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O Poder Executivo na Constituição de 1988

Fernando Limongi
USP/CEBRAP
1. Introdução:

Os trabalhos constituintes foram marcados por um amplo debate institucional. Não há


exagero em afirmar que o debate público era dominado pela idéia de que a sorte do país
e não apenas a estabilidade política estava atrelada de forma direta e mesmo imediata às
opções institucionais a serem consagradas na Constituição. A forma de governo a ser
adotada ocupava o centro do debate, vista como uma espécie de primeiro princípio do
qual tudo o mais dependeria, da retomada do crescimento econômico à justiça social,
passando, é claro, pela própria estabilidade política. Referências à importância desta
definição são recorrentes ao longo dos trabalhos constitucionais. Egídio Ferreira Lima
(PMDB-PE), relator da Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo,
para citar apenas um exemplo, acreditava que:
“No quadro atual, talvez, o sistema de governo seja a coisa mais séria e
importante que possamos conceber. Dele poderá depender a democracia que
estamos pretendendo edificar, o desenvolvimento do país, a sua modernização e
o caráter de justiça da sociedade” (DANC, 4/08/87, Suplemento 66: 4)1

A relação entre estas alternativas e a conjuntura política e, para ser mais específico, com
os interesses eleitorais de curto e média prazo não eram desconhecidas. O Relator da
Sub-Comissão do Poder Executivo, José Fogaça (PMDB-RS), antes da apresentação de
seu primeiro anteprojeto, comentou que:
Este é o antepreojeto que está destinado, realmente, a provocar a maior
discussão, o maior debate e amaior polêmica no seio da Assembléia Nacional
Constituinte. Estou convencido disso não só agora, mas desde que iniciamos os
debates. Surpreendido com a atenção enorme que a própria imprensa acabou
dando para o nosso anteprojeto, percebi que ele é hoje o ponto nevrálgico do
processo político brasileiro. Ele toca nas questões mais sensíveis e mais
delicadas do processo político, envolvendo interesses partidários e eleitorais os
mais amplos e os mais divergentes. Há partidos que são presidencialistas
extremados, porque só têm um candidato à Presidência. Há partidos que são
parlamentaristas, porque desejam atuar apenas no Congresso Nacional, e essses
interesses partidários vão se expressar e conflagrar aqui. (...) Quero que este
anteprojeto permita que se permeiem e se encontrem todas as idéias, ideologias e
intereses, que ao meu ver, estão bem nítidas, mas a nitidez não os tornam

1
Cabe observar que a publicação de alguns documentos do processo constituinte, como as atas das
comissões, não se deu no dia seguinte à sua ocorrência como é a praxe.
ilegítimos. Aqui vai se dar a conflagração dos interesses partidários e políticos,
que vão chegar a uma média comum. (DANC, 4/08/1987, Suplemento 114: 60)

Citações como estas poderiam ser multiplicadas. Os constituintes sabiam que os


interesses de curto, quando não os imediatos, estavam envolvidos nas decisões relativas
à forma de governo e à definição dos poderes presidenciais, incluindo-se aqui o
mandato do presidente em exercício.

A convicção de que a opção relativa à forma de governo era capital e decisiva para o
país era disseminada e não se restringia aos constituintes. Desde pelo menos meados
dos anos cinqüenta, o país convivia com um intenso debate em que a estrutura
institucional adotada pelas constituições de 1934 e 1946 era questionada.

Em vista deste debate, o resultado da constituinte de 1987 teria sido frustrante. A


manutenção da arquitetura institucional adotada no passado --baseada na combinação
presidencialismo e representação proporcional com lista aberta— representaria a perda
de uma oportunidade de ouro para evitar a reincidência dos erros da experiência
democrática anterior.

Na realidade, o resultado teria sido o pior possível. Para além de manter a estrutura
institucional gestada nos anos 30 cuja experiência já teria demonstrado ser
inerentemente problemática, os constituintes teriam agravado seus problemas, posto que
teriam, a um só tempo, enfraquecido a presidência e fortalecido o Congresso em função
da tendência inicial de se adotar o parlamentarismo. Dadas estas opções, as piores
possíveis, o confronto entre um Executivo fragilizado e um Legislativo poderoso seria
inevitável com as conseqüências previsíveis e conhecidas. Em resumo, os riscos à
governabilidade próprios ao presidencialismo teriam sido acentuados.

Em que pesem a importância dos debates travados, das disputas que tiveram lugar ao
longo da constituinte, algumas delas dramáticas, e de possíveis diferenças profundas a
dividir presidencialistas e parlamentaristas, a despeito disto tudo, o fato é que por detrás
deste confronto radical escondia-se um amplo consenso em torno de pontos não menos
fundamentais. Escondia-se, na realidade, não é a caracterização mais correta, uma vez
que o consenso era evidente e foi explicitado em inúmeras oportunidades. Na realidade,
a convergência de opiniões era tão forte que, por vezes, dispensava debates ou
controvérsias. Certos aspectos capitais acabaram sendo pouco debatidos.

Os dois campos –presidencialistas e parlamentaristas-- defendiam que era necessário


dotar o Poder Executivo dos meios necessários para produzir decisões e que, a condição
sine qua non para tanto era a ‘modernização’ do Poder Legislativo, evitando que este
viesse a se tornar um obstáculo ao funcionamento regular do governo. Cabe notar ainda
que a divisão relativa à extensão do mandato presidencial de Sarney tampouco
repercutia sobre esta questão.

O texto constitucional foi escrito sob um amplo consenso de que o sucesso da


democracia dependia da capacidade governo dar respostas efetivas e rápidas às
crescentes demandas postas aos governos por sociedades modernas e complexas. A
modernização institucional foi o leitmotiv sobre a qual se deu a definição das relações
entre o Executivo e o Legislativo. O processo decisório precisava ser dotado de
eficiência. Protelar decisões seria a forma de alimentar crises, de não dar as respostas
demandadas pela sociedade. Em sendo assim, o principal obstáculo a ser transposto era
o conservadorismo e a morosidade característicos do Poder Legislativo. Para tanto, era
necessário fortalecer o Poder Executivo evitando que este pudesse ser paralisado pela
inação do Legislativo. Mais do que isto, era preciso dotar o Executivo de “vias de
escape” sempre que uma possível divergência entre os poderes pudesse redundar em
confronto ou inação.

Na definição do Poder Executivo, mais especificamente de seus poderes legislativos, os


constituintes estiveram longe de simplesmente rejeitar toda a experiência institucional
do período militar tratando-a como parte do “entulho autoritário” a ser varrido. Antes o
contrário. Os constituintes mantiveram as prerrogativas legislativas conferidas ao Poder
Executivo pelas seguidas “reformas constitucionais” do período militar. Destacam-se
entre estas o Poder de Decreto e o controle sobre a elaboração e a execução do
orçamento.

A Carta de 1988, portanto, não representa um retorno a ordem legal criada pelo texto
constitucional de 1946. Muito menos teria fortalecido o Poder Legislativo às expensas
do Poder Executivo2. Tampouco representa uma pura e simples rejeição da “engenharia
institucional” do período autoritário. Por qualquer parâmetro que se use, o Poder
Executivo não pode ser qualificado de fraco. As bases deste poder presidencial são
institucionais e consagradas no texto constitucional e de forma alguma se resumem às
suas relações diretas com o eleitorado.

A decisão relativa à forma de governo em nada afetou a definição dos poderes


legislativos do Executivo. A despeito das inúmeras reviravoltas por que passou o texto
constitucional em muitos de seus capítulos essenciais, incluindo a forma de governo e a
extensão do mandato presidencial, o tratamento dispensado às prerrogativas legislativas
do Poder Executivo não sofreu alterações significativas ao longo de todo o processo. O
texto final, salvo rearranjos práticos e de redação, foi o aprovado pela Subcomissão do
Poder Legislativo e referendado pela Comissão de Organização dos Poderes e Sistema
2
A afirmação é feita explicitamente em diversos textos que tratam especificamente dos trabalhos
constituintes. Ver por exemplo: Baaklini 1993: 343, Martinez-Lara 1996: 196, Rosenn 1990: 783. A visão
segundo a qual a Constituição teria mantido a posição de poderoso ator de veto do Congresso está
presente em um sem número de análises sobre o funcionamento do sistema político brasileiro.
de Governo. Dali seguiu incólume à aprovação final. No essencial, com a exceção de
duas emendas visando retirar do texto constitucional o poder de decreto presidencial, o
texto sequer foi objeto de emendas3.

O texto está organizado da seguinte forma. A seção seguinte resgata de forma


esquemática o debate institucional ocorrido ao longo da experiência democrática
anterior, retornando a algumas das interpretações clássicas, elaboradas à direita e á
esquerda e por atores políticos chaves, para dar conta do mau funcionamento do regime
constitucional de 1946. As características negativas do Poder Legislativo, sua
morosidade, inoperância e conservadorismo, são vistas como um entrave ao exercício
efetivo do governo. Segue a recomendação: um governo que atenda às necessidades
postas pela sociedade moderna pede o reforço das prerrogativas legislativas do Poder
Executivo, condição necessária para que o governo desempenhe as funções para as
quais era chamado.

A terceira seção é dedicada ao tratamento dado à questão ao longo do processo


constituinte. Nos limites impostos pelo caráter deste trabalho, a seleção será mais
ilustrativa do que exaustiva. Tampouco há a intenção de explicar porque dispositivos
específicos foram adotados. Importa resgatar o “espírito” sobre o qual o capítulo
relativo aos poderes legislativos do Poder Executivo foi escrito. O objetivo é mostrar a
existência do consenso em torno da necessidade de tornar o processo decisório eficiente
e ágil. O reforço do executivo é secundado por medidas que visam forçar o Poder
Legislativo a deliberar, superando sua tendência à inação e à procrastinação. Com
relação à forma de governo, havia plena consciência quanto à indefinição da tendência
predominante do plenário. Os parlamentaristas vencem as primeiras batalhas, mas
sabem que poderão perder na decisão final. O texto, portanto, foi escrito com plena
consciência de que a decisão quanto à forma de governo estava pendente. Quanto ao
mandato do Presidente Sarney, pode-se dizer que se deu o contrário, isto é, os
favoráveis à redução de seu mandato perdem nos estágios iniciais, mas parecem ter
certeza que vencerão a guerra.

A quarta seção trata das conseqüências do modelo adotado pela Constituição de 1988 no
que se refere ao processo decisório e ao papel desempenhado pelo Executivo. Sob a
constituição atual, o Executivo assumiu papel de preponderância no interior da
produção legislativa. O Poder Executivo é hoje, de jure e de fato, o principal legislador,
do país4. A seção explora o significado desta preponderância, relacionando-a a
discussão precedente. O texto é fechado com uma breve conclusão.

3
Foram duas tentativas, uma na Comissão de Sistematização na votação final em Plenário. O apoio a
estas duas emendas. Consultar Figueiredo e Limongi 1999, cap 5 para detalhes.
4
Figueiredo e Limongi 1995.
II. Dos antecedentes: a crítica à Carta de 1946.

Contrariamente à tendência dominante entre as Constituições escritas no imediato pós-


guerra, a Constituição de 1946 não dotou o Poder Executivo de prerrogativas
legislativas amplas e significativas (Pessanha 2002: 164). Antes o contrário, como
evidencia a vedação explícita à delegação de poderes legislativos ao Executivo. Para
Afonso Arinos de Melo Franco, esta fragilidade do poder presidencial seria e evidência
de que a Constituição de 1946 teria sido marcada pelo
“vício habitual de quase todas as constituições democráticas elaboradas em
seguimento a longos períodos de ditadura. Esse vício é de que as Constituições
de tal tipo são muito presas ao desejo de evitar os riscos e excessos do sistema
extinto, o que as torna frequentemente irrealistas e incapazes de arcar com as
responsabilidades da gerência de um Estado moderno. (2005: 178)

No entanto, como nota Hermes Lima, a necessidade de “domar o Executivo” deve ser
entendida menos como uma reação ao Estado Novo do que como uma tentativa de sanar
os problemas experimentados durante a República Velha:
“É oportuno salientar nada haver mais parecido com a Constituição de 1934 que
a Carta de 1946. Nas linhas fundamentais do espírito político que imperou na
elaboração dessas duas Constituições, elas são praticamente idênticas. Tanto na
constituinte de 34, como a de 46, foram assembléias preocupadas sobretudo em
impedir o poder avassalador, de tendências discricionárias, dominasse a cena
política (...) Os dispositivos sobre a elaboração e fiscalização do Orçamento
atestam essa tendência de maneira muito clara. Ela é também atestada pelos
dispositivos sobre o estado de sítio, que na constituição de 1946 mais minucioso
se tornaram. Todos estes grandes problemas da organização constitucional
brasileira da primeira república, cujo ciclo se findou em 1930, receberam na
carta de 34 e 46, tratamento, por assim, dizer especializado. Autonomia dos
Estados, intervenção, sistema representativo, estrutura da justiça, estado de sítio,
são questões que passaram a ser objeto de um conjunto de dispositivos pelos
quais se observa, antes de tudo, o empenho do legislador em prever e impedir os
abusos do poder, ou mais exatamente, -- do Poder Executivo” (1954: 14 e 15)

O controle sobre o Executivo completava-se com a reformulação do processo eleitoral.


A adoção da Justiça Eleitoral impediria a influência direta do Poder Executivo na
formação e controle sobre o Poder Legislativo. Em 1949, argumentando contrariamente
à proposta da emenda constitucional pela adoção do parlamentarismo, apresentada por
Raul Pilla, Afonso Arinos de Melo Franco, começa por notar que não haveria como
equiparar o presidencialismo praticado na República Velha com o experimentado após a
promulgação da Carta de 1946:
Comecemos por dizer que falar-se do presidencialismo brasileiro em tese, sem
atentar para a sua profunda modificação histórica, é um simples absurdo. O
General Dutra é Presidente da República como foram Campos Sales ou Afonso
Pena. Mas o presidencialismo brasileiro de hoje tem com o daquele tempo a
mesma identidade que o parlamentarismo de Atlee com o de Gladstone, ou de
Queille com o de Mac-Mahon. Por isso mesmo, repetimos, é que parece
incoerente instaurar-se o parlamentarismo no Brasil com o fundamento em
críticas não aplicáveis ao presidencialismo atual, mas o de há 40 anos. (1957:
89)

A diferença entre os dois presidencialismos se deve a “a única verdadeira revolução


política operada no Brasil, que foi a revolução eleitoral”. Com a instituição dos partidos
nacionais, do voto secreto, da representação proporcional e da Justiça Eleitoral
“a política dos governadores não pode voltar a ser o que era, pois não há
governador que controle contra a opinião do eleitorado, os votos de sua
circunscrição; embora não se deva confundir o seu declínio com a extinção do
federalismo, o que é uma coisa muito diversa, que nos limitamos a observar de
passagem. Com a revolução eleitoral as relações do Presidente da República
com o Congresso tiveram de se estabelecer em bases absolutamente distintas das
conhecidas na Primeira República: em bases de coligação partidária. Quem
conhece um mínimo da nossa história republicana sabe como se formavam
Câmara e Senado sob guante dos reconhecimentos políticos.” (1957: 90)

As modificações do processo eleitoral atestariam a “contribuição poderosa das elites


brasileiras e o aspecto construtivo da norma jurídica em relação ao Direito” (1961: 131).
A adoção do Código Eleitoral em 1932, ainda que insuficiente por si só para afastar o
“estadualismo” teria assegurado representação às oposições estaduais:
“O Código não promoveu, porém, a criação de organizações partidárias
nacionais e, por isso mesmo, as eleições para a Constituinte de 1934 se
processaram nos velhos moldes do partidarismo estadual. Houve, contudo, uma
diferença, que foi a divisão interna dos Estados. Com efeito, as garantias acima
consignadas permitiram às oposições estaduais, uma liberdade de ação
desconhecida no velho presidencialismo de “apoios incondicionais” e das
unanimidades forjadas na ata falsa e no chanfalho da polícia” (1961 63)

Segundo a contabilidade do próprio Autor, somente em quatro estados teriam sido


eleitas bancadas unânimes. Para que a reforma se completasse faltava, portanto, a
imposição do caráter nacional aos partidos, o que foi feito, de forma explícita, pelo
artigo 134 da Constituição de 1946:
“Pelo histórico desse texto, na Comissão constitucional, verificamos que os
constituintes adotaram deliberadamente o partido político como instrumento
exclusivo de captação do sufrágio, bem como o caráter nacional de sua
organização (...) No funcionamento dos partidos, imposto e regulado pela carta
de 1946, temos um caso típico de ação construtiva da norma jurídica (...) [Isto
é,], como agente de fixação e reconhecimento daquela consciência social. Em
vez do Direito dar origem à lei, a lei é que faz nascer o direito” (1961 130)
A adoção da representação proporcional é, portanto, parte integrante das reformas
destinadas a enfraquecer o Poder Executivo, nacional e estadual, garantindo
representação às oposições. De acordo com Afonso Arinos de Melo Franco:
“Ainda na fumaça e no sangue da Revolução Federalista, Assis Brasil publica o
seu ainda hoje admirável livro Democracia Representativa e três anos mais
tarde, outro também valioso estudo Do Governo Presidencial. Em sugestões que
seriam então ousadas mesmo para o Velho Mundo, Assis Brasil recomenda a
eliminação completa do sistema de eleitoral de 1891, baseado na coação e na
fraude das autoridades estaduais, e a adoção do voto proporcional e do quociente
eleitoral. Seguindo as idéias ainda mal aceitas de Stuart Mill, o ilustre rio-
grandense, sob a aparência de reformas de superfície, estava de fato atingindo a
área das reformas de base. Por isso o sistema que preconizava –e acabou
prevalecendo com a sua assistência direta no Código Eleitoral de 1933-
significava, de fato, o fim das oligarquias estaduais e o predomínio dos partidos
políticos na criação do poder.” (2005: 117) 5

A combinação do presidencialismo com a representação proporcional enfraqueceria o


presidente contribuindo para que este não contasse automaticamente com maioria no
Poder Legislativo. O presidente, portanto, era forçado a formar coligações tanto para se
eleger quanto para governar, diminuindo assim as bases pessoais do seu poder:
“O Presidente foi eleito pelos votos de partidos coligados. Seu antagonista não
eleito apoiou-se, também, nos votos de uma coligação de partidos. No
Congresso nenhum partido sonha com a maioria do trabalhismo inglês. Como se
pode falar em poder pessoal, em poder tirânico do Presidente em face desses
fatos à nossa vista? Grande tirano, aquele cuja estabilidade política só se manterá
legalmente na base de coligação dos partidos dentro do Congresso, tal qual nos
regimes parlamentares do Continente europeu. (...) O poder político do
presidente é hoje (e não pode deixar de ser) muito relativo. E o será cada vez
mais, na medida em que formos aplicando melhor o sistema de 1946. Sua
responsabilidade não é mais pessoal, mas conjunta, embora não coletiva, com os
ministros” (1957: 93)

Em 1949, o líder da UDN avaliava positivamente o modelo adotado em 1946,


ressaltando os resultados positivos da “engenharia institucional”6 e sua inter-relação
com as transformações sociais em curso
“Diferenciação econômica, multiplicidade partidária, autenticidade eleitoral,
enfraquecimento político do Presidente e dos governadores, eis o processo fatal,
inevitável, que estamos vivendo. Estamos no início do sistema, o Presidente não

5
Para uma reconstituição mais completa deste ponto, consultar Kinzo 1980.
6
Isto é, da ação construtiva da norma jurídica.
faz governadores (foi derrotado em grandes Estados) nem deputados, nem
senadores. Quem os faz são os partidos nacionais. Quando, na política, os
resíduos do poder pessoal se fazem sentir, é por capitulação desnecessária do
Congresso” (1957: 92)7

A crise política de meados dos anos cinqüenta , ao que tudo indica, representou um
momento de virada para a reflexão institucional brasileira8. Afonso Arinos de Melo
Franco, por exemplo, relaciona sua conversão ao parlamentarismo e a consequente
passagem de defensor a crítico do modelo adotado em 1946, aos eventos políticos do
período:
“Eu fui, na Câmara dos Deputados, um dos mais convictos defensores do
presidencialismo. Por duas vezes intervim na discussão do assunto, naquela
Casa. (...) Nos dois pareceres que então ofereci às Comissões especiais, procurei
tratar exaustivamente a matéria, o mesmo acontecendo com meu contraditor, o
ilustre deputado Raul Pila, que lhes deu extensas respostas, sendo que o material
destes estudos foi publicado em 1958, pela Editora José Olympio, em livro que
prefaciei. Quando escrevi o prefácio minha opinião já havia sido revista, e isto
declarei com toda sinceridade. (...) As razões principais da minha mudança de
opinião não foram de ordem teórica ou jurídica, mas provieram, antes, de uma
honesta revisão de atitudes fundada na experiência política. A terrível crise de
agosto de 1954 apanhou-me na liderança da oposição e de meu partido, na
Câmara dos Deputados. Não preciso recordar o que foram aqueles angustiosos
momentos, vividos já lá vão dez anos. O que pretendo salientar é que aquele
turbilhão, em cujo centro o destino me colocava, começou a abalar a fundo as
convicções presidencialistas que eu absorvera na minha formação de mineiro da
Primeira República e de filho de político influente naquela fase. A segunda crise
constitucional, de novembro de 1955, com o golpe militar e a deposição de Café
Filho e Carlos Luz, encontrou-me também na liderança de meu partido e na
vanguarda da atuação política na Câmara. Confirmou-se, então, para mim,
graças à dura experiência vivida, a convicção de que o presidencialismo, no
Brasil, não é capaz de assegurar a ordem e progresso inscritos na nossa
bandeira.” (2005: 199 e 200)

7
As passagens citadas não recuperam inteiramente o argumento do autor que, em várias passagens, frisa a
importância das transformações econômicas, mais especificamente, da perda de poder da monocultura
cafeeira, para o desmonte do modelo vigente na República Velha.
8
Ver Pessanha 2002: 164 e seguintes para uma revisão das críticas ao modelo adotado em 1946 com
ênfase na produção jurídico-constitucional.
As razões para a condenação do presidencialismo se encontram expostas em inúmeros
textos do Autor9. A sua declaração de voto contra o impedimento de João Goulart e
pela adoção do parlamentarismo é das mais sintéticas e claras:
“Mas senhores congressistas, há outra razão e esta de maior gravidade. É que no
Brasil há duas origens para o poder político; o poder político está distribuído em
dois ramos; o presidente da república, cuja escolha, cuja eleição, se processa
cada vez mais e cada vez isso correrá, com a ruptura de todas as organizações
político-jurídicas previstas na Constituição, se elege arrastando uma inundação
emotiva em todo o país e cada vez mais se elegerá mais desta maneira porque só
poderá suscitar o voto da massa nacional, nas condições que ela atualmente vota,
o candidato que estiver em condições de despertar-lhe o fervor e o entusiasmo
por cima dos partidos, por cima da Justiça Eleitoral, por sobre as organizações
que chamei a pouco político-constitucionais do nosso país. Ao mesmo tempo
que tal se estabelece, no Poder Legislativo se recruta através da alquimia de que
se lançam mão todos os elementos sociológicos: os partidos, a política
municipal,as forças de pressão, as aspirações de classe, as esperanças proletárias,
os interesses econômicos e financeiros. E, então, temos assim um presidente que
cada vez mais representa um cesarismo plebiscitário e um Congresso que cada
representa um equilíbrio entre todas as forças da opinião e dos interesses
sociais.”10

Hermes Lima também vê na crise de 1954 razões para condenar o presidencialismo e


advogar a adoção do parlamentarismo. Em Lições da Crise, opúsculo publicado logo
após o suicídio de Vargas, Hermes Lima sustenta que “o trágico desaparecimento do
presidente Vargas pôs em cheque, mais uma vez, a viabilidade do regime presidencial
brasileiro” (1955 53) e a confirmação de que os efeitos da implantação da representação
proporcional não teriam sido os esperados, posto que mais do que enfraquecer o
Executivo, seus efeitos seriam “a desorientação partidária e anarquia de esforços na
política brasileira.” (1955 73). Os argumentos do líder da esquerda democrática
acompanham os de Afonso Arinos de Melo Franco e, desta forma, dispensa transcrições
extensas. Cabe frisar, que tanto Melo Franco como Hermes Lima, fazem referências
constantes às conferências e aos trabalhos publicados pelo Instituto de Direito Público e
Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas, comandado por Temístocles Cavalcanti,
onde pontuam nomes como os de Bilac Pinto, Oswaldo Trigueiro, Seabra Fagundes,
Barbosa Lima Sobrinho, Aliomar Baleeiro, Victor Nunes Leal e outros.

9
Ver Franco 1961 172 para a transcrição completa do prefácio a que o Autor faz referência. A pasagem
central de seu argumento é transcrita em Franco 2005:201. Para uma reconstituição mais completa da
trajetória política e intelectual de Afonso Arinos, consultar Lattman-Weltman 2005.
10
In Lattman-Weltman 2005: 115-116. Note-se que a eleição de Janio Quadros foi interpretada pelo
mesmo autor em outra chave. Ver Lattman-Weltman 2005: 114 para transcrição do texto relevante.
A convicção de que o modelo adotado não era o mais adequado à hora presente também
encontra apoio entre setores do PSD. De acordo com Benevides (1979 225), o próprio
Kubitscheck teria compreendido
“que os parâmetros da Constituição de 1946 estavam exauridos. Essa
Constituição, considerada ‘retrógada’ pois alimentada por um ‘liberalismo
irrealista’ (num século em que a intervenção do poder estatal na atividade
econômica era uma fatalidade inexorável), proibia a delegação de poderes, o que
significava amarrar o Executivo –na sua força dinâmica e criadora—aos
caprichos de um Legislativo inorgânico e indisciplinado pela pluralidade da
representação partidária”

Concretamente, esta convicção teria se consubstanciado em uma proposta de Reforma


Constitucional formulada por uma Comissão Especial de Juristas constituída pelo
Ministro da Justiça11, ninguém menos do que Nereu Ramos, o grande líder e artífice da
Constituição de 1946. A comissão se reuniu no início em início de 1956 e foi composta
por San Tiago Dantas, Carlos Medeiros Silva, Antônio Gonçalves de Oliveira,
Francisco Brochado da Rocha e Hermes Lima12. A reforma proposta era ampla,
incluindo a “exigência para maioria absoluta para a eleição do Presidente e do Vice-
Presidente, à coincidência dos mandatos eletivos na órbita federal, à elaboração
legislativa, e à competência do Supremo Tribunal Federal, no que toca ao recurso
ordinário e ao extraordinário”. Para os fins deste trabalho, importam as propostas
referentes à elaboração legislativa, mais especificamente às alterações relativas ao
processo legislativo e à redefinição das competências legislativas do Poder Executivo e
do Legislativo.

Não foram poucas e tampouco destituídas de efeitos as alterações propostas. Merece


transcrição a justificativa geral apresentada para embasar as reformulações defendidas:
“As modificações sugeridas pela Comissão de Estudos da Reforma
Constitucional no Capítulo II, “Do Poder Legislativo”, têm por fim assegurar ao
processo de elaboração das leis andamento mais consentâneo com a eficiência da
ação do Congresso. Tudo indica que o prestígio do Congresso se reforçará na
opinião desde que sua tarefa legiferante se apresente em condições técnicas de
atender a tempo e a hora as soluções reclamadas pelo corpo social. (...) Todas as
medidas alvitradas, inspiram-se nas lições da experiência vivida, principalmente
nestes últimos dez de prática Constitucional Nacional.”

11
Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Reforma Constitucional. Sugestões para a Reforma
Constitucional apresentadas ao Ministro Nereu Ramos pela Comissão Especial de Juristas, constituída em
março de 1956. Departamento de Imprensa Nacional. Rio de Janeiro. 1956.
12
A comissão, em uma clara tentativa de obter apoio da UDN, propôs que a eleição do presidente e do
vice seria feita pelo Poder Legislativo caso nenhum dos candidatos obtivesse maioria absoluta dos votos.
Para uma melhor contextualização dos trabalhos da comissão e seu destino, consultar Draibe 1985 357.
Ver também Benevides 1975 80
Especificamente, no que se refere a este capítulo, cuja relatoria coube a Hermes Lima13,
os membros da comissão fizeram propostas visando disciplinar melhor os gastos
públicos e reforçar os poderes legislativos do Presidente. Quanto ao primeiro ponto,
propunha-se limitar o direito de proposição de projetos de lei pelos congressistas,
condicionando a deliberação dos projetos que aumentassem despesas à identificação das
correspondentes fontes de receitas. Quanto ao segundo aspecto, foram duas as principais
propostas. A primeira delas estabelecia prazos para apreciação projetos de lei de
iniciativa do Executivo por parte do Legislativo, que não poderiam exceder 120 dias na
Câmara e 60 no Senado. De acordo com a exposição de motivos que acompanha a
proposta:
Se o presidente solicita uma lei, milita a favor de sua iniciativa a presunção de
que a inspirou motivo de ordem ou bem público. Não deve a iniciativa do Chefe
do Estado sofrer retardamento seja por ação seja por omissão. Ao congresso
cumpre deliberar. É o que visa a modificação do parágrafo 3º. do artigo 67 (p.
26).

A segunda proposta introduzia a incorporação do princípio da delegação legislativa,


explicitamente vedada pelo texto vigente, ao estabelecer que o “Congresso Nacional
poderá autorizar o Poder Executivo a elaborar projeto definitivo de lei dentro de limites
e diretrizes que estabelecer”. A necessidade de incorporar este dispositivo ao texto
constitucional é dada pela alteração do escopo da legislação exigida por uma sociedade
industrial:
Dado, porém, o caráter da legislação moderna destinada a regular a vida de uma
sociedade, como a nossa, que cresce e se industrializa a olhos vistos, a
possibilidade de autorizar o Legislativo a que o Executivo elabore projetos
definitivos da lei, represente ajuda inestimável, pois entrosa a experiência e o
aparelhamento do Governo com as atribuições específicas do Congresso (p. 28).

Ainda que não tenham sido acolhidas naquele momento, as propostas da comissão
revelam de forma clara o redirecionamento das preocupações institucionais no curto
período de vigência do texto constitucional. Mais importante do que as reformulações
específicas feitas, é o “espírito” que presidiu sua elaboração. Ao que tudo indica, o
problema maior deixara de ser “domar o executivo”. Importava agora evitar a demora e
a procrastinação das deliberações tornando o processo legislativo mais eficiente. A
iniciativa do presidente não poderia mais ser retardada por ação ou omissão, cumpria,
portanto, garantir que “trabalho do Congresso (...) não se entorpeça até a paralisação”
(p. 35).

A proposta de reforma constitucional, como sabe malogrou. Contudo, a formação da


Comissão e o teor das propostas atestam a maré montante das críticas à Carta de 1946.
O modelo adotado já não comandava apoio integral ou sem reservas junto a vários

13
Ver Hermes Lima (1974 156) para a sua apreciação da comissão e de suas propostas.
setores, incluindo representantes ilustres do PSD e UDN. Como visto anteriormente, a
posição de Afonso Arinos de Melo Franco, líder da UDN na Câmara, não é muita
diversa daquela exposta pela comissão de juristas reunida por Nereu Ramos. Na sua
análise da Evolução da Crise Brasileira14 são freqüentes as referências à “paralisia
discursiva”(p. 30) experimentada pelo Congresso, uma consequência inesperada da
adoção da representação proporcional:
“Se a representação proporcional era destinada a enfraquecer politicamente o
presidente, a verdade é que, na prática, mais do que ao Presidente, ela veio
enfraquecer politicamente o Congresso. Isto é explicável. A atomização das
maiorias, principalmente na Câmara, retira a qualquer partido a possibilidade de
controlar a situação, seja nas comissões, seja em plenário. Os pequenos partidos
podem adquirir uma importância desmesurada, muito maior que seu peso
numérico, sempre que o resultado das votações for apertado. Maiorias flutuantes
e precárias, integradas por grupos que se aproximam sem se juntar, impõem uma
constante necessidade de transação, às vezes no pior sentido de barganha, de
troca de vantagens, até de chantagens e corrupções. (...) Nada se pode fazer de
durável, de impessoal, de construtivo. Depende tudo das circunstâncias,
possibilidades e interesses (as mais das vezes pessoais) de cada dia.” (2005
91)15

O diagnóstico formulado pela esquerda, como é sabido, não era diverso. De acordo com
a célebre formulação de Celso Furtado (1965: 138), a Constituição de 1946
representaria um
“Poderoso instrumento na mão da velha oligarquia agrícola para preservar sua
posição como principal força política. O atual sistema federativo, ao atribuir
grande força ao senado, no qual pequenos estados agrícolas e as regiões mais
atrasadas têm influência decisiva, coloca o Poder Legislativo praticamente em
mãos de uma minoria da população do país que habita regiões onde os interesses
latifundiários exercem poder incontestado. Na Câmara, o número de deputados é
proporcional à população de cada Estado. Dessa forma, quanto mais analfabetos
tem um estado, maior o poder da minoria votante. (...) Como é nas regiões com
mais analfabetos que a oligarquia tem mais força, o sistema eleitoral contribui
para manter o predomínio desta.”

Assim, enquanto o Congresso seria controlado pela “classe dominante tradicional”, o


contrário se daria com o Executivo, uma vez que
“as modificações na estrutura social que se traduziram na urbanização, criaram
as condições para a predominância do eleitorado urbano. (...) Criaram-se assim
14
O livro é uma coletânea dos artigos originalmente veiculados no Jornal do Brasil em 1964.
15
Acrescenta o Autor em seguida: “Outra razão que contribui bastante para a deficiência do trabalho
legislativo é a falta de assessoria técnica parlamentar” (2005 91)
as condições para o Poder Executivo represente as Forças que desafiam o status
quo, representando a velha oligarquia que domina o Congresso.” (1965 139)

A conseqüência é que o
“Presidente da República teria que alcançar objetivos que são incompatíveis com
as limitações que lhe cria o Congresso dentro das regras do jogo constitucional.
Assim, os dois princípios de legitimação da autoridade – subordinação ao marco
constitucional e a obediência ao mandato substantivo que vem diretamente da
vontade popular – entram em conflito, criando para o presidente a disjuntiva de
trair o seu programa ou forçar uma saída não convencional, que pode inclusive a
renuncia.” (1965 140)

A crítica, quando não a condenação, do modelo adotado pela Carta de 1946 encontra
porta-vozes em todos os grupos políticos. Diferenças de ênfases e de termos não negam
o acordo substantivo subjacente. O conflito entre um Executivo plebiscitário e um
Congresso amorfo na pena de Afonso Arinos de Melo Franco se transmuta em
confronto entre o moderno e o tradicional na visão de Celso Furtado. O juízo de que o
Poder Executivo era frágil, que se via impedido implementar as medidas necessárias e
reclamadas pela sociedade por um Congresso conservador e moroso era dominante.
Para os fins deste texto, importa menos aferir o acerto destas interpretações do que notar
o consenso formado em torno de uma agenda de reformas16.

Seja como for, o fato é que estes diagnósticos negativos minimizam o sucesso
alcançado pelo modelo adotado. Este se mostrou capaz de solucionar o principal
problema enfrentado, garantindo a “autenticidade do voto”, isto é, assegurando a lisura
das disputas eleitorais, a representação das minorias e o rodízio do poder com base na
competição eleitoral pacífica17. Neste aspecto, o modelo adotado respondeu de forma
efetiva aos problemas enfrentados no passado.

III. Da elaboração: os debates constituintes.

É impossível resgatar nos limites de um artigo toda a complexidade dos trabalhos


constituintes em suas inúmeras fases. Ao se debruçar sobre o rico material
disponibilizado, o analista corre o risco de se perder, tantas foram as discussões e os
16
Cheibub (2007 99) mostra que presidentes fracos afetam negativamente o desempenho das democracias
presidencialistas. Quanto à fragmentação partidária, os seus achados contraditam a crença de que esta
afetaria a sobrevivência de regimes presidencialistas. As explicações acadêmicas para a crise de 1964
descartam o peso de ambas as variáveis. Ver Santos 1986 e Figueiredo 1993
17
Para o crescimento da competição eleitoral no período, consultar Santos 2007, capítulo 2. Resta saber
se a efetividade da competição depende do “aspecto construtivo da norma jurídica” (Franco 1961: 131) ou
da erosão das bases sociais e econômicas de sustentação do ‘coronelismo’ (Leal 1993: 257)
momentos decisivos neste processo18. As definições relativas ao Poder Executivo, mais
especificamente à forma de governo e à extensão do mandato presidencial, podem ser
vistas como os epicentros causadores da instabilidade experimentada pelo processo
constituinte. Ainda assim, por paradoxal que possa parecer, a definição das
prerrogativas legislativas do Poder Executivo esteve a salvo destas reviravoltas. O
projeto aprovado pela Sub-Comissão do Poder Legislativo, mais especificamente a
seção relativa ao processo legislativo, atravessou incólume o processo, sendo
incorporado ao texto final aprovado sem grandes modificações substantivas.

O relator da Sub-Comissão, constituinte José Jorge (PFL-PE), em diversas


oportunidades, deixou claro que seu trabalho visava equacionar duas demandas. De um
lado, era imperioso resgatar as prerrogativas perdidas pelo Poder Legislativo ao longo
do período autoritário. De outro, era necessário evitar que o Congresso voltasse a se
tornar um obstáculo ao processo decisório. No relatório que acompanha o ante-projeto
da sub-comissão, o relator dá conta do duplo imperativo enfrentado:
“Tão importante quanto devolver as prerrogativas ao Poder Legislativo –antigo
anseio de sucessivas gerações de parlamentares brasileiros, inconformados com
o hipertrofismo do Executivo – é dotar o Congresso Nacional de meios para
exercê-los em sua plenitude com a eficiência que se requer de um Parlamento
ágil e moderno. A redação do anteprojeto anexo buscou tanto quanto possível
(...) alcançar essas duas metas, as quais sem dúvida encontram apoio em todo o
Congresso Nacional e na sociedade brasileira” (Documentos da ANC 1987,
Volume 106: 2)

Para tornar o processo legislativo mais ágil e eficiente, o anteprojeto propôs a


descentralização, isto é, a valorização das comissões por meio do instituto do Poder
Terminativo. Isto porque “um parlamento que orbita em torno apenas do seu plenário
está condenado à lentidão, à inércia e a ineficiência, perdido no tempo e no rumo da
estagnação”. Ou seja, buscava-se exorcizar o Legislativo de seus velhos e arraigados
pecados: a morosidade. Em outra passagem, o relatório retorna ao tema, enfatizando que
“É inquietante a realidade atual que exibe, tramitando por longo período de
tempo, cerca de dez mil projetos, cuja, afluência ao Plenário sobrecarrega-lhe os
trabalhos, tornando-se tarefa difícil, se não inviável, a sua tempestiva apreciação.
A alternativa proposta visa desobstruir os trabalhos do plenário, imprimindo
maior racionalidade e agilização do processo legislativo, das Comissões, e por
via de conseqüência, do Poder Legislativo como um todo” (pag 9/10)

Para contornar a morosidade do processo decisório no interior do Poder Legislativo, o


anteprojeto previa ainda – e esta foi uma das poucas propostas contida no anteprojeto
que não sobreviveria às fases seguintes do processo- a redução do quorum para

18
A este respeito consultar Pilatti 2008, Martinez-Lara 1996 e Gomes 2005.
deliberação do plenário. A justificativa apresentada é significativa, posto que se
esperava que a medida adotada
“em vez de provocar o esvaziamento do plenário, terá efeito exatamente oposto,
uma vez que tanto os partidos majoritários como os minoritários –conscientes de
que a maioria dos presentes é suficiente para aprovar grande parte das
matérias—não poderão mais apostar na inexistência do quorum para fazer
prevalecer suas posições” (pag 14)

O relator, portanto, preocupa-se com a reformulação do Poder Legislativo, com sua


adequação às condições vigentes, posto que se este não pretende “ceder espaços para o
Executivo, deve munir-se de mecanismos ágeis e eficientes, fácies de acionar, que lhe
permitam fazer valer suas prerrogativas, na tarefa de definir e implementar as políticas
promotoras do desenvolvimento da sociedade” (pag 12)

Sendo assim, não cabe pensar o Poder Legislativo e suas prerrogativas de forma
independente das que são conferidas ao Poder Executivo. Neste aspecto, o anteprojeto
inicial opta pela
“extinção do decreto-lei, atendendo a inúmeras sugestões de constituintes, de
funcionários do Congresso, dos cidadãos e de entidades da sociedade civil e
levando em conta o desgaste que esse recurso vem provocando no Poder
Legislativo. Ademais, é importante ressaltar que o decreto-lei é na realidade uma
gigantesca porta aberta por onde têm transitado, lado a lado, tanto leis urgentes e
inadiáveis, portanto necessárias ao país, quanto verdadeiros abusos jurídicos aos
quais o Congresso se vê levado a sancionar”

No entanto, a extinção pura e simples do decreto-lei não foi sustentada no interior da


própria Sub-Comissão. O projeto aprovado e remetido à Comissão de Organização de
Poderes e Sistema de Governo já incorporou, por meio da aprovação de emenda
destacada apresentada por Jorge Hage (PMDB - BA), a Medida Provisória. Na
exposição que acompanha o substitutivo aprovado, o relator nota que “o procedimento
proposto não apresenta as características de cunho autoritário do decreto-lei previsto na
constituição vigente”, seguindo “o exemplo democrático das Nações politicamente
desenvolvidas e parlamentaristas” (Documentos da ANC, Volume 109: 26)

No que tange à participação na elaboração do orçamento, a importância da recuperação


desta prerrogativa pelo Poder Legislativo é afirmada de forma enfática:
“Um parlamento que não pode debater à exaustão, nem emendar uma matéria
tão relevante quanto o orçamento, reduz-se apenas a um colegiado de
representantes de um povo que não pode estabelecer suas prioridades na
execução das obras que necessita, as quais, são, em essência, a natureza da
atividade do Governo” (Documentos da ANC 1987: Volume 106: 15)
Em que pesem estas afirmações, os anteprojetos aprovados tanto pela Sub-Comissão do
Poder Legislativo como pela Comissão de Poderes não deixavam de impor restrições
consideráveis ao direito de emendar o orçamento. Em primeiro lugar, porque a
proposição do orçamento figurava na lista das matérias de iniciativa exclusiva do Poder
Executivo. Em segundo lugar, porque se vedava a admissão de emendas que
aumentassem despesas previstas nos projetos de “cuja iniciativa seja da exclusiva
competência do Presidente da República ou do Primeiro Ministro”.

A Sub-Comissão do Orçamento e da Fiscalização Financeira e, posteriormente, a


Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças também trataram da matéria e
suas decisões foram menos restritivas do que as aprovadas no texto final19. Ainda assim,
as decisões nestas comissões, conforme esclarece o relatório enviado à Comissão de
Sistematização pela Comissão de Sistema Tributário, Orçamento e Finanças, foram
balizadas pelo
“princípio de que o Legislativo não deve substituir o Executivo nas suas funções
na realização da despesa pública, mas, ao mesmo tempo, considera-se crucial
que o Legislativo participe efetivamente da definição das prioridades cruciais e
fiscalize a execução da despesa. (Documentos da ANC, Vol. 144: 3)

A expectativa do Relator, José Serra (PMDB-SP) era a de que a participação dos


parlamentares fosse canalizada para os instrumentos de planejamento de longo e médio
prazo, o PPA e a LDO, desenhados. O Congresso deveria, assim, participar da definição
das prioridades e não se ater ao detalhamento dos gastos anuais. No interior da
Comissão de Sistematização o “princípio” enunciado acima ganhou um delineamento
mais claro com a formulação de restrições precisas quanto ao direito dos parlamentares
emendarem o orçamento. A fórmula encontrada variou, mas os efeitos e objetivos não;
desde os primeiros textos da Comissão de Sistematização até a o texto final aprovado, a
admissão de emendas parlamentares ao orçamento acaba, para todos os efeitos, restritas
ao remanejamento das despesas alocadas em investimento20.

A definição das demais áreas de iniciativa exclusiva do Poder Executivo, como fixação
dos efetivos da Forças Armadas, criação de cargos, funções ou empregos públicos na
administração direta e autárquica e fixação das correspondentes remunerações, não
causaram maiores debates. Tampouco foi objeto de discussão a vedação a apresentação
de emendas que acarretassem aumentos de despesa nas matérias de iniciativa do Poder
Executivo.

Em resumo, a Seção intitulada “Do Processo Legislativo” aprovada pela Subcomissão


do Poder Legislativo foi incorporada sem maiores modificações e, mesmo, debates, ao

19
Para os detalhes das decisões nesta comissão, consultar Afonso 2002 e Praça 2008.
20
Para uma análise mais detidas destas restrições e seus efeitos, consultar Figueiredo e Limongi 2008.
texto final. Mudanças foram mínimas e as que ocorreram tenderam a reforçar o Poder
Executivo21. Por exemplo, o texto original da subcomissão condicionava o pedido de
urgência do Executivo à aprovação pela Câmara. A partir do texto da Comissão, o
pedido passou a ser unilateral. Para os constituintes, a recuperação das prerrogativas do
Poder Legislativo pedia que este expurgasse seus velhos vícios, que se modernizasse
institucionalmente por meio da descentralização e a racionalização dos trabalhos e,
mesmo, forçando-o a agir como a malograda proposta de baixar o quorum revela. A
contrapartida esperada no tratamento das prerrogativas do Poder Executivo, no entanto,
não ocorre. Alternativas neste sentido raramente são consideradas.

A exceção que confirma a regra é a tímida rejeição inicial do Decreto-Lei, logo


restaurada sob nova denominação na versão seguinte do texto e objeto, em estágios
posteriores, na Comissão de Sistematização e na votação final no Plenário, de emendas
destacadas para votação em separado visando sua supressão. Em ambas as ocasiões, as
emendas foram derrotadas por larga maioria22. A defesa da Medida Provisória na
Comissão de Sistematização, feita pelo Relator da Comissão de Organização dos
Poderes e Sistema de Governo, resume bem as preocupações que deram o tom dos
trabalhos constituintes nesta área. Após citar estudo de Oswaldo Trigueiro publicado
nos anos cinqüenta, Egídio Ferreira Lima, assim conclui seu discurso:
“Trata-se, portanto, de medida eficaz, heróica, necessária, indispensável a um
Estado Moderno, altamente democrática e juridicamente bem elaborada. Não
podemos, nesta hora, evidenciar conservadorismo e atraso.”(DANC, Suplemento
171: 1701)

A oscilação na forma de governo a ser adotada não afetou as definições fundamentais


relativas ao Processo Legislativo. Afetou apenas a distribuição das prerrogativas
exclusivas do Executivo entre o Presidente e o Primeiro-Ministro sem que estas
passassem, em qualquer dos textos, mãos do Poder Legislativo.

A tese segundo a qual a Constituição foi escrita sob uma orientação parlamentarista a
que teria sido adicionada, à última hora, uma cabeça presidencialista não procede.
Ainda que seja verdade que o parlamentarismo tenha vencido as batalhas iniciais, não é
menos verdadeiro que seus defensores nunca consideraram suas vitórias como
definitivas. O Relator da Sub-Comissão do Poder Executivo, José Fogaça (RS-PMDB)
ao apresentar seu relatório, citou pesquisa de opinião feita pelo Jornal do Brasil
indicando o equilíbrio de forças do plenário quanto à questão, reconhecendo que a

21
Deixo de tratar de inúmeros aspectos relacionados e que seguem a mesma orientação, como por
exemplo, a valorização das Sessões Conjuntas do Congresso Nacional como instância decisória própria,
contornando-se a assim as dificuldades inerentes a um sistema bi-cameral. Para uma visão mais detida
desta questão, consultar Figueiredo e Limongi 1995.
22
Para a reconstituição dos trâmites específicos ao artigo 62 e sua relação com o debate relativo à forma
de governo, consultar Figueiredo e Limongi 2000 cap 5.
matéria continuaria aberta ao longo do processo. O texto que acompanhou seu
anteproejeto não deve, portanto, ser tomada como exercício retórico ou como uma
obrigação imposta pela etiqueta política:
“Não pretendemos –nem podemos- oferecer um modelo institucional acabado e
pronto. É uma proposta aberta, exposta ao dinamismo e ao processo democrático
que o Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte estabelece. Será,
por certo, alterada e enriquecida.” (Documentos da ANC, Vol 110: 2)

As vitórias parlamentaristas nunca forma fáceis e definitivas. A opção pelo


parlamentarismo foi confirmada na Comissão de Sistematização em sessão dramática e,
de acordo com Martinez-Lara (1996 137), em que a tendência pró-presidencialismo
teria sido revertida no plenário graças a um discurso emocionado de Afonso Arinos de
Melo Franco. Ou seja, os constituintes sabiam que as decisões relativas ao sistema de
governo poderiam ser revistas e na verdade os próprios parlamentaristas nunca
chegaram a um consenso sob qual modelo de parlamentarismo. O texto foi elaborado
levando esta incerteza em conta. Por isto mesmo, quando o plenário votou
favoravelmente a adoção presidencialismo, não foi necessário reescrever os artigos já
aprovados.

No que diz respeito ao mandato do presidente Sarney é forçoso reconhecer que os


partidários dos cinco anos venceram em todas as etapas do processo, exceto na votação
final no interior da Comissão de Sistematização em novembro de 1987. A coalizão
orquestrada por Sarney já mostrara ser majoritária nos embates que marcaram a
aprovação do Regimento Interno original. Naquela oportunidade, o grupo pró Sarney
derrotou as pretensões do grupo pró-soberania do PMDB. A luta se deu em torno do
alcance dos Projetos de Decisão, se estes poderiam ou não reformar imediatamente a
Constituição em vigor. Na oportunidade, a vitória de Sarney se deu com a aprovação de
uma versão mais branda do instituto, limitando-o a um poder de reação contra possíveis
ameaças à soberania da constituinte. Leia-se: os Projetos de Decisão não poderiam ser
usados para estabelecer a extensão do mandato presidencial. A demonstração de força
de Sarney foi inequívoca.

Sarney vence novamente na Sub-Comissão do Poder Executivo o na Comissão de


Poderes e Sistema de Governo. Em ambos os casos, derrota, em plenário, os relatores
cujos anteprojetos previam mandato de quatro anos para o presidente23. No segundo

23
A Sub-Comissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos e, consequentemente, a Comissão de
Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições também trataram da matéria conferindo
mandatos de cinco anos a Sarney em seus projetos. Nestes casos com apoio dos respectivos relatores
Francisco Rossi (PTB-SP) e Prisco Viana (PMDB-BA). Dado o papel que este último veio a desempenhar
posteriormente, cabe notar que, inicialmente, este se opôs a que a comissão tratasse da matéria.
caso, de acordo com Martinez-Lara (1995: 135), a vitória da emenda em favor dos cinco
anos teria sido produto de um acordo entre Sarney e Ulysses.24

As votações relativas à forma de governo e à extensão do mandato do presidente Sarney


foram sempre conturbadas e marcadas por forte polarização e as decisões alcançadas
foram sempre tidas como provisórias e passíveis de redefinição no futuro. As tentativas
de acordo entre as partes envolvidas não prosperaram ou não puderam ser mantidas.
Seja como for, o fato é que as reviravoltas relativas à forma de governo e ao mandato
presidencial em nada afetaram as decisões relativas ao processo legislativo. Neste
capítulo, imperou um forte consenso, expresso de forma acabada nas palavras proferidas
pelo relator da Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo quando da
apresentação de seu ante-projeto:
Na feitura do anteprojeto do legislativo, desde o laborioso trabalho do relator, o
constituinte José Jorge, com o fluxo das sugestões dos integrantes da Subcomissão,
houve uma atormentante e fértil preocupação de torná-lo célere e eficiente,
escoimando-o de suas históricas deficiências. E, no curso desse veio, imbui-me da
preocupação de dotá-lo da mecanismos precisos para tornar efetiva a função
legiferante (DANC, 05/08/87, Suplemento 115: 7)

A possibilidade de que conflitos institucionais viessem a paralisar o governo foram


cuidadosa e explicitamente removidas. O exemplo mais acabado neste sentido foi a
ausência de regulamentação das conseqüências da não aprovação do orçamento dentro
do prazo previsto pela Constituição. A separação de poderes inerente ao
presidencialismo não poderia se transformar em óbice a ação do governo.

IV. Das Consequências: poder de agenda e preponderância do executivo

A Constituição de 1988 não alterou as instituições fundamentais que caracterizam o


sistema político brasileiro desde a adoção da Constituição de 1934. Presidencialismo e
representação proporcional foram mantidos. Não segue que tudo o mais tenha
permanecido inalterado. Tampouco é verdade que as alterações promovidas sejam
destituídas de consequências substantivas e práticas.

Se for verdade que instituições afetam o teor das decisões, não será talvez menos
verdadeiro que as instituições que importam não se resumem à forma de governo e às
leis eleitorais. A definição dos poderes legislativos do Poder Executivo são igualmente
crucias na medida em que afeta, de forma direta, o processo decisório. Como mostram
trabalhos recentes (Shugart e Carey 1994, Cheibub 2007), a distinção entre
presidencialismo e parlamentarismo é menos importante do que se acreditou por muito

24
Martinez-Lara apóia-se em entrevista pessoal com José Fogaça para sustentar sua afirmação.
tempo. A distinção mais importante diz respeito ao controle sobre a agenda decisória.
Em sistemas presidencialistas, o direito de propor alterações no status quo legal,
contrariamente ao que usualmente se propala, não cabe necessariamente ao Poder
Legislativo. O poder de propor e os meios para processar estas propostas de forma
favorável podem ser concentrados nas mãos do presidente. Esta tem sido a tendência
dominante das constituições presidencialistas mais recentes, norma seguida pela
Constituição brasileira de 1988.

O presidencialismo adotado em 1988 é radicalmente diverso do previsto pela Carta de


1946. O reforço dos poderes presidenciais é patente como demonstra o quadro abaixo.

Quadro 1
Poderes legislativos do Executivo, segundo constituições democráticas brasileiras de
1946 e 19888

Poderes Legislativos do Executivo Constituição de Constituição de


1946 1988
Iniciativas exclusivas:
Projetos de lei “administrativos”* Sim Sim
Projetos de leis orçamentárias Não Sim
Projetos de lei sobre matéria tributária Não Sim
Emendas constitucionais Não Sim
Editar decretos com força de lei (medida Não Sim
provisória)
Editar leis sob requerimento de delegação pelo Não Sim
Congresso
Solicitar a urgência dos projetos de lei (votação Não Sim
em 45 dias em cada Casa)
Impor restrições a emendas orçamentárias do Não Sim
Congresso
Fontes: Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1946; Constituição da
República Federativa do Brasil, 1988.
* Projetos administrativos incluem: criação e estruturação de ministérios e outros órgãos de administração
pública; criação de empregos, funções e postos na administração pública; aumentos salariais de servidores
públicos; carreiras de servidores públicos; administração judicial e da máquina administrativa; unidades
administrativas dos territórios; tamanho das Forças Armadas; organização dos gabinetes do defensor
público da União e da Procuradoria Geral da União; regras gerais para organização dos gabinetes do
defensor público da União e da Procuradoria Geral da União nos

Os efeitos da ampliação dos poderes legislativos do presidente sobre a produção


legislativa são diretos e facilmente perceptíveis, expressando-se de forma acabada nos
índice de sucesso das iniciativas de projeto de lei e de dominância sobre a produção
legal. A tabela 1 abaixo traz os dados discriminados por presidência para os dois
períodos constitucionais. O contraste não poderia ser mais completo.

Tabela 1.
Legislação Ordinária. Produção Legislativa por governo
1949-1964 e 1988-2007*

Partido do Coalizão de
Presidente governo na
Governo na Câmara Câmara dos Sucesso do Dominânci
dos Deputados Executivo a do
Deputados ** Executivo
(% Cadeiras) ***
(% Cadeiras) (%)
(%)

Dutra 52,8 74,0 30,0 34,5

Vargas 16,8 88,0 45,9 42,8

Café Filho 7,9 84,0 10,0 41,0

Nereu Ramos 33,9 66,0 9,8 39,2

Kubitschek 33,9 66,0 29,0 35,0

Quadros 2,1 93,0 0,80 48,4

Goulart 23,5 72,0 19,4 40,8

Subtotal 24,3 77,1 29,5 38,5

Sarney 40,61 58,59 73,83 76,65

Collor 5,05 33,79 65,93 75,43

Franco 0,00 57,28 76,14 91,57

Cardoso I 9,36 71,62 78,72 84,40

Cardoso II 18,32 67,87 74,38 81,57

Lula I 11,11 59,52 81,47 89,88

Subtotal 14,07 58,11 75,08 83,25

Fonte: Banco de Dados Legislativos, Cebrap.


* Os três primeiros anos da administração Dutra (1946-1948) foram excluídos por falta de
informação sobre a origem das leis. O primeiro período vai até 31 de março de 1964 e o segundo
até 31 de janeiro de 2007.

A dominância e o sucesso do Executivo sobre a agenda legislativa é uma conseqüência


direta da estrutura institucional25. No período democrático iniciado em 1946, os
presidentes conseguiram a aprovação de apenas 29,5% dos projetos apresentados
durante seus mandatos. O presidente mais bem-sucedido desse período, Getúlio Vargas,
aprovou menos de 50% dos projetos apresentados. Na democracia pós-1988, a taxa
geral de sucesso foi de 75,8% e somente Collor registrou marca significativamente
abaixo da média. A dominância do Executivo na produção de leis no período pós-1988
é ainda maior. O Executivo foi responsável, na média, pela apresentação de 83,3% das
leis sancionadas. No período 1946-64, ao contrário, a fatia do Executivo foi de 38,5%.
Após a promulgação da Constituição de 1988, o Executivo raramente foi derrotado.
Rejeições explícitas são pouco freqüentes: apenas 65 dos 2965 projetos apresentados
pelo executivo foram rejeitados.

A interpretação dos dados apresentados é bastante direta: pelo texto constitucional em


vigor, o Executivo controla a agenda legislativa do país. Cabe à Presidência da
República propor alterações do status quo. Do ponto de vista legal, o que muda no país,
muda por iniciativa do Executivo. A base do poder presidencial é, portanto,
institucional, dependendo muito pouco do tamanho da bancada do seu partido e das suas
qualidades como negociador. Não fosse assim e as taxas de sucesso e dominância
verificados não seriam estáveis.

Está claro que o poder de agenda do Executivo não é suficiente para garantir a
aprovação da suas proposições. O sucesso do Executivo só pode ser garantido por meio
do apoio explícito da maioria dos legisladores. Leis só são aprovadas se votadas pelo
Legislativo. E isto é verdade inclusive para a manifestação extrema do poder de agenda
do executivo, as Medidas Provisórias. Para que se tornem leis, estas precisam ser
aprovadas pala maioria.26 Dito de outra forma, o poder de agenda não confere ao
Executivo a possibilidade de contrariar ou contornar a oposição do Legislativo. Assim,
se o Executivo tem sido bem sucedido na arena legislativa é por que, durante o período,
contou com o apoio da maioria os legisladores.

A despeito das visões folclóricas em contrário, o governo logra sucesso em suas


iniciativas legislativas com base em apoio parlamentar estruturado e disciplinado. As
votações nominais do período 1988-2007 mostram que os partidos da coalizão do
governo apoiaram os projetos do governo. A disciplina média d coalizão reunida em
apoio ao do governo foi de 85% ao longo do período 1989-2006. Dado este apoio, o
presidente raramente é derrotado em plenário. As coalizões de governo no Brasil são
formadas e obedecem a uma lógica que não difere da que se verifica em sistemas
parlamentaristas multipartidários.

25
Este parágrafo e os seguintes apóiam-se extensamente em Figueiredo e Limongi 2007: pág 156 e
seguintes.
26
Antes da reforma de 2001, uma medida provisória podia ser tomada como lei enquanto não se formasse
uma maioria contrária. Hoje, para que tenha validade após 120 dias é necessário o apoio explicito de uma
maioria.
A relação entre a concentração do poder de agenda e a disciplina partidária é direta e
imediata. A maior centralização do processo legislativo significa que os membros do
Congresso possuem menor capacidade de influenciar, individualmente, o quê, como e
quando as propostas do Legislativo serão votadas. Esta definição fica nas mãos do
Presidente da República e dos líderes partidários, incluindo-se aqui o Presidente da
Mesa. Na realidade, ao contrário do que pretendiam os constituintes, o processo
decisório no interior do Poder Legislativo, por força das regras regimentais vigentes e
sua interação com as prerrogativas legislativas do Executivo notadas anteriormente,
acabou por ser altamente centralizado mãos dos líderes partidários. Note-se que o
modelo pretendido pelos constituintes, baseado na valorização do poder das comissões,
não vingou27. Tampouco vingou o modelo desenhado para o processo orçamentário que,
se esperava, deveria conferir maior importância ao PPA e a LDO.

Os efeitos da concentração de poderes nas mãos do Poder Executivo e sua contrapartida,


as restrições atuação individual dos congressistas, são mais fortes na arena
orçamentária. Com a promulgação da Constituição de 1988, o Congresso recuperou a
prerrogativa de emendar o orçamento. Contudo dada as vedações e restrições
constitucionais e legais vigentes, este direito se resume à participação na definição das
verbas alocadas a investimento e, mesmo neste caso, no interior dos programas
previamente definidos pelo Executivo. De outra parte, os recursos que financiam as
políticas sociais como saúde, educação, previdência e proteção social, por serem gastos
de custeio, são protegidos da intervenção direta dos legisladores28.

O poder de agenda, portanto, não deve ser confundido com poder pessoal do presidente.
Trata-se de uma arma da maioria, facilitando sua ação ao contribuir para a solução dos
clássicos problemas de ação coletiva e, também, permitindo vencer mais facilmente as
resistências da minoria. Ou seja, a concentração dos poderes de agenda nas mãos do
presidente permite que este atue como um agente catalisador na formação da maioria
que irá apoiá-lo e, uma vez tendo esta sido formada, como seu agente.

V. Conclusões

Os redatores da Carta de 1988 foram advertidos, em mais de uma oportunidade, que não
deveriam se comportar como os constituintes de 1946 teriam agido. Paulo Affonso
Martins de Oliveira, o influente Secretário-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados,
nos primeiros dias de trabalho efetivo dos constituintes, em Audiência Pública
promovida pela Sub-Comissão do Poder Legislativo, notou que os constituintes de 1946
teriam outorgado ao
“Congresso Nacional tais poderes que ficou ele numa situação de superpoder
em relação ao Executivo. Atribuíram-se prerrogativas ao Congresso em todos os
campos, e aquelas atribuídas ao executivo não foram plenas nem exclusivas,
27
Sobre este ponto consultar, Figueiredo e Limongi 1999.
28
Ver Figueiredo e Limongi 2008 para um tratamento mais detido da questão.
nem privativas, como a constituição de hoje em dia estabelece, mas sempre
concorrentes. (...) O Congresso Nacional não se tendo modernizado, sendo lento,
profundamente conservador e sem uma visão mais ampla dos problemas
nacionais, sofreu no correr de 1946, grande desgaste de natureza popular. E o
Executivo, por meio de uma legislação solicitada ao congresso ou de atos
internos baixados por decretos, portarias, foi aos poucos enfrentando esta crise,
porque ele tinha de ter uma solução. Preocupa-me agora que o Congresso
Nacional, na feitura de uma nova constituição, queira estabelecer princípios
semelhante ao ocorreu em 1946: outorgar-se poderes ilimitados em detrimento
daquelas competências que deveriam caber ao Executivo” (DANC 14/05/87
Suplemento 59: 25)

A advertência foi ouvida. Os constituintes não estabeleceram ‘princípios semelhantes’


aos de 1946. Contudo, pode-se dizer que, os constituintes, em ambas as oportunidades,
procuraram responder ao imperativo: sanar as falhas identificadas na experiência
constitucional anterior. Superar os problemas causados pela arquitetura institucional de
1891 e de 1946, este o leitmotiv de cada uma destas experiências constitucionais.

Por sito mesmo, as alterações promovidas pelos militares na Constituição de 1946 não
foram tratadas como parte do “entulho autoritário”. Os constituintes deixaram ao
Executivo as competências que lhe haviam sido conferidas após 1964. A exclusividade
da iniciativa em matérias orçamentárias, tributárias e administrativas foi mantida. A
possibilidade do Congresso em alterar a proposta orçamentária e definir os gastos
públicos foi circunscrita, limitando-se a investimentos. Além disto, não se retirou do
Executivo a capacidade de ditar a pauta dos trabalhos legislativos, por meio da edição
de Medidas Provisórias e da solicitação unilateral de urgência. Recorrendo a um destes
instrumentos, o Executivo tem como forçar a deliberação das matérias de seu interesse,
vencendo os obstáculos usuais a que recorrem os que se opõem às suas propostas.

As mudanças institucionais promovidas não atenderam a todo o programa reformista


gestado ao longo do período democrático anterior. Deixaram de lado, pode-se até
argumentar, os eixos centrais sobre os quais se ancorava aquele diagnóstico ao optarem
pela preservação do presidencialismo e da representação proporcional com a lista
aberta29. Contudo, como mostrado ao longo deste artigo, foram feitas alterações
significativas e com implicações profundas sobre a forma e a natureza da operação do
regime presidencialista no país.

29
Note-se que os militares tampouco, a despeito de inúmeros ensaios e mesmo da aprovação de leis neste
sentido, forma capazes de promover o abandono da representação proporcional com lista aberta.
Nenhuma eleição do período pós 1946 foi regida por outro princípio. Ainda que a representação
proporcional tenha sido abandonada em favor do voto misto em fases iniciais do processo constituinte, a
discussão do tema não comandou grandes atenções ou foi objeto de maiores polêmicas. Os esforços e
energia dos reformistas parecem ter se concentrado no sistema de governo.
A redefinição das prerrogativas legislativas do Poderes Executivo e Legislativo alterou
a distribuição dos recursos políticos e, por isto mesmo, incidiu de forma direta sobre a
estrutura de incentivos dos atores políticos relevantes. De fato, a prerrogativa de propor
alterações do status quo encontra-se virtualmente concentrada nas mãos do Executivo.
Segue que os membros do Congresso contam com duas alternativas. Uma é juntar-se
coalizão liderada pelo Executivo, com os ônus e os bônus que ser parte do governo
acarreta. Esta é a única alternativa para os que pretendem influenciar o resultado das
políticas públicas no presente. A alternativa é fazer oposição, o que, no frigir dos ovos,
significa esperar a próxima eleição na expectativa que conquistando o governo se venha
no futuro influir nas políticas públicas.

A Constituição de 1988 dotou o Poder Executivo das prerrogativas necessárias para


governar. O poder de agenda, no entanto, não confere ao Executivo a possibilidade de
governar contra a vontade da maioria. Não há alternativa ao princípio majoritário. O
apoio da maioria dos membros do Congresso Nacional é uma condição para a
aprovação de leis. Contudo, justamente por controlar a agenda, o Executivo encontra as
condições ótimas para congregar em torno de si e sob sua liderança a maioria de que
necessita para governar. O reverso desta afirmação é a dificuldade que minorias têm
para paralisar o processo decisório, impedindo ou mesmo retardando a aprovação da
agenda substantiva proposta pelo governo.

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Fernando Limongi
Professor Titular do DCP/USP
Pesquisador do Cebrap
Autor de Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional (1999) e Política Orçamentária
no Presidencialismo de Coalizão (2008), ambos pela Editora FGV e em co-autoria com
Argelina Figueiredo.
Democracy and Development (2000) editado pela Cambridge University Press e em co-autoria
com Adam Przeworski, José Antonio Cheibub e Michael Alvarez.

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