— Ou o nome dos pais da Sra. Almore?
— Também não. Mas provavelmente posso descobrir isso pro senhor. Seria um prazer tentar.
— Como?
— Essas coisas geralmente saem publicadas nos avisos fúnebres, não saem?
Certamente saiu um aviso fúnebre nos jornais de Los Angeles.
— Seria muita bondade sua — eu disse. Passei um dedo pela borda da mesa e
olhei-a de lado. Pele de marfim claro, olhos negros e lindos, cabelos tão leves quanto
possível e tão negros quanto a noite.
Atravessei a sala e saí. A lourinha no PBX me olhou expectante, os labiozinhos
rubros abertos, esperando mais divertimento.
Eu não tinha mais nenhum. Saí.

20
Não havia carros de polícia na frente da casa de Lavery, ninguém zanzava em
torno pela calçada, e quando empurrei a porta da frente, abrindo-a, não se sentia cheiro
de fumaça de cigarro ou charuto lá dentro. O sol deixara as janelas e uma mosca
zumbia baixinho sobre um dos copos de bebida. Fui até a outra extremidade da sala e
apoiei-me no corrimão que levava ao andar de baixo. Nada se mexia na casa do Sr.
Lavery. Nada emitia qualquer som, a não ser, muito levemente lá embaixo, no banheiro,
o abafado fio de água pingando no ombro de um morto.
Fui até o telefone e procurei o número da polícia no catálogo. Disquei, e enquanto
esperava uma resposta, tirei a pequena automática do bolso e a coloquei na mesa ao
lado do telefone.
Quando uma voz masculina disse: — Polícia de Bay City, é Smoot quem fala — eu
disse: — Deram uns tiros na Rua Altair 623. Um homem chamado Lavery mora lá. Está
morto.
— Seis-dois-três, Altair. Quem é você?
— Meu nome é Marlowe.
— Está na casa?
— Correto.

— Não toque em coisa alguma.


Desliguei, seníei-me no sofá e esperei.
Não muito. Uma sirene gemeu à distância, aproximando- se com grandes vagas de som. Os pneus cantaram
numa esquina e a sirene reduziu-se a um rosnado metálico e depois ao silêncio, e os pneus tornaram a cantar na
frente da casa. Era a polícia de Bay City economizando pneu. Soaram passos na calçada, e fui até a porta da frente
e abri-a.
Dois tiras uniformizados invadiram a sala. Eram do tipo grande habitual, e tinham
os habituais rostos curtidos e olhos desconfiados. Um deles trazia um cravo enfiado por
baixo do quepe, atrás da orelha direita. O outro era mais velho, um pouco grisalho e
triste. Os dois ficaram de pé me olhando cautelosa mente, e depois o mais velho disse
com rispidez:
— Muito bem, onde foi?
— Lá embaixo, no banheiro, atrás da cortina do chuveiro.
— Fique aqui com ele, Eddie.
Atravessou rapidamente a sala e desapareceu. O outro me olhava sem desviar os
olhos e disse pelo canto da boca:
— Não faça nenhum movimento em falso, companheiro. Tornei a sentar-me no sofá.
O tira vasculhava a sala com os olhos. Ouviam-se sons embaixo da escada, pés
andando. O tira que estava comigo localizou de repente a pistola em cima da mesa do
telefone. Precipitou-se violentamente para ela, como um bloqueador no rugby.
— Essa é a arma do crime? — quase gritou.
— Eu imaginaria que sim. Foi disparada.
— Há! — Ele se curvou sobre a pistola, mostrando os dentes para mim, e levou a
mão ao coldre. Os dedos coçaram a aba e ele agarrou a coronha do revólver negro.
— Você o quê? — ladrou. .
— Eu imaginaria que sim.
— Essa é muito boa — ele deu um risinho. — Essa é muito boa mesmo.
— Não é tão boa assim — eu disse.
Ele recuou um pouco. Os olhos estavam sendo cautelosos comigo.
— Por que atirou nele? — rosnou.
— Tenho me perguntado e me perguntado.
— Ah, um espertinho.

— Vamos simplesmente nos sentar e esperar os rapazes da homicídios — eu disse.


— Estou reservando minha defesa.
— Não me venha com essa — ele disse.
— Não estou indo com coisa alguma. Se eu tivesse atirado nele, não estaria aqui.
Não teria telefonado. Você não teria encontrado a pistola. Não se esforce tanto no
caso. Não ficará nele mais de dez minutos.
Os olhos dele pareceram magoados. Tirou o quepe e o cravo caiu no chão. Curvou-
se, apanhou-o e girou-o entre os dedos, depois jogou-o atrás da grade da lareira.
— Melhor não fazer isso — eu disse. — Podem pensar que é uma pista e perder um
bocado de tempo com ele.
— Ah, diabos. — Ele se abaixou sobre a lareira e tornou a pegar o cravo. Colocou-o
no bolso. — Você sabe todas as respostas, não é, companheiro?
O outro tira vinha voltando, subindo a escada, com um ar sério. Ficou parado no
meio da sala, olhou o relógio de pulso, fez uma anotação numa caderneta e depois
olhou pelas janelas da frente, segurando a veneziana para um lado.
O que ficara comigo disse:
— Posso olhar agora?
— Deixe pra lá, Eddie. Não tem nada lá pra gente. Chamou o juiz de instrução?
— Pensei que a homicídios fazia isso.
— Ê, está certo. O Capitão Weber estará no caso e gosta de fazer tudo ele mesmo.
— Olhou para mim e disse: — Você é o cara chamado Marlowe?
Eu disse que era o cara chamado Marlowe.
— Ê um espertinho, sabe todas as respostas — disse Eddie.
O mais velho me olhou ausentemente, olhou para Eddie ausentemente, localizou a
pistola na mesa do telefone, e para ela não olhou ausentemente de modo algum.
— É, é a arma do crime — disse Eddie. — Não toquei nela.
O outro assentiu.
— Os rapazes não estão tão rápidos hoje. Qual é seu ramo, senhor? Amigo dele? —
Indicou o piso com o polegar.
Vi-o ontem pela primeira vez. Sou detetive particular de Los Angeles. *

— Oh. — Ele me olhou com muita atenção. O outro me olhou com profunda desconfiança.
— Espiões, isso quer dizer que vai estar tudo bagunçado — disse.
Era a primeira observação sensata que fazia. Sorri afetuosamente para ele.
O tira mais velho tornou a olhar pela janela da frente.
— Lá está a casa de Almore, defronte, Eddie — disse. Eddie foi olhar com ele.
— Claro — disse. — A gente pode ler a placa. Ora, esse cara lá embaixo podia ser o
cara...
— Cale a boca — disse o outro, deixando cair a veneziana. Os dois se voltaram para
mim e me olharam sem expressão.
Um carro desceu a quadra e estacionou, uma porta bateu e outros passos
desceram a rampa. O mais velho dos tiras do carro-patrulha abriu a porta para dois
homens à paisana, um dos quais eu j á conhecia.

21
O que entrou primeiro era pequeno para um tira, de meia idade, rosto magro e uma
expressão permanentemente cansada. Tinha o nariz adunco e um pouco torto para um
lado, como se alguém lhe tivesse dado uma cotovelada em outros tempos, quando ele
o enfiara em alguma coisa. O chapéu azul de feltro mole assentava-se direito na
cabeça, e por baixo surgiam cabelos brancos como giz. Usava um terno marrom ruço e
tinha as mãos nos bolsos do paletó, com os polegares para fora.
O homem atrás dele era Degarmo, o tira grandão de cabelos cor de areia, olhos
azuis metálicos e rosto selvagem e vincado, que não gostara do fato de eu estar
defronte da casa do Dr. Almore.
Os dois homens uniformizados olharam o homenzinho e tocaram nos quepes.
— O corpo está no porão, Capitão Weber. Recebeu dois tiros, após terem errado umas duas vezes, ao que parece.
Morto há bastante tempo. O nome desse aí é Marlowe. Ê um
detetive particular de Los Angeles. Não fiz mais perguntas a ele além dessa.
— Muito certo — disse Weber secamente. Tinha uma voz desconfiada. Passou um
olhar desconfiado pelo meu rosto e assentiu brevemente. — Sou o Capitão Webber —
disse. — Este aqui é o Tenente Degarmo. Vamos olhar o cadáver primeiro.
Atravessou a sala. Degarmo me olhou como se nunca me tivesse visto antes e foi
atrás dele. Desceram, o mais velho dos dois tiras do carro-patrulha acompanhando-os.
O tira chamado Eddie e eu ficamos olhando um para o outro por algum tempo.
Eu disse: — Esta casa fica bem defronte da casa do Dr. Almore, não é?
Toda expressão fugiu do rosto dele. Também não tinha muita para desaparecer.
— Ê. E daí?
— Daí nada — eu disse.
Ele ficou calado. As vozes lá debaixo chegavam misturadas e indistintas. O tira
curvou uma orelha e disse num tom mais amistoso:
— Lembra daquela?
— Um pouco.
Ele riu. — Mataram elabonitinho — disse. — Encobriram tudo e jogaram bem lá no
fundo da prateleira. Aquela de cima do armário do banheiro. Aquela que a gente só
pode alcançar subindo numa cadeira.
— Foi — eu disse. — Imagino por quê.
O tira me olhou severamente. — Tinha um bom motivo, companheiro. Não pense
que não tinha. Conhece esse Lavery bem?
— Não bem.
— Estava atrás dele por alguma coisa?
— Trabalhando nele um pouco — eu disse. — Você o conhecia?
O tira chamado Eddie balançou a cabeça.
— Não. Só me lembrei que foi um cara desta casa que encontrou a mulher de
Almore na garagem, naquela noite.
— Talvez Lavery não morasse aqui, naquele tempo.
— Há quanto tempo ele está aqui?
— Não sei.

— Seria coisa de um ano e meio — disse o tira, meditando. — Os jornais de Los


Angeles deram alguma coisa?
— Um parágrafo na página do interior — eu disse, só para movimentar a boca.
Ele coçou a orelha e ficou à escuta. Passos subiam a escada. O rosto do tira ficou
sem expressão, e ele se afastou de mim e se empertigou.
O Capitão Webber dirigiu-se rápido ao telefone, discou um número e falou, depois
afastou o fone do ouvido e olhou para trás por cima do ombro.
— Quem é o assistente do juiz esta semana, Al?
— Ed Garland — disse o grande tenente, indiferente.
— Chame Ed Garland — disse Webber ao telefone. — Diga que venha pra cá
imediatamente. E diga à turma das fotos para correr.
Desligou e disse, de modo cortante:
— Quem pegou nessa pistola?
— Fui eu.
Ele se aproximou, oscilou nos calcanhares à minha frente e projetou o pequeno
queixo pontiagudo na minha direção. Segurava delicadamente a pistola, num lenço.
— Não sabe o bastante para não mexer numa arma encontrada na cena de um
crime?
— Claro — eu disse. — Mas quando a peguei não sabia que havia um crime. Não
sabia que a arma tinha sido disparada. Estava caída na escada, e pensei que tivesse
caído.
— História verossímil — disse Webber com má vontade.
— Você encontra muitas dessas coisas em seu trabalho?
— Muitas o quê?
Ele manteve o olhar duro em cima de mim e não respondeu.
Eu disse: — Que tal eu lhe contar minha história de como aconteceu?
Ele cresceu para mim como um galo de briga.
— Que tal você responder às minhas perguntas exatamente como eu preferir fazer?
Não respondí nada a isso. Webber virou-se rapidamente e disse aos dois homens
uniformizados:
— Vocês aí voltem pro seu carro e verifiquem o pessoal do rabecão.

Eles fizeram uma saudação e saíram, fechando a porta suavemente até que ela
emperrou, e depois, enfurecendo-se com ela como qualquer pessoa. Webber esperou
até que o carro deles se afastasse. Depois tornou a pousar uns olhos sombrios e
grossos em cima de mim.
— Me mostre sua identificação.
Dei-lhe minha carteira e ele a remexeu. Degarmo sentou- se numa cadeira, cruzou
as pernas e ficou olhando vaziamente o teto. Tirou um fósforo do bolso e pôs-se a
mastigar-lhe a ponta. Webber devolveu minha carteira e eu a guardei.
— O pessoal de sua profissão cria um bocado de problemas — ele disse.
— Não necessariamente — eu disse.
Ele ergueu a voz. Já era bastante aguda antes.
— Eu disse que criam um bocado de problemas, e um bocado de problemas foi o
que quis dizer. Mas entenda bem isso. Você não vai criar nenhum aqui em Bay City.
Não respondi. Ele apontou o indicador para mim.
— Você é da cidade grande — disse. — Acha que é durão e esperto. Não se
preocupe. Podemos lidar com você. Somos um lugar pequeno, mas compacto. Não
temos nenhum cabo-de-guerra político aqui. Trabalhamos na linha e trabalhamos
rápido. Não se preocupe com a gente, senhor.
— Não estou preocupado — eu disse. — Não tenho nada com que me preocupar. Só
estou tentando ganhar uma grana limpa.
— E não me venha com essa conversa mole — disse Webber. — Não gosto disso.
Degarmo baixou os olhos do teto e dobrou o indicador para examinar a unha. Falou
com uma voz densa e entediada.
— Escute, chefe, o cara lá embaixo se chama Lavery. Está morto. Eu conhecia ele
um pouco. Era um conquistador.
— E daí? — cortou Webber, sem desviar o olhar de mim.
— A cena toda indica uma dona — disse Degarmo. — Você sabe no que esses
detetives particulares trabalham. Negócios de divórcio'. Que tal se a gente deixar ele
contar a história dele, em vez de tentar deixar ele tonto de medo?
— Se estou metendo medo nele — disse Webber — gostaria de saber. Não vejo
nenhum sinal.

Encaminhou-se até a janela da frente e abriu a veneziana com um puxão. A luz despejou-se na sala de uma
maneira quase cegante, após tanto tempo na penumbra. Ele voltou, balançando nos calcanhares, apontou o dedo
fino e duro para mim e disse:
— Fale.
— Estou trabalhando pra um homem de negócios de Los Angeles que não pode
atrair muita publicidade. Foi por isso que me contratou. Há um mês, a mulher dele
fugiu, e depois chegou um telegrama dizendo que ela tinha fugido com Lavery. Mas
meu cliente encontrou Lavery na cidade há uns dois dias e ele negou o fato. O cliente
acreditou nele o bastante pra ficar preocupado. Parece que a dona é um bocado
irrequieta. Pode ter se juntado com más companhias e entrado numa enrascada. Vim
aqui falar com Lavery e ele me negou ter fugido com ela. Acreditei mais ou menos nele,
mas depois consegui prova razoável de que ele esteve com ela num hotel de San
Bernardino na noite em que se acreditava que ela deixou a cabana na montanha onde
estava. Com isso no bolso, desci para enfrentar Lavery de novo. Ninguém respondeu à
campainha, a porta estava ligeiramente aberta. Entrei, dei uma olhada, encontrei a
pistola e revistei a casa. E o encontrei. Exatamente como está agora.
— Você não tinha nenhum direito de revistar a casa — disse Webber, friamente.
— Ê claro que não — concordei. — Mas não ia deixar passar essa oportunidade.
— O nome desse cara pra quem você está trabalhando?
— Kingsley. — Dei-lhe o endereço de Beverly Hills. — Ele é gerente de uma firma de
cosméticos no edifício Treloar, em Olive. A Gillerlain Company.
Webber olhou para Degarmo. O outro anotou preguiçosamente num envelope.
Webber tornou a olhar para mim e perguntou:
— Que mais?
— Subi até a tal cabana na montanha onde a dona tinha estado. É um lugar
chamado Lago Little Fawn, perto de Puma Point, a setenta quilômetros de San
Bernardino, subindo as montanhas.
Olhei para Degarmo. Ele escrevia lentamente. A mão parou um momento e pareceu pairar no ar rigidamente,
depois caiu sobre o envelope e voltou a escrever. Prossegui:
— Cerca de um mês atrás, a mulher do caseiro de Kingsley lá em cima teve uma briga com ele e foi-se embora,
segundo todos pensaram. Ontem a acharam afogada no lago.
Webber quase fechou os olhos e balançou sobre os calcanhares. Quase em voz baixa, perguntou:
— Por que está me contando isso? Está insinuando uma ligação?
— Existe uma ligação quanto ao tempo. Lavery esteve lá em cima. Não sei de
qualquer outra ligação, mas achei men- lhor mencionar essa.
Degarmo sentava-se muito imóvel, olhando o chão a seus pés. Tinha o rosto tenso
e parecia ainda mais selvagem que de hábito. Webber disse:
— Essa mulher que se afogou? Suicídio?
— Suicídio ou assassinato. Ela deixou um bilhete de despedida. Mas o marido foi
preso sob suspeita. Se chama Chess. Bill e Muriel Chess, a mulher.
— Não quero tomar parte nisso — disse Webber rispidamente. — Vamos continuar
com o que aconteceu aqui.
— Não aconteceu nada aqui — eu disse, olhando para Degarmo. — Estive aqui duas
vezes. Na primeira conversei com Lavery e não cheguei a parte alguma. Na segunda
não conversei com ele e não cheguei a parte alguma.
Webber disse bem devagar:
— Vou lhe fazer uma pergunta e quero uma resposta honesta. Você não vai querer
dar, mas tanto pode dar agora quanto mais tarde. Eu sei que vou acabar conseguindo.
A pergunta é a seguinte. Você revistou a casa, e imagino que fez isso
minuciosamente. Viu alguma coisa que sugira que essa tal Kingsley esteve aqui?
— Não é uma pergunta justa — eu disse. — Requer uma conclusão da testemunha.
— Quero uma resposta pra ela — ele disse, carrancudo. — Isto aqui não é um
tribunal.
— A resposta é sim — eu disse. — Tem roupas de mulher penduradas num armário
lá embaixo, roupas que, segundo me descreveram, foram usadas pela Sra. Kingsley
em San Bernardino na noite em que ela se encontrou com Lavery lá. Mas a descrição
não foi exata. Um conjunto preto e
branco, mais branco que preto, e um chapéu Panamá com uma fita preto e branco.
Degarmo bateu um dedo no envelope que segurava.
— Você deve ser um grande cara pra um sujeito contratar — disse. — Isso põe a
mulher exatamente nesta casa, onde foi cometido um assassinato, e é a mulher que
acham que fugiu com a vítima. Não acho que a gente tenha de ir procurar o criminoso
muito longe, chefe.
Webber olhava-me fixamente, com pouca ou nenhum expressão no rosto, a não
ser uma espécie de tensa vigilância. Concordou ausentemente ao que Degarmo
dissera.
Eu disse: — Estou presumindo que vocês não são um bando de malditos idiotas. As
roupas são feitas sob medida e fáceis de identificar. Poupei uma hora a vocês contando
isso, ou talvez mesmo não mais que um telefonema.
— Mais alguma coisa? — perguntou Webber, em voz baixa.
Antes que eu pudesse responder, um carro parou diante da casa, e depois outro.
Webber apressou-se a abrir a porta. Entraram três homens, um baixo de cabelos
crespos e um grandão como um boi, ambos' trazendo pesadas pastas de couro preto.
Atrás deles, um sujeito alto e magro, num terno cinza escuro e gravata preta. Tinha
olhos muito vivos e um rosto inescrutável.
Webber apontou um dedo para o de cabelos crespos e disse:
— Lá embaixo, no banheiro, Busoni. Quero muitas impressões digitais, de toda a
casa, particularmente alguma que pareça de mulher. Vai ser um trabalho demorado.
— Eu faço todo o trabalho — resmungou Busoni. E, com o cara parecido a um boi,
atravessou a sala e desceu a escada.
— Temos um cadáver pra você, Garland — disse Webber ao terceiro homem. —
Vamos lá embaixo dar uma olhada nele. Chamou o rabecão?
O homem de olhos vivos assentiu brevemente e desceu com Webber, atrás dos
outros dois.
Degarmo guardou o envelope e o lápis. Ficou me olhando sem expressão.
Eu disse: — Devo falar de nossa conversa ontem... ou é uma transação particular?

— Fale se quiser — ele disse. — O dever da gente é proteger os cidadãos.


— Fale você — eu disse. — Eu gostaria de saber mais sobre o caso Almore.
Ele corou ligeiramente, e seus olhos assumiram uma expressão má.
— Você disse que não conhecia Almore.
— Não conhecia ontem, nem sabia nada a respeito dele. Desde então soube que
Lavery conhecia a Sra. Almore, que ela cometeu suicídio, que foi Lavery quem achou
ela morta, e que Lavery foi pelo menos suspeito de estar chantageando ele... ou de ter
meios de chantagear. Também os dois caras do carro-patrulha pareceram interessados
no fato de que a casa de Almore ficava defronte desta. E um deles observou que o caso
tinha sido abafado direitinho, ou alguma coisa nesse sentido.
Degarmo disse, numa voz lenta e mortal:
— Vou tomar o distintivo do filho da puta. Só o que eles sabem fazer é dar com a
língua nos dentes. Bastardos cabe- ças-ocas.
— Então não tem nada aí — eu disse.
Ele olhou o seu cigarro. — Nada aonde?
— Nada na idéia de que Almore assassinou a mulher dele e tinha poder bastante
pra arrumar as coisas.
Degarmo pôs-se de pé e se aproximou e se curvou sobre mim.
— Repita isso — disse baixinho.
Eu repeti.
Ele me deu uma bofetada no rosto com a mão aberta, jogando minha cabeça com
força para um lado. Fiquei com o rosto ardendo e parecendo enorme.
— Repita — ele disse baixinho.
Tornei a repetir. A mão dele jogou minha cabeça para o lado outra vez.
— Repita.
— Nada. A terceira vez é a da sorte. Você podia errar. — Ergui a mão e esfreguei a
face.
Ele ficou parado, curvado, os lábios arreganhados sobre os dentes, um brilho duro
e animalesco nos olhos muito azuis.

— Toda vez que falar assim com um tira — disse — sabe o que vai acontecer. Experimente de novo, e não vai ser
a mão aberta que vou usar.
Mordi o lábio com força e esfreguei o rosto.
— Enfie o nariz em nossos assuntos, e vai acordar num beco com os gatos olhando pra você — disse.
Eu não disse nada. Ele voltou e sentou-se em seu lugar, respirando forte. Parei de
esfregar o rosto, estendi a mão e movi os dedos lentamente, para desfazer a dormência
de tanto tê-los comprimido.
— Vou me lembrar disso — eu disse. — Nos dois sentidos.

22
Foi no começo da tarde que voltei a Hollywood e subi ao escritório. O prédio se
esvaziara e os corredores estavam silenciosos. As portas achavam-se abertas e as
faxineiras trabalhavam lá dentro com aspiradores de pó, esfregões e espanadores.
Abri a porta do meu, peguei um envelope diante da fenda de correspondência e
joguei-o na mesa sem olhá-lo. Abri as janelas, curvei-me para fora, olhei os primeiros
neóns fulgu- rando, e aspirei o ar cálido e cheirando a comida que subia do exaustor do
café vizinho no beco.
Tirei o paletó e a gravata, sentei-me à mesa, peguei a garrafa do escritório na
gaveta de baixo e paguei uma bebida para mim mesmo. Não adiantou nada. Tomei
outra, com o mesmo resultado.
Àquela altura, Webber já falara com Kingsley. Havia um alarme geral para deterem
a mulher dele, ou haveria muito breve. A coisa parecia clara e límpida para eles. Um
caso desagradável entre duas pessoas desagradáveis, amor demais, bebida demais,
proximidade demais, tudo terminando num ódio selvagem, num impulso homicida e em
morte.
Eu achava que tudo aquilo era meio simples demais.
Estendi a mão para o envelope e abri-o. Não tinha selo. Dizia: “Sr. Marlowe: os pais de Florence Almore são uns
certos Sr. e Sra. Eustace Grayson, atualmente morando no Rossmore Arms, Avenida South Oxford 640. Verifiquei isso
ligando para o telefone que estava na lista. Sua, Adrienne Fromsett”.
Uma letra elegante, como a elegante mão que a escrevera. Pus a carta de lado e
tomei outra bebida. Começava a sentir-me um pouco menos bravo. Revolvia as coisas
na mesa. Sentia as mãos grossas, quentes e desajeitadas. Passei um dedo pela borda
da mesa e olhei a trilha deixada pela remoção da poeira. Olhei a poeira no dedo e
limpei-o. Olhei o relógio. Olhei a parece. Olhei o vazio.
Guardei a garrafa de uísque e fui até a pia lavar o copo. Depois de fazer isso, lavei
as mãos, aspergi o rosto com água fria e olhei-o. A vermelhidão desaparecera da face
esquerda, mas ela parecia um pouco inchada. Não muito, mas o bastante para me
deixar novamente tenso. Escovei o cabelo e olhei os fios grisalhos. O rosto embaixo
tinha uma aparência doentia. Não gostei daquele rosto de maneira nenhuma.
Voltei à mesa e tornei a ler o bilhete da Srta. Fromsett. Alisei-o sobre o tampo de
vidro, cheirei-o e alisei-o mais um pouco, dobrei-o e guardei-o no bolso do paletó.
Fiquei ali sentado, imóvel, ouvindo a noite aquietar-se além das janelas abertas. E
muito lentamente fui-me aquietando com ela.

23
O Rossmore Arms era um monte escuro de tijolos vermelhos enegrecidos, em
torno de um enorme pátio da frente. Tinha um saguão revestido de veludo contendo
silêncio, plantas em vasos, um canário morto de tédio numa gaiola do tamanho de um
canil, um cheiro de poeira de tapete velho e uma enjoativa fragrância de gardênias de
muito tempo atrás.
Os Graysons moravam no quinto andar, de frente, na ala norte. Sentavam-se
juntos numa sala que parecia deliberada- mente de vinte anos atrás. Continha móveis
super-estofados e maçanetas de latão em forma de ovo, um imenso espelho de parede
numa moldura dourada, uma mesa de tampo de mármore junto à janela e cortinas de
veludo vermelho escuro nas janelas. Recendia a fumaça de tabaco, e por trás disso o
ar me
tornaram a ficar alertas ao ouvir isso. Grayson disse rispidamente:
— Devo entender que o senhor não conhecia o Dr. Aimoré, não o abordou de jeito
nenhum, e apesar disso ele chamou um policial porque o senhor estava diante da casa
dele?
Eu disse: — Exato. Mas estava diante da casa dele pelo menos há uma hora. Quer
dizer, meu carro é que estava.
— Isso é muito estranho — disse Grayson.
— Acho que se trata de um homem muito nervoso. E Degarmo me perguntou se o
pessoal dela... referindo-se ao pessoal de sua filha... tinha me contratado. Parecia que
não se sentia seguro ainda, o senhor não acha?
— Seguro sobre o quê? — Não olhou para mim ao fazer essa pergunta. Reacendeu
o cachimbo lentamente, depois socou o fumo com a ponta de um grande lápis metálico
e tornou a acendê-lo.
Encolhi os ombros e não respondi. Ele me lançou uma olhada rápida e desviou o
olhar. A Sra. Grayson não olhou para mim, mas suas narinas tremiam.
— Como ele soube quem era o senhor? — perguntou Grayson de repente.
— Anotou a placa do carro, chamou o auto Club, procurou o nome na lista
telefônica. Pelo menos é o que eu teria feito, e vi ele através da janela fazendo
movimentos que sugeriam isso.
— Quer dizer que tem a polícia trabalhando pra ele — disse Grayson.
— Não necessariamente. Se eles cometeram um erro naquela época, não iam
querer que descobrissem agora.
— Erro! — Ele riu quase estridentemente.
— Muito bem. O assunto é doloroso, mas um pouco de ar fresco não vai fazer mal.
Vocês sempre acharam que ele matou ela, não é? Foi por isso que contrataram o tal
detetive.
A Sra. Grayson ergueu a cabeça com olhos rápidos, baixou-a e enrolou outro par
de meias remendadas.
Grayson não disse nada.
Eu falei: — Tinha algum indício, ou era apenas porque não gostavam dele?
— Tinha indício — disse Grayson amargamente, e com a voz subitamente clara,
comoafinal
se se decidisse
Ti a
a er
falar do caso,
- — nh de t . Disseram à gente que tinha. Mas a gente nunca conseguiu. A
polícia cuidou disso.
— Eu soube que prenderam o tal cara por dirigir bê- bedo.
— Foi isso mesmo.
— Mas ele nunca disse a vocês o que conseguiu pra ir em frente?
— Não.
— Não gosto disso — eu disse. — Soa um pouco como se esse cara não tivesse se
decidido a usar sua informação a favor de vocês ou guardar ela e espremer o médico.
Grayson tornou a olhar para a mulher. Disse baixinho:
— O Sr. Talley não me deu essa impressão. Era um homenzinho discreto e
humilde. Mas a gente nunca sabe, eu sei.
Eu disse: — Quer dizer que se chamava Talley. Esta era uma das coisas que eu
esperava que me dissessem.
— E quais eram as outras? — perguntou Grayson.
— Como posso encontrar Talley... e o que foi que provocou suspeitas em vocês.
Deviam ter, senão não iam contratar Talley sem uma melhor demonstração, por ele, de
que ele tinha base pra tais suspeitas.
Grayson deu um sorrisozinho muito débil e afetado. Levou a mão ao pequeno
queixo e esfregou-o com um comprido dedo amarelo.
A Sra. Grayson disse: — Droga.
— Ela fala literalmente — disse logo Grayson, como se aquela única palavra tivesse
sido um sinal verde. — Almore era, e sem dúvida ainda é, um médico de drogas. Nossa
filha deixou isso claro pra nós. Ele não gostou.
— Exatamente o que quer dizer com médico de drogas, Sr. Grayson?
— Quero dizer um médico cuja atividade é em grande parte com pessoas que vivem
à beira de um colapso nervoso, devido a bebidas e dissipação. Pessoas que têm de
tomar sedativos e narcóticos o tempo todo. Elas chegam a esse estágio quando um
médico que tenha ética se recusa a tratar delas, a não ser num sanatório. Mas não os
doutores Aimorés. Eles continuam enquanto o dinheiro estiver entrando, enquanto o
paciente continuar vivo e com a mente razoavelmente sã, mesmo que ele ou ela se
torne um viciado desen
ganado nesse meio tempo. Uma prática lucrativa — disse afetadamente — e imagino que perigosa pro médico.
— Sem dúvida. Mas se ganha um bocado de dinheiro. O senhor conheceu um
homem chamado Condy?
— Não. Sabemos quem ele é. Florence desconfiava que era uma fonte de
abastecimento de narcóticos de Almore.
Eu disse: — Podia ser. Ele provavelmente não gostava de assinar receitas demais.
Conheceram Lavery?
— Nunca o vimos. Sabíamos quem era.
— Algum dia lhes ocorreu que Lavery podia estar chan-
tageando Almore?
— Não. Por que devia ocorrer?
— Foi ele quem encontrou o cadáver — eu disse. — O que quer que tenha parecido
errado a Talley, também deve ter sido visível pra Lavery.
— Lavery é desse tipo de homem?
— Não sei. Ele não tem meios de sustento visíveis, emprego. Se vira um bocado
por aí, especialmente com mulheres.
— Ê uma idéia — disse Grayson. — E essas coisas podem ser manobradas muito
discretamente. — Deu um sorriso enviesado. — Já encontrei vestígios delas em meu
trabalho. Empréstimos sem garantias, há muito vencidos. Investimentos visivelmente
inúteis feitos por homens que não são dados a fazer investimentos inúteis. Dívidas
não honradas que deviam obviamente ser executadas e não foram, por receio de
atrair um exame de pessoal do imposto de renda. Oh, sim, essas coisas podem ser
facilmente arranjadas.
Olhei para a Sra. Grayson. As mãos dela não haviam parado de trabalhar. Tinha
uma dúzia de pares de meias já cerzidas. Os pés do comprido e ossudo Grayson
deviam ser terríveis para as meias.
— Que aconteceu com Talley? Forjaram a acusação contra ele?
— Não creio que haja dúvida alguma sobre isso. A mulher dele ficou muito furiosa.
Disse que tinham dado a ele uma bebida dopada num bar, e ele estava bebendo com
um policial. Disse que um carro da polícia estava esperando, do outro lado da rua, que
ele começasse a dirigir, e que pegaram logo ele. Também que fizeram apenas o
exame mais pró- forma na cadeia.

— Isso não quer dizer muita coisa. Foi o que ele disse a ela depois de ser preso.
Diria qualquer coisa assim automaticamente.
— Bem, detesto pensar que a polícia não é honesta — disse Grayson. — Mas eles
fazem essas coisas, e todo mundo sabe disso.
Eu disse: — Se eles cometeram um engano honesto sobre a morte de sua filha,
odiariam que Talley denunciasse isso. Podia significar a perda de muitos empregos.
Se achassem que o que ele queria mesmo era chantagem, não teriam muitos
escrúpulos quanto ao modo de lidar com ele. Por onde anda Talley agora? Tudo se
resume ao seguinte: se existia alguma pista concreta, ou ele tinha conseguido ou
estava em cima e sabia o que procurava.
Grayson disse: — Não sabemos onde ele está. Pegou seis meses, mas isso foi há
muito tempo.
— E a mulher dele?
Ele olhou para a sua. Ela disse simplesmente:
— Rua Westmore 1618 1/2, Bay City. Eustace e eu enviamos algum dinheiro para
ela. Ficou em má situação.
Anotei o endereço, reclinei-me na poltrona e disse:
— Alguém atirou em Lavery hoje de manhã, no banheiro dele.
As mãos gorduchas da Sra. Grayson paralisaram-se nas bordas da cesta.
Grayson permaneceu sentado de boca aberta, segurando o cachimbo diante dela.
Emitiu o ruído de um leve pigarro, como em presença do morto. Nada jamais se
moveu tão lentamente quanto o seu velho cachimbo negro voltando à posição entre
os dentes.
— Evidentemente, seria demais esperar — disse, e deixou a frase pairar no ar,
soprou um pouco de fumaça clara, e depois acrescentou: — que o Dr. Almore tivesse
alguma coisa a ver com isso.
— Me agradaria pensar que ele teve — eu disse. — Certamente mora a uma
distância conveniente. A polícia acha que a mulher de meu cliente atirou nele. Têm
uma boa base, também, quando encontrarem ela. Mas se Almore teve alguma coisa
a ver com o caso, certamente deve ser consequência da morte da filha de vocês. É
por isso que estou tentando descobrir alguma coisa a esse respeito.
Grayson disse: — Um homem que cometeu um assassinato não teria mais de vinte
e cinco por cento de hesitação para cometer outro. — Falava como se houvesse
dedicado ao assunto uma pesquisa considerável.
Eu disse: — É, talvez. Que motivo se supunha para o primeiro?
— Florence era indomável — ele disse, tristemente. — Uma garota indomável e difícil.
Era gastadora e extravagante, sempre arranjando amigos novos e meio duvidosos,
falando demais e alto demais, e geralmente bancando a tola. Uma mulher assim é
muito perigosa pra um homem como Albert S. Almore. Mas não creio que tenha sido
esse o motivo básico, não é, Lettie?
Olhou para a sua mulher, mas ela não olhou para ele. Enterrou uma agulha de
cerzir num bolo redondo de lã e não disse nada.
Grayson suspirou e prosseguiu:
— A gente tinha motivo pra acreditar que estava tendo um caso com a enfermeira
dele, e Florence ameaçou fazer um escândalo público. Ele não podia se expor a uma
coisa dessa, podia? Um tipo de escândalo podia muito facilmente conduzir a outro.
Eu perguntei: — Como ele cometeu o assassinato?
— Com morfina, claro. Sempre tinha, sempre usava. Era um especialista no seu
uso. Aí, quando ela estava em coma profundo, ele a colocou na garagem e ligou o
motor do carro. Não fizeram autópsia, o senhor sabe. Mas mesmo sem fazerem, a
gente soube que ela tinha tomado uma injeção naquela noite.
Assenti com a cabeça e ele se reclinou satisfeito e correu a mão pela cabeça e pelo
rosto abaixo, deixando-a cair vagarosamente até o ossudo joelho. Parecia ter estudado
um bocado também esse ângulo.
Olhei os dois. Um casal de velhos ali sentados tranquilamente, envenenando suas
mentes com ódio, um ano e meio depois de a coisa ter acontecido. Gostariam que
Almore tivesse atirado em Lavery. Adorariam. Isso os aquecería até os tornozelos.
Após uma pausa, eu disse:
— O senhor acredita em grande parte disso porque quer acreditar. Sempre é
possível que ela tenha cometido suicídio,

e que o acobertamento tenha sido em parte pra proteger o clube de jogo de Condy, e
em parte para impedir que Almore fosse interrogado numa audiência pública.
— Besteira — disse rispidamente Grayson. — Ele a assassinou, sim, senhor. Ela
estava na cama, dormindo.
— O senhor não sabe disso. Ela podia estar tomando drogas. Podia ter criado
tolerância à droga. Nesse caso, o efeito não duraria muito tempo. Podia ter se
levantado no meio da noite, olhado pàra si mesma no espelho e visto demônios
apontando para ela. Essas coisas acontecem.
— Acho que o senhor já tomou bastante do nosso tempo
• disse Grayson.
Levantei-me. Agradeci aos dois e andei um metro em direção à porta. Então disse:
— Não fizeram mais nada a respeito depois que Talley foi preso?
— A gente esteve com um assistente do promotor chamado Leach — rosnou
Grayson. — Não chegamos a parte alguma. Ele não viu nada que justificasse uma
interferência do gabinete dele. Não se interessou nem pela questão dos narcóticos.
Mas a casa de Condy foi fechada cerca de um mês depois. Pode ter resultado disso, de
alguma forma.
— Provavelmente foram os tiras de Bay City jogando uma pequena cortina de
fumaça. O senhor encontraria Condy em algum canto, se soubesse onde procurar.
Com todo o equipamento original dele intato.
Tornei a dirigir-me para a porta e Grayson levantou-se de sua poltrona e
atravessou a sala arrastando-se atrás de mim. Havia um rubor em seu rosto amarelo.
— Eu não pretendia ser rude — disse. — Acho que Lettie e eu não devíamos ficar
pensando nesse negócio do jeito que pensamos.
— Acho que os dois foram muito pacientes — eu disse.
• Alguém mais não mencionado nominalmente em nossa conversa esteve envolvido
nisso tudo?
Ele balançou a cabeça, depois olhou a mulher lá atrás. As mãos dela estavam
imóveis, segurando a meia atual no ovo de cerzir. Tinha a cabeça meio inclinada para
um lado. A atitude era de quem ouvia, mas não a nós.
Eu disse: — Segundo eu soube da história, a enfermeira do consultório do Dr. Almore pôs a Sra. Almore na cama
naquela noite. Era essa a que achavam que estava tendo um caso com ele?
A Sra. Grayson disse rispidamente: — Espere um minuto. A gente nunca viu a moça. Mas ela tinha um nome
bonito. Me dê apenas um minuto.
Demos a ela um minuto.
— Mildred qualquer coisa — ela disse, e cerrou os dentes.
Inspirei profundamente. — Seria Mildred Haviland, Sra. Grayson?
Ela deu um sorriso brilhante e assentiu.
— Claro, Mildred Haviland. Não se lembra, Eustace?
Ele não se lembrava. Olhou para nós como um cavalo que entrou no estábulo
errado. Abriu a porta e disse:
— Que importa isso?
— E o senhor disse que Talley era um homem pequeno — insisti. — Não seria por
exemplo um grandalhão barulhento de modos truculentos?
— Oh, não — disse a Sra. Grayson. — O Sr. Talley é um homem de altura não mais
que mediana, de meia idade, com os cabelos castanhos e uma voz muito baixa. Tinha
uma expressão meio preocupada. Quer dizer, parecia ter sempre essa expressão.
— Parece que tinha motivo — eu disse.
Grayson estendeu a mão ossuda e eu a apertei. Era como apertar um cabide de
toalhas.
— Se o pegar — disse, e cerrou os dentes com força sobre o cabo do cachimbo —
volte com a conta. Se pegar Almore, quero dizer, é claro.
Eu disse que sabia que ele se referia a Almore, mas que não haveria conta alguma.
Retornei pelo comprido e silencioso corredor. O elevador automático era
acarpetado de veludo vermelho. Tinha um perfume de velhos, como três viúvas
tomando chá.

24 4^
A casa da Rua Westmore era um pequeno bangalô de madeira por trás de uma casa maior. Não se via número na
menor, mas a da frente tinha um 1618 desenhado a estêncil ao
lado da porta, com uma luz fraca por trás do estêncil. Um estreito caminho de concreto passava por baixo das
janelas e ia até o fundo. Tinha uma minúscula varanda com uma única cadeira. Subi até essa varanda e toquei a
campainha.
Ela tocou não muito distante. A porta da frente abriu-se por trás da porta de tela, mas não se via luz. Da
escuridão, veio uma voz hostil:
— Queé?
Falei para dentro das trevas: — O Sr. Talley está?
A voz tornou-se chã e sem tom. — Quem quer falar com ele?
— Um amigo.
A mulher lá dentro, na escuridão, emitiu um vago som com a garganta, que podia
ser uma risada. Ou talvez apenas pigarreasse.
— Muito bem — ela disse. — De quanto é essa aí?
— Não é conta, Sra. Talley. Suponho que seja a Sra. Talley?
— Oh, vá-se embora e me deixe em paz — disse a voz. — O Sr. Talley não está. Não
esteve. Não vai estar.
Colei o nariz na tela e tentei varar a escuridão da sala. Podia ver os vagos
contornos dos móveis. De onde vinha a voz também se percebia a forma de um sofá.
Uma mulher deitava-se nele. Parecia estar deitada de costas e olhando para o teto.
Inteiramente imóvel.
— Estou doente — disse a voz. — Já tive problemas bastantes. Vá-se embora e me
deixe em paz.
Eu disse: — Acabei de falar com os Graysons.
Houve um breve silêncio, mas nenhum movimento, e depois um suspiro.
— Nunca ouvi falar deles.
Recostei-me ao umbral da porta e olhei a rua lá atrás. Havia um carro do outro lado
com as luzes de estacionamento acesas, e outros também, ao longo da quadra.
Eu disse: — Ouviu, sim, Sra. Talley. Estou trabalhando pra eles. Ainda estão
escavando. E a senhora? Não quer recuperar nada?
A voz disse: — Quero é ficar só.
— Eu quero informação — eu disse. — Vou conseguir. Na moita, se puder. E aos
berros, se não.
A voz disse: — Outro tira, hem?

— A senhora sabe que eu não sou um tira, Sra. Talley. Os Graysons não iam conversar com um tira. Ligue para
eles e pergunte.
— Nunca ouvi falar deles — disse a voz. — Não tenho telefone, mesmo que
conhecesse. Vá-se embora, tira. Estou doente. Estou doente há um mês.
— Meu nome é Marlowe — eu disse. — Philip Marlowe. Sou detetive particular em
Los Angeles, e estive conversando com os Graysons. Consegui alguma coisa, mas
preciso falar com seu marido.
A mulher no sofá soltou uma risadinha abafada, que mal chegava do outro lado da
sala.
— Conseguiu alguma coisa — disse. — Isso me soa familiar. Meu Deus, se soa!
Conseguiu alguma coisa. George Talley também conseguiu alguma coisa... um dia.
— Ele pode conseguir de novo — eu disse. — Se jogar certo com as cartas que tem.
— Se é isso que é preciso — ela disse —, pode riscar ele agora mesmo.
Em vez disso, recostei-me no umbral e cocei o queixo. Alguém na rua lá atrás
acendera uma lanterna. Eu não sabia por quê. Tornou a apagá-la. Parecia perto de
meu carro.
O pálido borrão do rosto no sofá moveu-se e desapareu. Foi substituído por
cabelos. A mulher voltara o rosto para a parede.
— Estou cansada — disse, a voz agora abafada, porque falava para a parede. —
Estou cansada como os diabos. Dê o fora, senhor. Tenha á bondade de ir-se embora.
— Um pouco de dinheiro ajudaria?
— Não sente um cheiro de fumaça de charuto?
Farejei. Não sentia cheiro algum de fumaça de charuto. Disse:
— Não.
— Eles estiveram aqui. Estiveram duas horas aqui. Deus, estou cansada disso tudo.
Vá-se embora.
— Escute, Sra. Talley...
Ela rolou no sofá e o borrão do rosto tornou a aparecer. Eu quase via os seus
olhos, mas não bem.
— Escute o senhor — ela disse. — Não conheço o senhor. Não quero conhecer o
senhor. Não tenho nada pra dizer ao senhor. E não ia dizer, se tivesse. Eu vivo aqui,
meu
senhor, se a gente pode chamar isto de viver. De qualquer modo, é o mais perto
que posso chegar de viver. Quero um pouco de paz e silêncio. Agora vá-se embora e
me deixe em paz.
— Me deixe entrar — eu disse. — A gente pode discutir isso. Acho que posso mostrar
à senhora...
Ela tornou a rolar de repente no sofá, e ouvi um som de pés tocando o chão. Uma
fúria tensa surgiu em sua voz.
— Se o senhor não for embora — disse — eu vou começar a gritar até explodir a
cabeça. Agora mesmo. Já!
— Tudo bem — apressei-me a dizer. — Vou enfiar meu cartão por baixo da porta. Pra
que a senhora não esqueça o meu nome. Pode mudar de idéia.
Tirei o cartão e enfiei-o na fenda da porta de tela. Disse:
— Bem, boa-noite, Sra. Talley.
Não houve resposta. Os olhos dela me olhavam do outro lado da sala, debilmente
luminosos no escuro. Desci da varanda e retornei pelo estreito caminho até a rua.
Do outro lado, um motor ronronava baixinho no carro com as lanternas de
estacionamento acesas. Motores ronronam baixinho em milhares de carros, em
milhares de ruas, em toda parte.
Entrei no Chrysler e parti.

25
A Westmore era uma rua norte-sul no lado pobre da cidade. Dirigi para o norte. Na
esquina seguinte dei com trilhos interurbanos fora de uso e uma quadra de terrenos
baldios cheios de lixo. Por trás de cercas de madeira, amontoavam-se em grotescos
desenhos as carcaças em decomposição de velhos automóveis, como um campo de
batalha moderno. Montes de peças enferrujadas destacavam-se ao luar. Montes da
altura de casas, com corredores entre si.
A luz de faróis bateu no meu espelho retrovisor. Aproximaram-se. Comprimi o
acelerador, tirei as chaves do bolso e abri o porta-luvas. Peguei um trinta e oito e o pus
no assento junto à perna.
Depois dos terrenos baldios havia um depósito de tijolos. Da alta chaminé do forno
lá longe, além da terra vazia, não
saia fumaça. Montes de tijolos enegrecidos, uma baixa construção de madeira com
uma placa, vazia, ninguém se movendo, nenhuma luz.
O carro atrás de mim alcançava-me. O gemido baixo de uma sirene apenas
comprimida varou a noite. O som demorou-se sobre as bordas de um campo de golfe
abandonado a leste, do outro lado da olaria a oeste. Acelerei mais um pouco, mas não
adiantava. O carro atrás de mim vinha rápido, e um enorme farolete vermelho de
repente fulgurou sobre toda a estrada.
O carro emparelhou-se com o meu e começou a fechar- me. Mantive o meu
rodando, passei para trás do carro da polícia e fiz uma meia volta com uma margem de
um centímetro. Disparei o motor na direção contrária. Lá atrás soou um áspero arranhar
de marchas, o ronco de um motor enfurecido, e o farolete vermelho varreu o que
parecia quilômetros de tijolos amontoados.
Não adiantou nada. Eles vinham atrás de mim, e vinham depressa novamente. Eu
não tinha a menor intenção de fugir. Queria voltar a um lugar onde houvesse casas e
pessoas que saíssem e vissem, e talvez se lembrassem.
Não consegui. O carro da polícia roncou a meu lado de novo, e uma voz grossa
berrou:
— Encoste, senão a gente abre um buraco em você. Encostei junto ao meio-fio e
puxei o freio de mão. Tornei a pôr o revólver no porta-luvas e bati-o, fechando-o. O
carro da polícia saltou nas molas bem na frente de meu pára-lama dianteiro, à
esquerda, e dele saltou um gordo, rugindo.
— Não reconhece uma sirene da polícia quando ouve? Saia já desse carro!
Saí do carro e fiquei junto a ele, ao luar. O gordo tinha uma arma na mão.
— Deixe ver sua carteira! — ladrou numa voz tão dura quanto a lâmina de uma pá.
Tirei-a e fiquei segurando-a. O outro tira no carro escorregou de detrás do volante,
veio pelo outro lado e tomou o que eu segurava.
— O nome é Marlowe — disse. — Diabos, o cara é um detetive particular. Imagine só,
Cooney.
Cooney disse: — Só isso? Acho que não vou precisar disto. — Enfiou o revólver de volta no coldre e fechou a tampa
de couro. — Acho que posso cuidar disso com minhas mãozinhas — disse. — Acho que posso.
O outro disse: — Ia a mais de oitenta. Andou bebendo, não admira.
— Cheire o bafo do bastardo — disse Cooney.
O outro curvou-se para a frente com um polido olhar malévolo.
— Posso sentir o seu bafo, xereta?
Deixei-o sentir meu hálito.
— Bem — ele disse, ponderadamente —, não está bêbado. Isso eu tenho de admitir.
— A noite está fria, pro verão. Pague uma bebida pro cara, guarda Dobbs.
— Ora, essa é uma ótima idéia — disse Dobbs. Foi até o carro e pegou uma garrafa
de meio quartilho. Ergueu-a. Tinha um terço de bebida. — Não tem muita coisa aqui —
disse. Estendeu-me a garrafa. Com os nossos cumprimentos, companheiro.
— E se eu não quiser beber? — eu disse.
— Não diga uma coisa dessas — gemeu Cooney. — A gente podia pensar que você
quer umas marcas de chutes na barriga.
Peguei a garrafa, desatarraxei a tampa e cheirei. A bebida cheirava a uísque.
Uísque puro.
— Não podem usar o mesmo truque toda hora — eu disse.
Cooney disse: — A hora é oito e vinte e sete. Anote aí, guarda Dobbs.
Dobbs foi até o carro e curvou-se para dentro, a fim de anotar em seu relatório.
Ergui a garrafa e disse a Cooney:
— Você insiste em que eu beba isso?
— Não. Talvez prefira que eu dê uns pulos em cima de sua barriga em vez disso.
Virei a garrafa, tranquei a garganta e enchi a boca de uísque. Cooney curvou-se e
socou-me a barriga. Soprei o uísque e me curvei, arquejando. Deixei cair a garrafa.
Abaixei-me para pegá-la e vi o gordo joelho de Cooney erguendo-se contra meu
rosto. Desviei-me para um lado, endireitei-me e soquei-lhe o nariz com toda a força que
tinha. Ele levantou a mão esquerda ao rosto, berrou e levou a direita ao coldre. Dobbs
correu para mim do lado, o braço balan
çando baixo. A maça curta e grossa, forrada de couro, atingiu-me por trás do joelho
esquerdo, a perna adormeceu e eu caí sentado com força no chão, rangendo os dentes
e cuspindo uísque.
Cooney retirou do rosto a mão coberta de sangue.
— Meu Deus — disse numa voz grossa horrível. — Isto é sangue. Sangue meu. —
Soltou um bárbaro rugido e enfiou o pé em meu rosto.
Rolei o bastante para só recebê-lo no ombro. E já era bastante ruim recebê-lo ali.
Dobbs meteu-se entre nós e disse:
— A gente já tem o bastante contra ele, Charlie. Melhor não estragar a coisa toda.
Cooney recuou três passos, arrastando os pés, e sentou-se no estribo do carro da
polícia, com as mãos no rosto. Procurou um lenço e passou-o delicadamente no nariz.
— Me dê só um minuto — disse, por trás do lenço. — Só um minuto, companheiro.
Só um minutinho.
Dobbs disse: — Bico calado. A gente já tem o bastante. É assim que vai ser. —
Balançava a maça lentamente, junto à perna. Cooney levantou-se do estribo e
cambaleou para a frente. Dobbs conteve-o com a mão no peito e empurrou-o
delicadamente. Cooney tentou afastar a mão do outro.
— Quero ver sangue — rosnou. — Quero ver mais sangue.
Dobbs disse rispidamente: — Nada feito. Se acalme. A gente já tem tudo que
precisa.
Cooney virou-se e afastou-se pesadamente para o outro lado do carro da polícia.
Encostou-se nele, murmurando por trás do lenço. Dobbs me disse:
— De pé, queridinho.
Levantei-me e esfreguei a parte de trás de meu joelho. O nervo saltava como um
macaco enfurecido.
— Entre no carro — disse Dobbs. — No da gente.
Aproximei-me do carro da polícia e entrei.
Dobbs disse: — Dirija o outro calhambeque, Charlie.
— Vou arrancar todos os malditos pára-choques dele — rugiu Cooney.
Dobbs pegou a garrafa de uísque no chão, jogou-a por cima da cerca e enfiou-se
no carro a meu lado. Apertou o botão de partida.

— Isso vai lhe custar caro — disse. — Nào devia ter socado ele.
Eu perguntei: — Por quê, exatamente?
— Ele é um cara legal — disse Dobbs. — Meio gritador.
— Mas sem graça. Sem graça nenhuma.
— Não diga isso a ele — disse Dobbs. O carro da polícia começou a andar. — Ia
magoar os sentimentos dele.
Cooney meteu-se no Chrysler, deu a partida e arranhou as marchas como se
tentasse estripá-las. Dobbs dirigia o carro da polícia suavemente e partiu para o norte
de novo, passando pelo depósito de tijolos.
— Vai gostar de nossa cadeia nova — disse.
— Quanto é a diária?
Ele pensou um momento, dirigindo o carro com mão delicada e olhando pelo
retrovisor para ver se Cooney vinha atrás.
— Excesso de velocidade — disse. — Resistência à prisão. D.B. D.B. é gíria da
polícia para “dirigindo bêbedo”.
— Que tal ser socado na barriga, chutado no ombro, forçado a tomar uísque sob
ameaça de danos físicos, ameaçado com um revólver e golpeado com uma maça
estando desarmado? Não podia arrancar um pouco mais disso tudo?
— Ah, esqueça — disse Dobbs, cansado. — Você acha que esse tipo de coisa é a
idéia que faço de diversão?
— Pensei que tinham limpado esta cidade — eu disse. — Pensei que tinham deixado
ela de um jeito que um homem decente pudesse andar pelas ruas à noite sem um
colete à prova de bala.
— Limparam um pouco — ele disse. — Não iam querer ela limpa demais. Podiam
assustar algum dólar sujo.
— Ê melhor não falar desse jeito — eu disse. — Vai perder a carteirinha do sindicato.
Ele riu. — Pro inferno com eles — disse. — Vou estar no exército dentro de duas
semanas.
O incidente, para ele, estava encerrado. Não significava nada. Tomava-o como
algo rotineiro. Não se sentia nem revoltado.
A DAMA DO LAGO ,

26
O bloco de celas era quase novinho em folha. A pintura cinza, de vaso de guerra,
ainda tinha o brilho da coisa nova, nas paredes e na porta de aço, desfigurado em dois
ou três pontos por cusparadas de fumo de mascar. A luz acima ficava dentro do teto,
por trás de um grosso vidro fosco. Havia dois catres num lado da cela, e um homem
roncava no de cima, enrolado num cobertor cinza escuro. Como já dormia tão cedo, e
não cheirava a uísque ou gim, e escolhera o catre de cima, onde não atrapalharia
ninguém, julguei que fosse um velho pensionista.
Sentei-me no catre de baixo. Haviam-me apalpado em busca de uma arma, mas
não revistaram meus bolsos. Tirei um cigarro e esfreguei o lugar quente e inchado atrás
do joelho. A dor irradiou-se até o tornozelo. O uísque que eu tossira para fora, em meu
paletó, tinha um cheiro azedo. Ergui o tecido e soprei fumaça nele. A fumaça flutuou
para cima, em torno do quadrado plano de luz no teto. A cadeia parecia muito
silenciosa. Uma mulher fazia um barulho dos diabos muito distante, em outra parte da
prisão. A minha estava pacífica como uma igreja.
A mulher gritava, fosse lá quem fosse. Os gritos tinham um som fino, agudo, irreal,
algo como o uivo de coiotes ao luar, mas não com a mesma nota crescente do coiote.
Após algum tempo, o som parou.
Fumei dois cigarros seguidos e joguei as pontas no pequeno toalete do canto. O
homem no catre de cima ainda roncava. Tudo que eu podia ver dele era o cabelo úmido
e oleoso saindo pela borda do cobertor. Dormia de barriga para baixo. Dormia a sono
solto. Era um dos melhores.
Tornei a sentar-me no catre. Era feito de chapas de aço com um fino colchão duro
em cima. Dois cobertores cinza escuro jaziam bem dobrados sobre ele. Era uma cadeia
muito bacana. Ficava no décimo-segundo andar da nova prefeitura. Era uma prefeitura
muito bacana. Bay City era um lugar muito bacana. As pessoas que moravam lá assim
achavam. Se eu morasse ali, provavelmente pensaria assim. Veria a bela baía azul, os
rochedos, o ancoradouro de barcos e as ruas de casas silenciosas, velhas casas
meditando sob velhas árvores e novas casas com gramados verdes, cercas de arame e
árvores
novas no estacionamento em frente. Conheci uma garota que morava na Rua Vinte
e Cinco. Era uma rua bacana. Ela era uma garota bacana. Gostava de Bay City.
Não pensava nos cortiços de mexicanos e negros que se estendiam nos terrenos
planos e tristes ao sul dos velhos trilhos interurbanos. Nem nas espeluncas do cais, ao
longo da praia plana, ao sul dos rochedos, nos suarentos inferninhos na estrada, nos
antros de maconha, nos finos rostos de raposas olhando por cima de jornais em
quietíssimos saguões de hotéis, nem nos batedores de carteira e vigaristas e bêbedos
e cafetões e bichas na calçada.
Fui postar-me em pé diante da porta. Ninguém se movia do outro lado. As luzes do
bloco de celas eram tristes e silenciosas. Os negócios na cadeia estavam ruins.
Olhei o relógio. Nove e cinqüenta e quatro. Hora de ir para casa, calçar os chinelos
e jogar xadrez. Hora de uma bebida gelada e um demorado e tranqüilo cachimbo. Hora
de sentar com os pés para cima sem pensar em nada. Hora de começar a bocejar
sobre a revista nas mãos. Hora de ser um ser humano, um dono de casa, um homem
sem nada a fazer senão repousar e sugar o ar da noite e refazer o cérebro para o dia
seguinte.
Um homem usando o uniforme azul-cinza dos guardas da prisão aproximava-se
entre as celas, lendo os números. Parou diante da minha, abriu a porta e me lançou o
olhar duro que eles acham que têm de usar nos rostos para todo o sempre. Sou um
tira, irmão, sou durão, olhe onde pisa, irmão, senão eu deixo você de um jeito que vai
ter de se arrastar de quatro, irmão, corta essa, irmão, vamos lá com a verdade, irmão,
vamos lá, e não esqueçamos que nós somos caras durões, somos tiras, e fazemos o
que queremos com vagabundos como você.
— Fora — ele disse.
Saí da cela, ele tornou a trancar a porta, fez um gesto com o polegar, fomos até
um largo portão de aço, que ele abriu, passamos, ele tornou a trancar, as chaves
tilintando agradavelmente no grande aro de aço, e após algum tempo passamos por
uma porta de aço pintada imitando madeira do lado de fora e cinza de navio de
combate do lado de dentro.
Degarmo estava parado ali, junto ao balcão, conversando com o sargento da
recepção.
novas no estacionamento em frente. Conhecí uma garota que morava na Rua Vinte e
Cinco. Era uma rua bacana. Ela era uma garota bacana. Gostava de Bay City.
Não pensava nos cortiços de mexicanos e negros que se estendiam nos terrenos
planos e tristes ao sul dos velhos trilhos interurbanos. Nem nas espeluncas do cais, ao
longo da praia plana, ao sul dos rochedos, nos suarentos inferninhos na estrada, nos
antros de maconha, nos finos rostos de raposas olhando por cima de jornais em
quietíssimos saguões de hotéis, nem nos batedores de carteira e vigaristas e bêbedos
e cafetões e bichas na calçada.
Fui postar-me em pé diante da porta. Ninguém se movia do outro lado. As luzes do
bloco de celas eram tristes e silenciosas. Os negócios na cadeia estavam ruins.
Olhei o relógio. Nove e cinqüenta e quatro. Hora de ir para casa, calçar os chinelos
e jogar xadrez. Hora de uma bebida gelada e um demorado e tranqüilo cachimbo. Hora
de sentar com os pés para cima sem pensar em nada. Hora de começar a bocejar
sobre a revista nas mãos. Hora de ser um ser humano, um dono de casa, um homem
sem nada a fazer senão repousar e sugar o ar da noite e refazer o cérebro para o dia
seguinte.
Um homem usando o uniforme azul-cinza dos guardas da prisão aproximava-se
entre as celas, lendo os números. Parou diante da minha, abriu a porta e me lançou o
olhar duro que eles acham que têm de usar nos rostos para todo o sempre. Sou um tira,
irmão, sou durão, olhe onde pisa, irmão, senão eu deixo você de um jeito que vai ter de
se arrastar de quatro, irmão, corta essa, irmão, vamos lá com a verdade, irmão, vamos
lá, e não esqueçamos que nós somos caras durões, somos tiras, e fazemos o que
queremos com vagabundos como você.
— Fora — ele disse.
Saí da cela, ele tornou a trancar a porta, fez um gesto com o polegar, fomos até um
largo portão de aço, que ele abriu, passamos, ele tornou a trancar, as chaves tilintando
agradavelmente no grande aro de aço, e após algum tempo passamos por uma porta
de aço pintada imitando madeira do lado de fora e cinza de navio de combate do lado
de dentro.
Degarmo estava parado ali, junto ao balcão, conversando com o sargento da
recepção.
A DAMA DO LAGO

Virou os olhos azuis metálicos para mim e disse:


— Como vai?
— Ótimo.
— Gosta de nossa cadeia?
— Gosto muito da cadeia de vocês.
— O Capitão Webber quer falar com você.
— Isso é ótimo — eu disse.
— Não conhece outra palavra além de ótimo?
— Neste momento, não. Aqui, não.
— Está mancando um pouco — ele disse. — Tropeçou em alguma coisa?
— Ê — eu disse. — Tropecei num porrete. Ele saltou sobre mim e me mordeu atrás
do joelho esquerdo.
— Isso é muito ruim — disse Degarmo, de olhos vazios.
• Pegue suas coisas com o guarda de bens.
— Estou com tudo — eu disse. — Não tiraram nada.
— Bem, isso é ótimo.
— Claro que é — eu disse. — É ótimo.
O sargento da recepção ergueu a cabeça hirsuta e lançou- nos um demorado
olhar.
— Você devia ver o narizinho irlandês de Cooney — disse. — Se quiser ver uma
coisa ótima. Está espalhado pela cara dele toda, como geléia em waffles.
Degarmo disse ausentemente:
— Que é que há? Ele se meteu numa briga?
— Não sei — disse o sargento de dia. — Talvez tenha sido o mesmo porrete que
saltou mais em cima e pegou ele.
— Para um sargento de recepção, você fala um bocado
• disse Degarmo.
— Um sargento de recepção sempre fala um bocado, diabos — disse o outro. —
Talvez por isso não seja tenente na homicídios.
— Você vê como nós somos aqui — disse Degarmo. — Simplesmente uma grande
família feliz.
— Com sorrisos radiantes nos rostos — disse o sargento da recepção — e os braços
abertos em boas-vindas, e uma pedra em cada mão.
Degarmo acenou com a cabeça para mim e saímos.
27

O Capitão Webber projetou o nariz adunco e torto por cima de sua mesa e disse:
— Senta aí.
Sentei-me numa cadeira de braços de madeira e encosto redondo, afastando a
perna esquerda da dura borda do assento. Era um grande e elegante escritório de
esquina. Degarmo sentou-se à ponta da mesa e cruzou as pernas, esfregando
pensativamente o tornozelo e olhando para fora da janela.
Webber falou: — Você pediu encrenca, e conseguiu. Estava indo a mais de oitenta
numa zona residencial e tentou escapar de um carro da polícia que lhe fez sinal para
parar com a sirene e o farolete. Foi desaforado quando detido e esmurrou o rosto de
um policial.
Eu não disse anda. Webber pegou um palito de fósforo em sua mesa, quebrou-o
pela metade e jogou os pedaços por cima do ombro.
— Ou estarão eles mentindo... como de hábito?
— Não vi o relatório deles — eu disse. — Eu provavelmente ia a mais de oitenta num
bairro residencial, ou de qualquer modo dentro dos limites urbanos. O carro da polícia
estava parado diante de uma casa que visitei. Me seguiu quando me afastei, e na hora
eu não sabia que era um carro da polícia. Eles não tinham motivo algum pra me seguir,
e eu não gostei da aparência da coisa. Acelerei mais um pouco, mas só tentava chegar
a uma parte mais bem iluminada da cidade.
Degarmo moveu os olhos, para lançar-me um olhar sombrio e sem significado.
Webber cerrou os dentes, impaciente. Disse:
— Depois que soube que era um carro da polícia, deu meia volta no meio da quadra
e continuou tentando escapulir. Isso é exato?
Eu disse: — Ê. Vai ser preciso uma conversinha franca pra explicar.
— Não tenho medo de uma conversinha franca — disse Webber. — Sou mais ou
menos especializado em conversi- nhas francas.
A DAMA DO LAGO
Eu disse: — Aqueles tiras que me pegaram estavam estacionados defronte da casa
onde mora a mulher de George Talley. Estavam lá antes que eu chegasse. George
Talley é o homem que era detetive particular aqui. Eu queria ver ele. Degarmo sabe por
que eu queria ver ele.
Degarmo tirou um fósforo do bolso e ficou mastigando tranqüilamente a ponta de
madeira. Assentiu, sem expressão. Webber não olhou para ele.
Eu disse: — Você é um cara estúpido, Degarmo. Tudo que você faz é estúpido, e
feito de maneira estúpida. Quando partiu pra cima de mim, ontem, defronte da casa de
Almore, tinha de bancar o durão quando não havia motivo algum pra bancar o durão.
Tinha de me deixar curioso quando eu nada tinha sobre que ficar curioso. Chegou até a
soltar insinuações que me mostraram como satisfazer essa curiosidade, se a coisa se
tornasse importante. A única coisa que tinha de fazer pra proteger seus amigos era
calar o bico até que eu desse algum passo. Eu nunca teria dado nenhum, e você teria
evitado tudo isso.
Webber perguntou: — Que diabos tem tudo isso a ver com o fato de você ser preso
na quadra duzentos da Rua Westmore?
— Tem a ver com o caso Almore — eu disse. — George Talley trabalhava no caso
Almore... até o pegarem por dirigir bêbedo.
— Bem, eu nunca trabalhei no caso Almore — cortou Webber. — Tampouco sei quem
foi o primeiro a enfiar a faca em Júlio César. Limite-se ao nosso problema, está bem?
— Estou me atendo. Degarmo sabe do caso Almore, e não gosta que se fale dele.
Até seus caras do carro-patrulha sabem disso. Cooney e Dobbs não tinham nada de
me seguir, a não se. que fosse porque visitei a mulher de um homem que tinha
trabalhado no caso Almore. Eu não ia a mais de oitenta quando eles começaram a me
seguir. Tentei escapar deles porque tinha uma boa desconfiança de que ia ser
espancado por ir lá. Degarmo foi quem me deu essa idéia.
Webber lançou um rápido olhar a Degarmo. Os duros olhos azuis do homem
olhavam a parede do outro lado da sala.
Eu disse: — E só estourei o nariz de Cooney depois que ele me forçou a beber
uísque e me bateu na barriga, fazendo

com que eu botasse a bebida pra fora, sobre o paletó, e ficasse cheirando a ela. Esta
não deve ser a primeira vez que o senhor ouve falar desse truque, Capitão.
Webber quebrou outro palito. Reclinou-se e olhou os pequenos nós de seus dedos.
Tornou a olhar para Degarmo e disse:
— Se virar chefe de polícia hoje, poderá me incluir na turma.
Degarmo disse: — Diabos, esse espião só levou uns dois trompaços de brincadeira.
Uma brincadeira. Se um cara não pode fazer uma brincadeira...
Webber disse: — Você pôs Cooney e Dobbs lá?
— Bem... sim, pus — disse Degarmo. — Não vejo por que temos de agüentar esses
espiões invadindo nossa cidade e mexendo num monte de folhas mortas só pra
arranjar um trabalho pra eles mesmos e explorar uns dois otários velhos por um belo
salário. Caras desses precisam de uma boa lição.
— Ê isso que você acha? — perguntou Webber.
— É exatamente o que eu acho — disse Degarmo.
— Eu me pergunto o que caras como você precisam — disse Webber. — Neste
momento, acho que você precisa de um pouco de ar fresco. Quer fazer o favor de ir lá
fora um pouco, tenente?
Degarmo abriu lentamente a boca.
— Quer dizer que quer que eu dê o fora?
Webber curvou-se subitamente para a frente, e seu quei- xinho pontudo pareceu
fender o ar como a proa de um cruzador.
— Quer ter a bondade?
Degarmo levantou-se devagar, um profundo rubor manchando-lhe as faces. Apoiou
a mão dura na mesa e olhou para Webber. Houve um pouco de pesado silêncio. Ele
disse:
— Tudo bem, Capitão. Mas está jogando errado.
Webber não lhe deu resposta. Degarmo encaminhou-se para a porta e saiu.
Webber esperou que a porta se fechasse atrás dele, antes de tornar a falar.
— Seu raciocínio é de que pode ligar esse caso Almore, de um ano e meio atrás,
com o assassinato na casa de Lavery hoje? Ou é apenas uma cortina de fumaça que
está lançando, porque sabe muitíssimo bem que a mulher de Kingsley atirou em
Lavery?
A DAMA DO LAGO
Eu disse: — O caso estava ligado a Lavery antes de atirarem nele. De uma maneira
mais ou menos ligeira, talvez apenas com um nó corredio. Mas o bastante pra fazer a
gente pensar.
— Eu mergulhei neste assunto com um pouco mais de atenção do que você podería
pensar — disse Webber friamente. — Embora nunca tivesse, pessoalmente, nada a ver
com o caso da morte da mulher de Almore, e não fosse chefe dos detetives naquela
época. Se você nem ao menos conhecia Almore ontem de manhã, deve ter sabido um
bocado sobre ele depois disso.
Eu lhe disse exatamente o que soubera, tanto da Srta. Fromsett quanto dos
Graysons.
— Então sua teoria é de que Lavery pode ter chanta- geado o Dr. Almore? — ele
perguntou, ao final. — E que isso pode ter algo a ver com o assassinato?
— Não é uma teoria. Não é mais que uma possibilidade. Eu não estaria fazendo um
bom serviço se ignorasse isso. As relações, se é que tinha alguma, entre Lavery e
Almore podiam ser profundas e perigosas, ou simplesmente um mero conhecimento, ou
nem mesmo isso. Pelo que sei, positivamente, eles podem jamais nem ter falado um
com o outro. Mas se não tinha nada de errado no caso Almore, por que se mostrar tão
brutal com uma pessoa que se interessa por ele? Pode ter sido uma coincidência o fato
de George Talley ser apanhado por dirigir bêbedo exatamente quando trabalhava no
caso. Podia ser coincidência o fato de Almore chamar um tira porque eu estava olhando
pra casa dele, e de que Lavery fosse morto antes que eu pudesse falar com ele uma
segunda vez. Mas não é coincidência o fato de dois de seus homens estarem vgiando a
casa de Talley esta noite, prontos, dispostos e em cor. hções de criar encrenca pra
mim, se eu aparecesse por lá.
— Concordo com você nisso — disse Webber. — E ainda não acabei com esse
incidente. Quer apresentar queixa?
— A vida é curta demais pra eu ficar apresentando queixas de agressões contra
agentes da polícia — eu disse.
Ele piscou um pouco. — Então vamos deixar tudo isso pra lá e pôr na conta da
experiência — disse. — E, como acho que você não foi sequer autuado, está livre pra ir
pra casa na hora que quiser. Se eu fosse você, deixaria o Capitão Webber
tratar do caso Lavery e de qualquer ligação remota que possa aparecer com o caso Almore.
Eu disse: — E de qualquer ligação remota que possa ter com uma dona chamada
Muriel Chess, que foi encontrada afogada num lago de montanha perto de Puma Point
ontem?
Ele ergueu as pequenas sobrancelhas.
— Você acha isso?
— Só que o senhor pode não a conhecer como Muriel Chess. Se conheceu, talvez
fosse como Mildred Haviland, que foi enfermeira do consultório do Dr. Almore. Aquela
que pôs a Sra. Almore na cama na noite em que ela foi encontrada morta na garagem,
e que, se houvesse alguma coisa errada no caso, podia saber quem fone ser
subornada ou assustada pra deixar a cidade pouco depois.
Webber pegou dois palitos de fósforo e quebrou-os. Seus olhinhos tristes fixavam-
se em meu rosto. Não disse nada.
— E nesse ponto — eu disse —, o senhor dá com uma verdadeira coincidência, a
única que estou disposto a admitir em todo o quadro. Pois essa Mildred Haviland
conheceu um homem chamado Bill Chess numa cervejaria de Riverside, e por motivos
lá dela, se casou com ele e foi morar com ele no Lago Little Fawn. E q Lago Little Fawn
era propriedade de um homem cuja mulher era íntima de Lavery, que encontrou o corpo
da Sra. Almore. Isso é o que eu chamo de verdadeira coincidência. Pode ser qualquer
outra coisa, mas é básico, fundamental. Tudo mais flui disso aí.
Webber levantou-se de sua mesa e foi até o bebedouro de água gelada e bebeu,
em dois copos de papel. Esmagou-os lentamente na mão e transformou-os numa bola,
que jogou numa cesta de metal marrom sob o bebedouro. Foi até a janela e ficou
parado olhando a baía. Não entrara ainda em vigor o blackout, e viam-se muitas luzes
no ancoradouro.
Ele voltou lentamente à mesa e sentou-se. Ergueu a mão e comprimiu o nariz.
Tentava decidir-se sobre alguma coisa. Disse, devagar:
— Não vejo que diabo de sentido tem em tentar misturar isso com uma coisa que
aconteceu um ano e meio depois.
— Tudo bem — eu disse —, e obrigado por me conceder tanto do seu tempo. —
Levantei-me.
— A perna está doendo muito? — ele perguntou, quando me abaixei para esfregá-la.
A DAMA DO LAGO
— Muito, mas está melhorando.
— Os assuntos da polícia, — disse, quase delicadamente — são um problema dos diabos. Ê um bocado parecido
à política. Exige o mais elevado tipo de homem, e não há nada nela que atraia o mais elevado tipo de homem. Por
isso, a gente tem de trabalhar com o que arranja... e se arranjam coisas assim.
— Eu sei — eu disse. — Sempre soube disso. Não estou revoltado. Boa noite, Capitão Webber.
— Espere um minuto — ele disse. — Sente aí um minuto. Se vamos meter o caso Almore nisso, vamos revolver a
coisa toda e examinar.
— Já era tempo de alguém fazer isso — eu disse. E tornei a sentar-me.

28
Webber disse em voz baixa:
— Acho que algumas pessoas pensam que a gente é apenas um bando de
corruptos aqui. Creio que acham que um cara mata a esposa e depois telefona e diz:
“Alô, Cap, tenho um assassinatozinho aqui atravancando minha sala da frente. E
quinhentos paus dando sopa”. E aí eu digo: “Ótimo. Agüente aí que já vou indo com o
cobertor”.
— Não é tão ruim assim — eu disse.
— Sobre o que queria falar com Talley quando foi à casa dele esta noite?
— Ele tinha alguma pista sobre a morte de Florence Almore. Os pais dela o
contrataram pra seguir essa pista, mas ele nunca disse qual era.
— E você achava que ele lhe diria? — perguntou Webber, sarcasticamente.
— Tudo que eu podia fazer era tentar.
— Ou foi apenas Degarmo que, bancando o durão com você, fez com que quisesse
reagir e bancar o durão com ele?
— Talvez tenha sido um pouco disso também.
— Talley era um chantagistazinho menor — disse Webber desdenhosamente. — Fez
isso mais de uma vez. Qualquer maneira da gente se livrar dele era válida. Por isso vou
lhe

dizer o que era que ele tinha. Uma sandália roubada do pé de Florence Almore.
— Uma sandália?
Ele deu um débil sorriso.
— Só uma sandália. Foi encontrada mais tarde na casa dele. Era uma espécie de escarpim de veludo verde, pra
dançar, com umas pedrazinhas engastadas no salto. Feita sob medida, por um cara de Hollywood que faz sapatos e
coisas assim. Agora me pergunto que importância tinha essa sandália?
— Que importância tinha ela, Capitão?
— Ela tinha dois pares, exatamente iguais, feitos na mesma encomenda. Parece
que isso não é incomum. Para o caso de uma delas perder o salto ou algum cavalo
bêbedo passar por cima da perna da dona. — Fez uma pausa e deu um leve sorriso. —
Parece que um dos pares nunca foi usado.
— Acho que estou começando a compreender — eu disse.
Ele se reclinou e tamborilou nos braços da poltrona. Esperou.
— O caminho da porta lateral da casa até a garagem é de concreto áspero — eu
disse. — Muito áspero. Digamos que ela não tenha andado por ele. mas tenha sido
carregada. E digamos que quem a levou pôs as sandálias nela... as que não tinham
sido usadas.
— Sim?
— E digamos que Talley tenha notado isso quando Lavery telefonava para o
médico, que estava em suas rondas. Então ele pegou a sandália não usada,
encarando-a como prOva de que Florence Almore tinha sido assassinada.
Webber balançou a cabeça. — Seria prova se ele deixasse onde estava, pra polícia
encontrar. Depois que ele pegou, era prova apenas de que ele era um rato.
— Fizeram teste para detectar monóxido de carbono no sangue dela?
Ele espalmou as mãos sobre a mesa e olhou-as.
— Sim — disse. — E tinha monóxido de carbono, sim, senhor. E os policiais que
investigaram o caso aceitaram as aparências. Não havia sinais de violência.
Aceitaram o fato do Dr. Almore não ter matado a mulher dele. Talvez estivessem
errados. Acho que a investigação foi um pouco superficial.
A DAMA DO LAGO

— E quem se encarregou dela? — perguntei.


— Acho que você sabe a resposta.
— Quando a polícia chegou, ninguém notou que faltava uma sandália?
— Quando a polícia chegou não faltava sandália nenhuma. Se lembre que o Dr.
Almore já estava em casa, em resposta ao telefonema de Lavery, antes de chamarem a
polícia. Tudo que sabemos da sandália desaparecida é através de Talley. Ele pode ter
tirado a que não foi usada de dentro da casa. A porta lateral não estava fechada. As
empregadas estavam dormindo. A objeção a isso é que ele provavelmente não saberia
da existência da sandália nova, pra ir lá pegar. Mas eu não diria que ele não era capaz
de pensar nisso. E um demo- niozinho esperto e sinuoso. Mas não posso atribuir a ele
o conhecimento necessário.
Ficamos ali sentados, olhando um ao outro, pensando.
— A não ser — disse Webber lentamente — que a gente possa supor que a tal
enfermeira de Almore estivesse envolvida com Talley numa trama pra espremer
Almore. E possível. Tem coisas em favor disso. E mais ainda contra. Que motivos tem
você pra afirmar que a moça afogada nas montanhas era a tal enfermeira?
— Dois, nenhum deles conclusivo separadamente, mas bastante fortes juntos. Um cara durão, com a aparência e os
modos de Degarmo, esteve lá em cima há poucas semanas, exibindo uma fotografia de Mildred Haviland que se parecia um
pouco com Muriel Chess. Cabelos, sobrancelhas e essas coisas diferentes, mas uma boa semelhança. Ninguém o ajudou
muito, que disse que se chamava De Soto e era policial de Los Angeles. Não tem nenhum policial em Los Angeles
chamado De Soto. Quando Muriel Chess soube disso, pareceu assustada. Se era Degarmo, isto está facilmente
estabelecido. O outro motivo é que se encontrou uma correntinha de tornozelo, de ouro, com um coração, escondido numa
caixa de açúcar refinado na cabana de Chess. Foi descoberta depois da morte dela, após seu marido ter sido preso. Nas
costas do coração estava gravado: “4/ a Mildred. 28 de junho de 1938. Com todo o meu amor".
— Podiam ser um outro Al e uma outra Mildred — disse Webber.
— Não creio nisso realmente, Capitão.
Ele se inclinou para a frente e perfurou o ar com o indicador.
— Que é que você quer concluir de tudo isso, exatamente?
— Quero concluir que a mulher de Kingsley não atirou em Lavery. Que a morte dele
tem alguma coisa a ver com o caso Almore. E com Mildred Haviland. E possivelmente
com o Dr. Almore. Quero concluir que a mulher de Kingsley desapareceu porque
aconteceu alguma coisa que lhe deu um susto dos diabos, que ela pode ou não saber
de coisas comprometedoras, mas que não matou ninguém. Tem quinhentos dólares
nisso aí pra mim, se eu puder determinar isso. É legítimo tentar.
Ele assentiu.
— Não há dúvida de que é. E eu sou o homem que ajudaria você, se visse alguma
base pra isso. Não encontramos a mulher, mas o tempo ainda é muito curto. Mas posso
ajudar você a pressionar um de meus rapazes.
Eu disse: — Soube que vocês chamam Degarmo de Al. Mas estava pensando em
Almore. O nome dele é Albert.
Webber olhou o polegar.
— Mas nunca foi casado com a garota — disse em voz baixa. — Degarmo foi. Posso
garantir a você que ela o mantinha num rodado. Muita coisa do que parece ruim nele é
resultado disso.
Fiquei sentado, muito quieto. Após um momento, disse:
— Começo a perceber coisas que nem sabia que existiam. Que tipo de garota era
ela?
— Esperta, insinuante e ordinária. Tinha jeito com os homens. Sabia fazer com que
se arrastassem aos seus pés. O bobalhão arrancaria sua cabeça fora, se você dissesse
qualquer coisa contra ela. Se divorciou dele, mas isso não encerrou o caso pra ele.
— Ele sabe que ela está morta?
Webber ficou calado por um longo momento, antes de dizer:
— A julgar por qualquer coisa que ele tenha dito, não. Mas como podería deixar de
saber, se é a mesma garota?
— Ele não a encontrou nas montanhas... até onde sabemos.
Levantei-me e curvei-me sobre a mesa.
A DAMA DO LAGO 153

— Escute, Capitão, não está brincando, está?


— Não. Nem um pouco, diabos. Alguns homens são desse jeito, e algumas mulheres
podem fazer que eles gostem delas. Se você pensa que Degarmo foi até lá em cima
procurando-a porque queria lhe fazer mal, está tão frio quanto uma toalha de bar.
— Eu nunca pensei isso. Seria possível, se Degarmo conhecesse a região lá em
cima muito bem. Quem matou a garota, conhecia.
— Isso tudo fica aqui entre nós — ele disse. — Eu gostaria que ficasse assim.
Assenti, mas não prometi nada. Tornei a dizer boa-noite e saí. Ele ficou me olhando
quando atravessei a sala. Parecia magoado e triste.

O Chrysler estava no estacionamento da polícia ao lado do prédio, com as chaves


na ignição e nenhum dos pára- choques amassados. Cooney não cumprira sua
ameaça. Voltei a Hollywood e subi ao meu apartamento no Bristol. Era tarde, quase
meia-noite.
O corredor verde e marfim estava vazio e sem som algum, a não ser por um
telefone que tocava num dos apartamentos. Tocava insistentemente, e aumentava de
volume à medida que eu me aproximava de minha porta. Abri. Era o meu telefone.
Atravessei a sala no escuro até onde ele estava, na beira de uma mesa de
carvalho contra a parede lateral. Devia ter tocado pelo menos dez minutos antes de eu
pegá-lo.
Peguei o fone e atendi; era Derace Kingsley na linha. A voz dele soava contida,
seca e tensa.
— Meu Deus, por onde andou? — gritou. — Estou tentando falar com o senhor há
horas.
— Tudo bem. Estou aqui agora — eu disse. — Que é que há?
— Tive notícias dela.
Apertei com força o telefone e inspirei fundo, lentamente, e depois expeli o ar,
também lentamente.
— Vá em frente — disse.
— Não estou longe daí. Chego aí dentro de cinco ou seis minutos. Esteja pronto pra
sair.
Desligou.
Fiquei ali segurando o fone a meio caminho entre meu ouvido e o gancho. Depois o recoloquei muito lentamente
no lugar e olhei a mão que o segurara. Estava meio aberta mas rígida, como se ainda segurasse o aparelho.

29

A discreta batida da meia-noite ressoou na porta e fui abri-la. Kingsley parecia


grande como um cavalo, num paletó esporte creme, com uma écharpe verde e amarela
em torno do pescoço, por dentro da gola frouxamente levantada. Usava um chapéu
marrom avermelhado escuro caído sobre os olhos, e por baixo da aba os olhos
pareciam os de um animal doente.
A Srta. Fromsett acompanhava-o. Usava calças largas, sandálias, um casaco
verde escuro, sem chapéu e com um brilho desagradável nos cabelos. Das orelhas
pendiam gotas feitas de um par de gardênias artificiais, uma sobre a outra, duas de
cada lado. Com ela, entrou na sala o Gillerlain Regai, o Champanha dos Perfumes.
Fechei a porta, indiquei as poltronas e disse:
— Uma bebida provavelmetne vai ajudar um pouco. A Srta. Fromsett sentou-se
numa poltrona e cruzou as pernas, olhando em volta em busca de cigarros. Achou um,
acendeu-o com um longo e casual floreio e sorriu tristemente para um canto do teto.
Kingsley permanecia de pé no meio da sala, tentando morder o próprio queixo. Fui
até a kitchenette, preparei três bebidas e as trouxe e entreguei. Fui até a poltrona junto
ao tabuleiro de xadrez com a minha.
Kingsley disse: — Que foi que o senhor andou fazendo, e qual é o problema com
sua perna?
Eu disse: — Um tira me chutou. Um presente do Departamento de Polícia de Bay
City. Ê um serviço regular que eles prestam lá embaixo. Quanto a onde eu estive... na
cadeia, por dirigir bêbedo. E, pela expressão em seu rosto, acho que talvez volte pra lá
muito breve.
— Não sei do que o senhor está falando — ele disse rispidamente. — Não tenho a
mais vaga idéia. Este não é um momento pra brincadeiras.
A DAMA DO LAGO
— Tudo bem, não brinque — eu disse. — Que foi que o senhor soube, e onde está
ela?
Ele se sentou com sua bebida, flexionou os dedos da mão direita e a pôs no bolso
do paletó, de onde ela emergiu com um envelope, um envelope comprido.
— Precisa levar isso para ela — disse. — Quinhentos dólares. Ela queria mais, mas
isso foi tudo que pude arranjar. Descontei um cheque numa boate. Não foi fácil. Ela
precisa deixar a cidade.
— Perguntei: — Qual cidade?
— Bay City, em algum canto. Não sei onde. Ela vai se encontrar com o senhor num
lugar chamado Bar do Pavão, no Boulevard Arguello, na Rua Oito, ou perto.
Olhei para a Srta. Fromsett. Ela ainda olhava o canto do teto como se tivesse vindo
apenas pelo passeio.
Kingsley jogou o envelope, que caiu sobre a mesa de xadrez. Olhei o conteúdo. Era
dinheiro mesmo. Até aí, a história fazia sentido. Deixei-o ficar na pequena mesa enver-
nizada com suas incrustações quadradas de marrom e ouro pálido.
Perguntei: — O que impede ela mesma de sacar seu próprio dinheiro? Qualquer
hotel descontaria um cheque dela. A maioria descontaria um. A conta bancária dela foi
bloqueada ou algo assim?
— Isso não é maneira de falar — disse Kingsley, pesa- damente. — Ela está metida
em encrenca. Eu não sei como sabe que está. A menos que uma ordem de prisão
tenha sido irradiada. Foi?
Eu disse que não sabia. Não tivera muito tempo para ouvir as transmissões da
polícia. Estivera demasiado ocupado ouvindo policiais ao vivo.
Kingsley disse: — Bem, ela não vai se arriscar a descontar um cheque agora.
Estava tudo bem antes. Mas agora, não. — Ergueu os olhos lentamente e lançou-me um
dos olhares mais vazios que eu já vira.
— Está bem, não se pode extrair um sentido de onde não há nenhum — eu disse. —
Então ela está em Bay City. O senhor falou com ela?
— Não. Foi a Srta. Fromsett. Ela telefonou pro escritório. Foi pouco depois do
horário de fechar, mas aquele tira da praia, Capitão Webber, estava comigo. A Srta.
Fromsett
naturalmente não quis que ela falasse de modo algum naquela hora. Disse que
tornasse a ligar. Ela não quis dar nenhum número para o qual a gente pudesse ligar.
Olhei para a Srta. Fromsett. Ela baixou o olhar do teto e dirigiu-o para o alto de
minha cabeça. Não havia absolutamente nada em seus olhos. Eram como cortinas
fechadas.
Kingsley prosseguiu: — Eu não queria falar com ela. El$ não queria falar comigo.
Não quero vê-la. Acho que não há dúvida de que ela atirou em Lavery. Webber parecia
muito certo disso.
— Isso não quer dizer nada — eu disse. — O que ele diz e o que ele pensa não têm
nem de estar no mesmo mapa. Não me agrada que ela saiba que os tiras estão atrás
dela. Faz muito tempo que ninguém fica escutando o rádio da polícia por diversão.
Então ela tornou a ligar depois. E daí?
— Eram quase seis e meia — disse Kingsley. — A gente teve de ficar lá no escritório
esperando que ela ligasse. Conte a ele. — Voltou a cabeça para a garota.
A Srta. Fromsett disse: — Eu atendi a ligação no escritório do Sr. Kingsley. Ele
estava sentado bem a meu lado, mas não falou. Ela disse que ele mandasse o dinheiro
para o Pavão e perguntou quem ia levar.
— Parecia assustada?
— Nem um pouco. Completamente calma. Eu diría que gelidamente calma. Tinha
tudo armado. Compreendia que alguém ia ter de levar o dinheiro e que ela talvez não
conhecesse essa pessoa. Parecia saber que Derry... o Sr. Kingsley não levaria.
— Pode chamar ele de Derry — eu disse. — Dou um jeito de saber a quem está se
referindo.
Ela deu um débil sorriso. — Ela irá a esse tal Pavão a cada hora, quinze minutos
depois de cada hora exata. Eu... eu creio que achei que era o senhor quem ia levar o
dinheiro. Descreví o senhor pra ela. E deverá usar a écharpe de Derry. Eu a descreví.
Ele tem algumas roupas no escritório, e a écharpe estava entre elas. É bastante visível.
E era mesmo. Uma coisa com uns gordos rins verdes estampados num fundo de
amarelo-gema de ovo. Seria quase tão visível quanto se eu entrasse lá empurrando um
carrinho de mão vermelho, branco e azul.

157
— Para uma cabeçà oca, ela está se saindo muito bem — eu disse.
— Isso não é momento de brincadeiras — interrompeu rispidamente Kingsley.
— Já disse isso antes — eu disse. — O senhor tem uma presunção dos diabos se pensa que vou lá embaixo
ajudar a fugir uma pessoa que a polícia está procurando.
Ele contorceu uma mão sobre o joelho e também o rosto se torceu num sorriso matreiro.
— Reconheço que é pedir um pouco demais — disse. — Bem, e então?
— Isso torna nós três cúmplices. Pode não ser muito para o marido e sua
secretária confidencial dar explicações, mas o que fariam comigo não seria
exatamente o sonho de férias de alguém.
— Vou fazer com que valha a pena — ele disse. — E não seremos cúmplices, se
ela não fez nada.
— Estou disposto a supor isso — eu disse. — De outro modo, não estaria
conversando com vocês. E, além disso, se me convencer de que ela cometeu algum
assassinato, vou entregá-la à polícia.
— Ela não falará com você — ele disse.
Peguei o envelope e enfiei-o no bolso.
— Falará, se quiser isto. — Olhei meu relógio. — Se eu partir imediatamente,
posso pegar o horário das uma e quinze. No bar, eles deverão conhecê-la nos
mínimos detalhes a essa altura. Isso também torna a coisa ótima.
— Ela tingiu os cabelos de castanho escuro — disse a Srta. Fromsett. — Isso deve
ajudar um pouco.
— Não me ajuda a pensar que ela é apenas uma inocente peregrina. — Acabei
minha bebida e levantei-me. Kingsley engoliu a dele de vez, levantou-se, tirou a
écharpe do pescoço e me entregou.
— Que fez o senhor pra ter a polícia em suas costas lá embaixo? — perguntou.
— Estava usando certa informação que a Srta. Fromsett muito bondosamente
tinha conseguido pra mim. E isso me levou a procurar um cara chamado Talley, que
trabalhou no caso Almore. E isso levou à cadeia. Estavam vigiando a casa. Talley
foi o detetive particular que os Graysons contrataram — acrescentei, olhando a
garota alta e morena. — A senhorita
provavelmente poderá explicar a ele do que se trata. De qualquer modo, não importa. Não tenho tempo pra
entrar em detalhes agora. Vocês dois querem esperar aqui?
Kingsley balançou a cabeça. — Vamos pra minha casa e esperaremos um telefonema seu.
A Srta. Fromsett levantou-se e bocejou.
— Não. Estou cansada, Derry. Vou pra casa e pra cama.
— Você vem comigo — ele disse rispidamente. — Precisa impedir que eu fique doido.
— Onde mora, Srta. Fromsett? — perguntei.
— Na Bryson Tower, em Sunset Place. Apartamento 716. Por quê? — Ela me lançou um olhfr especulativo.
— Posso querer falar com a senhofita a qualquer hora.
O rosto de Kingsley pareceu sombriàmente irritado, mas os olhos ainda eram os
de um animal doente. Enrolei a écharpe dele no pescoço e fui à cozinha apagar a luz.
Quando voltei, os dois estavam parados junto à porta. Kingsley passava o braço por
sobre os ombros dela, que parecia muito cansada e um tanto chateada.
— Bem, eu sem dúvida espero... — ele começou a dizer, mas deu um rápido passo
à frente e estendeu a mão. — O senhor é um cara muito legal, Sr. Marlowe.
— Vamos, deixe disso — eu disse. — Vá-se embora. Vá-se embora pra longe.
Ele deu um olhar esquisito e os dois saíram.
Esperei até ouvir o elevador subir e parar, e as portas se abrirem e fecharem, e o
elevador descer. Depois saí, desci a escada até a garagem no porão e entrei no
Chrysler, novamente desperto.

30
O Bar do Pavão tinha uma frente estreita, junto a uma loja de presentes, em cuja
vitrina brilhava à luz da rua uma bandeja de animaizinhos de cristal. A frente do bar
era de tijolos de vidro, e uma luz suave refulgia em torno do pavão de vidro decorado
incrustado nos blocos transparentes. Contornei um biombo chinês, dei uma olhada
no ambiente e sentei- me na ponta de fora de um pequeno reservado. A luz era
âmbar, o couro vermelho-chinês, e os reservados tinham me-
A DAMA DO LAGO
sas de plástico reluzentes. 'Num reservado, quatro soldados bebiam cerveja com ar melancólico, os olhos um tanto
vidrados e obviamente chateados até com a cerveja. Diante deles um grupo de duas garotas e dois homens
elegantes fazia o único ruido da sala. Não vi ninguém que se assemelhasse à idéia que fazia de Crystal Kingsley.
Um garçom grisalho, de olhos maus e um rosto que parecia um osso roí do, pôs um guardanapo com um
pavão impresso na mesa à minha frente e deu-me um coquetel de rum. Provei-o e olhei o mostrador âmbar do
relógio do bar. Passava pouco de uma e quinze.
Um dos homens com as duas garotas levantou-se de repente, caminhou a passos firmes para a porta e saiu.
A voz do outro homem disse:
— Por que tinha de insultar o cara?
A voz miúda de uma garota respondeu: — Insultar ele? Essa é boa. Ele me deu
uma cantada.
A voz do homem disse, queixosa:
— Bem, não precisava insultar ele, precisava?
Um dos soldados de repente soltou uma risada gutural, depois varreu o riso do
rosto com uma mão morena e bebeu mais um gole de cerveja. Esfreguei a parte de
trás de meu joelho. Estava quente e inchada, mas a sensação de paralisia
desaparecera.
Um garoto minúsculo, com cara de mexicano e enormes olhos negros, entrou com
os jornais matutinos e correu os reservados, tentando vender alguma coisa antes que
o homem do bar o enxotasse. Comprei um jornal e dei uma olhada nele para ver se
havia alguns assassinatos interessantes. Não havia.
Dobrei-o e ergui o olhar, quando uma garota esguia, de cabelos castanhos, calça
larga negra como carvão, blusa amarela e um comprido casaco cinza surgiu de
alguma parte e passou pelo reservado sem me olhar. Tentei decidir-me se reconhecia
o rosto dela ou se se tratava apenas de um tipo padrão de beleza magra, um tanto
dura, que eu já devia ter visto mil vezes. Ela saiu pela porta da frente, contornando o
biombo. Dois minutos depois o mexicaninho voltou, disparou uma olhada rápida ao
homem do bar, correu e parou à minha frente.
— Meu senhor — disse, os grandes olhos negros brilhando de malícia. E fez um
sinal me chamando e correu para fora de novo.
Acabei minha bebida e saí atrás dele. A garota de capote cinza, blusa amarela e calça larga preta estava
parada diante da loja de presentes, olhando a vitrina. Moveu os olhos quando saí. Fui até junto dela.
Ela tornou a me olhar. Tinha o rosto pálido e cansado. Os cabelos pareciam mais escuros que castanho escuro.
Ela desviou o olhar e falou voltada para a vitrina.
— Me dê o dinheiro, por favor. — Sua respiração embaçou um pouco o vidro plano.
Eu disse: — Preciso saber quem é você.
— Você sabe quem eu sou — ela disse baixinho. — Quanto trouxe?
— Quinhentos.
— Não dá — ela disse. — Não chega nem perto. Me dê depressa. Passei meia
eternidade esperando que alguém viesse aqui.
— Onde a gente pode conversar?
— Não precisamos conversar. Simplesmente me dê o dinheiro e siga na outra
direção.
— Não é tão simples assim. Estou me arriscando muito fazendo isso. Vou ao
menos ter a satisfação de saber o que se passa à minha volta.
— Vá pro inferno — ela disse, acidamente. — Por que não veio ele mesmo? Eu não
quero conversar. Quero dar o fora o mais rápido possível.
— Você não queria que ele viesse pessoalmente. Ele entendeu que você não
queria falar com ele nem pelo telefone.
— Exato — ela se apressou a dizer, e jogou a cabeça para trás.
— Mas vai ter de conversar comigo. Não sou tão fácil quanto ele. Vai conversar
comigo ou com a lei. Não tem saída. Sou detetive particular e preciso de um pouco de
proteção também.
— Ora, mas ele não é encantador? — ela disse.— Com detetive particular e tudo. —
Havia um pouco de desprezo em sua voz.
— Ele fez o melhor que podia. Não foi fácil pra ele saber o que fazer.
— Sobre o que você quer conversar?
— Você, o que andou fazendo, onde andou e o que espera fazer. Essas coisas.
Pequenas coisas, mas importantes.
A DAMA DO LAGO
Ela bafejou no vidro da vitrina e esperou até que o embaçamento desaparecesse.
— Acho que seria muito melhor — disse, com a mesma voz fria e vazia — você me dar o dinheiro e me deixar
resolver as coisas sozinha.
— Não.
Ela me lançou outro penetrante olhar de soslaio. Deu de ombros dentro do casaco cinza, impaciente.
— Muito bem, se tem de ser assim. Estou no Granada, a dois quarteirões ao norte daqui na Oito. Apartamento
618. Me dê dez minutos. Prefiro ir só.
— Eu tenho um carro.
— Prefiro ir só. — Ela se virou rapidamente e afastou-se. Encaminhou-se até a
esquina, atravessou a avenida e desapareceu atrás da quadra, sob uma fileira de
aroeiras. Fui sentar-me no Chrysler, e dei-lhe dez minutos antes de ligá-lo.
O Granada era um prédio cinza feio, de esquina. A porta de vidro de entrada ficava
ao rés do chão. Contornei a esquina e vi um globo leitoso com a palavra “Garagem”
pintada. A entrada para a garagem era uma rampa de descida que dava no duro
silêncio que cheirava a borracha de carros estacionados em fileiras. Um negro
desengonçado saiu de um escritório envidraçado e examinou o Chrysler.
— Quanto quer pra deixar o carro aqui por pouco tempo? Vou subir.
Ele me lançou um olhar carrancudo e malévolo.
— Tá um bocado tarde, patrão. E o bicho tá precisando de uma boa limpeza
também. Vai um dólar.
— Que é que há por aqui?
— Vai um dólar — ele disse, indiferente.
Saltei. Ele me deu o recibo. Eu lhe dei o dólar. Sem que eu lhe perguntasse, disse-
me que o elevador ficava atrás do escritório, pelo banheiro masculino.
Subi até o sexto andar e fiquei à escuta naquele silêncio, sentindo o cheiro do ar
da praia que vinha do fundo do corredor. O lugar parecia bastante decente. Sempre
havería algumas donas alegres em qualquer prédio de apartamentos. Isso explicava o
dólar do negro magro. Um grande juiz de cará- teres, o sujeito.
Fui até a porta do Apartamento 618 e fiquei parado diante dela por um instante, e
depois bati de leve.
31

Ela ainda usava o casaco cinza. Recuou da porta e eu passei, entrando numa sala quadrada com camas
gêmeas embutidas na parede e um mínimo de móveis desinteressantes. Um pequeno abajur, numa mesa junto à
janela, difundia uma baça luz amarelada. A janela atrás estava aberta.
A garota disse: — Sente aí e vamos conversar.
Fechou a porta e foi sentar-se numa sombria cadeira de balanço Boston do outro lado da sala. Eu me sentei
num grosso sofá. Uma cortina de um verde ruço pendia sobre o espaço aberto de uma porta, numa das
extremidades do sofá. Devia levar ao quarto de vestir ou ao banheiro. Na outra extremidade, outra porta, fechada. Ali
ficaria a kitchenette. E isso devia ser tudo.
A garota cruzou os tornozelos e reclinou a cabeça contra o encosto da poltrona,
olhando-me por baixo dos longos cílios brilhantes. Tinha as sobrancelhas finas e
arqueadas, tão castanhas quanto os cabelos. Um rosto discreto, secreto. Não parecia o
rosto de uma mulher que desperdiçasse muito esforço.
— Eu fazia uma idéia um tanto diferente de você. Pelo que Kingsley disse.
Ela torceu um pouco os lábios. Não disse nada.
— E pelo que Lavery disse, também. Isso apenas demonstra que a gente fala
linguagens diferentes com pessoas diferentes.
— Não tenho tempo pra esse tipo de conversa — ela disse. — Que é que você quer
saber?
— Ele me contratou pra encontrar você. Estou trabalhando nisso. Julgava que você
soubesse.
— Sim. A doçurinha do escritório dele me disse isso pelo telefone. Me disse que
você era um cara chamado Marlowe. Me falou da écharpe.
Tirei a écharpe do pescoço, dobrei-a e enfiei-a no bolso. Disse:
— Portanto,conheço um pouco de seus movimentos. Não muito. Sei que deixou seu
carro no Prescott Hotel, em San Bernardino, e que se encontrou com Lavery lá. Sei que
mandou um telegrama de El Paso. Que fez depois?
A DAMA DO LAGO f63

— A única coisa que quero de você é o dinheiro que ele mandou. Não vejo que interesse meus movimentos
podem ter pra você.
— Não preciso discutir isso — eu disse. — Trata-se apenas de saber se você quer o dinheiro.
— Bem, a gente foi pra El Paso — ela disse, numa voz cansada. — Pensei em me casar com ele lá. Por isso
mandei o telegrama. Você viu o telegrama?
— Vi.
— Bem, mudei de idéia. Pedi a ele que fosse embora e me deixasse. Ele fez uma cena.
— Ele foi embora e deixou você?
— Sim. Por que não?
— Que fez você então?
— Fui pra Santa Barbara e fiquei lá alguns dias. Um fim de semana, pra falar a
verdade. Depois pra Pasadena. A mesma coisa. Depois pra Hollywood. Depois desci
até aqui. Só isso.
— Esteve sozinha todo esse tempo?
Ela hesitou um pouco, e depois disse: — Estive.
— Não com Lavery... em nenhuma dessas etapas?
— Não depois que ele foi embora.
— Que pretendia?
— Pretendia como? — A voz dela tornou-se um pouco aguda.
— Indo a esses lugares sem mandar uma palavra. Não sabia que ele ficaria
preocupado?
— Oh, você se refere a meu marido — ela disse friamente. — Não creio que tenha
me preocupado muito com ele. Pensaria que eu estava no México, não? Quanto ao
que pretendia com tudo isso... ora, eu simplesmente precisava pensar, pra resolver
minha vida, que tinha se tornado um emaranhado sem esperança. Precisava ficar em
algum canto inteiramente sozinha, e tentar me recompor.
— Antes disso — eu disse — você passou um mês no Lago Little Fawn tentando se
recompor e não chegar a parte alguma. Foi isso?
Ela olhou os sapatos, depois para mim, e assentiu vigorosamente. Os cabelos
castanhos ondulados caíram-lhe nas faces, dos lados. Ela ergueu a mão esquerda e
jogou-os para trás, e depois esfregou a têmpera com um dedo.
— Me parecia que precisava de um lugar novo — disse. — Não necessariamente um lugar interessante. Só
desconhecido. Sem recordações. Um lugar onde ficasse muito só. Como um hotel.
— Como está se saindo?
— Não muito bem. Mas não vou voltar pra Derace Kingsley. Ele quer que eu volte?
— Não sei. Mas por que veio cá pra baixo, pra cidade onde estava Lavery?
Ela mordeu o nó de um dedo e olhou-me por sobre a mão.
— Queria tornar a vê-lo. Tenho a cabeça inteiramente confusa a respeito dele. Não
estou apaixonada por ele, e no entanto... bem, creio que de certa forma estou. Mas não
acho que queira casar com ele. Isso faz sentido?
— Essa parte faz. Mas ficar longe de casa num monte de hotéis vagabundos não
faz. Você tem vivido sua própria vida há anos, segundo percebi.
— Eu precisava ficar só, pra... pra pensar nisso tudo — ela disse, um pouco
desesperadamente, e tornou a moder o nó do dedo, com força. — Por favor, quer me
dar o dinheiro e ir embora?
— Claro. Imediatamente. Mas não havia outro motivo pra você deixar o Lago Little
Fawn naquele exato momento? Alguma coisa relacionada com Muriel Chess, por
exemplo?
Ela pareceu surpresa. Mas qualquer um pode parecer surpreso.
— Deus do céu, que podia ser? Aquela coisinha de cara gelada... que significava
pra mim?
— Achei que você podia ter tido uma briga com ela... por causa de Bill.
— Bill? Bill Chess? — Ela parecia ainda mais surpresa. Quase surpresa demais.
— Bill diz que você deu em cima dele.
Ela jogou a cabeça para trás e deu uma pequena risada, irreal.
— Meu Deus! Aquele bêbedo de cara amarfanhada? — Seu rosto tornou-se
subitamente sóbrio. — Que aconteceu? Por que todo esse mistério?
— Ele podia ser um bêbedo de cara amarfanhada — eu disse. — A polícia acha que
é um assassino também. Da
A DAMA DO LAGO
mulher dele. Ela foi achada afogada no lago. Um mês depois.
Ela umedeceu os lábios e inclinou a cabeça para um lado, olhándo-me fixamente. Houve um pequeno silêncio,
tranqüilo. O úmido bafo do Pacífico entrou na sala, envolvendo-nos.
— Não estou surpresa — ela disse sobriamente. — Então chegou a isso, no fim. Eles brigavam terrivelmente às
vezes. Você acha que isso teve alguma coisa a ver com minha partida?
Assenti. — Tinha uma possibilidade disso.
— Eu nada tive a ver, absolutamente, com isso tudo — ela disse, seriamente, e
balançou a cabeça para a frente e para trás. — Foi exatamente como eu lhe contei.
— Muriel está morta — eu disse. — Afogada no lago. Você não ganha muito com
isso, ganha?
— Eu mal conhecia a moça — ela disse. — Realmente. Ela se mantinha reservada.
Afinal...
— Não creio que você saiba que ela trabalhou antes no consultório do Dr. Almore?
Ela parecia inteiramente intrigada agora.
— Eu nunca estive no consultório do Dr. Almore — disse lentamente. — Ele fez
algumas visitas profissionais há muito tempo. Eu... de que é que você está falando?
— Muriel Chess na verdade se chamava Mildred Havi- land, e foi enfermeira no
consultório do Dr. Almore.
■ — É uma estranha coincidência — ela disse, pensativa- mente. — Eu sabia que
Bill conheceu-a em Riverside. Não sei como ou em quais circunstâncias, ou de onde
ela veio. O consultório do Dr. Almore, hem? Não tem de significar alguma coisa, tem?
Eu disse: — Não. Creio que é uma verdadeira coincidência. Elas acontecem. Mas
está vendo por que eu tinha de falar com você. Esse negócio de Muriel ser achada
afogada e você ter partido, Muriel ser Mildred Haviland, ligada antes ao Dr. Almore...
como foi também Lavery, de um modo diferente. E, evidentemente, Lavery mora
defronte do Dr. Almore. Ele, Lavery, parecia conhecer Muriel de alguma outra parte?
Ela pensou, mordendo delicadamente o lábio inferior.
— Ele a encontrou lá em cima — disse finalmente. — Não agiu como se já a tivesse
conhecido antes.
— E faria isso mesmo. Sendo o tipo de cara que era.
— Não creio que Chris teve alguma coisa a ver com o Dr. Almore — ela disse. — Ele conheceu a mulher do Dr.
Almore. Não creio que tenha conhecido o doutor de modo algum. Assim, provavelmente não podia conhecer a
enfermeira do consultório do Dr. Almore.
— Bem, acho que nada nisso tudo pode me ajudar. Mas você pode entender por que eu precisava conversar
com você. Acho que posso lhe entregar o dinheiro agora.
Peguei o envelope no bolso e levantei-me para deixá-lo cair no colo dela. Ela o deixou ficar ali. Tornei a
sentar-me.
— Você faz esse personagem muito bem — eu disse. — Essa inocência confusa, com um tonzinho de dureza e
amar- gor. As pessoas cometeram um sério erro a seu respeito. Pensavam que era uma idiotinha irrequieta, sem
cérebro ou controle. Estavam muito errados.
Ela me olhava fixamente, erguendo as sobrancelhas. Não disse nada. Depois, um
leve sorriso ergueu os cantos de sua boca. Ela estendeu a mão para pegar o envelope,
bateu com ele no joelho e o pôs na mesa ao lado. Fixava-me o tempo todo.
— Fez muito bem a personagem da Sra. Fallbrook, também — eu disse. — Revendo
a coisa, acho que foi um pouco exagerada. Mas na hora me enganou direitinho. Aquele
chapéu púrpura que ficaria bem nuns cabelos louros, mas parecia o diabo num
castanho desgrenhado, aquela maquiagem borrada que parecia ter sido feita no escuro
por uma pessoa com torção no pulso, a maneira nervosa e amalucada. Tudo muito
bom. E quando pôs a pistola em minha mão... eu caí como um tijolo.
Ela deu uma risadinha e enterrou as mãos bem fundo nos bolsos do casaco. Batia
os calcanhares no chão.
— Mas por que voltou? — perguntei. — Por que se arriscar tanto em plena luz do dia,
no meio da manhã?
— Então acha que atirei em Chris Lavery? — ela perguntou em voz baixa.
— Eu não acho. Eu sei.
— Por que voltei? É isso que quer saber?
— Na verdade, não me importa — eu disse.
Ela riu. Um riso estridente, frio.
— Ele estava com todo o meu dinheiro — ela disse. — Tinha limpado minha bolsa.
Estava com todo ele, até os
trocados. Foi por isso que voltei. Não tinha risco nenhum. Eu sabia como ele vivia. Na verdade, era mais seguro
voltar. Levar pra dentro o leite e o jornal, por exemplo. As pessoas perdem a cabeça em tais situações. Eu, não, não
vejo por que devia perder. É tão mais seguro não perder.
— Entendo — eu disse. — Então, na verdade, atirou nele na noite anterior. Eu devia
ter pensado nisso, não que faça alguma diferença. Ele estava se barbeando. Mas caras
de barba cerrada e com amiguinhas às vezes se barbeiam antes de ir se deitar, não é?
— A gente sabe de alguns casos — ela disse, quase alegremente. — E que vai fazer,
exatamente, sobre isso?
— Você é uma putinha de sangue frio, se é que já vi alguma — eu disse. — Fazer
sobre isso? Entregar você à polícia, naturalmente. Será um prazer.
— Acho que não. — Ela lançou as palavras quase cantando. — Você se surpreendeu
porque eu lhe entreguei a pistola vazia. Por que não? Tinha outra na bolsa. Como
esta.
Tirou a mão direita do bolso do casaco e apontou a arma para mim.
Dei um sorriso. Pode não ter sido o sorriso mais animado do mundo, mas era um
sorriso.
— Eu nunca gostei dessa cena. Detetive enfrenta assassino. Assassino saca arma,
aponta arma pra detetive. Assassino conta a detetive toda a triste história, pensando
em atirar nele no fim. Perdendo com isso montes de tempo valioso, mesmo que no fim
o assassino atire no detetive. Só que o assassino nunca faz isso. Sempre acontece
alguma coisa pra impedir. Os deuses também não gostam dessa cena. Sempre
conseguem estragá-la.
— Mas desta vez — ela disse baixinho, levantou-se e adiantou-se para mim, sobre o
tapete — vamos dizer que a gente faça um pouco diferente. Vamos dizer que eu não
lhe diga nada e nada aconteça e eu atire em você?
— Mesmo assim eu não gostaria da cena.
— Você não parece ter medo — ela disse, e lambeu lentamente os lábios,
adiantando-se muito suavemente para mim, sem qualquer som de suas pisadas no
tapete.
— Não estou com medo — menti. — É muito tarde da noite, faz muito silêncio, e a janela está aberta, e a pistola faria
barulho demais. É uma longa viagem até a rua lá em
baixo, e você não é muito boa com a pistola. Errou três vezes contra Lavery.
— Levante-se — ela disse.
Levantei-me.
— Vou chegar perto pra não errar. Empurrou a arma contra meu peito. — Assim. Na verdade não posso errar
agora, posso? Agora fique bem quietinho. Mãos pra cima, à altura dos ombros, e depois não se mova de jeito
nenhum. Se fizer o mínimo movimento, a arma dispara.
Pus as mãos aos lados dos ombros, baixei o olhar para a pistola. Sentia a língua um tanto grossa, mas ainda
podia movê-la.
A mão esquerda dela, que me revistava, não encontrou arma alguma. Ela a
deixou cair e mordeu o lábio, olhando-me fixo. A pistola enterrava-se em meu peito.
— Vai ter de se virar de costas — ela disse, cortês como um alfaiate fazendo uma
prova.
— Tem alguma coisa um pouco desafinada em tudo que você faz — eu disse. —
Decididamente não é boa com armas. Está perto demais de mim, e detesto falar
nisso... mas tem aquele negócio de soltar a trava da arma. Você esqueceu isso
também.
E então ela começou a fazer duas coisas ao mesmo tempo. A dar um longo passo
para trás e a apalpar com o polegar em busca da trava, sem tirar os olhos de meu
rosto. Duas coisinhas simples, que precisavam apenas de um segundo para fazer.
Mas ela não gostou que eu dissesse aquilo. Não gostou de que meu pensamento
superasse o dela. A pequena confusão atrapalhou-a.
Ela soltou um pequeno som abafado e eu deixei cair a mão direita e puxei o rosto
dela com força contra meu peito. Bati com a mão esquerda no punho direito dela, a
parte de trás da palma contra a base do polegar. A pistola saltou-lhe da mão e caiu no
chão. Ela retorcia o rosto contra meu peito, e acho que tentava gritar.
Depois tentou chutar-me e perdeu, o pouco equilíbrio que tinha. Ergueu as mãos
para unhar-me. Peguei o pulso dela e comecei a torcê-lo para as costas. Ela era
muito forte, porém eu era mais. Assim, ela decidiu afrouxar e jogar todo o peso contra
a mão que lhe segurava a cabeça. Não pude agüentá-la
com uma mão só. Ela começou a descer e eu tive de curvar-me com ela.
Nossa luta no chão, ao lado do sofá, produzia vagos sons, e fortes arquejos, e se
alguma tábua do assoalho rangeu eu não ouvi. Pensei ver um anel de cortina correr
rapidamente numa vareta. Um vulto surgiu de repente à minha esquerda, bem atrás e
fora do meu pleno campo de visão. Eu soube que havia um homem ali, e um
homenzarrão.
Foi só o que eu soube. A cena explodiu em fogo e trevas. Não me lembro sequer
da cacetada. Fogo e trevas, e pouco antes das trevas, um nítido clarão de náusea.

32

Eu tresandava a gim. Não ligeiramente, como se tivesse tomado quatro ou cinco


copos numa manhã de inverno para sair da cama, mas como se todo o Oceano
Pacífico fosse puro gim e eu tivesse mergulhado de cabeça da coberta do navio.
Havia gim em meus cabelos e nas sobrancelhas, no queixo e embaixo do queixo. Na
minha camisa. Eu cheirava a sapos mortos.
Estava sem o casaco, e deitado esparramado de costas ao lado do sofá, no tapete
de alguém, e olhava um quadro emoldurado. A moldura era barata, de madeira mole
enver- nizada, e o quadro mostrava parte de um viaduto amarelo claro enormemente
alto, pelo qual uma reluzente locomotiva negra puxava um trem azul da Prússia.
Através de um dos altos arcos do viaduto, via-se uma ampla praia amarela pontilhada
de banhistas estendidos na areia e guarda-sóis listrados. Três garotas passavam no
primeiro plano com sombrinhas de papel, uma num traje cereja, outra de azul claro,
outra de verde. Além da praia, uma baía curva mais azul do que qualquer baía tem o
direito de ser. Banhada de sol, cruzada e pontilhada por velas brancas. Além da curva
para a terra da baía erguiam-se três cumes de morros, em três cores precisamente
opostas, ouro, terracota e lavanda.
Embaixo do quadro, lia-se impresso em grandes maiusculas: “VEJA A RIVIERA
FRANCESA NO TREM AZUL”.
Era uma ótima hora para lembrar daquilo.

Ergui a mão cansadamente e apalpei a nuca. Parecia uma papa. Uma pontada de dor, causada pelo toque, me
percorreu todo, até as solas dos pés. Gemi, e transformei o gemido num rosnado, de orgulho profissional — o que
restava dele. Rolei lenta e cuidadosamente e vi o pé de uma cama embutida abaixada; uma delas, pois a outra ainda
estava metida na parede. O floreado do desenho na madeira pintada era familiar. O quadro estava pendurado em
cima do sofá, e eu nem o vira.
Quando rolei, uma garrafa de gim rolou de meu peito e caiu no chão. Era branca
como água e estava vazia. Não parecia que pudesse haver tanto gim numa só garrafa.
Dobrei os joelhos e fiquei de quatro por algum tempo, farejando como um cachorro
que não pode acabar sua refeição, mas detesta ter de deixá-la. Movi a cabeça em torno
do pescoço. Doeu. Movi-a mais uma vez e continuou doendo, de modo que me pus de
pé e descobri que estava sem sapatos.
Os sapatos achavam-se junto ao rodapé, parecendo tão gastos quanto uns
sapatos podem parecer. Calcei-os, com esforço. Era um velho agora. Descia a
derradeira colina. Ainda me restava um dente. Apalpei-o com a língua. Não parecia ter
gosto de gim.
— Vai tudo voltar a você — eu disse. — Algum dia voltará a você. E você não vai
gostar.
Lá estava o abajur sobre a mesa junto à janela aberta. Lá estava o sofá verde e
fofo. Lá estava a porta com a cortina verde puxada. Nunca sente de costas para uma
cortina verde. Sempre acaba mal. Sempre acontece alguma coisa. A quem eu dissera
isso? Uma garota com uma arma. Uma garota com um rosto nítido e vazio e cabelos
castanhos que antes tinham sido louros.
Olhei em volta, procurando-a. Ela ainda estava ali. Jazia sobre a cama gêmea
abaixada.
Usava meias marrom e nada mais. Tinha os cabelos desarrumados. Via-se
manchas roxas em sua garganta. A boca estava aberta e uma língua inchada enchia-a
até transbordar. Os olhos saltavam das órbitas e as escleróticas não eram brancas.
Quatro arranhões de fúria riscavam de vermelho carmim, de um lado a outro, a
brancura da pele do ventre nu. Arranhões de fúria mortal, feitos por quatro unhas
iradas.

No sofá havia também roupas emboladas, na maioria dela. Meu casaco também estava ali. Peguei-o do meio
do bolo e vesti-o. Alguma coisa estalou sob a minha mão no meio das roupas. Puxei um envelope comprido com o
dinheiro ainda dentro. Coloquei-o no bolso. Marlowe, quinhentos dólares. Esperava que estivessem todos ali. Não
parecia haver muita coisa mais a esperar.
Caminhei cuidadosamente, nas pontas dos pés, como se andasse sobre gelo muito fino. Curvei-me para
esfregar o joelho e imaginei o que doía mais, o joelho ou a cabeça quando me curvava para esfregar o joelho.
Passos pesados vinham pelo corredor, e ouvi um forte murmúrio de vozes. Os passos pararam. Um duro
punho bateu na porta.
Fiquei ali parado, olhando a porta de mau jeito, os lábios comprimidos contra os
dentes. Esperava que alguém abrisse e entrasse. Experimentaram a maçaneta, mas
ninguém entrou. As batidas recomeçaram, pararam, as vozes tornaram a murmurar.
Os passos afastaram-se. Imaginei quanto tempo levaria para chamarem o
administrador com a chave-mestra. Não muito.
Nem perto do suficiente para Marlowe ir da Riviera francesa para casa.
Fui até a cortina verde, puxei-a para um lado e vi um pequeno corredor escuro que
levava ao banheiro. Entrei lá e acendi a luz. Dois tapetes de banheiro no chão, um
outro dobrado sobre a borda da banheira, uma janela de vidro, de guilhotina, no canto
da banheira. Fechei a porta, subi na borda da banheira e empurrei a janela para cima.
Estava no sexto andar. Não havia tela. Pus a cabeça para fora e olhei a escuridão e
uma estreita nesga de rua arborizada. Olhei para os lados e vi que a janela do
banheiro do apartamento vizinho não ficava a mais de três palmos de distância. Um
cabrito montes bem nutrido podia conseguir sem o mínimo problema.
A questão era saber se um moído detetive particular podia conseguir, e, se
conseguisse, o que ganharia com isso.
Às minhas costas uma voz um tanto distante e abafada parecia cantar a litania do
policial:
— Abra, senão arrombamos.

Dei um sorrisozinho para a voz. Não meteríam o pé na porta, porque chutar uma porta dói no pé. Os policiais
amam seus pés. São quase a única coisa que adoram.
Peguei uma toalha no cabide, puxei as duas metades da janela para baixo e saí para o batente. Balancei a
metade do corpo até tocar o batente vizinho, segurando-me à moldura da janela onde estava. Mal dava para
empurrar a janela vizinha para baixo, se não estivesse trancada. Estava. Pus o pé lá e chutei o vidro no lugar do
ferrolho. O barulho deve ter sido ouvido até em Reno. Enrolei a toalha na mão esquerda e estendi o braço para puxar
o ferrolho. Lá embaixo, na rua, um carro passou, mas ninguém gritou para mim.
Empurrei a janela quebrada para baixo e passei para o outro batente. A toalha caiu de minha mão e desceu
flutuando na escuridão até uma faixa de grama bem abaixo, entre as duas alas do prédio.
Entrei pela janela do banheiro vizinho.

33
Desci na escuridão e tateei dentro dela até a porta, abri-a e fiquei à escuta. O luar
filtrava-se por entre as janelas do lado norte e mostrava um quarto com camas
separadas, feitas e vazias. Não havia camas embutidas em paredes. Era um
apartamento maior. Passei por elas e alcancei outra porta, que dava para a sala de
estar. Ambos os aposentos estavam fechados e cheiravam a mofos. Saí tateando até
alcançar um abajur e liguei-o. Corrí o dedo pela borda de uma mesa de madeira. Havia
uma leve camada de poeira, como a que se acumula mesmo na sala mais limpa
quando fica fechada.
A sala tinha uma mesa de jantar, uma cadeira de braços para ouvir rádio, uma
estante de livros feita como um cocho de pedreiro, uma grande biblioteca cheia de
romances ainda com as sobrecapas, uma cômoda escura de pernas altas, com um
sifão e uma garrafa lavrada de bebida e quatro copos listrados emborcados numa
bandeja indiana. Além disso, havia um par de retratos numa dupla moldura de prata,
um homem e uma mulher de meia idade mas de aparência jovem, com sadios rostos
redondos e olhos animados. Olhavam-me como se não se importassem por eu estar ali.

Farejei a bebida, que era uísque, e usei um pouco dela. Isso fez minha cabeça sentir-se pior, mas o resto do
corpo sentiu-se melhor. Acendi a luz no quarto e remexi nos armários. Um deles continha roupas de homem, feitas
sob medida, muitas. O rótulo do alfaiate, do lado de dentro de um casaco, dizia que o nome do dono era H. G.
Talbot. Fui até a cômoda, remexi e encontrei uma camisa azul claro que parecia um pouco pequena para mim. Levei-
a para o banheiro, despi a minha, lavei o rosto e o peito, passei uma toalha molhada nos cabelos e vesti a camisa
azul claro. Usei um bocado do tônico capilar meio forte demais do Sr. Talbot e a escova e o pente dele para arrumar
os cabelos. A essa altura só cheirava remotamente a gim, se é que cheirava.
O botão de cima da camisa não entrava na casa, de modo que remexi novamente
na cômoda, achei uma gravata de crepe azul e a coloquei no pescoço. Vesti meu
casaco cinza e olhei-me no espelho. Parecia ligeiramente arrumado demais para
aquela hora da noite, mesmo para um homem tão cuidadoso como as roupas do Sr.
Talbot indicavam que ele era. Arrumado demais e sóbrio demais.
Assanhei um pouco o cabelo, afrouxei a gravata e voltei à garrafa de uísque e fiz o
que pude quanto à sobriedade. Acendi um dos cigarros do Sr. Talbot e esperei que ele
e a Sra. Talbot, fossem lá quem fossem, estivessem se divertindo muito mais do que
eu. Esperei viver o suficiente para vir visitá-los.
Fui até a porta da sala de estar, a que dava para o corredor, abri-a e curvei-me
pela abertura, fumando. Não achava que aquilo fosse funcionar. Mas não achava que
ficar ali, esperando que seguissem minha pista janela afora, funcionasse melhor.
Um homem tossiu um pouco abaixo no corredor e pus a cabeça m us para fora e vi
que ele me olhava. Aproximou-se em passo rápido, um homenzinho ativo num uniforme
de polícia bem engomado. Tinha cabelos avermelhados e olhos vermelho-dourados.
Bocejei e perguntei, com voz mole:
— Qual é o problema, seu guarda?
Ele me olhou pensativo. — Um probleminha aí vizinho ao senhor. Ouviu alguma
coisa?
— Pensei ouvir alguém bater. Acabo de voltar ainda há pouco.

— Um pouco tarde — ele disse.


— Questão de opinião — eu disse. — Problema no vizinho, hem?
— Uma dona — ele disse. — Conhece ela?
— Acho que já vi.
— Ê — ele disse. — Devia ver ela agora... — Pôs as mãos nà garganta, esbugalhou os olhos e gorgolejou
desagradavelmente. — Assim — disse. — Não ouviu nada, hem?
— Nada que me chamasse a atenção... a não ser as
batidas.
— Ê. Como se chama?
— Talbot.
— Só um minuto, Sr. Talbot. Espere aí só um minuto. Desceu o corredor e curvou-se para dentro de uma porta
aberta, da qual saía luz.
— Ôi, tenente — disse. — O vizinho está aí.
Um homem alto saiu e ficou olhando direto para mim. Um homem alto de
cabelos arenosos e olhos azuis, muito azuis. Degarmo. Isso tornava tudo perfeito.
— Esse aí é o cara que mora no apartamento vizinho — o tira baixo e alinhado
disse solicitamente. — Se chama Talbot.
Degarmo olhava direto para mim, mas nada em seus ácidos olhos azuis
mostrava que já me vira antes. Adiantou-se lentamente pelo corredor e pôs uma
dura mão em meu peito, empurrando-me de volta para a sala. Depois de fazer-me
retroceder uns doze palmos da porta, disse por cima do ombro:
— Entre e feche a porta, Shorty.
O guarda pequeno entrou e fechou a porta.
— Um bom truque — disse Degarmo, preguiçosamente.
• Aponte a arma pra ele, Shorty.
Shorty abriu o coldre do cinto negro e sacou o seu trinta e oito num instante. Lambeu os lábios. ,
— Oh, rapaz — disse baixinho, assobiando um pouxo.
• Oh, rapaz. Cómo sabe, tenente?
— Sabe o quê? — perguntou Degarmo, mantendo os olhos fixos nos meus. —
Que pensava fazer, companheiro... descer pra pegar um jornal... descobrir se ela
estava morta?
— Oh, rapaz — disse Shorty. — Um assassino sexual. Ele tirou as roupas da garota e a esganou com as mãos,
tenente. Como o senhor sabe?
Degarmo nào respondeu. Apenas ficou ali, balançando um pouco sobre os calcanhares, o rosto vazio e duro
como granito.
— Ê, é ele o assassino, claro — disse Shorty de repente. — Sinta o cheiro do ar aqui, tenente. O lugar nào é
arejado há dias. E veja a poeira naquelas estantes de livros. E o relógio no consolo da lareira está parado, tenente.
Ele entrou por... me deixe ver um minuto, tenente, posso?
Saiu correndo da sala para o quarto. Ouvi-o remexendo por lá. Degarmo permanecia impassível.
Shorty voltou. — Entrou pela janela do banheiro. Tem vidro quebrado na banheira. E alguma coisa lá dentro
cheira a gim que é um horror. Lembra como aquele apartamento cheirava a gim quando a gente entrou? Aqui está a
camisa, tenente. Cheira como se fosse lavada em gim.
Estendeu a camisa, que logo perfumou o ar. Degarmo olhou-a vagamente, depois adiantou-se e abriu meu
casaco e olhou a camisa que eu usava.
— Eu sei o que ele fez — disse Shorty. — Roubou uma das camisas do cara que mora aqui. Vê o que ele fez,
tenente?
— Ê — Degarmo estendeu as mãos para meu peito e deixou-as cair lentamente. Os dois falavam como se eu
fosse um pedaço de pau.
— Reviste ele, Shorty.
Shorty apressou-se a rodear-me, apalpando aqui e ali em busca de uma arma.
— Nada em cima — disse.
— Wmos tirar ele pelo fundo — disse Degarmo. — Ê peixe nosso, se a gente conseguir antes que Webber chegue
aqui. Aquele idiota do Reed não encontraria uma traça numa caixa de sapatos.
— O senhor não foi nem destacado pro caso — disse Shorty, em dúvida. — Não ouvi dizer que o senhor estava
suspenso ou alguma coisa assim?
— Que posso perder — perguntou Degarmo — se estou suspenso?
— Eu posso perder este uniforme aqui — disse Shorty.
Degarmo olhou-o enfastiadamente. O guarda pequeno corou e seus olhos vermelho-dourados mostraram-se
ansiosos.
— Está bem, Shorty. Vá dizer a Reed.
O guardinha lambeu os lábios. — É só dizer, tenente, e estou com o senhor. Não tenho de saber que foi
suspenso.
— Vamos levar ele lá pra baixo nós mesmos, só nós dois — disse Degarmo.
— Ê, claro.
Degarmo enfiou o dedo em meu queixo.
— Assassino sexual — disse baixinho. — Ora, macacos me mordam.
Deu-me um fino sorriso, movendo apenas os cantos extremos da ampla boca brutal.

34
Saímos do apartamento, percorremos o corredor na direção contrária à do
apartamento 618. Da porta aberta, saía luz. Dois homens à paisana achavam-se
parados agora do lado de fora dela, fumando cigarros que protegiam com as mãos
em concha, como se soprasse algum vento. Ouvia-se sons de vozes que discutiam
lá dentro.
Dobramos a esquina do corredor e chegamos 'ao elevador. Degarmo abriu a porta
de incêndio depois do poço do elevador e descemos por degraus de concreto que
faziam ecoar nossos passos, andar por andar. No andar do saguão, Degarmo parou,
pegou na maçaneta da porta e ficou à escuta. Olhou para trás, por cima do ombro.
— Tem um carro? — perguntou-me.
— Na garagem do porão.
— É uma idéia.
Descemos os degraus e entramos no escuro porão. O negro desengonçado saiu
do pequeno escritório e eu lhe dei o talão de meu carro. Ele olhou furtivamente o
uniforme policial de Shorty. Não disse nada. Indicou o Chrysler.
Degarmo entrou atrás do volante. Eu fui para o banco junto do dele e Shorty para
o de trás. Subimos a rampa e saímos para o úmido e frio ar da noite. Um carro grande,
com dois faroletes vermelhos, avançava para nós a umas duas luadras de distância.
Degarmo deu uma cusparada pela janela do carro e virou o Chrysler em outra direção.
— Deve ser Weber — disse. — Atrasado para o funeral outra vez. A gente sem dúvida vai passar a perna nele
nessa, Shorty.
— Não estou gostando muito disso, tenente. Não estou mesmo, palavra de honra.
— Queixo pra cima, garoto. Pode voltar à homicídios.
— Prefiro usar uniforme e ter o que comer — disse Shorty. A coragem abandonava-o rapidamente.
Degarmo dirigiu o carro em alta velocidade por dez quadras, e depois diminuiu um pouco a marcha. Shorty
disse, preocupado:
— Acho que o senhor sabe o que está fazendo, tenente, mas esse não é o
caminho pra prefeitura.
— Correto — disse Degarmo. — Nunca foi, não é?
Diminuiu a marcha até um lento arrastar-se e depois dobrou para uma rua
residencial de casinhas certinhas aca- chapadas atrás de gramadozinhos certinhos.
Freou o carro suavemente, encostou no meio-fio e parou mais ou menos no meio
da quadra. Passou um braço por sobre o encosto do banco e virou a cabeça para
olhar para Shorty.
— Você acha que esse cara matou ela, Shorty?
— Estou escutando — disse Shorty, numa voz tensa.
— Tem uma lanterna?
— Não.
Eu disse: — Tem uma na bolsa do carro do ladc esquerdo.
Shorty remexeu lá atrás, ouviu-se um clique metálico e surgiu o raio branco da
lanterna. Degarmo disse:
— Dê uma olhada na nuca desse cara.
O raio moveu-se e parou. Ouvi a respiração do homenzi- nho atrás de mim e
senti-a em minha nuca. Algo tocou e apalpou o inchaço. Eu gemi. A luz apagou-se e
a escuridão da rua tornou a invadir o carro.
Shorty disse: — Acho que talvez ele tenha recebido uma cacetada, tenente. Não
entendo.
— A garota também — disse Degarmo. — Não aparecia muito, mas estava lá. Ela
recebeu uma cacetada, para poderem tirar as roupas e arranharem ela antes de
matarem. Desse jeito os arranhões sangrariam. Depois, foi estrangulada. E
nada disso fez muito barulho. Por que faria? E não tem telefone no apartamento. Quem comunicou o caso,
Shorty?
— Como diabos eu vou saber? Um cara chamou e disse que uma dona tinha sido morta nos Apartamentos
Granada, na Oito. Reed ainda procurava um operador de câmara quando o senhor chegou. O cara da recepção
disse que era uma voz grossa, provavelmente disfarçada. Não deu nenhum nome.
— Tudo bem então — disse Degarmo. — Se você tivesse matado a garota, como ia sair de lá?
— Andando — disse Shorty. — Por que não? Ei — ladrou de repente para mim —, por que não fez isso?
Não respondi. Degarmo disse, sem tom:
— Você não ia sair por uma janela de banheiro no sexto andar, e depois irromper
em outra janela de banheiro, num apartamento estranho onde podia ter gente
dormindo, ia? Não ia fingir que era o cara que morava lá, nem perder um bocado de
tempo chamando a polícia, ia? Diabos, aquela garota podia ter ficado ali uma
semana. Você não ia jogar fora a oportunidade de uma dianteira dessas, ia, Shorty?
— Acho que não — disse Shorty, cautelosamente. — Não acho que telefonasse de
jeito nenhum. Mas o senhor sabe que esses tarados sexuais fazem coisas
esquisitas, tenente. Não são normais como a gente. E esse cara podia ter ajuda e o
outro cara pode ter batido nele pra botar ele no fogo.
— Não me diga que pensou nessa última parte sozinho — rosnou Degarmo. —
Então estamos sentados aqui, e o cara que sabe todas as respostas está aqui
conosco, e não diz uma palavra. — Volveu a cabeçorra para mim. — Que estava
fazendo lá?
— Não me lembro — eu disse. — A cacetada na cabeça parece que apagou tudo.
— Vamos ajudar você a lembrar — disse Degarmo. — Vamos levar você pros
morros alguns quilômetros, onde você vai ter tranqüilidade, olhar as estrelas e se
lembrar. Vai se lembrar direitinho.
Shorty disse: — Isso não é maneira de falar, tenente. Por que a gente não volta
simplesmente pra prefeitura e faz isso como manda o regulamento?
— Pros diabos com o regulamento — disse Degarmo. — Eu gosto desse cara.
Quero ter uma conversinha longa e

mansa com ele. Ele precisa de um pouco de estímulo, Shorty. Está só inibido.
— Não quero tomar parte nisso — disse Shorty.
— Que quer fazer, Shorty?
— Quero voltar pra prefeitura.
— Ninguém está segurando você, garoto. Quer andar? Shorty ficou calado por um momento.
— Certo — disse afinal, baixinho. — Quero andar. — Abriu a porta do carro e saltou para a calçada. — E acho
que sabe que vou ter de comunicar tudo isso, tenente.
— Certo — disse Degarmo. — Diga a Webber que perguntei por ele. Da próxima
vez em que ele comprar um hamburger, diga que vire um prato pra mim.
— Isso não faz muito sentido pra mim — disse o pequeno guarda. Bateu a porta
do carro. Degarmo soltou o freio de mão, enfiou o pé no acelerador e chegou aos
sessenta na primeira quadra e meia. Na terceira, ia a oitenta. Diminuiu um pouco na
avenida, dobrou para leste e começou a rodar em velocidade legal. Uns poucos
carros tardios passavam por nós em ambos os sentidos, mas a maior parte do
mundo jazia no frio silêncio da madrugada.
Após algum tempo, deixamos os limites da cidade e Degarmo falou.
— Vamos ouvir a sua história — disse em voz baixa. — Talvez a gente possa dar
um jeito nisso.
O carro atingiu o alto de uma longa subida e mergulhou até o ponto onde a
avenida serpeava através dos terrenos de estacionamento do hospital dos
veteranos. Auréolas cercavam os altos postes, criadas pela bruma da praia que
avançara durante a noite. Comecei a falar.
— Kingsley foi ao meu apartamento esta noite e disse que tinha recebido notícias
da mulher pelo telefone. Ela queria algum dinheiro ímediatamente. A intenção dele
era de que eu levasse o dinheiro e tirasse ela de qualquer encrenca em que tivesse
se metido. A minha era um pouco diferente. Disseram a ela como me reconhecer, e
eu devia estar no Bar do Pavão, na Oito com Arguello, um quarto de hora depois de
cada hora. Qualquer hora.
Degarmo disse devagar: — Ela precisava sumir, e isso quer dizer que tinha
alguma coisa da qual queria fugir, al-
guma coisa como um assassinato. — Ergueu as mãos levemente e tornou a deixá-las cair sobre o volante.
— Fui até lá, horas depois do telefonema dela. Me disseram que tinha pintado os cabelos de castanho. Ela
passou por mim, indo pro balcão do bar, mas eu não conhecia ela. Nunca tinha visto ela em carne e osso. Só
tinha visto o que parecia um instantâneo muito bom, mas podia ser bom e mesmo assim não parecer muito com
ela. Ela mandou um menino mexicano me chamar lá fora. Queria o dinheiro e nada de conversa. Eu queria saber
da história. Finalmente, ela viu que ia ter de falar um pouco e me disse que estava no Granada. Me fez esperar
dez minutos antes de seguir atrás dela.
Degarmo disse: — Tempo pra preparar uma arapuca.
— Tinha uma arapuca, sim, mas não tenho certeza se ela fazia parte. Não queria
que eu fosse lá, não queria conversa. E no entanto devia saber que eu ia insistir
numa explicação antes de entregar o dinheiro, e assim a relutância dela podia ser
apenas representação, pra me fazer achar que controlava a situação. Ela sabia
representar muito bem. Descobri isso. De qualquer forma, fui e a gente conversou.
Nada do que ela disse fazia muito sentido, até que falamos do assassinato de
Lavery. Então ela começou a falar com sentido demais e rápido demais. Eu disse
que ia entregar ela à polícia.
Westwood Village, completamente às escuras a não ser por um posto de
gasolina aberto a noite toda, e algumas janelas em prédios de apartamentos,
passou deslizando por nós ao norte.
— Aí ela sacou uma arma — eu disse. — Acho que pretendia usar, mas se
aproximou demais de mim, e eu a agarrei pelo pescoço. Enquanto a gente lutava,
alguém saiu de trás de uma cortina verde e me deu uma cacetada. Quando voltei a
mim, o assassinato estava praticado.
Degarmo disse devagar: — Teve alguma visão de quem lhe deu a cacetada?
— Não. Senti, ou vi mais ou menos, que era um homem, e grandalhão. E tinha
isso em cima do sofá, misturado com um monte de roupas. — Tirei a écharpe verde
e amarela de Kingsley do bolso e dobrei-a sobre o joelho. — Vi Kingsley usando isso
antes, à noite — disse.
A DAMA DO LAGO *

A DAMA DO LAGO
Degarmo baixou o olhar para a echarpe. Ergueu-a sob a luz do painel.
— Não é uma coisa que a gente esquecesse depressa — disse. — Se destaca logo e dá na vista. Kingsley, hem?
Ora, macacos me mordam. Que aconteceu depois?
— Batidas na porta. Eu ainda com a cabeça turva, não muito lúcido e um bocado em pânico. Tinham me
inundado de gim, tirado meu casaco e meus sapatos, e talvez eu tivesse mesmo a aparência de um cara que
arranca as roupas de uma mulher e estrangula ela. Por isso saí pela janela do banheiro, me lavei o melhor que pude,
e o resto você sabe.
— Por que não ficou quietinho no lugar onde entrou?
— Que adiantava? Acho que mesmo um tira de Bay City podia descobrir como eu
saí em pouco tempo. Se eu tinha alguma possibilidade, era de dar o fora antes de ser
descoberto. Se não tivesse lá ninguém que me conhecesse, eu tinha uma boa
chance de sair do prédio.
— Não creio — disse Degarmo. — Mas percebo onde não perdeu muito tentando.
Que idéia faz do motivo neste caso?
— Por que Kingsley a matou... se é que matou? Isso não é difícil de adivinhar. Ela
o traía, criava um monte de problemas pra ele, pondo em risco o emprego dele, e
agora matou um homem. E também tinha dinheiro, e Kingsley queria se casar com
outra mulher. Talvez ele tivesse medo de que, com dinheiro pra gastar, ela saísse da
enrascada e gozasse da cara dele. Se não saísse, e fosse condenada, o dinheiro dela
ficaria fora do alcance dele do mesmo jeito. Teria de se divorciar para se livrar dela.
Tem bastante motivo aí pra assassinato. E ele também viu uma oportunidade de
fazer de mim o bode expiatório. Não ia pegar, mas ia causar confusão e atrasos. Se
os assassinos não pensassem que podiam sair impunes de seus crimes, muitos
poucos seriam cometidos.
Degarmo disse: — Mesmo assim, podia ser outra pessoa, alguém que não
aparece de modo algum. Mesmo que ele tenha ido lá falar com ela. ainda pode ser
outra pessoa. E outra pessoa também pode ter matado Lavery.
— Se você prefere assim.
Ele volveu a cabeça. — Não prefiro de modo nenhum. Mas se resolver o caso, me safarei com uma repreensão do conselho da policia. Se
não resolver, vou ter de pegar carona
pra fora da cidade. Você disse que eu era. burro. Tudo bem, sou burro. Onde mora Kingsley? Uma coisa que sei
fazer é fazer as pessoas falarem.
— Carson Drive 965, Beverly Hills. Cerca de cinco quadras adiante, você vira para o norte, em direção ao pé
das montanhas. Fica do lado esquerdo, logo abaixo do Sunset. Nunca estive lá, mas sei em que sentido correm os
números das quadras.
Ele me entregou a écharpe verde e amarela.
— Enfie isso de novo no bolso, até que a gente precise pra empurrar nele.

35
Era uma casa branca de dois andares, com telhado escuro. Um luminoso luar
batia na parede como uma camada nova de tinta. As metades de baixo das janelas
tinham grades de ferro trabalhadas. Um gramado aparado estendia-se até a porta da
frente, instalada em diagonal no ângulo de uma parede que se projetava para fora.
Todas as janelas visíveis estavam escuras.
Degarmo saiu do carro, subiu o acesso de automóveis e olhou a entrada da
garagem lá atrás. Desceu a estradinha e desapareceu no canto da casa. Ouvi o som
de uma porta de garagem subindo, depois o baque quando tornou a ser abaixada.
Ele reapareceu no canto da casa e atravessou o gramado até a porta da frente. Pôs
o dedo na campainha, tirou um cigarro do bolso com uma mão e levou-o aos lábios.
Deu as costas à porta para acendê-lo, e o clarão do fósforo revelou profundas
rugas em seu rosto. Após algum tempo, acendeu-se uma luz na bandeira acima da porta. A
portinhola abriu-se. Vi Degarmo mostrar seu emblema. Lentamente, como contra a
vontade, a porta abriu-se.
Ele desapareceu por quatro ou cinco minutos. Atrás de várias janelas
acenderam-se luzes. Depois ele saiu, e enquanto caminhava de volta ao carro a luz
se apagou na bandeira e toda a casa ficou de novo tão às escuras quanto a
tínhamos achado.
Ele ficou parado junto ao carro, fumando e olhando a curva da rua abaixo.
pra fora da cidade. Você disse que eu era. burro. Tudo bem, sou burro. Onde
mora Kingsley? Uma coisa que sei fazer é fazer as pessoas falarem.
— Carson Drive 965, Beverly Hills. Cerca de cinco quadras adiante, você vira
para o norte, em direção ao pé das montanhas. Fica do lado esquerdo, logo
abaixo do Sunset. Nunca estive lá, mas sei em que sentido correm os números
das quadras.
Ele me entregou a écharpe verde e amarela.
— Enfie isso de novo no bolso, até que a gente precise pra empurrar nele.

35
Era uma casa branca de dois andares, com telhado escuro. Um luminoso luar batia na parede como uma camada nova de tinta. As
metades de baixo das janelas tinham grades de ferro trabalhadas. Um gramado aparado estendia-se até a porta da frente, instalada em
diagonal no ângulo de uma parede que se projetava para fora. Todas as janelas visíveis estavam escuras.
Degarmo saiu do carro, subiu o acesso de automóveis e olhou a entrada da garagem lá atrás. Desceu a estradinha e desapareceu
no canto da casa. Ouvi o som de uma porta de garagem subindo, depois o baque quando tornou a ser abaixada. Ele reapareceu no canto
da casa e atravessou o gramado até a porta da frente. Pôs o dedo na campainha, tirou um cigarro do bolso com uma mão e levou-o aos
lábios.
Deu as costas à porta para acendê-lo, e o clarão do fósforo revelou profundas rugas em seu rosto. Após algum tempo, acendeu-se
uma luz na bandeira acima da porta. A portinhola abriu-se. Vi Degarmo mostrar seu emblema. Lentamente, como contra a vontade, a
porta abriu-se.
Ele desapareceu por quatro ou cinco minutos. Atrás de várias janelas acenderam-se luzes. Depois ele saiu, e enquanto caminhava
de volta ao carro a luz se apagou na bandeira e toda a casa ficou de novo tão às escuras quanto a tínhamos achado.
Ele ficou parado junto ao carro, fumando e olhando a curva da rua abaixo.

A DAMA DO LAGO 183

— Um carro pequeno na garagem — disse. — A cozinheira diz que é dela. Nenhum sinal de Kingsley. Dizem que
não o veem desde hoje de manhã. Olhei todos os cômodos. Acho que falaram a verdade. Webber e um cara das
impressões digitais estiveram lá esta tarde, e ainda tem pó branco por todo o quarto de dormir. Webber deve ter
tirado impressões pra comparar com as que a gente encontrou na casa de Lavery. Não me disse o que conseguiu.
Por onde andará ele... Kingsley?
— Em qualquer lugar — eu disse. — Na estrada, num hotel, num banho turco tirando a tensão dos nervos. Mas
vamos ter de tentar a namorada dele primeiro. Ela se chama Fromsett e mora na Bryson Tower, em Sunset Place.
Isso é fora do centro, perto de Bullock’s Wilshire.
— Que é que ela faz? — perguntou Degarmo, entrando atrás do volante.
— Segura as coisas no escritório dele, e a mão dele nas horas de folga. Mas não é
nenhuma belezinha de gabinete. Tem cabeça e classe.
— Esta situação vai exigir tudo que ela possa dar — disse Degarmo. Seguiu para
Wilshire, e tornamos a dobrar para leste.
Vinte e cinco minutos foi o que precisamos para chegar a Bryson Tower, um
palácio de estuque branco com lanternas lavradas no pátio da frente, e altas
tamareiras. A entrada era em forma de L, subindo degraus de mármores, passando
por um arco mourisco e chegando a um saguão grande demais, com um tapete azul
demais. Vasos de óleo estilo Ali Babá espalhavam-se em volta, grandes o bastante
para conterem tigres. Havia um balcão e um porteiro da noite com um desses bigodes
que se engancham nas unhas.
Degarmo passou direto pela portaria e foi até o elevador aberto, junto ao qual se
sentava um velho num tamborete, à espera de um passageiro. O porteiro correu atrás
de Degarmo, como um terrier.
— Um momento, por favor. A quem deseja ver?
Degarmo girou nos calcanhares e olhou-me surpreso.
— Ele disse “a quem”?
— Disse, mas não bata nele — eu disse. — Existe tal expressão.
Degarmo lambeu os lábios. — Eu sabia que existia — disse. — Muitas vezes me perguntei onde guardavam ela.
Escute aqui, companheiro — disse ao porteiro queremos subir ao 716. Alguma objeção?
— Ê claro que tenho — disse friamente o porteiro. — Nós não anunciamos visitantes às — ergueu o braço e virou-
o elegantemente para olhar o relógio estreito e oblongo voltado para dentro do pulso — às quatro e vinte e três da
manhã.
— Era o que eu pensava — disse Degarmo. — Por isso não quis chatear você. Pegou o sentido da coisa? —
Retirou o emblema do bolso e segurou-o de modo que a luz brilhou no esmalte dourado e azul. — Eu sou um tenente
da polícia.
O porteiro deu de ombros.
— Tudo bem. Espero que não vá ter nenhuma encrenca. Ê melhor anunciar os senhores então. Seus nomes.
— Tenente Degarmo e o Sr. Marlowe.
— Apartamento 716. Ê o da Srta. Fromsett. Um momento.
Foi para trás de um anteparo de vidro e ouvimo-lo falar ao telefone após um longa
pausa. Voltou e balançou a cabeça.
— A Srta. Fromsett está. Vai receber os senhores.
— Isso sem dúvida é um fardo tirado de minha mente — disse Degarmo. — E não se
dê o trabalho de chamar o detetive da casa e mandar ele lá em cima pra atrapalhar.
Eu sou alérgico a detetives da casa.
O porteiro deu um sorrisozinho frio e discreto, e nós entramos no elevador.
O corredor do sétimo andar era frio e silencioso. Parecia ter um quilômetro de
comprimento. Chegamos finalmente à porta com o número 716 em caracteres
dourados, dentro de um círculo de folhas douradas. Via-se um botão de marfim ao
lado da porta. Degarmo apertou-o, sininhos tocaram lá dentro e a porta abriu-se.
A Srta. Fromsett usava um robe azul acolchoado por cima do pijama. Nos pés,
sandalinhas de pompom e saltos altos. O cabelo escuro fora afofado de um modo
atraente e o creme retirado do rosto, para aplicação de maquiagem apenas suficiente.
Entramos, passando por ela, numa sala mais ou menos estreita, com vários e belos espelhos ovais e móveis de
época cinzentos, guarnecidos de damasco azul. Não pareciam mó
veis de prédio de apartamento. Ela se sentou numa fina cadeira dupla, reclinou-se e esperou calmamente que
alguém dissesse alguma coisa.
Eu disse: — Esse aí é o Tenente Degarmo, da polícia de Bay City. Estamos procurando Kingsley. Ele não está
em casa. Achamos que talvez a senhorita pudesse nos dar uma idéia de onde podemos encontrá-lo.
Ela falou comigo sem me olhar. — Ê urgente?
— Ê. Aconteceu uma coisa.
— Que foi que aconteceu?
Degarmo disse sem rodeios: — A gente só quer saber onde Kingsley anda, irmã. Não temos tempo pra armar
uma cena.
A garota olhou-o com uma completa ausência de expressão. Tornou a olhar para mim e disse:
— Acho melhor o senhor me dizer, Sr. Marlowe.
— Fui lá embaixo com o dinheiro — eu disse. — Me encontrei com ela, como
planejado. Fui ao apartamento dela conversar. Lá, um homem que estava escondido
atrás da cortina me deu uma cacetada na cabeça. Não vi o homem. Quando voltei a
mim, ela tinha sido assassinada.
— Assassinada?
— Eu disse: — Assassinada.
Ela fechou os belos olhos e franziu os cantos da adorável boquinha. Depois
levantou-se com um rápido dar de ombros e dirigiu-se a uma mesinha de tampo de
mármore, de pernas finas. Tirou um cigarro de uma pequena caixa de prata lavrada e
acendeu-o, os olhos vazios baixos para a mesa. Balançou o fósforo em sua mão cada
vez mais lentamente, até que parou, a chama ainda ardendo, e jogou-o no cinzeiro.
Vóltou- se e recostou-se à mesa.
— Suponho que eu devia berrar, ou algo assim — disse. — Parece que não sinto
nada a esse respeito.
Degarmo disse: — A gente não está muito interessado em seus sentimentos neste
exato momento. O que queremos saber é onde está Kingsley. Você pode dizer ou não
dizer. Seja como for, deixe as atitudes pra lá. Simplesmente se decida.
Ela me disse, em voz baixa: — O tenente aí é um policial de Bay City?
Assenti. Ela se voltou lentamente para ele, com uma adorável e desdenhosa
dignidade.

— Nesse caso — disse —, ele não tem mais direito em meu apartamento do que qualquer outro vagabundo
barulhento que tente pressionar os outros.
Degarmo lançou-lhe um olhar carrancudo. Deu um risinho, atravessou a sala e sentou-se numa poltrona,
estirando as pernas. Acenou a mão para mim.
— Tudo bem, aja você com ela. Eu posso conseguir toda a cooperação que preciso com os rapazes de Los
Angeles, mas até explicar tudo a eles, será da próxima terça-feira a uma semana.
Eu disse: — Srta. Fromsett, se sabe onde ele está, para onde ia, por favor nos diga. Entende que ele precisa
ser encontrado?
Ela perguntou calmamente: — Por quê?
Degarmo jogou a cabeça para trás e riu.
— Essa boneca é boa — disse. — Talvez ache que a gente devia guardar a morte da
mulher dele em segredo pra ele.
— Ela é melhor do que você pensa — eu disse. O rosto dele ficou sério e ele
mordeu o polegar. Olhou-a de cima a baixo insolentemente.
Ela perguntou: — É só por que ele tem de ser informado? Eu tirei a écharpe verde e
amarela do bolso e desdobrei-a na frente dela.
— Isto foi encontrado no apartamento onde ela foi assassinada. Creio que já a viu.
Ela olhou a écharpe e depois para mim, e em nenhum dos olhares havia sentido
algum. Ela disse:
— O senhor pede um bocado de confiança, Sr. Marlowe. Considerando-se que não
foi um detetive tão brilhante, afinal.
— Eu mereço — eu disse — e espero receber. E se fui brilhante ou não, é algo de
que a senhorita nada sabe.
— Essa é ótima — interveio Degarmo. — Vocês dois formam uma bela equipe. Só
precisam agora é de acrobatas pra acompanhar vocês. Mas neste exato momento...
Ela cortou a voz dele como se ele não existisse.
— Como ela foi assassinada?
— Foi estrangulada, despida e lanhada.
— Derry não faria uma coisa dessas — ela disse em voz baixa.
Degarmo emitiu um som com os lábios.

— Ninguém jamais sabe o que outra pessoa pode fazer, irmã. Um tira sabe disso.
Ela continuou sem olhar para ele. No mesmo tom de voz inalterado, perguntou:
— O senhor quer saber aonde ele foi depois que deixamos seu apartamento, e se ele me trouxe pra casa...
coisas assim?
— Ê.
— Porque, se me trouxe, não teria tido tempo pra descer até a praia e matar ela? Ê
isso?
Eu disse: — É uma boa parte.
— Ele não me trouxe pra casa — ela disse, lentamente. — Tomei um táxi no
Boulevard Hollywood, não muito mais de cinco minutos depois que deixamos seu
apartamento. Não tornei a vê-lo. Suponho que foi pra casa.
Degarmo disse: — Geralmente, a garota tenta dar ao namorado um álibi melhor que
isso aí. Mas tem gente de todo tipo, não é?
A Srta. Fromsett me disse: — Ele queria me trazer pra casa, mas era muito fora do
caminho dele, e nós dois estávamos cansados. O motivo pelo qual eu lhe contei isso é
que sei que não tem a mínima importância. Se eu achasse que tinha, não contaria ao
senhor.
— Então ele teve tempo — eu disse.
Ela balançou a cabeça. — Não sei. Não sei quanto tempo seria preciso. Não sei
como ele podería saber aonde ir. Não soube por mim, nem por ela através de mim. —
Seus olhos escuros estavam nos meus, vasculhando, sondando. — É esse o tipo de
confidência que está pedindo?
Dobrei a echarpe e a pus de volta no bolso.
— V 'eremós saber onde está ele agora.
— Não posso dizer, porque não faço a menor idéia. — Os olhos dela haviam
acompanhado a écharpe até o meu bolso e permaneceram ali. — Diz que recebeu uma
cacetada. Quer dizer que ficou inconsciente?
— É. E foi alguém que estava escondido atrás de uma cortina. Ainda caímos nessa.
Ela sacou uma arma contra mim e eu estava ocupado tentando tomar a arma dela. Não
há dúvida de que ela atirou em Lavery.
— Ninguém jamais sabe o que outra pessoa pode fazer, irmã. Um tira sabe disso.
Ela continuou sem olhar para ele. No mesmo tom de voz inalterado, perguntou:
— O senhor quer saber aonde ele foi depois que deixamos seu apartamento, e se ele me trouxe pra casa...
coisas assim?
— Ê.
— Porque, se me trouxe, não teria tido tempo pra descer até a praia e matar ela? Ê
isso?
Eu disse: — É uma boa parte.
— Ele não me trouxe pra casa — ela disse, lentamente. — Tomei um táxi no
Boulevard Hollywood, não muito mais de cinco minutos depois que deixamos seu
apartamento. Não tornei a vê-lo. Suponho que foi pra casa.
Degarmo disse: — Geralmente, a garota tenta dar ao namorado um álibi melhor que
isso aí. Mas tem gente de todo tipo, não é?
A Srta. Fromsett me disse: — Ele queria me trazer pra casa, mas era muito fora do
caminho dele, e nós dois estávamos cansados. O motivo pelo qual eu lhe contei isso é
que sei que não tem a mínima importância. Se eu achasse que tinha, não contaria ao
senhor.
— Então ele teve tempo — eu disse.
Ela balançou a cabeça. — Não sei. Não sei quanto tempo seria preciso. Não sei
como ele podería saber aonde ir. Não soube por mim, nem por ela através de mim. —
Seus olhos escuros estavam nos meus, vasculhando, sondando. — É esse o tipo de
confidência que está pedindo?
Dcbrei a echarpe e a pus de volta no bolso.
— < 'eremos saber onde está ele agora.
— Não posso dizer, porque não faço a menor idéia. — Os olhos dela haviam
acompanhado a écharpe até o meu bolso e permaneceram ali. — Diz que recebeu
uma cacetada. Quer dizer que ficou inconsciente?
— Ê. E foi alguém que estava escondido atrás de uma cortina. Ainda caímos
nessa. Ela sacou uma arma contra mim e eu estava ocupado tentando tomar a arma
dela. Não há dúvida de que ela atirou em Lavery.

Degarmo levantou-se de repente. — Você está fazendo uma bela cena, companheiro — rosnou. — Mas não vai a
parte alguma. Vamos dar o fora.
Eu disse: — Espere um minuto. Não acabei ainda. E se ele estivesse escondendo alguma coisa, Srta. Fromsett?
Alguma que estivesse roendo ele por dentro? Era a aparência que tinha à noite. E se soubesse mais sobre tudo isso
do que todos nós compreendíamos... ou que eu compreendia... e soubesse que o caso estava chegando a um
clímax. Certamente ia querer ir para algum canto tranqüilamente e tentar imaginar o que fazer. Não acha que ele
podería fazer isso?
Parei e esperei, olhando de lado a impaciência de Degarmo. Após um instante, a garota disse:
— Ele não ia fugir ou se esconder, porque não é uma coisa da qual ele possa fugir
ou se esconder. Mas podia querer um tempo pra pensar.
— Num lugar estranho, num hotel — eu disse, pensando na história que me haviam
contado no Granada. — Ou num lugar muito mais tranqüilo.
Olhei em torno, procurando um telefone.
— Fica no meu quarto — disse a Srta. Fromsett, entendendo imediatamente o que
eu buscava.
Atravessei a sala e a porta no fundo. Degarmo veio colado em mim, atrás. O
quarto era todo marfim, cinza e rosa. Havia uma cama grande e um travesseiro com a
redonda depressão de uma cabeça. Artigos de toalete reluziam numa cômoda
embutida, com espelhos na parede acima. Uma porta aberta mostrava azulejos de
banheiro cor de amora. O telefone estava numa mesa de cabeceira junto à cama.
Sentei-me na beira da cama e bati no lugar onde estivera a cabeça da Srta.
Fromsett, ergui o fone e disquei interurbano. Quando a telefonista atendeu, pedi para
falar com o delegado Jim Patton, em Puma Point, pessoa a pessoa, muito urgente.
Repus o telefone no gancho e acendi um cigarro. Degarmo olhava-me com ar
malévolo, parado com as pernas afastadas, durão, incansável e pronto para mostrar-
se desagradável.
— Que é agora? — grunhiu.
— Espere e verá.
— Quem dirige o espetáculo?

— Só a sua pergunta já mostra quem é. Sou eu... a menos que queira que a polícia de Los Angeles dirija.
Ele riscou um fósforo no polegar, olhou-o arder e tentou apagá-lo com um sopro longo e forte, que apenas fez
curvar-se a chama. Livrou-se dele, pôs outro entre os dentes, e ficou a mastigá-lo. O telefone tocou.
— Está feita a sua ligação para Puma Point. A voz sonolenta de Patton entrou na linha.
— Sim? Aqui é Patton, em Puma Point.
— Aqui é Marlowe, em Los Angeles — eu disse. — Se lembra de mim?
— Claro que me lembro de você, filho. Mas ainda não acordei direito.
— Me faça um favor — eu disse. — Embora eu não saiba porque deva fazer. Vá ou
mande alguém ao Lago Little Fawn e veja se Kingsley está lá. Não deixe ele ver você.
Pode avistar o carro dele na frente da cabana, ou talvez ver luzes. E consiga que ele
fique aí. Me chame assim que souber. E eu vou pra aí. Pode fazer isso?
— Patton disse: — Eu não tenho nenhum motivo pra deter o homem se ele quiser ir
embora.
— Vou levar um agente da polícia de Bay City comigo que quer interrogar ele sobre
um assassinato. Não o de vocês aí, um outro.
Houve um silêncio no zumbido do fio. Patton disse: — Você não está fazendo um de
seus truques, está, filho?
. — Não. Me chame de volta em Tunbridge 2722.
— Isso provavelmente me tomaria meia hora — ele disse. Desliguei. Degarmo ria
agora.
— Aquela boneca lançou algum sinal pra você que eu não peguei?
Levantei-me da cama. — Não. Estou só tentando ler a mente dele. Não é um
assassino frio. Qualquer que tenha sido o fogo, já morreu dentro dele a esta altura.
Achei que ele podia ter ido pro lugar mais tranqüilo e remoto que conhece... só para
se recompor. Dentro de poucas horas provavelmente vai se refazer. Seria melhor pra
você se chegasse a ele antes dele conseguir isso.
— A menos que meta uma bala na cabeça — disse Degarmo friamente. — Caras
assim são capazes disso.

— Você não pode deter o homem enquanto não o encontrar.


— Correto.
Voltou à sala de estar. A Srta. Fromsett pôs a cabeça para fora de sua kitchenette e disse que estava fazendo
café. Tomamos um pouco e ficamos sentados parecendo amigos na estação ferroviária.
O telefonema de Patton chegou cerca de vinte e cinco minutos depois. Havia luz na cabana de Kingsley, e um
carro estacionado ao lado.

36

Comemos um desjejum em Alhambra e mandei encher o tanque. Pegamos a


Rodovia 70 e começamos a ultrapassar caminhões na ondulante região agrícola. Eu
dirigia. Degarmo sentava-se mal-humorado no canto, as mãos enterradas nos bolsos.
Eu observava as gordas fileiras de laranjeiras passarem como dentes de uma
engrenagem. Ouvia o cantar dos pneus no asfalto e sentia-me cansado, pela falta de
sono e excesso de emoção.
Chegamos à longa subida ao sul de San Dimas, que atinge uma crista e torna a
descer até Pomona. É o fim do cinturão de poluição e o início daquela região
semideserta onde o sol é tão leve e seco como xerez velho pela manhã, tão quente
quanto um alto forno ao meio-dia, e cai como um tijolo furioso ao anoitecer.
Degarmo enfiou um só fósforo no canto da boca e disse, quase com escárnio:
— Webber fez o diabo comigo a noite passada. Disse que falou com você e o quê.
Eu não disse nada. Ele me olhou e tornou a desviar o olhar. Acenou com a mão
para fora.
— Eu não vivería nesta maldita região mesmo que me dessem ela. O ar é azedo
antes de levantar-se pela manhã.
— Vamos chegar a Ontário num minutó. Passaremos para o Boulevard Foothill, e
você vai ver sete quilômetros das mais belas grevíleas do mundo.
— Eu não distinguiria uma de um hidrante — disse Degarmo.
Chegamos ao centro da cidade e dobramos para o norte na Euclid, rodando pela esplêndida avenida
arborizada. Degarmo escarneceu das grevíleas.
Após algum tempo, disse: — A garota que se afogou no lago lá em cima era minha garota. Não tenho andado
com a cabeça direito desde que soube disso. Vejo tudo vermelho. Se pudesse pôr as mãos naquele cara, Chess...
— Você já causou bastante encrenca, deixando-a sair impune do assassinato da mulher de Almore.
Olhava direto em frente, através do pára-brisa. Sabia que ele movera a cabeça e
fixara os olhos em mim. Não sabia o que faziam as mãos dele. Não sabia que
expressão tinha no rosto. Após um longo tempo, vieram as palavras. Vieram através de
dentes cerrados e espremidas, e arranhavam um pouco ao sair.
— Você é meio maluco ou algo assim?
— Não — eu disse. — Nem você. Sabe, tão bem quanto qualquer outro poderia saber
de alguma coisa, que Florence Almore não saiu da cama e desceu até aquela garagem.
Sabe que ela foi carregada. Sabe que foi por isso que Talley roubou o chinelo dela, o
chinelo que nunca pisou um chão de concreto. Você sabe que Almore deu uma injeção
na esposa na casa de Condy, e que a injeção foi apenas o suficiente, e não demais. Ele
conhecia as doses, do mesmo modo como você sabe como arrochar um vagabundo
que não tem dinheiro nem lugar pra dormir. Você sabe que Almore não matou a mulher
com morfina, e que se quisesse matar ela, a morfina seria a última coisa no mundo que
usaria. Mas sabe que outra pessoa fez isso, e que Almore carregou ela pra garagem
embaixo e pôs ela ali... tecnicamente ainda viva, para aspirar um pouco de monóxido
de carbono, mas medicamente tão morta quanto se já tivesse parado de respirar. Você
sabe disso tudo.
Degarmo disserem voz baixa: — Irmão, como é que você conseguiu viver tanto
tempo?
— Eu disse: — Não caindo em muitos truques e não temendo demais os durões
profissionais. Só um patife faria o que Almore fez, só um patife e um homem morto de
medo, que tinha na alma coisas que não suportariam a luz do dia. Tecnicamente, ele
pode até ter sido culpado de assassinato.

Não acho que essa questão já tenha sido acertada. Sem dúvida seria uma dificuldade dos diabos pra provar que ela
estava num coma tão profundo que se achava além de qualquer possibilidade de socorro. Mas quanto à questão
prática de saber quem a matou, você sabe que foi a garota.
Degarmo riu. Foi um riso rascante, desagradável, não apenas sem alegria, mas sem sentido.
Chegamos ao Boulevard Foothill e tornamos a dobrar para o leste. Eu achava que ainda fazia frio, mas
Degarmo suava. Não queria tirar o paletó, por causa da arma debaixo do braço.
Eu disse: — A garota, Mildred Haviland, estava tendo um caso com Almore e a
mulher sabia. Já o tinha ameaçado. Eu soube pelos pais dela. A garota, Mildred
Haviland, sabia tudo sobre a morfina, onde conseguir se precisasse, e a dose que devia
usar. Estava sozinha em casa com Florence Almore, depois de a pôr na cama. Estava
na posição perfeita pra encher uma seringa com quatro ou cinco gramas e injetar na
mulher inconsciente, pelo mesmo furo que Almore tinha feito. Ela morrería, talvez ainda
na ausência de Almore, que ia chegar e encontrar ela morta. O problema seria dele. Ele
é que ia ter de resolver. Ninguém ia acreditar que qualquer outra pessoa tivesse
dopado a mulher dele até a morte. Ninguém que não soubesse de todas as
circunstâncias. Mas você sabia. Era preciso que eu achasse você um idiota muito maior
do que é pra acreditar que você não sabia. Você acobertou a garota. Ainda estava
apaixonado por ela. Assustou-a pra que deixasse a cidade, fosse pra longe do perigo,
fora de alcance, mas a acobertou. Deixou o crime impune. Ela fez você fazer isso. Por
que subiu às montanhas procurando por ela?
— E como eu sabia onde procurar? — ele disse asperamente. — Não é pedir muito
querer uma explicação para isso, é?
— De jeito nenhum — eu disse. — Ela se encheu de Bill Chess e das bebedeiras
dele, do mau humor e da vidinha miserável dele. Mas precisava de dinheiro pra saltar
fora. Pensou que estava segura agora, que tinha uma coisa contra Almore e podia
usar essa coisa com segurança. Por isso escreveu pra ele pedindo dinheiro. Ele
mandou você lá em cima pra falar com ela. Ela não disse a Almore que nome estava
usando no momento, nem deu qualquer detalhe de onde ou como
vivia. Uma carta endereçada a Mildred Haviland, em Puma Point, chegaria às mãos
dela. Tudo que ela precisava fazer era pedir. Mas não chegou carta alguma e ninguém
a ligava a Mildred Haviland. Você só tinha um velho retrato e seus maus modos
habituais, que não levaram você a parte alguma com aquela gente.
Degarmo disse, de modo rascante: — Quem lhe disse que ela tentou tirar dinheiro
de Almore?
— Ninguém. Eu tinha de pensar alguma coisa pra encaixar no que aconteceu. Se
Lavery ou a Sra. Kingsley soubessem quem era Muriel Chess, e informassem a você,
você ia saber onde encontrar ela e que nome ela usava. Você não sabia dessas coisas.
Portanto, a pista tinha de vir da única pessoa lá em cima que sabia quem era ela, e esta
era ela própria. Assim, suponho que ela escreveu a Almore.
— Muito bem — ele disse afinal. — Vamos esquecer isso. Não faz mais nenhuma
diferença agora. Se estou numa enrascada, isso é comigo. Faria o mesmo de novo, nas
mesmas circunstâncias.
— Tudo bem — eu disse. — Não estou pensando em apertar ninguém. Nem mesmo
você. Estou lhe contando isso sobretudo pra que você não tente jogar para Kingsley
qualquer assassinato que ele não cometeu. Se ele tiver cometido um, pode jogar.
— É por isso que está me contando? — ele perguntou.
— É.
— Eu pensava que talvez fosse porque me odiasse.
— Já deixei de odiar você. Está tudo esquecido. Odeio muito as pessoas, mas não
por muito tempo.
Passávamos agora pela região dos vinhedos, a aberta e arenosa região dos
vinhedos ao longo dos fragmentados flancos dos pés das montanhas. Em pouco tempo
chegamos a San Bernardino e eu continuei, sem parar.

37
Em Crestline, altitude 1.500 metros, ainda não começara a esquentar. Paramos para tomar uma cerveja. Quando
retornamos ao carro, Degarmo tirou o revólver do coldre sob a axila e examinou-o. Era um Smith e Wesson trinta e oito, do
tamanho de um quarenta e quatro, uma arma perversa, com o coice de uma quarenta e cinco e um alcance útil
muito maior.
— Não vai precisar disso — eu disse. — Ele é grandão e forte, mas não é desse tipo de valentão.
Ele tornou a pôr a arma debaixo do braço e resmungou. Não falávamos mais, agora. Nada mais tínhamos a
falar. Rolávamos contornando curvas e à beira de despenhadeiros protegidos por muretas .brancas, e em alguns
pontos por muros de pedras e pesadas correntes de ferro. Subimos através de altos carvalhos, chegando a altitudes
onde os carvalhos não são tão altos e os pinheiros o são cada vez mais. Chegamos afinal à represa no fim do Lago
Puma.
Parei o carro, a sentinela deu o seu aviso do outro lado e aproximou-se da janela.
— Fechem todas as janelas do carro antes de atravessar a represa, por favor.
Curvei-me para trás, para fechar a janela traseira de meu lado. Degarmo mostrou
seu emblema.
— Esqueça, companheiro. Sou um agente da polícia — disse, com seu tato habitual.
A sentinela lançou-lhe um olhar firme e desprovido de expressão.
— Fechem todas as janelas, por favor — disse no mesmo tom que usara antes.
— Vá pro inferno — disse Degarmo. — Vá pro inferno, soldadinho.
— Ê uma ordem — disse a sentinela. Os músculos de seu queixo mostravam-se
ligeiramente inchados. Os olhos de um cinza opaco fixavam Degarmo. — E não fui eu
que escrevi a ordem, senhor. Levante as janelas.
— E se eu dissesse a você que fosse se atirar no lago? — escarneceu Degarmo.
A sentinela disse: — Eu podia fazer isso. Eu me assusto facilmente. — Bateu na
coronha do fuzil com uma mão curtida.
Degarmo virou-se e fechou as janelas do seu lado. Atravessamos a represa. Havia
um guarda no meio dela e outro na outra ponta. O primeiro deve ter-lhes dado algum
tipo de sinal. Eles nos olharam com olhos firmes e vigilantes, sem amistosidade.
Prossegui por entre os montes de granito e desci através de prados de grama grossa onde vacas pastavam. As
mesmas e vistosas calças largas, calções curtos e lenços bonitos do dia anterior, a mesma brisa suave, sol dourado
e límpido céu azul, o mesmo cheiro de agulhas de pinheiro, a mesma fria suavidade de um verão na montanha. Mas
o dia anterior fora cem anos atrás, uma coisa cristalizada no tempo, como uma mosca de âmbar.
Dobrei para a estrada que levava ao Lago Little Fawn e contornei as pedras
imensas, passando pela gorgolejante que- dinha d ’água. A cancela da propriedade de
Kingsley estava aberta, e o carro de Patton parado na estrada, virado para o lago, que
não se via daquele ponto. Não havia ninguém nele. O cartaz no pára-brisa ainda dizia:
“Mantenham Jim Patton como Delegado. Ele Está Velho Demais pra Ir Trabalhar’ ’.
Perto dele, e voltado na direção oposta, havia um velho cupê caindo aos pedaços.
Dentro do cupê, um chapéu de caçador de leões. Parei meu carro junto ao de Patton,
freei e saltei. Andy saiu do cupê e ficou olhando para nós, sem expressão.
Eu disse: — Esse aí é o tenente Degarmo, da polícia de Bay City.
Andy disse: — Jim acaba de atravessar a ponte. Está esperando o senhor. Nem
tomou um desjejum.
Subimos a estrada até o cume, enquanto Andy tornava a entrar em seu cupê. Além
do cume a estrada descia até o minúsculo lago azul. A cabana de Kingsley, do outro
lado da água, parecia desabitada.
— Aí está o lago — eu disse.
Degarmo olhou-o em silêncio. Seus ombros moveram-se num leve encolhimento.
— Vamos pegar o bastardo — foi só o que disse.
Seguimos em frente, e Patton se levantou de detrás de uma rocha. Usava o
mesmo chapéu Stetson, a calça e a camisa cáqui abotoada até o grosso pescoço. A
estrela na parte esquerda do peito ainda tinha uma ponta torta. Movia lentamente a
queixada, mastigando.
— É um prazer tornar a ver você — ele disse, sem olhar para mim, mas para
Degarmo.
Estendeu a mão e apertou a dura pata do policial.

— Da última vez que vi você, tenente, estava usando outro nome. Acho que eu podia chamar isso mais ou
menos de agente secreto. Também não o tratei direito. Me desculpo. Acho que sabia quem era que estava naquele
retrato seu o tempo todo.
Degarmo assentiu e não disse nada.
— Pode ser que se eu me esforçasse e fizesse o jogo correto, tivesse evitado um
monte de encrenca — disse Patton. — Talvez uma vida fosse salva. Me sinto meio mal
sobre isso, mas também não sou um cara que se sente mal por rna coisa muito tempo.
E se a gente se sentar aqui e você nu or.tar o que acha que está fazendo agora?
Degarmo disse: — A mulher de Kingsley foi assassinada em Bay City na noite
passada. Preciso conversar com ele sobre isso.
— Quer dizer que suspeita dele? — perguntou Patton.
— E como — grunhiu Degarmo.
Patton esfregou o pescoço e olhou para o outro lado do lago.
— Ele não pôs os pés fora da cabana. Ê provável que esteja dormindo. Essa
madrugada andei rondando em torno da cabana. Tinha um rádio ligado e ouvi barulhos
de quem mexe numa garrafa e copos. Fiquei longe dele. Agi correto?
— Vamos lá agora — disse Degarmo.
— Tem uma arma, tenente?
Degarmo bateu embaixo do braço esquerdo. Patton olhou para mim. Balancei a
cabeça, não tinha arma.
— Kingsley também pode ter uma — disse Patton. — Não gosto desse negócio de ir
logo atirando por aqui, tenente. Não ia me fazer nenhum bem ter um tiroteio. Não temos
esse tipo de comunidade aqui em cima. Você me parece um sujeito que saca a arma
meio depressa.
— Sou muito rápido, se é o que quer dizer — disse Degarmo. — Mas quero esse cara
falando.
Patton olhou-o, olhou-me, tornou a olhá-lo e deu uma cusparada de sumo de
tabaco para um lado.
— Não tenho informações suficientes sequer pra abordar ele — disse
obstinadamente.
Assim, sentamo-nos no chão e contamos-lhe a história. Ele escutou em silêncio,
sem piscar um olho. No fim, me disse:

— Você tem um jeito engraçado de trabalhar pras pessoas, me parece.


Pessoalmente, acho que os dois estão muito mal informados. Vamos lá ver. Eu vou na
frente... caso vocês saibam do que estão falando e Kingsley tenha uma arma e queira
bancar o desesperado. Tenho uma barriga grande. Dá um belo alvo.
Levantamo-nos do chão e começamos a contornar o lago pelo caminho mais
longo. Quando chegamos ao pequeno ancoradouro, eu disse:
— Já fizeram a autópsia nela, xerife?
Patton assentiu. — Se afogou mesmo. Eles dizem que estão certos de que foi assim
que ela morreu. Não recebeu facada, nem tiro, nem cacetada na cabeça, nem nada
disso. Tem marcas no corpo dela, mas são demais pra significar alguma coisa. E não
está um belo corpo pra se trabalhar nele.
Degarmo pareceu pálido e furioso.
— Acho que não devia ter dito isso, tenente — Patton acrescentou brandamente. — É
meio duro de aceitar. Vendo que você conheceu a dona muito bem.
Degarmo disse: — Vamos acabar com isso e fazer o que temos de fazer.
Prosseguimos pela margem do lago e chegamos à cabana de Kingsley. Subimos
os pesados degraus. Patton atravessou nas pontas dos pés a varanda até a porta.
Experimentou a porta de tela. Não estava fechada. Ele a abriu e experimentou a porta.
Também não estava trancada. Ele a manteve fechada, com a maçaneta virada na mão,
e Degarmo pegou a de tela e escancarou-a. Patton abriu a porta e entramos na sala.
Derace Kingsley jazia numa funda poltrona, junto da lareira apagada, com os olhos
fechados. Na mesa ao lado dele, via-se Um copo vazio e uma garrafa de uísque quase
vazia. Um prato junto da garrafa estava entupido de pontas de cigarro. Dois maços
vazios, amassados, jaziam em cima das pontas.
Todas as janelas da sala estavam fechadas. Já estava abafado e quente ali dentro.
Kingsley usava um suéter e tinha o rosto vermelho e pesado. Roncava, a mão pendia
frouxa dos braços da poltrona, as pontas dos dedos tocando o chão.
Patton aproximou-se a alguns palmos dele e ficou olhando-o em silêncio por um
longo momento, antes de falar.
— Sr. Kingsley — disse então, numa voz calma e firme.
— Precisamos conversar um pouco com o senhor.

38

Kingsley mexeu-se com uma espécie de sobressalto, abriu os olhos e moveu-os


sem mover a cabeçorra. Olhou para Patton, depois para Degarmo, e finalmcnte para
mim. Tinha os olhos pesados, mas a luz brilhava neles. Aprumou-se lentamente na
poltrona e passou as mãos para cima e para baixo no rosto.
— Adormeci — disse. — Caí no sono há umas duas horas. Estava bêbado feito um
gambá, imagino. De qualquer modo, muito mais do que gostaria de estar. — Baixou as
mãos e deixou-as pendentes.
Patton disse: — O tenente Degarmo, da polícia de Bay City. Ele precisa conversar
com o senhor.
Kingsley olhou ligeiramente para Degarmo, e continuou virando os olhos até fixá-
los em mim. Quando tornou a falar, sua voz soou sóbria, tranqüila e morta de cansaço.
— Então deixou que a pegassem — disse.
Eu disse: — Eu teria deixado, mas não deixei.
Kingsley pensou nisso, olhando para Degarmo. Puxou para cima as venezianas
marrom das duas janelas da frente, e suspendeu também as janelas. Sentou-se numa
poltrona perto de uma delas e cruzou as mãos sobre a barriga. Degarmo permanecia
parado de pé, fuzilando-o com o olhar.
— Sua mulher está morta, Kingsley — disse brutalmente. — Isso é novidade pra
você?
Kingsley ficou olhando-o fixamente e umedeceu os lábios.
— Aceita isso com calma, não é? — perguntou Degarmo. — Mostre a écharpe a ele.
Tirei a écharpe verde e amarela e desdobrei-a, sacudindo-a. Degarmo indicou com
o polegar.
— É sua?
Kingsley assentiu. Tornou a umedecer os lábios.
— Descuido seu deixar ela atrás — disse Degarmo. Respirava um pouco forte. Tinha
o nariz franzido e fundos vincos corriam-lhe das narinas até os cantos da boca.
Kingsley disse em voz muito baixa:
— Deixei atrás onde? — Mal olhara a écharpe. Não me olhara de modo algum.

— Nos Apartamentos Granada, na Rua Oito, em Bay City. Apartamento 716. Estou
lhe dizendo alguma coisa?
Kingsley moveu então muito vagarosamente os olhos para encontrar os meus.
— Era onde ela estava? — perguntou num murmúrio. Assenti com a cabeça. — Ela
não queria que eu fosse lá. Eu disse que não entregava o dinheiro enquanto ela não
conversasse comigo. Ela admitiu que matou Lavery. Puxou uma pistola e planejava me
dispensar o mesmo tratamento. Alguém saiu de trás de uma cortina e me apagou sem
que eu pudesse ver quem era. Quando recuperei os sentidos, ela estava morta. —
Contei a ele como ela morrera e a aparência que tinha. Contei-lhe o que eu fizera e o
que me haviam feito.
Ele escutou sem mover um músculo do rosto. Quando acabei de falar, fez um vago
gesto em direção à echarpe.
— Que tem isso a ver com o caso?
— O tenente a encara como prova de que o senhor era a pessoa escondida no
apartamento.
Kingsley pensou um pouco. Parecia não captar muito rapidamente as implicações
daquilo. Reclinou-se na poltrona e apoiou a cabeça no encosto.
— Continue — disse finalmente. — Suponho que você sabe do que está falando. Eu
certamente não sei.
Degarmo disse: — Muito bem, banque o tolo, vá. Vai ver onde isso vai levar você.
Podia começar demonstrando como usou o tempo ontem à noite depois de largar sua
boneca no prédio de apartamento dela.
Kingsley disse numa voz inalterada: — Se se refere à Srta. Fromsett, eu não levei.
Ela foi pra casa num táxi. Eu ia pra casa também, mas não fui. Vim pra cá. Achei que
a viagem, o ar fresco e a tranqüilidade da noite me ajudariam a me refazer.
— Pense só nisso — gozou Degarmo. — Refazer do quê, se é que posso perguntar?
—. De todas as preocupações que venho tendo.
— Diabos — disse Degarmo —, uma coisinha de nada como estrangular sua mulher
e lanhar o ventre dela não ia preocupar tanto você assim, ia?
— Filho, você não devia dizer essas coisas — interveio Patton, no fundo. — Isso não
é maneira de falar. Ainda não apresentou nada que soe como uma prova.

— Não? — Degarmo volveu a cabeça para ele. — Que tal essa écharpe, gorducho?
Isso não é prova?
— Você não encaixou ela em coisa alguma... que eu tenha ouvido — disse Patton
pacificamente. — E eu também não sou gordo, só bem sólido.
Degarmo desviou dele o olhar, repugnado. Apontou o dedo para Kingsley.
— Suponho que você não desceu de modo algum a Bay City — disse asperamente.
— Não. Por que deveria descer? Marlowe estava cuidando disso. E não vejo porque
está insistindo na écharpe. Era Marlowe quem estava com ela.
Degarmo ficou parado, como se tivesse criado raízes no chão, e selvagem. Virou-
se muito lentamente e lançou-me seu sombrio olhar de fúria.
— Não entendo isso — disse. — Palavra de honra, não entendo. Será que alguém
está brincando comigo, será? Alguém como você?
Eu disse: — Tudo que falei sobre a écharpe foi que ela estava no apartamento, e
que eu tinha visto Kingsley usando ela antes, ontem à noite. Isso parecia ser tudo que
você precisava. Podia ter acrescentado que eu mesmo tinha usado a écharpe depois,
para que a garota com quem ia me encontrar pudesse me reconhecer mais
facilmente.
Degarmo recuou de frente de Kingsley e recostou-se à parede na ponta da lareira.
Puxou o lábio inferior com o polegar e o indicador da mão esquerda. A mão direita
pendia frouxa, ao lado, os dedos ligeiramente curvados.
Eu disse: — Eu disse a você que tudo que vi da Sra. Kingsley foi um instantâneo.
Um de nós precisava ter como reconhecer o outro. A écharpe pareceu bastante óbvia
como identificação. Na verdade eu tinha visto a dona uma vez antes, embora não
soubesse disso quando fui me encontrar com ela. Mas não reconhecí logo. — Virei-me
para Kingsley. — A Sra. Fallbrook — disse.
— Eu pensava que você tinha dito que a Sra. Fallbrook era a proprietária da casa —
ele respondeu lentamente.
— Isso foi o que ela me disse na hora. Isso foi o que eu acreditei na hora. Por que
não ia acreditar?
Degarmo emitiu um som da garganta. Tinha os olhos um tanto alucinados. Falei-
lhe da Sra. Fallbrook, com o chapéu
púrpura, as maneiras amalucadas e a arma vazia que segurava e que me entregou.
Quando acabei, ele disse muito cuidadosamente:
— Não ouvi você falar nada disso para Webber.
— Não falei para ele. Não queria admitir que já tinha estado na casa três horas
antes. Que tinha ido discutir o caso com Kingsley antes de comunicar à polícia.
— Está aí uma coisa que vai fazer a gente amar você — disse Degarmo com um
sorriso frio. — Jesus, que otário que eu fui. Quanto você está pagando a esse xereta pra
encobrir seus assassinatos, Kingsley?
— Os honorários habituais dele — disse Kingsley com um ar vazio. — E uma
bonificação de quinhentos dólares se provar que minha mulher não assassinou Lavery.
— Ê uma pena que ele não possa ganhar esses — escarneceu Degarmo.
— Não seja idiota — eu disse. — Já ganhei esse dinheiro.
Houve um silêncio na salá. Um daqueles silêncios carregados, que parecem a
ponto de ser rasgados por um trovão. Não se rasgou. Continuou, pairando pesado e
sólido como um muro. Kingsley mexeu-se um pouco na poltrona e, após um longo
momento, assentiu com a cabeça.
— Ninguém poderia saber disso melhor que você, Degarmo — eu disse.
Patton tinha tanta expressão no rosto quanto um pedaço de pau. Observava
Degarmo calmamente. Não olhava para Kingsley de modo algum. Degarmo fixava um
ponto entre meus olhos, mas não como se houvesse alguma coisa na sala a ver com
ele. Antes como se olhasse algo muito distante, como uma montanha além de um
vale.
Após o que pareceu um tempo bastante longo, Degarmo disse baixinho:
— Não vejo por quê. Não sei nada sobre a mulher de Kingsley. Até onde eu sei,
nunca pus os olhos nela... até a noite passada.
Baixou as pálpebras um pouco e observou-me pensativa- mente. Sabia muito bem
o que eu ia dizer. Mesmo assim, eu disse.
— E nem viu ontem de noite. Porque ela já estava morta há mais de um mês.
Porque ela tinha se afogado no Lago Little Fawn. Porque a mulher que você viu morta
nos Apartamentos

Granada era Mildred Haviland, e Mildred Haviland era Muriel Chess. E como a Sra. Kingsley morreu muito antes de
Lavery ser assassinado, é claro que a Sra. Kingsley não atirou nele.
Kingsley cerrou os punhos nos braços da poltrona, mas não emitiu nenhum som, nenhum som mesmo.

39
Houve outro silêncio pesado. Patton interrompeu-o dizendo em sua voz lenta é
cautelosa:
— Essa é uma afirmação meio doida, não é? Não acha que Bill Chess podia
reconhecer a própria esposa?
Eu disse: — Depois de um mês dentro d’água? Com as roupas da mulher dele no
corpo, e alguns dos penduricalhos da mulher dele? Com cabelos louros encharcados
d’água como os da mulher dele e quase sem rosto reconhecível? Por que ele iria ter
sequer dúvidas a esse respeito? Ela deixou um bilhete que podia ser um bilhete de
suicida. Tinha ido embora. Eles tinham brigado. O carro e as roupas dela
desapareceram. Durante o mês que passou desaparecida, ele não teve nenhuma
notícia dela. Não tinha idéia de onde ela fora. E aí surge aquele cadáver da água com
as roupas de Muriel. Uma loura mais ou menos do tamanho da mulher dele. É claro que
tinha diferenças, e se se suspeitasse de uma substituição, elas teriam sido descobertas
e conferidas. Mas não havia motivo pra suspeitar de uma coisa dessa. Crystal Kingsley
ainda estava viva. Tinha fugido com Lavery. Tinha deixado o carro em San Bernardino.
Tinha mandado um telegrama de El Paso para o marido. Estava em boas mãos, para
Bill Chess. Ele nem pensou nela. Ela não entrava em lugar nenhum da história pra ele.
Por que deveria entrar?
Patton disse: — Eu mesmo devia ter pensado nisso. Mas se tivesse pensado, seria
uma dessas idéias que um cara tem e afasta quase tão depressa quanto pensou nela.
Ia parecer meio exagerada demais.
— Superficialmente, sim — eu disse. — Mas só superficialmente. E se o corpo não
tivesse surgido do lago durante um ano, ou nunca, a não ser que o lago fosse dragado?
Muriel Chess tinha ido embora e ninguém ia perder muito tempo
A DAMA DO LAGo

procurando por ela. A gente podia até nunca ter notícias dela. A Sra. Kingsley era coisa
diferente. Tinha dinheiro, e ligações, e um marido preocupado. Acabaria sendo
procurada, como acabou sendo. Mas não muito breve, a menos que acontecesse
alguma coisa que despertasse suspeitas. Podia levar meses pra que alguém
descobrisse alguma coisa. O lago podia ser dragado, mas se uma busca do seu
paradeiro indicasse que ela deixara mesmo o lago e descera a montanha, mesmo até
San Bernardino, e tomara o trem de lá para o leste, o lago podería jamais ser dragado.
E, mesmo que fosse, e se encontrasse o cadáver, havería mais que uma boa
possibilidade de não ser identificado corretamente. Bill Chess estava
preso pela morte da esposa. Pelo que sei, podia ser até condenado por isso, e seria
tudo, no que se refere ao cadáver do lago. Crystal Kingsley continuaria desaparecida, e
seria um mistério não resolvido. Acabariam supondo que alguma coisa acontecera com
ela, e que não estava mais viva. Mas ninguém sabería onde, ou como, ou quando tinha
acontecido. Não fosse por Lavery, a gente podia nem estar aqui conversando agora.
Lavery é a chave de tudo. Estava no Prescott Hotel em San Bernardino na noite em que
a gente achava que Crystal Kingsley partiu de lá. Se encontrou lá com uma mulher que
estava com o carro de Crystal Kingsley, usava as roupas de Crystal Kingsley, e
evidentemente ele sabia quem era ela. Mas não precisava saber que havia alguma
coisa errada. Não precisava saber que eram as roupas de Crystal Kingsley ou que a
mulher tinha posto o carro de Crystal Kingsley na garagem do hotel. Só precisava saber
que tinha encontrado Muriel Chess. Muriel cuidou do resto.
Parei e esperei que alguém dissesse alguma coisa. Ninguém disse. Patton
sentava-se inamovível em sua poltrona, as mãos gordas e peladas confortavelmente
cruzadas sobre a barriga. Kingsley reclinava a cabeça para trás, de olhos entre-
cerrados, e não se movia. Degarmo recostava-se à parede junto à lareira, tenso, o rosto
pálido e frio, um homenzarrão solene cujos pensamentos se achavam profundamente
ocultos. Continuei falando.
— Se Muriel Chess fez o papel de Crystal Kingsley. foi ela quem matou a
mulher de Kingsley. É elementar. Muito bem, vamos examinar. Sabemos quem era ela
e que tipo de mulher era. Já tinha cometido um assassinato antes de se
encontrar com Bill Chess e se casar com ele. Tinha sido enfermeira no consultório
do Dr. Almore e namoradinha dele, e tinha matado a mulher do Dr. Almore de um modo
tão limpo que o médico teve de encobrir o crime pra ela. E tinha sido casada com um
homem da polícia de Bay City que também era suficientemente otário para acobertá-la.
Ela era assim com os homens, podia fazer com que pulassem por dentro de aros, como
bichos amestrados. Não a conheci o bastante pra saber o motivo disso, mas a ficha
dela mostra isso. O que conseguiu fazer com Lavery prova isso. Muito bem, ela matava
as pessoas que atravessavam seu caminho, e a mulher de Kingsley fez isso. Eu não
pretendia falar disso, mas não importa muito agora. Crystal Kingsley também sabia
fazer os homens pular por dentro de aros, um pouco. Fez Bill Chess pular e a mulher de
Bill Chess não era o tipo de garota que aceitasse isso com um sorriso. Também estava
mortalmente cheia da vida que levava aqui em cima... devia estar... e queria dar o fora.
Mas precisava de dinheiro. Tentou conseguir com Almore, e isso fez com que Degarmo
subisse aqui procurando por ela. Isso a assustou um pouco. Degarmo é o tipo do
sujeito com quem a gente nunca tem certeza de nada. Ela tinha razão de não ter
certeza sobre você, não tinha, Degarmo?
Degarmo mexeu o pé no chão.
— As areias do tempo estão correndo contra você, companheiro — disse
ameaçadoramente. — Faça o seu discurso- zinho enquanto pode.
— Mildred não precisava, decididamente, ter o carro, as roupas, documentos e não
sei mais o quê de Crystal Kingsley, mas isso ajudava. O dinheiro que ela tivesse
também ajudava um bocado, e Kingsley diz que ela gostava de andar com uma boa
quantia em dinheiro. Também devia ter jóias, que podiam acabar se transformando
em dinheiro. Tudo isso tornava o assassinato dela uma coisa ao mesmo tempo
racional e agradável. Isso explica o motivo, e agora vamos aos meios e à
oportunidade.
“A oportunidade surgiu sob medida pra ela. Tinha brigado com Bill e ele tinha
saído pra se embebedar. Ela conhecia o seu Bill e como ficava bêbado e até quando
ficaria fora. Precisava de tempo. Tempo era o essencial. Tinha de achar que dispunha
de tempo. De outro modo a coisa toda fracas
sava. Precisava arrumar suas roupas, levar de carro até o Lago Coon e esconder
lá, porque tinham de desaparecer. Precisava voltar a pé. precisava matar Crystal
Kingsley, vesti-la com as roupas de Muriel Chess e jogá-la no lago. Tudo isso levava
tempo. Quanto ao assassinato propriamente dito, imagino que embebedou a outra ou
deu uma pancada na cabeça e a afogou na banheira, nesta cabana. Isso seria lógico,
e simples também. Ela era uma enfermeira, sabia como lidar com cadáveres. Sabia
nadar... segundo Bill, era uma ótima nadadora. E um corpo afogado afunda. A única
coisa que precisava fazer era dirigir o corpo para o fundo, onde queria que ficasse.
Nada disso estava além das forças de uma mulher que sabia nadar. Foi o que ela fez:
vestiu as roupas de Crystal Kingsley, arrumou as outras coisas dela que precisava,
entrou no carro dela e partiu. Em San Bernardino, encontrou a primeira dificuldade,
Lavery.
“Lavery a conhecia como Muriel Chess. Não temos prova nem motivo nenhum pra
supor que ele a conhecesse por qualquer outro nome. Tinha-a visto aqui em cima, e
provavelmente se dirigia pra cá quando se encontrou com ela. Ela não queria isso. Ele
só ia achar uma cabana fechada, mas podia começar a conversar com Bill, e era parte
de seu plano o fato de que Bill jamais soubesse com certeza que ela tinha partido do
Lago Little Fawn. Assim, se, e quando, o corpo fosse achado, ele o identificaria como o
dela. Por isso deu logo em cima de Lavery, o que não era muito difícil. Se tem uma
coisa que a gente tem certeza sobre Lavery, é que não podia manter as mãos longe de
uma mulher. Quanto mais mulheres, melhor. Era presa fácil pra uma garota esperta
como Mildred Haviland. Assim, ela o manobrou e o levou junto. Levou-o pra El Paso, e
de lá mandou um telegrama do qualele provavelmente nada soube. Finalmente, levou-o
de volta pra Bay City. Provavelmente não podia deixar de fazer isso. Ele queria ir pra
casa e ela não queria deixar que ele se afastasse demais dela. Porque Lavery era
perigoso pra ela. Só ele podia destruir todos os indícios de que Crystal Kingsley deixara
na verdade o Lago Little Fawn. Quando se iniciasse um dia a busca de Crystal
Kingsley, tinham de chegar a Lavery, e nesse momento a vida dele não valia um vintém
furado. Poderíam não acreditar nas primeiras negativas dele, como não acreditaram
mesmo, mas quando ele se abrisse com toda a história, aí
acreditariam, porque podia ser verificada. Assim, começou a busca e Lavery foi
logo morto a tiros no banheiro dele, na noite em que desci até lá pra falar com ele. É só
isso, a não ser pelo fato de que ela voltou à casa dele na manhã seguinte. Isso é
simplesmente uma dessas coisas que os criminosos fazem. Ela disse que ele tinha
tomado o dinheiro dela, mas não acredito. Me inclino mais a pensar que ela achava que
ele é que tinha algum escondido, ou que era melhor ajeitar o serviço com a cabeça fria
e providenciar pra que tudo ficasse em ordem e apontasse na direção certa; ou talvez
fosse simplesmente o que ela disse, pra pôr o jornal e o leite pra dentro. Tudo é
possível. Ela voltou, eu a encontrei lá e ela encenou um ato que me deixou chupando
dedo.
Patton perguntou: — Quem a matou, filho? Me parece que você não atribui a
Kingsley esse servicinho.
Olhei para Kingsley: — Você disse que não falou com ela ao telefone. E a Srta.
Fromsett? Achou que era sua mulher mesmo?
Kingsley balançou a cabeça: — Eu duvido. Seria muito difícil enganá-la desse jeito.
Ela só disse que a Sra. Kingsley parecia muito mudada .e abatida. Não desconfiei de
nada no momento. Só quando vim cá pra cima. Quando entrei nesta cabana a noite
passada, senti que tinha alguma coisa errada. Estava limpa, arrumada e em ordem
demais. Crystal não deixava as coisas assim. Teria roupas por todo o quarto, pontas de
cigarro por toda a casa, garrafas e copos por toda a cozinha. Teria pratos sujos,
formigas e moscas. Achei que a mulher de Bill podia ter feito a arrumação, e depois me
lembrei de que ela não faria isso, não naquele dia particularmente. Estava muito
ocupada discutindo com ele e sendo assassinada, ou cometendo suicídio, o que quer
que fosse. Pensei em tudo isso de uma maneira um tanto confusa, mas não afirmo que
realmente cheguei a alguma conclusão.
Patton levantou-se de sua cadeira e saiu para a varanda. Voltou esfregando os
lábios com o lenço marrom. Tornou a sentar-se, e acomodou-se sobre a nádega
esquerda, devido ao coldre do outro lado. Olhou pensativamente para Degarmo, que
continuava contra a parede, duro e rígido, um homem de pedra. A mão direita ainda
pendia ao seu lado, com os dedos dobrados.

Patton disse: — Ainda não ouvi dizer quem matou Mu- riel. Isso faz parte do
espetáculo ou é uma coisa que ainda precisa ser solucionada?
Eu disse: — Alguém que achava que ela precisava ser morta, alguém que muito a
tinha amado e odiado, alguém que tinha muito de tira pra deixá-la sair impune de outros
assassinatos, mas não o bastante pra prendê-la e deixar toda a história aparecer.
Alguém como Degarmo.

40
Degarmo desencostou-se da parede, aprumando-se, e sorriu sombriamente. A
mão direita fez um movimento visível e surgiu com uma arma. Ele a segurava com o
punho frouxo, de modo que apontava para o piso à sua frente. Falou comigo sem me
olhar.
— Acho que você não tem uma arma. Patton tem uma, mas não acho que possa
sacar ela com rapidez suficiente pra lhe ser de alguma valia. Talvez você tenha alguma
prova para apoiar o último palpite. Ou isso não seria suficientemente importante pra
preocupar você?
— Uma pequena prova — eu disse. — Não muita coisa. Mas vai crescer. Alguém
estava atrás daquela cortina no Granada por mais de hora e meia, tão silencioso como
só um tira numa tocaia sabe ficar. Alguém que tinha uma maça. Alguém que sabia que
eu tinha sido atingido com uma maça sem olhar a minha nuca. Você disse a Shorty,
lembra? Alguém que sabia que a garota morta tinha sido golpeada com uma maça
também, embora isso não aparecesse, e não fosse provável, no momento, que ele
tivesse examinado suficientemente o cadáver pra descobrir. Alguém que arrancou as
roupas dela e lanhou o corpo dela de arranhões com o tipo de ódio sádico que um
homem como você podia sentir por uma mulher que tinha criado um pequeno inferno
privado pra ele. Alguém que tem sangue e cutícula debaixo das unhas agora mesmo, o
bastante pra um químico trabalhar nelas. Aposto que não vai deixar Patton examinar as
unhas de sua mão direita, Degarmo.
Ele ergueu um pouco a arma e sorriu. Um amplo sorriso branco.
— E como, exatamente, eu soube onde encontrar ela? — perguntou.
— Almore a viu... saindo ou entrando, na casa de La- very. Foi isso que o deixou
nervoso, foi por isso que chamou você quando me viu rondando por ali. Como,
exatamente, você seguiu ela até o apartamento, eu não sei. Mas não vejo nenhuma
dificuldade nisso. Você podia ter se escondido na casa de Almore e a seguido, ou
seguido Lavery. Tudo isso seria trabalho de rotina pra um tira.
Degarmo assentiu com a cabeça e ficou calado por um momento, pensando. Tinha
o rosto fechado, mas os olhos metálicos lançavam um brilho que era quase de
diversão. A sala estava quente e pesada com um desastre que não podia mais ser
remediado. Ele parecia sentir menos isso que qualquer um de nós.
— Quero sair daqui disse afinal. — Não pra muito longe talvez, mas nenhum tira da
roça vai apontar uma arma pra mim. Alguma objeção?
Patton disse em voz baixa: — Não pode ser, filho. Você sabe que eu tenho de
pegar você. Nada disso está provado, mas eu não posso deixar você sair assim,
simplesmente.
— Você tem uma bela barrigona, Patton. E eu uma boa pontaria. Como imagina me
pegar?
— Estava tentando imaginar — disse Patton, e alisou o cabelo, empurrando o
chapéu para trás. — Não cheguei muito longe. Não quero nenhum buraco na barriga.
Mas também não posso deixar que me faça de palhaço em meu próprio território.
— Deixe ele ir — eu disse. — Não pode sair destas montanhas. Foi por isso que eu o
trouxe aqui.
Patton disse, sobriamente: — Alguém podería se machucar pra pegar ele. Isso não
seria direito. Se tem de ser alguém, que seja eu.
Degarmo deu um sorrisozinho. — Você é um cara legal, Patton — disse. — Escute,
eu ponho a arma de volta debaixo do braço e a gente começa do começo. Sou bastante
bom nisso também.
Enfiou a arma debaixo do braço. Ficou com os braços caídos, o queixo um tanto
projetado para a frente, vigiando. Patton mastigava devagar, com os olhos claros nos
olhos intensos de Degarmo.

— Estou sentado — queixou-se. — De qualquer modo, nào sou tào rápido quanto
você. Simplesmente nào quero parecer covarde. — Olhou-me tristemente. — Por que
diabos você tinha de trazer isso aqui pra cima? Nào faz parte de meus problemas.
Agora veja a enrascada em que estou. — Parecia magoado, confuso, e um tanto débil.
Degarmo jogou a cabeça para trás, um pouco, e riu. Ainda rindo, sua mão saltou
para tornar a pegar a arma.
Nào vi Patton mover-se de modo algum. A sala tremeu com o troar de seu Colt de
fronteira.
O braço de Degarmo foi jogado para um lado e a pesada Smith e Wesson
arrancada de sua mào, batendo contra a parede de pinho nodoso atrás dele. Ele
balançou a mào dormente e olhou-a com espanto nos olhos.
Patton levantou-se devagar. Atravessou vagarosamente a sala e chutou a pistola
pra baixo de uma poltrona. Olhava tristemente para Degarmo, que sugava um pouco de
sangue dos nós dos dedos.
— Você me deu uma vantagem — disse Patton tristemente. — Nào devia jamais dar
uma vantagem a um homem como eu. Atiro há mais anos que os que você tem de vida,
filho.
Degarmo balançou a cabeça para ele, empertigou as costas e encaminhou-se para
a porta.
— Não faça isso — disse Patton calmamente.
Degarmo continuou andando. Chegou à porta e empurrou a porta de tela. Olhou
Patton às suas costas, com o rosto muito branco agora.
— Vou sair daqui — disse. — Só tem um meio de você me impedir. Adeus, gorducho.
Patton não moveu um músculo.
Degarmo cruzou a porta. Seus pés causaram pesados sons na varanda, e depois
nos degraus. Fui até a janela da frente e olhei para fora. Patton ainda não se movera.
Degarmo desceu os degraus e encaminhou-se para o alto da pequena represa.
— Está atravessando a represa — eu disse. — Andy tem uma arma?
— Não imagino que usasse uma se tivesse — disse Patton calmamente. — Ele nào
sabe de motivo algum pelo qual devesse atirar.

— Ora, que desgraça!


Patton deu um suspiro. — Ele não devia ter me dado uma vantagem daquela —
disse. — Me deixou frio. Eu tinha de retribuir. Meio insignificante também. Não vai fazer
muito bem a ele.
— Ê um assassino.
— Não é desse tipo de assassino — disse Patton. — Você fechou seu carro?
Fiz que sim com a cabeça. — Andy vem descendo pelo outro lado da represa — eu
disse. — Degarmo parou-o. Está falando com ele.
— Talvez leve o carro de Andy — disse Patton tristemente.
— Ora, que desgraça! — tornei a dizer. Olhei para Kingsley atrás de mim. Ele
apoiava a cabeça nas mãos e fitava o chão. Voltei a olhar pela janela. Degarmo
desaparecera por trás da subida. Andy estava na metade da represa, andando
devagar, olhando para trás, por cima do ombro, de vez em quando. Ouvimos o som de
um carro dando a partida, longe. Andy ergueu o olhar para a cabana, e começou a
correr voltando, pela represa.
O som do motor morreu à distância. Depois de desaparecer inteiramente. Patton
disse:
— Bem, acho que é melhor a gente voltar ao escritório e dar uns telefonemas.
Kingsley levantou-se de repente, foi à cozinha e voltou com uma garrafa de uísque.
Serviu-se de uma dose respeitável e bebeu-a de pé. Acenou com uma mão na direção
da garrafa e saiu pesadamente da sala. Ouvi as molas da cama rangerem.
Patton e eu saímos silenciosamente da cabana.

41
Patton mal acabara de fazer suas ligações para que se bloqueassem as rodovias,
quando chegou um chamado do sargento do pelotão da represa do Lago Puma.
Saímos, entramos no carro de Patton e Andy guiou muito depressa pela estrada do
lago que passava pela aldeia e pela margem do lago que ia até a grande represa.
Fomos escoltados pela represa até
A DAMA DO LAGO

onde o sargento esperava com um jipe, ao lado da cabana que servia de quartel-
general.
O sargento acenou com o braço e deu partida no jipe. Nós o seguimos por uns 60
metros de estrada até onde uns poucos soldados estavam na beira do canyon, olhando
para baixo. Vários carros haviam parado ali e uma porção de pessoas agrupava-se
junto dos soldados. O sargento saiu do jipe e Patton, Andy e eu descemos do carro
oficial, seguindo o militar.
“O sujeito não parou no sentinela”, disse o sargento, e havia um tom amargo em
sua voz. “Quase o atirou para fora da estrada. O do meio da ponte teve de pular rápido
para escapar. O desta ponta achou demais. Mandou o cara parar. O cara continuou.”
O sargento deu uma olhadela para sua arma e depois para baixo, no canyon.
“Num caso assim, a ordem é atirar”, disse. “O sentinela atirou.” Apontou para os
sulcos na encosta, bem no pé da escarpa. “Ele foi parar lá.”
A uns trinta metros abaixo, no canyon, um pequeno cupê estava esmagado contra
o lado de uma enorme formação de granito. Estava meio de lado, quase virado. Havia
três homens lá embaixo. Tinham afastado o carro o suficiente para puxar algo de
dentro.
Algo que fora um homem.

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