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Rio de Janeiro – RJ
Novembro / 2017
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INTRODUÇÃO:
O presente estudo tem como propósito uma análise semiológica da peça “BR-Trans”, de
Silvero Pereira, ator e responsável pelo projeto originariamente denominado “BR-Trans:
Cartografia artística e social do universo trans no Brasil”, cujo objetivo era a montagem de um
espetáculo teatral na temática.
Por grata coincidência, a peça escolhida para este trabalho encontrava-se em cartaz no Rio
de Janeiro quando da reflexão acerca do objeto sobre o qual recairia o estudo proposto pela
disciplina. Assim, o ponto de partida não poderia ser outro senão ir ao teatro, mas com o “olhar
armado” para ser invadido - sem qualquer resistência – à polissemia de signos, em toda a sua
espessura e superposição de sentidos, ou seja, em toda a sua teatralidade, definida por Roland
Barthes como sendo “uma espessura de signos e de sensações que se edifica em cena a partir do
argumento escrito, é esta espécie de percepção ecumênica de artifícios sensuais, gestos, tons,
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distâncias, substâncias, luz que afogam o texto sob a plenitude sua linguagem exterior”.
(Barthes apud J. Teixeira Coelho Netto).
Também será utilizado como material de apoio o livro homônimo - BR-Trans -, no qual
encontramos, além do texto base da peça, informações sobre a construção da pesquisa que lhe
deu origem, contornos dos processos criativos da encenação e das experiências registradas e
selecionadas para a composição do espetáculo.
MÉTODO DE ANÁLISE:
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NETTO, J. Teixeira Coelho. Preliminar. In: Semiologia do Teatro. Organização de: J. Guinsburg, J. Teixeira
Coelho Netto e Reni Chaves Cardoso. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 12.
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DEMARCY, Richard. A Leitura Transversal. In: Semiologia do Teatro. Organização de: J. Guinsburg, J. Teixeira
Coelho Netto e Reni Chaves Cardoso. São Paulo: Perspectiva, 2012.
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O espetáculo em análise tem contorno de teatro político, pois promove a reflexão sobre os
graves problemas enfrentados pelas comunidades trans – transexuais, transformistas,
transgêneros -, vítimas de toda sorte de preconceito, violência e marginalidade. A estética
adotada nos remete ao teatro Épico, de Piscator e de Brecht, com a presença do ator rapsodo que
narra, conta as histórias selecionadas nos dois anos que levaram ao palco o perfil social trans,
com interação e intervenção do público.
- A Palavra:
Figura 1: Baú utilizado como "quadro negro" para falar sobre preconceito em escolas.
- O tom:
Silvero Pereira empresta sua voz com precisão cirúrgica às nuances pretendidas em cada
quadro do espetáculo. Dá sexo ou gênero às personagens; se coloca como ator em diálogo com o
público; ressalta através do sotaque a região onde se passa o evento ou de onde provém a
personagem (Ex. Babi, transgênero gaúcha); acelera ou reduz a velocidade e desloca o ritmo da
narrativa para imprimir tensão, desassossego, relaxamento ou reflexão. Por vezes, se utiliza de
voz grave para dar tom de narrativa jornalística relacionada à morte ou violência contra trans.
- A mímica facial:
durante a música cantada, traz para o rosto (e corpo) a letra que se quer comunicar, se integrando
à função das músicas em estilo brechtiano.
- O gesto:
Assim como a mímica facial, o gesto integra a colônia de signos espaço-corporais do ator
(cinésicos) que, seguindo-se à palavra, constitui o meio mais rico e flexível de exprimir
pensamento. Os signos gestuais podem acompanhar a palavra ou, até mesmo, substituí-las, assim
como a algum elemento do cenário ou acessório.
Nos reportando mais uma vez às músicas, que mais adiante receberão tratamento
específico, os gestos corporificam o conteúdo ou deslocam o espectador para uma realidade que
se quer revelada, tais como, as performances de trans em boites e casas noturnas de fama
questionável.
Uma cena em especial tem como destaque a capacidade de traduzir em gesto o homicídio
de dois travestis no nordeste do país. De forma performática, que se aproxima de uma coreografia
de balet, Silvero desenha no chão os corpos estendidos após o assassinato. Com vigor e beleza,
traz poesia à cena forte que é ao mesmo tempo narrada ao espectador. Uma mistura de gozo e
horror se estabelece a partir da combinação e complementação dos signos que se atravessam de
forma voraz na cena.
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Outra cena em que o gesto merece destaque é a icônica representação do “Ser ou Não
Ser”, emprestada do clássico Hamlet, de Shakespeare, com toda a intensidade da questão dos
trans depositada em um abacaxi.
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Neste quesito, Silvero Pereira se apropria de funções que em regra são afetas a outros
profissionais do teatro. É ele quem manipula a iluminação e, também, a maioria dos efeitos
sonoros, a partir de interruptores e equipamentos colocados no espaço palco. A partir disso, já se
depreende a intensa movimentação e deslocamentos feitos pelo ator em cena somente para este
fim. No mais, há uma exploração intensa dos vários planos e todo o espaço é ocupado de forma
harmoniosa, dando dinamismo especial ao espetáculo.
O ator não se limita ao palco e, por vezes, invade a plateia estabelecendo relações mais
próximas. Ao fundo e ao canto, um músico ocupa o seu espaço fixo com o instrumento que
embala as músicas cantadas por Silvero, mas mantendo-se aparte da encenação em si, salvo nos
poucos momentos em que o ator se dirige ao mesmo por sinais, afirmando a sua presença em
cena.
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Tem-se a sensação de que não cabe mais ninguém no espaço com Silvero, tamanha a sua
grandiosidade e capacidade de deslocamento em meio ao cenário e acessórios que parecem
desviar da precisão de seus movimentos, ora em câmera lenta, ora com agilidade exemplar. A
manipulação dos acessórios e elementos do cenário, transformando ou exaltando as suas funções,
também merecem destaque, pois a economia associada à multifuncionalidade desatravanca o
palco e liberta o ator em seus movimentos.
- A maquilagem:
A maquilagem teatral tem como função valorizar o rosto do ator sob a luz, mas também
contribui para a mímica facial e constituição da fisionomia da personagem.
Em BR-Trans, a maquilagem é utilizada de forma comedida, sem que com isso fossem
comprometidas as diversas faces encenadas. Acreditamos que tal escolha tenha como propósito,
além do evidente objetivo funcional, ressaltar que o “eu” apresentado tem correspondências em
inúmeros anônimos, não permitindo que este ou aquele cosmético fosse associado ao sexo ou ao
gênero específico.
Tal suposição se firma, sobretudo, logo no início do espetáculo, em que Silvero remove a
maquiagem do rosto freneticamente, deixando o rosto limpo ou apondo pequenas intervenções
(batom, por exemplo) no decorrer da peça, independentemente do gênero ou do sexo que se quer
apresentar.
- O penteado:
Novamente, mais do que marcar o sexo ou o gênero, mas sem se desfazer dessa função, o
penteado agrega outros valores e estabelece a atemporalidade dos eventos.
- O Vestuário:
Aqui, ao contrário do que se espera de uma peça que pretende explorar o universo trans,
somos surpreendidos mais uma vez com a parcimônia deste elemento, mas não de forma aleatória
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– nada no teatro é aleatório -, mas sim, o mesmo podendo se dizer da maquilagem e do penteado,
o vestuário é funcional e sua economia pretende manter o foco do espectador no tema proposto.
O que se quer é apresentar seres humanos e seus problemas sociais, a reflexão sobre o assunto
dispensa o espetacular ou o “dar forma” às diversas possibilidades que cintilam no estereótipo
trans.
Figuras 9, 10, 11
- O acessório:
Em BR-Trans, encontramos esta imbricação com vestuário (ex. Botas utilizadas com
frequência por Drag Queens, mas apresentadas em cena no corpo semi nu, adquirindo valor
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diferenciado) e com o cenário (ex. microfone que, uma vez reclamado pelo ator, transforma-se de
cenário – fixo – em acessório para a performance).
Por fim, com grande efeito significativo, dando destaque às informações comunicadas,
também colocamos em ressalto o uso de projeções com vídeos reais ou legendas, que despertam a
atenção do espectador para o tema (vide figura 3).
- O cenário:
Na peça em análise, além de nos remeter aos elementos estéticos atrelados ao teatro
Épico, o cenário adquire funcionalidades que servem ao ator em cena. Não fixa geograficamente
o local da ação e também não se prende à época determinada, dando liberdade às diversas
narrativas propostas.
O espelho com cerco de luz, típico de um camarim ou de uma casa exótica; os baús que
servem desde a guarda de acessórios, como palco para performances; o microfone que embala os
cantos do ator ou das personagens, também se serve às narrativas densas emblemáticas; o biombo
que abriga mudanças de personagens ou entradas triunfantes em “novos palcos”; o aparelho de
som, a mesinha com pequeno abajur, encontrados em qualquer casa “de família” ou do
submundo. Tudo isso recebe tratamento semiológico diferenciado, adquirindo significações
amplas ou reduzidas, dependendo da mensagem que se pretende passar no momento do
espetáculo.
- A iluminação:
Em dado momento, uma narrativa de morte e de violências diversas é iluminada por uma
lanterna com luz vermelha intermitente, assemelhada às utilizadas em investigações policiais,
dando vigor e tensão à cena. Ao fundo, uma projeção com nomes, números e imagens de trans
vítimas de violência física.
- A música:
Aqui, a música ocupa função especial como marca típica ao teatro Épico, conforme já
mencionado. Acompanhada de gestos, movimentos, e expressões corporais e faciais diversos,
sobretudo quando agregada à palavra, intervém e ressalta a narrativa. Ao silêncio, firma o
sentimento que se quer provocar, apelando aos sentidos e reforçando a mensagem cênica.
- O ruído:
Neste quesito, nos interessam os ruídos que, sendo signos naturais ou artificiais, são
reproduzidos artificialmente com propósito certo no espetáculo.
CONCLUSÃO:
É com maestria própria do Diretor e do Ator que na obra em questão nos vemos diante da
verdadeira teatralidade, composta pela conjugação de signos auditivos e visuais que formam um
sistema complexo e organizado, inferindo-se o cuidado extremo de suas inserções em uma
sequência que adquire sentido.
Efeitos sonoros e visuais (músicas, ruídos, projeções, escritos), associados muitas vezes às
performances corporais e expressões do ator, adquirem especial significado e dão ênfase a
determinadas cenas. Este conjunto de signos, combinados ou não, ressaltam o objeto principal da
peça: a informação e a reflexão sobre o problema social das comunidades trans. Tratam-se de
meios que despertam de sobremaneira o destinatário da representação, intensificando a
expectativa e o ritmo das ações.
Por fim, e longe do exaurimento da merecida análise, insta destaque especial para uma
cena que chama atenção pela perfeita ordenação, estrutura e sequência de signos, cujo sentido
maior alcança a plenitude da mensagem da encenação. Os corpos desenhados no chão, unindo
performance, narrativa, música e signos visuais (projeção e desenhos), atingem de forma
pungente a questão: a violência e o descaso com as vítimas, que vivem e morrem no anonimato e
a covardia do preconceito. O Brasil é o país que mais mata trans no mundo, devemos falar sobre
isso!
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BIBLIOGRAFIA:
BARTHES, Roland. A Aventura Semiológica. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001. P. 205 - 218
PEREIRA, Silvero. BR-Trans. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó – Coleção Dramaturgia, 2017, 2ª
edição.
https://www.youtube.com/watch?v=QEGKIAaAluI
https://www.youtube.com/watch?v=0z902cy4Jpc