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musicalidade cênica

ou cenicidade
musical

RESUMO >
Carlos Alberto Silva

Musicalidade cênica, ou cenicidade musi-


cal, como aqui apresentada, se referencia nas
relações entre parâmetros acústicos e os de-
mais componentes sintáticos da linguagem
da encenação, a partir dos fundamentos da
Rítmica, das proposições da vanguarda ar-
tística e dos primeiros encenadores do século
XX. A proposição converge para a percepção
da vocalidade no eixo da articulação de que
música é movimento e movimento é música.

Palavras-chave:
Musicalidade. Cenicidade. Encenação.

59
doi: 10.20396/pita.v7i2.8651454

“Musicalidade cênica ou
cenicidade musical”

Carlos Alberto Silva1

Quais os laços entre aspectos da linguagem da encenação e de um


princípio formativo que se fundamenta em conteúdos musicais, em
especial no que diz respeito à formação e atuação dos profissionais da
1
Carlos Alberto Silva
Instituição a que está vinculado: cena?
ECA/USP Para assuntar como é tecida essa teia, é preciso resgatar o surgi-
Titulação: Doutorado mento e a constituição da função do encenador. Outro fio tecido é A
E-mail para contato: carlos.car- Rítmica de Émile Jaques-Dalcroze2 (1865-1950), seu criador, precur-
lossilva.2000@gmail.com sor e formulador.
Um canal superficial de contato evidente entre os dois universos
refere-se à assimilação de elementos musicais a serem articulados cena

2
Nasceu em Viena, onde viveu até os 10 anos. Filho de pai suíço e mãe teu-
to-suíça. Em Genebra frequentou a escola formal e o conservatório. Aos 18
anos foi estudar interpretação na Comédie Française, em Paris, e prosseguir
com sua formação musical com Fauré e Delibes. Com 29 anos atuou como
regente substituto no Théatre des Nouveautés, na Argélia. A música étnica
dessa região muito o impressionou, oferecendo preciosos estímulos. Mais
tarde se estabelece em Viena para estudar na Academia de Música e Artes
Cênicas, onde aperfeiçoa seus conhecimentos com Bruckner e Fuchs, entre
outros. Dois anos depois, volta a Paris para completar seus estudos. Conhece
o musicólogo e pianista suíço Mattis Lussy (1828-1910), o primeiro, segun-
do Dalcroze, a se ocupar das leis de expressão musical e do ritmo. Por meio
de Lussy Dalcroze intensificou conhecimentos a respeito de aspectos ocultos
e complexos do fenômeno musical, tomando consciência de que toda ex-
pressão musical tem um fundamento fisiológico. Em 1891 foi trabalhar no
conservatório de Genebra, local em que, além de professor de história da
música, de harmonia, de percepção e de solfejo, dedicou-se à composição.
Reorganizou o curso de solfejo, fundamentando seu ponto de vista na ex-
pressividade e no movimento. Essa época marcou o início de suas pesquisas
sobre as conexões entre a música e sua expressão coreográfica com base no
fenômeno rítmico. A partir de 1902, seu método espalhou-se pelo mundo.
Em 1906, acontece a publicação de seu primeiro livro, Ginástica Rítmica, em
que registrou a epígrafe: “ordenar o movimento significa educar o espírito e
a mente para o ritmo”. Constatou que a Rítmica mostra um efeito produtivo
em processos pedagógicos.

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por quem desenvolve processos teatrais. Essa pers- pois para a ginástica rítmica significa
pectiva, entretanto, compromete abordagens mais estar ou não estar. Cada um deveria
amplas e profundas, uma vez que seu foco é o domí- indispensavelmente compreender que
nio técnico de informações e parâmetros musicais, a ginástica rítmica é uma experiência
cujo exemplo mais evidente são os musicals, onde pessoal, e não um “método”, um sistema.
elementos musicais estão marcadamente presentes.
Este tipo de manifestação, porém, é uma forma mui-
to específica e delimitada de composição cênica. No âmbito da rotina artística, até então, parti-
Por isso, não vou considerar, notadamente, o caráter cipar ativamente e apreender a experiência do pro-
ôntico de acontecimentos teatrais, revelado nos en- posto não estavam na ordem do dia para a grande
tes múltiplos e concretos, mas a natureza ontológica maioria.
que abrange um escopo mais amplo e fundante, reto- A impressão inicial, surpreendente e indefinida,
mando, num patamar mais modesto, temas presen- sugerida no caso narrado por Appia, parece ter se
tes na origem da tragédia, conforme a exposição de perpetuado no desenvolvimento da Rítmica. Para
Nietzsche (1972). Ulrich Mahlert (2000) ela se presta a uma multipli-
Dessa forma, o propósito do que será contemplado cidade de empregos, mas também desconhece onde
ultrapassa dilemas técnicos da formação e da criação está seu centro. Isso a impede de desenvolver uma
nas artes da cena. O que é tomado como fundamen- identidade convincente, embora seu potencial de
to é a abordagem das relações mencionadas a partir aproveitamento seja notório e notável, isso faz com
do enfoque de gêneses de manifestações que, se não que muitas de suas ideias e práticas se tornem alta-
têm a mesma origem, têm ao menos a mesma essên- mente eficazes em outros campos de atuação sem
cia. Daí a relevância em aproximar procedimentos e que sua proveniência seja conhecida, o que é cau-
reflexões pertinentes à Rítmica e ao trabalho no âm- sado por um tipo de uso diluidor, isto é, já após um
bito teatral, que ultrapasse especificidades de gênero, primeiro contato, passa-se a empregar o que foi assi-
forma e estilo. milado sem nenhuma restrição.
Lembrando que a construção teatral já foi centrada No entanto, para que os preceitos da Rítmica se-
na declamação estática de um texto, e a interpretação jam praticados de forma consequente, é preciso es-
coreográfica dependeu, e não raro ainda depende, da clarecer quais são suas possibilidades e ofertas espe-
competência em, apenas, reproduzir movimentos. cíficas em relação a outros conteúdos. Desse modo,
Pontuamos a experiência de Adolphe Appia (apud dada sua abrangência e verticalidade, prefiro a noção
BABLET, D.; BABLET, M-L., 1982, p. 27) sobre as de “fenômeno acústico”, ao invés de expressões como
aulas de Dalcroze em 1906: “elementos”, “parâmetros” ou “dimensões musicais”.
Componentes sonoros figuram na linguagem
teatral como pilares, ou melhor, como elementos
Os participantes esperavam uma quan- expressivos fundadores e fundamentadores. Como
tidade de palestras e colóquios, ilus- dito, Nietzsche (1972) traça circunstâncias do nas-
trados por exercícios dos alunos. Cada cedouro do teatro na civilização ocidental – a teogo-
um acreditava que voltaria para casa nia, a tragédia e a Musiké gregas – que se imbricam
conhecedor das condições de uso da gi- nos fundamentos teóricos e práticos do método de
nástica rítmica. Muito longe disso, em Dalcroze, para quem, não existiam diferentes “artes”,
cinco minutos Dalcroze nos fez enten- e dentre elas a música, na qual ele formava seus alu-
der que se deveria participar ativamente nos, mas sim a “arte”. E mais, Dalcroze concebia o ser
dos exercícios para apreender a grande humano como totalidade. A definição platônica de
experiência do que propunha. Todos se ritmo (PLATÃO apud BARBA; SAVANESE, 1995)
recusaram. Como? O entendimento não ratifica esse viés: ritmo é a emoção liberada em mo-
basta, o corpo todo tem que se ocupar? vimentos ordenados.
Deve-se experimentar esse estranho pro- A Rítmica resgata uma necessidade espontânea
cedimento em si próprio? O momento foi e arquetípica da humanidade: a relação entre movi-
cômico e sério ao mesmo tempo. Sério, mento musical e corporal como forma ancestral de
expressão humana.

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Para os hindus, o canto, a execução instrumen- A constituição da Rítmica foi marcada, desde o
tal e a dança. Para os gregos, como atesta a significa- seu início, por discussões a respeito do caminho pelo
ção das Musas, o canto e a dança, corroborada nas qual ela deveria ser conduzida, isto é, qual seria sua
observações de Jaa Torrano (1981, p. 23): “Um verbo qualidade distintiva fundamental. As posições de-
como mélpomai (‘cantar-dançar’), donde o nome fendidas podem ser sintetizadas em dois enfoques: o
Melpoméne para uma das Musas, indica o quanto primeiro pensa a Rítmica como uma disciplina dedi-
era sentido pelos gregos antigos como uma unidade cada exclusivamente à pedagogia musical e direcio-
os atos de cantar e dançar, a voz e o gesto”. nada à formação de um tipo específico de professor
Tudo som. Tudo cena. Sons para serem vistos; de música; o segundo acredita que ela deve ser uma
movimentos para serem ouvidos. Mais do que ima- disciplina de ligação entre diferentes áreas, servin-
nência, seriam uma única coisa: “música é movimen- do como polo integrativo no fazer pedagógico, e que
to, e movimento é música”, afirma um dos axiomas pode ser praticada por qualquer profissional desde
da Rítmica, o que propõe que o vínculo ao campo que saiba articular o material musical.
teatral que se ocupa com articulações entre voz, mú- Controvérsias dessa ordem marcaram a Rítmica
sica e encenação, é ainda mais instigante, uma vez que, mesmo depois de um significativo tempo des-
que os materiais a serem trabalhados são os mesmos. de as primeiras experiências, sofria com ceticismo e
desconfiança.
O Instituto Rhythmikon implementou uma di-
Movimentos pessoais. nâmica de formação que foca, antes de tudo, a pes-
quisa e experimentação dos princípios da Rítmica
Dos vários desdobramentos da Rítmica, foi na por quem participa, de diferentes maneiras, para
vertente como Princípio Formativo e Escola de Mo- aprofundar de forma consistente a percepção e a
vimento que minhas inquietações reverberaram. compreensão do trabalho. Isso requer tempo, além
Não obstante a “elementarização” dos aspectos mu- de disponibilidade de imersão que envolve mais do
sicais, assume e aprofunda noções que afirmam os que habilidades técnicas.
fundamentos originais. Esse contato se deu no con- Os movimentos da minha relação de aprendi-
vívio com Amélie Hoellering, com quem eu iniciei zado com Amélie refazem, guardadas as particula-
meu envolvimento no universo do método de Dal- ridades, os de Amélie com Elfriede Feudel e desta
croze. Fundadora, diretora e professora por cerca de com o próprio Dalcroze. Amélie formou-se na
35 anos do Instituto Rhythmikon de Munique – pri- Escola Superior de Música de Leipizig, então diri-
meiro e único instituto particular de formação em gida pela professora Feudel, que havia se formado
Rítmica na Alemanha e reconhecido oficialmente diretamente com Dalcroze numa época de intensa
pelo Ministério da Educação e Cultura –, partilhou, pesquisa, formulação, sedimentação e divulgação
direta ou indiretamente, da proximidade dos prota- dos princípios e procedimentos da disciplina, cuja
gonistas da história da Rítmica. revisão é uma constante. A experiência e o contato
Foi uma grata coincidência a oportunidade de pessoal com algum tipo de processo, orientado por
me formar no último curso que Amélie, aos 72 anos, quem já passou por ele, são fundamentos essenciais
acompanharia. Embora tenha contribuído na cons- nas propostas advindas da metodologia da Rítmica.
trução de uma obra histórica, raramente é citada, Feudel privilegiou o caminho para uma educação de
talvez por ter recusado boa parte dos convites para todo sistema neuromuscular, visando uma formação
publicações. O próprio Dalcroze havia dito, em 1944, corporal e mental equilibrada.
mais de 40 anos depois de ter iniciado suas pesqui- A articulação das condições tempo, espaço,
sas, que ainda pensava ser muito difícil explicar em energia e forma – matéria-prima das atividades da
palavras as proposições da Rítmica, já que apreendê Rítmica – emana musicalmente da sua relação com
-las requer uma intensa experiência com o processo. o corpo. Feudel (1965, p. 8-9), contudo, pondera que
É possível que por esse motivo tenha vetado a pu- as leis embutidas nas combinações desses elementos
blicação impressa de seu método, considerando que eram válidas para todo e qualquer movimento hu-
apenas pela leitura não era viável preencher todos os mano, e por ele ganham concretude independente do
requisitos para assimilação. movimento estar vinculado à manifestação acústica

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da música. Ela acreditava que o movimento de- Educação pela Rítmica é uma aborda-
veria ser tão valorizado quanto a palavra. As impres- gem de educação pelo movimento, rela-
sões trazidas pelos órgãos dos sentidos não devem cionada espontaneamente à música. Ela
ser apenas assimiladas, mas também elaboradas em observa, frequentemente, com o mesmo
um tipo de realização mental que é projetada, entre- grau de importância dois efeitos elemen-
tanto, através do movimento corporal. Corpo e espí- tares da música: por um, lado o efeito de
rito são integrados em atuação fertilmente recíproca. reatar, enraizar e, também, de desinibir
Amélie Hoellering entendia que os movimentos e entusiasmar, e, por outro lado, o efeito
e as experiências corporais vivenciadas, primeira- de abstração, ordenação, harmonização
mente de uma forma inconsciente, são conduzidas e objetivação (HOELLERING, 1968)
através de atividades da Rítmica a uma apreensão [Tradução minha].
mental e a um controle consciente. E, sem perder de
vista o desafio de encontrar soluções autonomamen-
te, chegando, até um determinado grau, a estipulá A partir de um trabalho exaustivo, pormeno-
-las, os envolvidos na dinâmica devem adequar-se rizado e profundo para transpor um padrão rítmi-
constantemente às realidades de delimitação e orde- co, deve haver liberdade, de modo que o exercício
nação, o que implica em diálogo. Dessa forma, de- se torne um jogo (Spiel) e tome forma (Gestalt). A
preende-se que uma proposição rítmica atinge seu ligação às leis rígidas de um padrão rítmico estabele-
objetivo quando, entre esses polos, vivencia-se um ce uma dupla possibilidade: o controle e o comando
ponto de equilíbrio de forma plena, ainda que só por consciente; e a liberação de emoções sem o risco de
um instante. ser inundado por impulsos precipitados.
Amélie alargou os contornos do método de É preciso um esforço para traduzir todos os ele-
Dalcroze continuando o que havia sido iniciado por mentos do medium música para o medium corpo
Feudel, que desenvolveu o método em direção a uma em movimento. Assim, ambos os meios apresentam
elementarização voltada aos princípios formativos um mesmo fenômeno em duas materialidades pos-
fundamentais: síveis e intrinsecamente coexistentes. A música é re-
dimida através do movimento e este se torna música.
O integrar música e movimento significa, portanto,
[...] Considera-se como objetivo da aula,
que os dados e leis da música devem ser assumidos
ao contrário da maneira como se vê em
objetivamente pelo e no movimento para que seus
Genebra [no Instituto Dalcroze], menos
impulsos se conectem de forma a permitir a con-
um constante crescimento da disciplina
quista da liberdade de expressão individual.
entre corpo e mente, e mais uma aspira-
Após a Primeira Guerra Mundial, além da Rít-
ção ao desenvolvimento da espontanei-
mica como Princípio Formativo, surgiram vários
dade, da improvisação e da criatividade,
desdobramentos e inserções, como a do encenador
voltando-se constantemente aos elemen-
russo Meyerhold (1874-1940), que se referia a Dal-
tos básicos de tempo, espaço e forma, isto
croze como teórico do teatro. Historiadores da dan-
é, privilegia-se mais um aprofundamen-
ça indicam a profunda influência do sistema Delsar-
to, uma intensificação do que uma com-
te (1811-1871)/Dalcroze na dança contemporânea.
plexificação (FEUDEL, 1965, p. 8).
Em todo caso, é certo que a Rítmica volta-se
para a concepção da expressão musical ter um fun-
damento fisiológico relacionado em permuta com as
Para ela, boas aulas, sobretudo para leigos, de-
experiências musicais, corporais e emocionais.
veriam garantir que as articulações elementares
Em 1911, Dalcroze fundou e dirigiu o Centro
estejam seguras e possam ser coerentes até que o
de Formação em Música e Ritmo (Bildungsanstalt
proposto seja executado com naturalidade e fluidez.
für Musik und Rhythmus), em Hellerau, na região
Por isso, Amélie insistia que se intencionamos uma
de Dresden. Esse lugar abrigou um enorme com-
formação totalizante é preciso, essencialmente, dis-
plexo de instituições que tinha a missão de repen-
por de mais tempo do que para o aprendizado de
sar e reformular o ensino alemão. Hellerau ficou
habilidades específicas e isoladas.

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ficou conhecida como a catedral do futuro. Os Pois o “saber-fazer” abarca procedimentos físicos e
acontecimentos nesse lugar influenciaram artistas intelectuais desenvolvidos com a intenção de pro-
como Stanislawski e Meyerhold; contribuíram para mover uma “consciência” do fazer de modo mais
o amadurecimento de ideias de gente como Adolphe amplo. Essa ideia é expressa por Dalcroze por meio
Appia, Mary Wigmann, Gertrude Falke, Valerie Kra- da valorização do ofício do artesão, que concebe
tina e Marie Rambert; além de contar com discípulos e realiza o que foi projetado por ele mesmo: o sa-
como Diaghilew, Fokin, Nijinsky, Balanchine, etc. ber, o fazer e o saber-fazer. Essa noção, muito pró-
Reinhard Ring (2000) lembra que o método de gi- xima da poiésis, pode ser entendida como o polo
nástica rítmica deu importantes estímulos e impulsos gerador de todo o desenvolvimento da Rítmica.
à dança expressiva que vinha se formando na época.
Apesar da diversidade de empregos da expressão, fica
evidente que Dalcroze entende que a noção de Rítmi- Musicalidade cênica ou cenicidade musical
ca reúne tanto elementos artísticos quanto científicos.

Eu sonho com uma educação musical Para mim, a descoberta dos princípios
na qual o próprio corpo desempenhe o fundamentais da encenação só pode
papel de mediador entre os sons e o nos- ter um ponto de partida; a Rítmica foi
so pensamento, e que seja o instrumento decisiva sobre a direção que eu devia
espontâneo e direto de sentimentos. Que tomar. Através dela, eu me libertei dos
a percepção auditiva seja, assim, fortale- entraves que mantêm uma obra de arte
cida através de diversos órgãos que pos- aprisionada a certos limites (APPIA
sam vibrar e soar em nós. A respiração apud BABLET; BABLET, 1982, p. 81).
destacaria e detalharia o ritmo das fra-
ses e colocaria em movimento um jogo
dinâmico dos músculos estimulando- Esta declaração evidencia como era inevitável
nos musicalmente (DALCROZE, 1921). resgatar, nas artes da cena, os aspectos musicais in-
trínsecos a elas e a relação natural e arquetípica do
fato acústico com elementos da arte do encenador,
A partir disso, concluiu que o primeiro instru- estruturando recursos além do uso trivial da mú-
mento musical a ser construído era o corpo, pois en- sica na cena, fundando, assim, uma noção de mu-
tendia que não há som sem movimento. Afirmava, sicalidade cênica, ou ainda, de encenação musical.
desta forma, a Rítmica não como um fim em si, mas Alguns artistas e teóricos da encenação promove-
como um meio para combater as nossas inabilidades ram várias e constantes transformações nas artes
e inibições, num reencontro com a harmonia perdida. cênicas durante o século XX, sintonizando e valo-
Frente a isso, difundiu continuamente que a rizando elaborações e práticas desenvolvidas pelas
atividade musical deveria circundar, sobretudo, o vertentes da Rítmica. Eles vislumbravam quais, e de
desenvolvimento de práticas de improvisação, a que modo, elementos musicais se integram e contri-
começar das palavras, rimas, provérbios; valori- buem na aprendizagem e criação cênicas; geraram
zando a fala, a voz cantada e orientando o apren- revoluções na arte teatral buscando o real sem ser
dizado pela atividade criativa por meio da música realista, unindo disciplina e espontaneidade, técnica
elementar (canto, fala, movimento, ritmo, dança). e fluidez de vida, corpo e mente, matéria e espírito.
Em síntese, pode-se delimitar os te- De início, irradiações teatrais contagiaram a Rít-
mas da Rítmica como pertencentes ao cam- mica pela aproximação com Delsarte, mais tarde
po artístico-pedagógico que conecta intera- ela foi inserida na esfera teatral, sobretudo, pela
tivamente música, movimento e pedagogia. influência de Appia, arquiteto de formação com
Se a teoria é o campo das leis e a prática o cam- grande desenvoltura pictórica. Appia foi sauda-
po das soluções empíricas, o “saber-fazer” deve se do por Jacques Copeau (1879-1949) como um
constituir como o campo das “regras pragmáticas”. dos teóricos mais importantes do século XX e

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Gordon Craig (1872-1966) o tinha em grande con- um grau de complexidade e variedade até então des-
sideração, sem contar que seus escritos sobre músi- conhecido. As artes passaram a indicar uma volta à
ca e encenação foram traduzidos para o russo por natureza, evidenciando que o êxodo rural não acon-
Meyerhold. Também foi um dos críticos da dispo- tecia sem traumas. Certezas eternas se desfaziam a
sição bidimensional do palco italiano que, para ele, cada momento.
era responsável pelo desvio ilusionista em que o tea- A adoção dos novos métodos e técnicas de pro-
tro ocidental se desencaminhou, e da busca pelo rea- dução é um fato significativo para esta reflexão. O
lismo em cena que acabou por condicionar excessos rol de descobertas e novidades aparecidas a partir de
decorativos, atravancado e restringindo as possibili- 1860, início da Segunda Revolução Industrial, esten-
dades de expressão que, segundo Roubine (1998, p. de-se consideravelmente. O extraordinário desen-
135), “permaneceram inexploradas, uma vez que a volvimento da ciência e da técnica transformou as
representação estática e a declamação tornaram-se, condições de vida e determinou um surto industrial
por necessidade, o supra-sumo da arte do intérprete mais contundente do que o da Primeira Revolução
ocidental”. Como outros inovadores de seu tempo, Industrial. A industrialização estendeu-se a quase
ele empenhou-se em substituir a imitação (cenário todo o chamado mundo civilizado, provocando be-
realista), pela sugestão (o cenário simbolista). Acre- nefícios e danos em abundância.
ditava que, uma vez consciente do seu corpo, o ator O avanço tecnológico impôs a linha de monta-
tomaria consciência do espaço e dos volumes, ar- gem que exige movimentos repetitivos, restritos e
ticulando a encenação para explorar e integrar em monótonos. Os novos hábitos corporais represen-
sua representação todos os elementos cênicos e fazer taram uma grande mudança existencial. Contudo,
de cada um deles um agente da expressão teatral. mais do que a profusão de ideias inéditas e novida-
Dalcroze considerava Appia como um músico des no mercado o que de fato abalou as estruturas
que entendia e sabia alojar o sentido de movimento mundiais nesse período foram reviravoltas concei-
de um determinado espaço. Por seu lado, Appia con- tuais, com paradigmas sendo revolvidos quase que
cebia que, depois de longa solidão, a vitalidade per- diariamente.
dida do movimento poderia impor-se e que, quanto Tempos de grande ebulição intelectual e turbu-
mais a Rítmica colocasse o corpo na condição de lência política que provocaram profundas mudanças
nada aceitar que dele não resultasse, ou que a ele não afetando as artes, assim como a efervescência artísti-
pertencesse, mais contribuiria visceralmente com a ca influenciou extraordinariamente os acontecimen-
reforma integral dos conceitos dramáticos e cênicos. tos em outras áreas no século XIX, dominado pela
A anulação e alienação do corpo vinha sendo im- estética do Romantismo em sua primeira metade,
posta desde, pelo menos, a Revolução Industrial cuja característica mais marcante é ilustrada pelo
como expediente de dominação e exploração. É desenvolvimento da ópera alemã, que teve como ex-
muito significativo que a ação como princípio dra- poente Richard Wagner. Suas concepções geraram
mático, de raiz aristotélica, tenha sobrepujado qual- rupturas que, além dos músicos, influenciaram pro-
quer outro operador no teatro, como o gesto, por fissionais de outras linguagens artísticas. A visão de
exemplo. Por isso, é útil esboçar influências his- mundo de Dalcroze era impregnada de uma ideolo-
tóricas sobre o momento da criação de Dalcroze. gia humanista, e como pensador e artista vinculou-
Até o início da Era Moderna, a vida parecia quase se ao Romantismo.
estacionária. Então, hábitos e maneiras de viver pas- As noções estéticas que se afirmavam requeriam
saram a sofrer alterações radicais em períodos cada uma nova prática de formação de artistas, tornan-
vez mais curtos. Não é simples circunscrever o re- do premente a elaboração de uma nova pedagogia
corte histórico chamado Modernismo ou Moderni- artística. No que diz respeito ao ensino musical, os
dade. Everdell (2000, pg. 13) lembra que “A alta cul- pedagogos impunham aos seus alunos exercícios
tura a que chamamos modernismo esteve conosco técnicos sem procurar desenvolver a sensibilidade e
durante quase todo este século e parte do anterior o gosto. Tampouco se preocupavam com a constru-
mais tempo do que qualquer outro ‘ismo’ cultural ção da personalidade. Assim, as escolas de música só
desde que a França começou a nomeá-lo no sécu- serviam aos dotados de vozes afinadas e bom discer-
lo 18”. A vida das populações ocidentais adquiriu nimento auditivo. Isso parece não ter mudado muito
até hoje.

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A Rítmica como fenômeno da modernidade Entendia que tudo que distrai a atenção do essencial,
deve ser pensada sob a perspectiva da existência de tudo que é ornamento espetacular, é inútil e nocivo.
um corpo, de um espaço e de um pensamento re- Copeau acreditava que a encenação é a qualidade
lativos ao período em questão que passam a trocar da atitude e da inflexão vocal, bem como da utili-
experiências, reconhecendo mutuamente suas res- zação do espaço. Indignado com as práticas do tea-
pectivas importâncias. Ela influenciou e foi influen- tro comercial, ele desejava recuperar o homem-ator.
ciada por novas terapias, técnicas corporais, verten- Nessas considerações, não poderíamos esquecer
tes estéticas e descobertas científicas e pedagógicas. Stanislavski (1863-1938). Muito do que ele utilizou
Assume-se que o corpo resulta de inter-relações mostra proximidade do que vinha sendo proposto e
com o ambiente, o que provoca a reflexão sobre a disseminado no âmbito da Rítmica. Esta “teoria rít-
produção de diferentes corpos na modernidade. mica”, divulgada massivamente e com uma aceitação
Hegel, Marx, Freud, Krierkergaard e Nietzs- surpreendente no leste europeu, já era conhecida na
che propuseram entender o corpo fora do dualismo Rússia, pelo menos desde 1911, sobretudo por meio
das substâncias estabelecidas por Descartes. Grei- de uma exposição consagrada ao método de Dalcroze.
ner e Katz (2001, p. 67) observam que essa forma No “Estúdio de Ópera”, dirigido por Stanisla-
de pensar tem continuidade nas diferentes verten- vski, eram estudadas aplicações de técnicas de atu-
tes da fenomenologia, porém, a de Merleau-Ponty ação com vistas à completa união da palavra, ou
é o referencial mais adequado. Nos seus escritos de seja, texto atualizado na representação e na ação
1945, 1962 e 1964, ele sintetiza dois pensamentos – esta última entendida basicamente como uma
marcantes: a delimitação de Husserl do termo “Leib” dimensão de movimento, numa circunscrição de
e a noção de ser-no-mundo de Heidegger, dimen- caráter profundamente musical. Via no controle
sionando a conexão entre corpo, ações e percep- dos movimentos um acompanhamento musical do
ção, tema que já havia sido tratado por Descartes. canto executado pela voz que dava vida às palavras
Sabe-se que o corpo é portador de certas ha- do texto. Contudo, também identificou esta marca
bilidades motoras que são inseparáveis de outras separadamente. Assim, ouvia a fala como músi-
competências, tais como a de raciocinar, emocio- ca e concebeu o texto como melodia, isto é, letras,
nar-se, desenvolver linguagem, etc. Além de ser sílabas e palavras eram as notas musicais da fala.
um tema caro à filosofia, a cognição como encar- A colocação da voz consistia primordialmente
nada, ou carnificada, tem atraído o interesse de no desenvolvimento da respiração e na vibração das
várias ciências (GREINER; KATZ, 2001, p. 69). notas sustentadas; as pausas na poesia e na prosa têm
É essencial acentuar que o corpo deixa de ser enorme importância, pois possibilitam a coincidên-
uma abstração e passa a ser tratado como um dado cia das acentuações com a contagem interior de ba-
concreto a ser considerado tanto na formação quan- tidas do ator, e têm um papel significativo na técnica
to na construção artísticas. Daí a necessidade de de criar e controlar o ritmo. Enfatizou, também, que
cada vez mais trabalhá-lo como instrumental ar- a palavra não é apenas som, mas evocação de ima-
tístico em seus diversos aspectos: voz, afetos, rela- gens. Na fala, quem dá conta de preencher o tempo
ções, conhecimento, criatividade e sensibilidade. são os sons de diferentes extensões com pausas entre
Ter como princípio que o trabalho do ator eles. Portanto, a medida certa das sílabas, palavras,
nasce do movimento, abordagem que, como afir- fala e movimentos, aliados a um ritmo nitidamen-
ma Chaves (2001), encontrou forma na biome- te definido, tem significado profundo na atuação.
cânica de Meyerhold, torna patente um vínculo Meyerhold (1907) ressalta que, através da Rít-
quase direto com a formulação dalcrozeana de que mica, o ator contemporâneo começava a refletir so-
o conhecimento nasce do movimento, isto é, a ca- bre o sentido dos gestos e do movimento em cena.
pacidade cognitiva tem sua raiz nas possibilidades Ele discordava de um sistema interpretativo que
corporais de apreensão e elaboração da realidade. sobrecarregasse o jogo do ator com emoções que
Com a inclusão da Rítmica no projeto do Vieu- paralisam os movimentos e desequilibra a técnica
x-Colombier, Copeau buscou introduzir um estado vocal impedindo a eficácia e o controle do trabalho.
de espírito e uma disponibilidade muscular, e res- Um indício da sua proximidade com as tendên-
suscitar um teatro liberto das velhas convenções. cias que surgiam no restante da Europa é que suas

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reflexões teóricas pretendiam romper com a falta de e movimento é música”, evidenciada na inserção da
consciência do sentido do gesto e do movimento na música como delineadora do esboço dos movimen-
cena russa, e se inseriam em uma vertente de valo- tos, independente de sua presença física, tendo com
rização e estudo do movimento (SANTOS, 2002). suporte o ritmo, cuja assimilação torna-se condição
Entre os parâmetros estéticos e técnicos utili- para que a ação flua sem tensão, atuando como subs-
zados por Meyerhold estão a Biomecânica e o “re- tituto de monólogos explicativos fundamentais para
alismo musical”, cujos aspectos se ligam mais es- o teatro, que para Meyerhold devem ser captados
treitamente às dimensões propostas pela Rítmica. pelo espectador por meio das pausas e dos silêncios.
O fator musical, como grade de interpretação e
apoio para a composição cênica, passa a significar,
para a economia do espetáculo, muito mais do que
[...] Se a palavra fosse o único instru-
meramente fundo musical ou trilha sonora no desen-
mento capaz de desvelar a essência
volvimento da ação dramática. A gestualidade estru-
de uma tragédia, evidentemente todo
tura-se, essencialmente, em função do ritmo musical.
mundo poderia representar em cena.
Para Meyerhold (1925, p. 74), o espetáculo se
Pronunciar palavras, e mesmo pronun-
fundamenta nos moldes da orquestração: arranjo de
ciá-las bem, não significa ainda saber
vozes, movimentos e gestos, que por sua vez estão
dizê-las. É preciso buscar agora novos
coordenados com todos os outros componentes da
meios capazes de exprimir as meias pa-
encenação numa construção análoga à instrumenta-
lavras e de tornar manifesto aquilo que
ção orquestral, denotando uma constante preocupa-
está escondido (MEYERHOLD, 1907).
ção em fazer com que a interpretação se guiasse pelo
que ele denominava “desenho tônico” da partitura
musical, e que a imagem cênica fosse construída a
partir do princípio musical. A elaboração da cena de É preciso saber dizer e transmitir todos os
Meyerhold sob a ótica da harmonização, no sentido meios-tons e nuances significativas com diferentes
musical do conceito, entre todos os elementos que meios expressivos. Assim entendida, a palavra de-
integram a linguagem cênica, é conduzida pela ênfa- sempenha uma dupla função na proposta meyerhol-
se nos movimentos rítmicos e plásticos do corpo do diana: atua como discurso exteriormente necessário,
ator, em conexão com os outros elementos da com- e, em sua dimensão acústica, como diálogo interior.
posição teatral. Essa concepção nos coloca em con- Nesta perspectiva, a palavra, tal qual os outros ele-
tato com um espetáculo que será considerado como mentos cênicos, deve ser tratada musicalmente em
um fenômeno de ordem musical no teatro dramático. um sentido que extrapola o entendimento do fenô-
A função do ator torna-se, portanto, o principal meno musical stricto sensu, construindo um texto
traço distintivo na arte teatral: o impacto da más- poético que, sem deixar de ser fala e sem se transfor-
cara, o gesto, o movimento e, sobretudo, o valor mar em canto, anule no ator “o tipo de interpretação
estético da técnica e do jogo. É assim que se deve naturalista que lhe havia sido inculcado nas escolas
buscar a racionalização dos movimentos, como tradicionais, e servia para modelar profundamente
fundamento da interpretação através da mecâni- um ator ligado mais ao movimento e ao gesto do
ca do próprio corpo, estabelecendo significações que ao conteúdo da palavra” (SANTOS, 2002). A
mais profundas de teatralidade, da construção pesquisa deve nascer inteiramente do discurso, ou
do personagem, e, com gestos e movimentos co- seja, a atenção sonora dada à linguagem tornou-se
adunados, expressar um desenho cênico preciso. fundamental na descoberta de significados e sen-
Ao tratar dos movimentos cênicos, como na dis- tidos. A palavra, nesta acepção, passa a funcionar
ciplina “Técnica do Movimento em Cena”, Meyerhold como uma espécie de esboço para os movimentos.
reiterava o ritmo como base para garantir a precisão Com essa metodologia, induz-se o ator
no gesto e no movimento, tanto no espaço quanto no a atuar como músico, pois o trabalho com
tempo, buscando uma nova vitalidade. Essa é mais as pausas o leva a calcular o tempo como um
uma aproximação de seus procedimentos com a Rít- músico e também como um poeta fariam.
mica, isto é, a percepção de que “música é movimento Movimento, palavra e gesto. Da articulação

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desse tripé, Meyerhold vincula não só movi- me referi como musicalidade cênica, pensando
mento e música, mas também palavra e música, que, talvez, a expressão “cenicidade musical” te-
o que se compatibiliza de forma ampla e pro- nha mais proximidade dos aspectos considerados.
funda com a noção que estou desenvolvendo É sintomático que tanto a Rítmica quanto o sur-
aqui, e pode ser sintetizada da seguinte manei- gimento do encenador, em contraste com o papel do
ra: palavra é vocalidade, vocalidade é música, diretor, tenham surgido quase que simultaneamen-
música é movimento, e movimento é música, te. As demandas artísticas, culturais, pedagógicas e
assim, palavra é movimento. Daí o tratamento políticas afetaram as duas esferas de forma análoga.
dado à palavra cênica convocada em seu contor- Como é possível atestar no que foi manifesta-
no acústico e, consequentemente, musical num do por significativos encenadores da vanguarda do
sentido amplo, para estabelecer a inter-relação começo do século XX, as proposições, formulações
e a interdependência entre encenação e música. e práticas desdobradas da Rítmica dialogam com as
A obra teatral não é, portanto, mais enten- necessidades que as noções de musicalidade cênica
dida “como a arte de fazer com que um texto seja ou cenicidade musical convocam, isto é, quando os
admirado, mas dizer a respeito dele algo que ele parâmetros musicais participam da composição da
não diz, de expô-lo à reflexão do espectador” cena de forma independente da presença física da
(ROUBINE, 1998, p. 41). Assim, sob a ótica da música. Isso requer uma formação, ou desenvolvi-
vocalidade, texto e palavra não ocupam neces- mento de habilidades musicais, que permita a profis-
sariamente o mesmo lugar na arte de encenar. sionais das artes cênicas movimentar componentes
Stanislaviski realizava com maestria o que cha- sintáticos da linguagem teatral analogamente ao que
mava de “paisagem auditiva”, construindo verda- músicos fazem com elementos da linguagem musi-
deiras partituras sonoras, de precisão e riqueza es- cal. Isso não significa preterir a função da presença
pantosas (ROUBINE, 1998, p. 157). A construção concreta da música na composição teatral, muito
desse tipo de cenografia sonora, formada por ima- longe disso, a presença acústica da música faz, igual-
gens acústicas das mais diversas fontes, inclusive a voz mente, parte do conjunto sintático da cena que ofere-
humana, foi um recurso semântico da linguagem da ce uma diversidade de soluções estéticas e criativas,
encenação que passou a ser trabalhado amplamen- evidenciando o caráter polissêmico da encenação.
te por encenadores de todas as vertentes estéticas. Assim, as citações mostram que o empenho
Não se poderia deixar de, ao menos, mencio- da vanguarda do início do século XX incidiu nes-
nar as visões de Antonin Artaud (1896-1948), para sa renovação da articulação do jogo teatral: a força
quem “as palavras serão utilizadas num sentido en- expressiva dos signos artísticos reside na tentativa
cantatório, verdadeiramente mágico – em função de de colocar em cena somente o funcional, procu-
sua forma, de suas emanações sensíveis, e não mais rando, desta forma, uma síntese poética, toman-
de seu significado” (ARTAUD apud ROBINE, 1998, do como parâmetro o fato de interioridade e exte-
p. 65). Desse modo, firma sua pretensão em em- rioridade estarem sempre ligadas ao ser humano.
pregar o material sonoro para exibir a teatralidade. Um estudo que se propõe abordar as relações
Na abordagem desenvolvida nesse artigo os entre voz, música e encenação, deve encaminhar-
elementos constituintes da palavra, da música e se em direção à pesquisa, cujo domínio imediato
do movimento estão em relação sistêmica na cena é o gesto, complemento espacial da temporalidade
e são, em essência, a matéria-prima da Rítmica. da voz, e ao enfoque das articulações pertinentes
Embora pilares da ancestralidade teatral, qual- ao gerenciamento do tempo no decorrer da obra.
quer que seja a cultura de onde provenha, no oci- A inserção do instrumental da Rítmica, de uma
dente foram, e ainda são, tratados de modo cin- maneira geral, parece-me oportuna para o estudo da
dido, fazendo da sua coexistência cênica uma encenação pela importância em estimular a explora-
somatória justaposta em camadas hierárquicas. ção das articulações gestuais da palavra no âmbito das
Situar historicamente o nascimento da Rít- relações entre voz e encenação, e, em especial na ver-
mica e da encenação como linguagem abre uma tente de Princípio Formativo, que coloca em primei-
porta para ponderações não apenas sobre a rela- ro plano as possibilidades e potencialidades de cada
ção de ambas, mas, sobretudo, para aquilo a que participante em percurso de aprendizagem e criação.

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Abstract

Scenic musicality, or musical cenicity, as here presented is a reference in the relationship


between acoustic parameters and the others syntactic components of the language of sta-
ging, starting from foundations of Rhythmic, the propositions of the artistic avant-garde
and the first stage directors of the twentieth century. The proposition converges to the
perception of the vocality in the axis of the articulation of which music is movement and
movement is music.

Keywords

Musicality. Cenicity. Staging.

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