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DE BETÂNIA PARA O MUNDO – O QUE VIMOS E OUVIMOS COMUNICAMOS (cf.


1 Jo 1,3-4). Fr. Moacir Casagrande OFMcap.
Betânia é um lugar histórico-geográfico, mas é também um lugar de
importante significado teológico. Na era cristã, Betânia passou a ser o símbolo da
comunidade de Jesus. Ela é a comunidade judaica que se abre à Boa Nova do Messias
enviado por Deus, Jesus de Nazaré. Da Terra Prometida, chegada do Êxodo, para a
Terra Plenificada (ressurreição) na qual o povo de Deus é introduzido por Jesus. Ela é o
lugar da festa e do serviço a Jesus, onde se demonstra a gratidão pelo dom da vida. Aí
o Espírito-Amor simbolizado pelo perfume, inunda a comunidade.
Geograficamente fica apenas a 3 km de Jerusalém, sobre o monte das Oliveiras,
cerca de 760 metros de altitude, ponto de preparação dos peregrinos para a chegada e
para a partida de Jerusalém. A explicação histórica mais razoável para o nome desse
lugar é CASA de ANANIAS. Local ocupado por um notável judeu vindo do exilio de
Babilônia (Ne 11,32) por volta do ano 450 A.C. Ananias é um nome muito comum entre
os judeus. No início do cristianismo temos a citação de vários Ananias: a) um
usurpador de comunidade (At 5,1-6); b) um cristão da primeira comunidade de
Damasco que batizou Paulo (At 9,10-19); c) um sumo sacerdote de Jerusalém que
tentou presidir o julgamento de Paulo no Sinédrio (At 23,1-11). Situada logo fora da
cidade, Betânia pode ser vista também como periferia, nas suas mais variadas
significações.
Conforme a narrativa dos evangelistas Mateus, Marcos e João, foi em Betânia
que a comunidade cristã ofereceu uma ceia, por ocasião da última páscoa de Jesus.
Todos eles são concordes em dizer que Jesus já se encontrava em Jerusalém quando
foi convidado (Jo 12,1-8) ou se ofereceu para cear em Betânia (Mt 26,1-13; Mc 14,1-9).
A comunidade de Betânia se antecipou na despedida de Jesus. Em seguida Jesus deu
aos discípulos sua ceia de despedida (Mt 26,17-29; Mc 14,12-25; Jo 13,1-17). O
evangelista Lucas nos oferece uma narrativa diferenciada sobre o acontecimento de
Betânia em 10,38-42. Está é a que historicamente inspirou a forma de vida e
apostolado dos primeiros capuchinhos. É a mesma que está na base da fundadora das
Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida.
Betânia é onde o Messias, Jesus, é acolhido e servido pelos que abrem seus
corações e se oferecem como espaço de Deus e para a ação de Deus. Aí se estabelece
uma relação muito estreita entre servir e espalhar o perfume mais caro, mais puro e
do melhor odor possível, de modo que, ação de servir se transforma em agradável
odor e toma a casa inteira.
Espaço geográfico. O espaço geográfico nos primeiros anos de nossa vida,
dependendo da quantidade de tempo em que nele vivemos pode influenciar
fortemente nossos afetos, desenvolvimento de habilidades físicas, compreensão de
mundo, de sobrevivência, inclusive linguagem literal e simbólica, mas não será
determinante. Será sempre um referencial, por meio do qual, avaliamos as demais
realidades com disponibilidade de aprendizagem e de rever os fundamentos de nossas
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referencias. As intenções cultivadas em nosso íntimo é que são determinantes. Só elas


podem visitar a profundidade do ser.
Espaço de missão. Todo e qualquer lugar é espaço de missão, mas o espaço
básico de missão é o coração do/a missionário/a. O tesouro da missão é carregado
dentro do missionário. “Recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre
vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até os
confins da terra” (At 1,8). Ver ainda Lucas 24,44-49; Mateus 28,18-20 e Marcos 16,15-
18. “Os desafios existem para serem superados. Sejamos realistas, mas sem perder a
alegria, a audácia e a dedicação cheia de esperança. Não deixemos que nos roubem a
força missionária! ” (EG 109).
“A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um
ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos
outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero
destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso
considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar,
vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto uma pessoa se revela enfermeira no espírito,
professor no espírito, político no espírito..., ou seja, pessoas que decidiram, no mais
íntimo de si mesmas, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa
coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá
continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias
exigências. Deixará de ser povo” (EG 273).
Espaço teológico é todo espaço de manifestação de Deus que não depende de
nós, pois como nos relata a História da Salvação, a escolha do lugar e do modo é
sempre de Deus. Na terra de Ur (Gn 12,1-9). No carvalho de Mambré (Gn 18,16). No
deserto do Horeb (Ex 3,1-15). No templo de Jerusalém (Lc 1,11-20). Na vila de Nazaré
(L 1,26-38). No caminho de Damasco (At 9,1-9). O templo é apenas lugar de passagem
(Jo 2,13-22). Ver ainda a profecia que Deus impôs a Natã sobre o desejo de Davi
construir um templo para o Senhor (2 Sm 7,1-7). Já dizia o antigo Catecismo: “Deus
está no céu, na terra e em toda parte”. Eis nosso grande desafio a respeito de espaço
teológico: Passar da busca ou preparação de lugar para Deus, para ser habitação,
lugar onde Deus mora (cf. Jo 17,20-21 e Ap 3,20).
Lugar que aponta para o Templo? Sendo lugar de passagem, de peregrinação
do judaísmo, aponta para o templo, mas sendo lugar da nova comunidade,
transcende o templo, ou, dizendo de outro modo, se contrapõe ao Templo. Jesus não
fez celebração alguma no Templo de Jerusalém. Deixou sua memória viva numa casa
situada no monte Sião-Cenáculum e na casa de família situada no monte da Oliveiras
celebrou as novas relações. As duas mais importantes ceias da história cristã, da vida
de Jesus histórico, acontecem fora do Templo. “Destruí este templo e em três dias eu o
reerguerei” (Jo 2,19), diz Jesus às autoridades que questionam seu comportamento
dentro do Templo. Por isso não vejo sentido neste modo de leitura.
Espaço de relações: para que as relações interpessoais sejam humanizadas e
humanizadoras cabe um trabalho em várias dimensões. A primeira diz respeito à
pessoa consigo mesma, nos níveis consciente e inconsciente, trata-se de conhecimento
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aprofundado e ampliado de si mesma, para que possa ter autodomínio não atribuindo
a outros, responsabilidades que são suas. O referencial do ser humano humanizado é
Deus, pois Ele o criou à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27).
A segunda diz respeito às relações que a pessoa estabelece com as demais, nas
dimensões de reciprocidade e/ou de mútua pertença. Isto significa acolher,
compreender, considerar e responder de modo que haja um crescimento na
corresponsabilidade em vista do bem comum de ambas. Preparar a fala como oferta
livre e acolher a resposta com apreço, sem julgamento. Cada pessoa traz consigo uma
história, seja ela bem ou mal interpretada e/ou elaborada, mas é sua história, que
precisa ser acolhida e/ou oferecida, considerada e abordada. O Autor de Colossenses
(Cl 3,12-17) nos dá a excelência da medida dessa relação.
A terceira tem a ver com Deus, com o criador, com o ser originante. É nossa
ligação com a fonte. Jesus explicita isso na conversa com a Samaritana (cf. Jo 4,13-14).
Tornamo-nos humanizadores quando a água cristalina da fonte, flui em nós e através
de nós, em todas as nossas relações. São Francisco via Deus em todas as coisas. “Usava
o mundo como campo de batalha contra os príncipes das trevas, mas o usava, com
relação à Deus como exemplo limpidíssimo de sua bondade. Em qualquer obra de arte
ele exalta o Artífice e atribui ao Criador tudo o que descobre nas coisas criadas. Exulta
em todas as obras das mãos do Senhor e intui, através dos espetáculos de
encantamento, a razão e a causa que tudo vivifica” (2 Cel 165,2-5). Contemplemos
também o belíssimo Cântico do Irmão Sol, profunda obra de espiritualidade universal.
“Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus são o louvor, a glória e a honra e toda
bênçãos... (FF p.104-105).
Mas vejamos a relações em Betânia. São três as narrativas sobre a Betânia
próxima a Jerusalém; a) aquela que somente Lucas nos apresenta em 10,38-52 se
estabelece entre três pessoas: Jesus, Marta e Maria. Nesta a iniciativa é de Jesus. Ele
vaia à casa delas em busca de acolhida e oferece a elas a salvação. O modo de se
relacionar de cada uma é único, explicita a beleza da contribuição de cada ser. Marta e
Maria acolhem Jesus de forma bem diversificada e recebem também a Palavra
salvadora de Jesus de forma diversificada, isto é, personalizada, na medida da
necessidade especifica. A certeza de Marta não é tão certa e a fragilidade de Maria não
é tão frágil, mas o problema não está aí. Está na contraposição. As noções de tempo e
prioridade em Marta e Maria são bem diferentes. A palavra de Jesus lança vigorosa luz
sobre nós;
b) aquela que somente João apresenta em 11,1-44, rica de personagens e de
relações. Nesta Jesus é chamado por Marta e Maria, as irmãs de Lázaro; “Senhor.
Aquele que amas está doente” (Jo 11,3). Quando Jesus decide responder ao chamado
convida os discípulos para o acompanhar. Eles questionam o risco de vida ao qual
Jesus irá se expor, mas a missão de animar ou reanimar o amigo é imensamente mais
nobre que a própria preservação dos perigos (Jo 11,8-10). Jesus dá a própria vida aos
membros de sua comunidade, que depositam sua fé nele. Marta sai ao encontro de
Jesus, que segundo ela, chega atrasado (Jo 11,20-21). Aí temos o solene anuncio
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escatológico “Jesus disse a Marta: Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que
morra, viverá. E quem vive e crê em mim, jamais morrerá. Crês nisso? ” (Jo 11,25-26).
Para Marta Jesus se apresenta como ressurreição.
Nesta narrativa são muitos os personagens: Jesus, os discípulos, os judeus,
Marta, Maria e Lazaro. Os discípulos estão acompanhando Jesus. Os judeus estão
assistindo as mulheres, especialmente Maria que parece a mais vulnerável. Marta é
mais autônoma, ela procura evitar que Jesus seja visto ou encontrado pelos “judeus”
(cf. Jo 11,19-20.28-30). Maria, para a qual Marta revela o segredo no ouvido, acaba
entregando Jesus, atrás dela “os judeus” descobrem a presença de Jesus na vila (cf. Jo
11,31). Em resposta a Maria e os judeus, Jesus ressuscita Lázaro. Jesus fica conturbado
interiormente, em dois momentos: a) ao ver o lamento de Maria e os acompanhantes
(Jo 11,33) sentido profundo de compaixão que o leva ao choro (Jo 11,35); b) ao ver a
murmuração dos céticos (Jo 11,37-38), sentido de profunda irritação que o leva a
ressuscitar Lázaro (Jo 11,39-40). Jesus tira Lazaro do túmulo, tira da morte e tira das
ataduras. Libertação total. Mas o feito de Jesus custou caro. Veja Jo 11,45-54. Temos aí
a melhor catequese sobre a Ressurreição. A ação da comunidade. A ação de Jesus. As
diferentes reações dos membros da comunidade: de Marta, de Maria, dos judeus.
Nosso zelo aplicado ao corpo histórico precisa ser transcendental. Corpo amado,
corpo doente, corpo em decomposição, corpo revivificado.
c) A Betânia da ceia. Jesus foi a convite dos moradores (Jo 12,2). Mateus e
Marcos simplesmente dizem que Jesus se encontrava lá (Mt 26,6; Mc 14,3). Temos aí
Jesus com os discí só p pulos. Marta, Maria e Lázaro. João, porém, acrescenta uma
multidão de judeus (Jo 12,9). O foco está no protagonismo de Maria. Sua relação com
Jesus é especial, inconfundível. Gera muito desconforto, mas testemunha a maravilha
do ser de Deus. Não edir a Deus, mas oferecer e oferecermo-nos, dar-nos à Ele.
Espaço escatológico: A escatologia tem a ver com as últimas coisas, com a
transição, isto é, com o fim do tempo histórico e entrada na eternidade. No encontro
de Jesus na casa de Marta e Maria, segundo Lucas 10,38-42 a escatologia está
estampada nesta palavra de Jesus: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por
muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com
efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (10,41-42). Isto é, Maria
escolheu a que permanece com ela sempre. Por ocasião da ressurreição de Lázaro,
Jesus diz a Marta: “Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.
E quem vive e crê em mim, jamais morrerá. Crês nisso? ” (Jo 11, 25-26). A Maria Ele
diz: “Onde o colocastes? ” (Jo 11,34). Torna a dizer a Marta: “Não te disse que se
creres, verás a glória de Deus? ” (Jo 11,40). Na narrativa da ceia em Betânia, segundo
João, aos incomodados com a atitude de Maria Jesus diz: “Deixai-a; ela está fazendo
isso em vista do meu sepultamento! Pobres sempre tereis convosco, mas a mim nem
sempre tereis” (Jo 12,7-8). Segundo Marcos e Mateus, Jesus diz: “Deixai-a. Porque a
aborreceis? Ela praticou uma boa ação para comigo.... Ela fez o que podia: antecipou-
se a ungir meu corpo para a sepultura” (Mc 14,6.8; Mt 26,10.12).

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