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O
exame do fenômeno teatral à luz da di- cena se faz presente, de um modo ou de outro,
mensão lúdica ganha densidade quando na obra de homens de teatro tão relevantes e
recorremos a autores como Johan Huizin- diferentes entre si como Pirandello, Brook ou
ga (1971) e Roger Caillois (1967). Ao tra- Mnouchkine. Em consonância com essa ênfase
tarem da natureza e do significado do jogo na capacidade de jogo, que, sob as mais diver-
na vida humana ao longo de diferentes épocas e sas formas, vem sendo cultivada no teatro atu-
culturas, esses pensadores produziram ensaios al, encontramos em nossos dias várias modalida-
que certamente abrem pistas férteis para aque- des de improvisação teatral que se caracterizam
les que hoje se voltam para a reflexão em torno justamente por serem procedimentos de caráter
de processos de aprendizagem teatral. lúdico.
Assim, Huizinga e Caillois descrevem o Uma delas é o jogo teatral – theater game
jogo como sendo uma atividade livre, gratuita, – sistematizado como tal por Viola Spolin nos
regrada, de caráter incerto, que cria ordem e é EUA durante os anos sessenta, importante refe-
ordem, estabelecendo intervalos na vida cotidi- rência dos grupos de vanguarda da época. Am-
ana, ao mesmo tempo em que – característica plamente disseminado em inúmeros países nes-
especialmente relevante – abre espaços para a sas últimas décadas, através de diferentes esferas
metáfora e para a ficção. Como se pode obser- de atuação que cobrem desde a formação de ato-
var, essa caracterização da dimensão lúdica sem res profissionais até a atuação junto a crianças
dúvida apresenta pontos de contato com o pró- de comunidades carentes, o sistema de Viola
prio teatro. Spolin caracteriza-se como uma abordagem da
Com efeito, a noção de jogo, intrínseca improvisação teatral cercada por regras precisas,
ao próprio acordo tácito que une atores e pú- entre as quais se destacam o acordo grupal, o
blico durante a representação teatral, ganha foco, a instrução e a avaliação. Nela, a fábula e
contornos especialmente marcantes no teatro o enredo deixam de ser o fio condutor dos jo-
ocidental contemporâneo. Sobressaindo-se em gadores, em favor da ênfase em outro eixo: a
relação ao projeto da mimesis, e por vezes até contínua problematização dos diferentes ele-
opondo-se a ele, a valorização do lúdico em mentos constitutivos da cena.
Maria Lúcia de Souza Barros Pupo é professora titular do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.
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escada para designar o balcão que serve aos en- mensão espacial não pode ser concebida como
contros entre Romeu e Julieta, a diferença de adereço da representação. O jogador adquire
planos em que se encontram os amantes é me- consciência de que o espaço é constituído por
taforicamente tratada, engendrando assim uma signos que conformam e estruturam o sentido
dimensão lúdica. daquilo que se faz na área da representação. Di-
No âmbito dessas tendências, as aborda- ante da necessidade de assegurar a presença de
gens lúdicas da improvisação teatral colocam uma cabine telefônica em cena, por exemplo,
radicalmente em xeque distinções rígidas entre poderíamos destacar diferentes soluções possí-
o espaço de quem joga e o espaço do especta- veis. Uma delas seria a formulação da cabine
dor. A partir de propostas precisas do coorde- através de dois corpos entrelaçados em torno de
nador (professor ou diretor), que sugere deter- um terceiro jogador fazendo às vezes de telefo-
minada área a ser explorada, o grupo de joga- ne. Outra solução seria trazer para a área da re-
dores pode ser convidado a transformá-la em presentação a réplica de uma cabine ou até mes-
significante de um lugar fictício (cf. Ryngaert, mo o próprio equipamento. A preferência por
1985). Faz parte das regras o respeito às carac- uma delas em detrimento de outras irá necessa-
terísticas físicas do espaço em questão, que não riamente gerar diferentes conotações dentro da
podem ser alteradas e devem ser colocadas a ser- cena improvisada ludicamente.
viço da emergência do universo ficcional pre-
tendido pelos atuantes. Assim, uma rampa es- Objeto
treita comprimida entre duas paredes transfor-
ma-se em abismo sobre o qual se deslocam Figurável e manipulável pelo jogador, o objeto
selvagens homens primitivos. Uma montanha constitui uma materialidade concreta que reme-
sagrada surge a partir de uma escadaria íngre- te a algo que está no mundo. Sua configuração
me, cujo topo é alcançado com dificuldade pe- pode ou não se confundir com a de seu referen-
los personagens, fiéis súditos de um monarca te, e a escolha entre essas alternativas nunca deve
despótico. Ao passar ritualmente sob o vão de ser tida como fortuita. O significado metralha-
uma mesa, jogadores mostram a travessia do dora, por exemplo, poderá emergir através de
portal de uma cidade antiga. Um banheiro co- diferentes significantes, tais como a réplica de
letivo engendra uma nave espacial composta por plástico de uma metralhadora real, um guarda-
diferentes cubículos nos quais viajam astronau- chuva preto, ou a gestualidade do jogador. Op-
tas instalados verticalmente e situações de peri- tar por um ou outro, evidentemente acarreta
go são designadas pelo ruído das descargas. implicações no tocante às conotações que serão
Improvisações desse porte acarretam in- lidas pela platéia.
variavelmente modalidades inesperadas de con- Tal como ocorre com o espaço, no tocan-
tato entre jogadores e platéia. Com freqüência, te ao objeto também a dimensão lúdica da rela-
a cena acaba envolvendo inclusive pessoas que, ção entre significante e significado vem sendo
a priori, não constituíam um público e acabam ressaltada em nosso teatro mais recente. Domés-
sendo interpeladas por uma representação que ticas, dirigido por Renata Mello, vale-se de três
não tinha se feito anunciar. A proximidade en- bancos pintados de branco para tornar palpá-
tre quem joga e quem assiste, assim como o veis em cena um ponto de ônibus, o corredor
envolvimento do público na ficção, instauram interno de um veículo de transporte coletivo,
relações surpreendentes entre uns e outros, um parapeito de janela e um balcão de cozinha.
abrindo novos caminhos para a construção do Mais comprometidos com a ludicidade
sentido. do que com qualquer pretensão mimética, os
A prática de jogos teatrais e dramáticos jogos teatrais e dramáticos lançam mão de dois
gera situações nas quais se apreende que a di- procedimentos principais para a construção de
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signos relativos ao objeto. Por um lado essa ra – assim como os movimentos e gestos que
construção pode se valer de uma relação meta- produz.
fórica entre significante e significado. Por ou- O jogador é sempre o enunciador de um
tro, pode recorrer à utilização de significante discurso que resulta de signos provenientes de
imaginário. múltiplas fontes, signos esses que se combinam
A metáfora é diretamente focalizada quan- na atuação improvisada, característica do jogo
do o jogo parte da proposta de utilização de um teatral. Alguns deles são emitidos em função da
objeto como significante de outro. Retoma-se própria deliberação de quem atua. Outros são
desse modo, com outra envergadura, a prática signos oriundos do desejo de outro jogador, mas
simbólica que já se fazia presente no faz-de-con- há também signos provenientes de fatores alea-
ta infantil. Assim, em função da escolha dos jo- tórios, que se manifestam ao longo do ato de
gadores envolvidos em um processo de traba- jogar.
lho teatral, um pedaço de corda se transforma Se gesto e entonação, por exemplo, po-
em serpente ou microfone, uma tampa de pa- dem ser caracterizados como fruto de uma in-
nela se metamorfoseia em direção de caminhão tenção deliberada, Anne Ubersfeld (1996a)1
ou chapéu. Metamorfoses como essas podem salienta a existência de signos de caráter invo-
servir como ponto de partida para a realização luntário, como o timbre de voz, os traços fisio-
de novas improvisações de caráter lúdico, nas nômicos, ou a estatura.
quais aspectos mais complexos, como por exem- Daí a complexidade dos fenômenos com
plo a definição de papéis, lugares e ação, even- os quais nos defrontamos ao propor aprendiza-
tualmente estejam também envolvidos. gens mediante processos lúdicos. Da relação
Por outro lado, o sistema de jogos teatrais entre o corpo real do jogador e a figura imagi-
enfatiza muito a construção de significantes nária que ele delineia através de seu corpo, sur-
imaginários através do incentivo reiterado à ge a ficção concretizada cenicamente.
fisicalização do objeto. Individualmente, ou Há sem dúvida uma série de sistemas de
através da relação entre os participantes, o desa- signos que estão a tal ponto intrinsecamente
fio de tornar real um objeto, sem o auxilio de vinculados ao jogador, que a tarefa de isolá-los
qualquer suporte material, pode constituir um para efeito de análise se apresenta como extre-
importante aspecto do desenvolvimento da mamente complexa.
consciência sensorial, a ser constantemente re- As falas emitidas em situação de improvi-
tomado e aprofundado ao longo do processo de sação, apesar de não serem previsíveis quando
aprendizagem teatral. resultam tão somente das relações estabelecidas
ao longo do jogo, designam, sem dúvida, orde-
nação referente a alguma espécie de textualidade.
Signos intrinsecamente vinculados No entanto, falas podem se constituir também
à performance do jogador em um fértil ponto de partida para o lúdico; é o
que ocorre quando fragmentos de textos pré-es-
A figura do ator-jogador está na interseção de tabelecidos deflagram dentro de improvisações.
múltiplos códigos, tais como o lingüístico, o Em ambos os casos, aquilo que se fala, ou
fônico e o gestual. De modo freqüentemente seja, o texto presente no jogo, constitui um con-
inseparável de sua figura, apresentam-se à nossa junto de signos lingüísticos que se desdobram
percepção os signos relativos a seu corpo, a tudo de modo diacrônico. Uma vez articulados si-
o que o envolve – figurino, maquiagem, másca- multaneamente a signos de outra natureza – so-
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grande parte de seu prazer vai residir em exami- de signo, ele será capaz de pensar a significação
nar como é executada essa complexa operação em cena. Esse espectador, em suma, estará em
através da qual uma ficção é concretizada diante condições de compreender de que modo espe-
de nós. Mediante a experimentação de procedi- cífico a arte teatral pode contribuir para que se
mentos lúdicos nos quais se evidencia a noção amplie nosso conhecimento sobre o homem.
Referências bibliográficas
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