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SUPERANDO O PONTO CEGO DA MENTE

Todos nós aprendemos que há no interior do globo ocular humano um ponto


cego, que é o ponto onde o nervo ótico se encaixa. Não existe maneira de
enxergar nada que incida nesse ponto cego porque não existem células
receptoras visuais ali. Não obstante, quando olhamos para qualquer lado, não
vemos um ponto obscuro a acompanhar nossa visão. Por que razão?
Simplesmente porque o cérebro usa informações visuais das áreas em redor do
ponto cego para compor um "remendo", que é uma aproximação razoável
daquilo que estaríamos vendo, se não houvesse o ponto cego. Ocorre, assim,
um claro processo de criação de uma imagem que efetivamente não existe. Por
exemplo, ao fixar a atenção visual em dois botões colocados a esquerda e a
direita, sobre um fundo branco e lentamente nos movermos para diante e para
trás, o botão direito desaparece, o que já era esperado, mas o surpreendente é
que, em seu lugar, não aparece um ponto obscuro, o que seria de esperar como
sinônimo de ausência de percepção visual. O que vemos no lugar do botão
direito é o mesmo fundo branco, ou seja, diante da falha visual, nosso cérebro
automaticamente preenche o vazio com o padrão visual mais plausível do
momento, isto é, o fundo branco! Como ao redor do ponto só há branco, o
cérebro supõe que aquilo que o ponto cego não está vendo também é branco.

Este é um processo autônomo, isto é, não temos o poder de escolher o padrão


visual que desejamos para substituir o ponto cego. Não importa quantas vezes
façamos o teste. O cérebro sempre fará a escolha por nós.

Agora vamos a outro teste, para comprovar a construção que o cérebro faz
diante de certas situações, mas desta vez, em relação à memória. Leia-se a lista
de palavras abaixo. A seguir, quando terminar, cubra-a com a mão:

Cama, descansar, acordado, cansado, sonho, acordar, sesta, cobertor, modorra,


cochilar, roncar, soneca, paz, bocejar, sonolento.

Agora responda: quais palavras não constam na lista: cama, modorra, dormir
ou gasolina? Se você respondeu "gasolina" acertou, mas certamente não
percebeu que a palavra "dormir" não está na lista. Isso acontece porque as
palavras que compõem a lista estão tão intimamente relacionadas entre si que o
cérebro considerou que a palavra "dormir" também fazia parte dela, ou seja,
nosso cérebro criou uma situação inexistente! Ou seja, quando tentamos nos
lembrar de algo que aconteceu, sempre aparece algo mais em relação às
imagens, sons e demais percepções que registramos em relação ao evento que
desejamos resgatar. Isso sem contar que o que foi gravado passou pela
capacidade de percepção sensorial, emocional e mental do observador. Talvez
isso explique a origem do adágio popular que diz "quem conta um conto,
aumenta um ponto".

Mas, o mais interessante é que também fazemos essas "construções" em


relação ao futuro, e aqui o campo de criação é ainda mais vasto, pois não
existem percepções registradas, conforme explica Gilbert:

Quando imaginamos o futuro, sempre o fazemos no ponto


cego de nossas mentes, tendência que pode nos levar a
imaginar equivocadamente eventos futuros cujas
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consequências emocionais constituem exatamente aquilo


que estamos tentando levar em conta. (Gilbert, 2006).

Quantas vezes imaginamos situações, estados e condições que, quando


vivenciados, se revelam completamente diferentes da construção imaginativa
que anteriormente fizemos? Se os evitássemos, recusando a experiência
prática, viveríamos apenas da construção mental fictícia que criamos deles,
mas quando passamos por eles, passamos a conhecer realidades inteiramente
novas. Por isso a experiência é o mais importante.

Locke era defensor da ideia de que nossos sentidos nos forneciam imagens fiéis
da realidade (realismo). O mesmo faziam os escolásticos. Mas, no século XIX,
Kant criou a teoria do idealismo e expôs a mente humana como uma grande
farsante, conforme explana Gilbert:

Segundo a teoria kantiana do Idealismo, nossa percepção


não é o resultado de um processo fisiológico por meio do
qual nossos olhos enviam uma imagem do mundo para o
cérebro; em vez disso, ela resulta de um processo
psicológico que combina o que nossos olhos veem com o
que já pensamos, sentimos, sabemos e queremos, e que
depois usa a combinação da informação sensível com o
conhecimento a priori para formular nossa percepção da
realidade (Gilbert, 2006).

Em conformidade com o exposto também aduz Will Durant:

O mundo, tal como o conhecemos, é uma construção,


praticamente um produto finalizado - poderíamos dizer -
um artigo manufaturado, ao qual tanto a mente contribui
com suas formas modelares quanto as coisas contribuem
com seus estímulos (Will Durant).

Na década de 20, Piaget descobriu que as crianças não fazem distinção entre as
características reais de um objeto e a percepção que têm dele; acreditam que as
coisas são como parecem ser, e ainda, que os outros as veem da mesma
maneira. A criança não entende como mentes diferentes podem conter coisas
diferentes. De acordo com a classificação acima, as crianças são "realistas",
mas conforme amadurecem, vão chegando à conclusão de que percepções não
passam de pontos de vista e que o veem não corresponde necessariamente ao
que a coisa é; além disso, que duas pessoas podem perceber a mesma coisa e
acreditar nela de maneiras diferentes. Tornam-se, assim, gradativamente,
"idealistas". Piaget concluiu que a criança tem um pensamento realista e que
seu desenvolvimento consiste em escapar desse realismo inicial. Entretanto,
mesmo entre adultos, as "recaídas" realistas são muitas e presentes, isto é, não
há, na prática, uma real superação do realismo. No adulto, há sim a tendência a
disfarçá-lo. A primeira percepção de algo é sempre realista. Em seguida, o
objeto é comparado com o que temos na memória e com o que nossa
imaginação sugere. Criamos então uma opinião pessoal sobre o assunto, que
certamente será razoavelmente falsa, pois é baseada nas construções fictícias
do cérebro.

A esta altura, a noção de como estamos sujeitos a ilusão, latu sensu, já começa
a fazer sentido. Ao mesmo tempo, a constatação de que somente a experiência,
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ou seja, a interação com o objeto pode nos fornecer uma noção mais fiel (ainda
assim filtrada por nossas limitações de percepção e ação). Por isso não se deve
obstar a experimentação, com todos os seus eventuais erros e acertos, pois
somente assim podemos reduzir o impacto do mundo ilusório sobre nosso ser.

(Baseado no livro "O que nos faz felizes", de Daniel Gilbert)


Maria Clara Gallicchio Valerio (adaptado)

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