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A JORNADA DE DEUS EM CARL JUNG

Dr. Pravin Thevathasan

Tradução: Robert Barbosa Batista


As teorias de Jung penetraram mais profundamente na Igreja Católica do
que qualquer outro terapeuta. Há uma aparente aura mística que cerca seu nome
quando comparado ao ateísmo declarado de Freud ou ao humanismo de Carl
Rogers. Retiros espirituais inspirados por ele são populares em certos círculos
católicos. Suas doutrinas podem ser encontradas até mesmo na cultura popular,
como os filmes Star Wars, que podem, em parte, ser considerados aventuras
junguianas no espaço sideral.

Jung nasceu em 1875. Seu pai era pastor luterano e sua mãe era
espiritualista. Sua infância foi solitária e infeliz, ele desenvolveu uma grande vida
de fantasia em compensação. Ele era extremamente observador e estava
preocupado com os problemas conjugais de seus pais e com a crescente perda de
fé de seu pai. Os problemas conjugais de seus pais pareciam ter se originado de
suas personalidades muito diferentes. Seu pai era um introvertido que sofria de
crises de depressão e sua mãe era animada e jovial, com um interesse doentio
pelo oculto. Ele tentou comunicar suas próprias experiências de Deus a seu pai
na tentativa de restaurar a fé de seu pai. Infelizmente, ele não teve sucesso, pois
as relações entre pai e filho eram ruins e porque o próprio Jung perderia sua fé
no Cristianismo ortodoxo desde muito jovem.

No entanto, ele teria um interesse vitalício no efeito que a religião tem


sobre as pessoas. O precoce Jung se perguntava: por que Deus arranjou as coisas
para que Adão e Eva o desobedecessem? Por que ele ordenou a um pai que
matasse seu filho? O motivo Abraão-Isaac é significativo em vista de seu próprio
relacionamento ambivalente com seu pai.

Quando ainda era criança, ele desenvolveu escrúpulos, acreditando que


muitos de seus pensamentos eram blasfemos. Ele finalmente concluiu que Deus
queria que ele tivesse esses pensamentos assim como queria que Adão e Eva
caíssem. Novamente, isso é profundamente significativo, pois Jung mais tarde
acreditaria que totalidade significa integrar as partes boas e más da
personalidade de alguém.

Além de seu pai, Jung tinha oito tios que eram clérigos e, portanto,
esperava-se que ele fosse chamado para o ministério. Mas a essa altura ele já
havia desenvolvido um interesse por filosofia e decidiu estudar medicina para se
tornar psiquiatra.

Na faculdade de medicina, desenvolveu seu interesse pelo espiritualismo.


Sua tese de doutorado foi o estudo de uma jovem médium, uma prima dele, que
em seus transes alegou que ela estava possuída pela personalidade de um
homem muito mais velho.

Em 1907, Jung publicou sua obra The psychology of Dementia Praecox.


Sigmund Freud ficou interessado e o convidou para ir a Viena. Os dois se
conheceram e uma forte relação emocional se desenvolveu entre eles. Jung viu
em Freud a tão necessária figura paterna e Freud a princípio considerou Jung
como seu sucessor natural no movimento psicanalítico. Ele foi um colaborador
muito próximo de Freud por um período de cinco anos entre 1907 e 1912. Mas
tudo terminou em lágrimas quando Jung discordou da crença de Freud na base
sexual da neurose. O autoritário Freud certamente não se impressionou com essa
dissidência.

Após esse rompimento com Freud, ele quase sofreu um colapso mental.
Ele deliberadamente permitiu que seu lado irracional funcionasse livremente e
manteve anotações detalhadas de suas estranhas experiências, sonhos e visões.
Certamente muitos eventos estranhos foram relatados nessa época. Sua casa
parecia assombrada, suas filhas afirmavam ter visto fantasmas e ele mesmo viu
uma multidão de espíritos invadindo a casa. Quando eles desapareceram, ele
entrou em um estado de escrita automática de três dias, levando à produção de
sua obra intitulada The seven sermons.

Jung foi visitado por um guia espiritual que ele chamou de Filêmon, um
"pagão que trouxe consigo uma atmosfera egipto-helenística com uma coloração
gnóstica". Embora ele possa ter sugerido que o guia espiritual era uma invenção
de sua imaginação, na verdade, no que dizia respeito a ele, era um ser real, "um
velho com chifres de touro. Eu estava andando para cima e para baixo no jardim
com ele, e para mim, ele era o que os índios chamam de Guru."

Ele também conheceu outro guia espiritual chamado Ka. "A expressão de
Ka tinha algo demoníaco - quase se poderia dizer mefistofoleano." Esta é uma
observação altamente pertinente, pois Jung, como Freud, era fascinado pela lenda
de Fausto-Mefistófeles sobre o médico que vendeu sua alma ao diabo para obter
conhecimento secreto. A essa altura, Jung já havia obtido uma série de mensagens
de seus guias espirituais que deveriam determinar a natureza de suas crenças. O
especialista junguiano Dr. Anthony Storr concluiu: "Jung pensava que esses guias
espirituais existiam em um mundo imperecível e se manifestavam de tempos em
tempos por meio da psique de um indivíduo."

Jung desenvolveu um interesse por religião, ou pelo menos sua versão


particular de religião. Para a religião ser autêntica, ele sentiu que não deve ser
divorciada do inconsciente. Esse interesse o levou a ler obras de alquimistas. Para
Jung, seus textos obscuros eram expressões de fantasias inconscientes. Ele
escreveu: "A experiência do alquimista foi em certo sentido minha experiência e
seu mundo era meu mundo. A possibilidade em uma comparação com a
alquimia e a cadeia intelectual ininterrupta de volta ao gnosticismo deu
substância à minha psicologia." Essa é a chave da psicologia junguiana, de sua
crença de que as fantasias inconscientes são universais e podem aparecer em
qualquer idade de forma semelhante. Eles são, para Jung, a base da expressão
religiosa. O dogma da Trindade, a Missa e a personalidade de Cristo podem ser
vistos e entendidos como expressando aspectos essenciais da psique.
Se esses símbolos permanecerem inconscientes, não estaremos realmente
inteiros. O processo de se tornar um todo é conhecido como individuação, a ideia
central de sua psicologia. Em casos de pacientes que perderam a fé, a
individuação os levou a criar seus próprios mitos expressos por meio de sonhos
e fantasias e lhes permitiu ganhar a totalidade.

Seu conceito de verdade psicológica, portanto, não é científico. Segundo


Jung, porque uma crença é investida de grande significado emocional, esta deve
ser verdadeira. Dogma nada mais é do que algo irracional expresso por meio da
imaginação. Ele não estava interessado na verdade objetiva, mas apenas nas
fantasias subjetivas.

Segundo Jung, a psique tem três níveis: o consciente, o inconsciente


pessoal e o inconsciente coletivo. A crosta mais externa da personalidade de uma
pessoa é a persona, a parte de nossa personalidade que é exposta ao mundo
exterior. A mente inconsciente é, por assim dizer, a imagem espelhada da mente
consciente. Em outras palavras, a própria pessoa masculina é inconscientemente
fortemente feminina, o homem tímido, inconscientemente corajoso e assim por
diante.

O inconsciente pessoal é uma fração relativamente insignificante do


material inconsciente total. Aquilo que está abaixo do inconsciente pessoal é
conhecido como inconsciente coletivo, que contém as crenças e mitos coletivos
da raça à qual a pessoa pertence. Os níveis mais profundos do inconsciente
coletivo são conhecidos como o inconsciente universal, comum a todos os seres
humanos, até mesmo à ancestralidade primitiva e animal do homem.

Para Jung, o inconsciente coletivo não é simplesmente uma teoria.


Realmente existe. Seu sistema de psicoterapia se baseia em colocar o paciente em
contato com o inconsciente coletivo de cura por meio, por exemplo, da
interpretação de sonhos.

Arquétipos é outro termo que ocorre com frequência na teoria junguiana.


Eles são alegados como formas inatas de intuição que nos levam a experimentar
a vida de uma maneira condicionada pela história passada da humanidade. Essas
imagens arquetípicas incluem deuses e deusas, anões, gigantes ou podem
aparecer como animais e plantas fantásticos ou reais.

Qual foi sua atitude em relação ao Cristianismo? Ao responder a isso,


deve-se sempre lembrar que a totalidade para ele só é possível quando
integramos a sombra negativa e o lado escuro com o ego mais aceitável e
consciente. Em outras palavras, a busca da bondade não pode levar à totalidade.
Em sua obra Psychology and Alchemy, Jung escreveu: "A civilização cristã se
mostrou oca em um grau assustador. O homem interior permaneceu intocado.
Sua alma está fora de sintonia com suas crenças externas." Totalidade e não
santidade é o que importa. A civilização cristã falhou devido à falta de cultura
psicológica. É a psicologia que “abre os olhos das pessoas para o verdadeiro
significado dos dogmas. Muito poucos experimentaram a imagem do divino
como a posse mais íntima de suas almas". Sua ambivalência em relação ao
Cristianismo se manifesta quando, por um lado, ele recomenda aos seus
pacientes que retornem à Igreja a que pertenciam e, por outro lado, ele escreve:
“Não há Divindade, não há submissão ou reconciliação com uma Divindade. O
lugar da Divindade parece ser ocupado por todo o homem." O homem todo
realiza sua irmandade com todas as coisas vivas, até mesmo com a matéria
inorgânica e o próprio cosmos. O homem todo deve realizar três coisas. Em
primeiro lugar, ele deve encontrar sua sombra e aprender a viver com o aspecto
mais assustador de si mesmo. Em segundo lugar, ele deve encontrar os
arquétipos do inconsciente coletivo, especialmente por meio do trabalho com
sonhos. Em terceiro lugar, se ele tiver sorte o suficiente, no final encontrará
aquela pérola de grande valor, o arquétipo da totalidade, o eu.

Jung afirmou ter identificado três estágios de evolução religiosa. O


primeiro estágio foi a era arcaica dos xamãs. Isso foi seguido pela antiga
civilização de profetas e sacerdotes. Então veio a herança cristã dos místicos. Em
cada estágio da história religiosa, todos os seres humanos compartilham da
divindade interior, o numinoso. Quando Jung fala sobre Deus, ele está realmente
falando sobre o Deus interior, o eu. Uma vez ele foi questionado se ele acreditava
em Deus. Ele respondeu: "Não acredito. Eu sei." Ademais, Jung fez um ato de fé
na existência do inconsciente coletivo, dos arquétipos e interpretou o
Cristianismo à luz de suas crenças. Como exemplo, vamos examinar a doutrina
da Trindade. Para Jung, essa doutrina está repleta de significado psicológico. O
Pai simboliza a psique em sua totalidade original indiferenciada. O Filho
representa a psique humana e o Espírito Santo o estado de submissão autocrítica
a uma realidade superior. Para que esse mito seja autêntico, ele deve ser
encontrado em outras culturas e Jung encontrou ideias trinitárias semelhantes
nas tradições místicas da Babilônia, do Egito e da Grécia.

No entanto, ele acreditava em uma quaternidade, a quarta pessoa sendo o


princípio do mal. Sem a oposição de Satanás, que é um dos filhos de Deus, a
Trindade teria permanecido uma unidade. Em termos junguianos, sem a
oposição da sombra ou da quarta pessoa, não haveria desenvolvimento psíquico
e nem atualização do self. Jung passou a acreditar que Maria se tornou a quarta
pessoa após sua Assunção. Ela é o elemento feminino necessário, a oposição da
sombra.

Sua ideia de integridade significa que Deus aprova o mal. Ele escreveu:
"Pois eu sabia por experiência que Deus não se ofendia com a blasfêmia, pelo
contrário, ele poderia encorajá-la, porque ele desejava evocar não apenas o lado
brilhante e positivo do homem, mas também sua escuridão e impiedade, Deus
em sua onisciência arranjou tudo para que Adão e Eva pecassem. Deus pretendia
que eles pecassem." Ademais, Jung culpa Deus pela queda de Adão e Eva. Ele os
faz pecar porque Ele mesmo é bom e mau. Em seu ensaio sobre Jó, Jung afirma
que Yahweh desejava o amor da humanidade, mas se comportava como um
tirano irrefletido, irritante e indiferente à miséria humana. Como Adão, que é
miticamente casado com Lilith, filha de Satanás, e com Eva, Yahweh é casado
com Israel e Sofia, que compensa o comportamento de Yahweh mostrando aos
seres humanos a misericórdia de Deus. Sua aparição nas visões de Ezequiel e
Daniel leva a uma mudança fundamental. Deus se transforma fazendo-se
homem. Yahweh prejudicou as criaturas que O superaram e somente tornando-
se homem ele pode expiar Sua injustiça.

Jung parece ter perdido a fé durante a infância. Ele escreveu: "O Senhor
Jesus Cristo foi para mim inquestionavelmente um homem e, portanto, uma
figura falível." Mantendo uma tradição proposta pelos gnósticos, ele acreditava
que Cristo é a representação simbólica do arquétipo mais central, o self. No
entanto, a sublime bondade de Cristo significa que, de uma perspectiva
psicológica, ele carece de integridade. O que falta é o lado negro da psique, o
elemento do mal. Cristo recebe integridade na pessoa do Anticristo.

A Igreja ensina que Cristo morreu para nos salvar. Para Jung, essa é uma
racionalização enganosa para um ato de crueldade inexplicável. O irado Yahweh
do Antigo Testamento está cheio de culpa e precisa de expiação. Jesus morre no
Calvário para expiar os pecados de Deus Pai.

Para concluir, citando três eminentes psiquiatras. O psiquiatra católico


Doutor Rudolf Allers escreveu: "Para Jung, Deus não é uma realidade
transcendente da qual o homem pode obter algum conhecimento pela razão
natural, mas sim um arquétipo, uma tendência básica da natureza humana. A
ideia de Deus e de um futuro a vida não é vista como uma expressão da realidade,
mas como uma necessidade subjetiva correspondente."

O Dr. Gregory Zilboorg observou: "Aquilo que Jung chama de religião não
é religião de forma alguma. Mesmo de um ponto de vista empírico, parece ser
apenas uma manifestação muito acidental."

O Dr. Anthony Storr escreveu: "Uma boa parte da psicologia junguiana


pode ser vista como a tentativa de Jung de encontrar um substituto para a fé
ortodoxa na qual ele foi criado, mas contra o qual ele começou a se rebelar desde
muito cedo."

Referências

David Wulf: Psychology of Religion (John Wiley)


C.G.Jung: Collected Works (Princeton University Press)

Victor White: God and the Unconscious (Harvill Press)

Frieda Fordham: An Introduction to Jung's Psychology (Penguin)

Anthony Storr: Jung (Fontana Press)

Link do texto original:

https://www.catholicculture.org/culture/library/view.cfm?recnum=4676

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