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Fernando Limongi
USP/CEBRAP
1. Introdução:
A relação entre estas alternativas e a conjuntura política e, para ser mais específico, com
os interesses eleitorais de curto e média prazo não eram desconhecidas. O Relator da
Sub-Comissão do Poder Executivo, José Fogaça (PMDB-RS), antes da apresentação de
seu primeiro anteprojeto, comentou que:
Este é o antepreojeto que está destinado, realmente, a provocar a maior
discussão, o maior debate e amaior polêmica no seio da Assembléia Nacional
Constituinte. Estou convencido disso não só agora, mas desde que iniciamos os
debates. Surpreendido com a atenção enorme que a própria imprensa acabou
dando para o nosso anteprojeto, percebi que ele é hoje o ponto nevrálgico do
processo político brasileiro. Ele toca nas questões mais sensíveis e mais
delicadas do processo político, envolvendo interesses partidários e eleitorais os
mais amplos e os mais divergentes. Há partidos que são presidencialistas
extremados, porque só têm um candidato à Presidência. Há partidos que são
parlamentaristas, porque desejam atuar apenas no Congresso Nacional, e essses
interesses partidários vão se expressar e conflagrar aqui. (...) Quero que este
anteprojeto permita que se permeiem e se encontrem todas as idéias, ideologias e
intereses, que ao meu ver, estão bem nítidas, mas a nitidez não os tornam
1
Cabe observar que a publicação de alguns documentos do processo constituinte, como as atas das
comissões, não se deu no dia seguinte à sua ocorrência como é a praxe.
ilegítimos. Aqui vai se dar a conflagração dos interesses partidários e políticos,
que vão chegar a uma média comum. (DANC, 4/08/1987, Suplemento 114: 60)
A convicção de que a opção relativa à forma de governo era capital e decisiva para o
país era disseminada e não se restringia aos constituintes. Desde pelo menos meados
dos anos cinqüenta, o país convivia com um intenso debate em que a estrutura
institucional adotada pelas constituições de 1934 e 1946 era questionada.
Na realidade, o resultado teria sido o pior possível. Para além de manter a estrutura
institucional gestada nos anos 30 cuja experiência já teria demonstrado ser
inerentemente problemática, os constituintes teriam agravado seus problemas, posto que
teriam, a um só tempo, enfraquecido a presidência e fortalecido o Congresso em função
da tendência inicial de se adotar o parlamentarismo. Dadas estas opções, as piores
possíveis, o confronto entre um Executivo fragilizado e um Legislativo poderoso seria
inevitável com as conseqüências previsíveis e conhecidas. Em resumo, os riscos à
governabilidade próprios ao presidencialismo teriam sido acentuados.
Em que pesem a importância dos debates travados, das disputas que tiveram lugar ao
longo da constituinte, algumas delas dramáticas, e de possíveis diferenças profundas a
dividir presidencialistas e parlamentaristas, a despeito disto tudo, o fato é que por detrás
deste confronto radical escondia-se um amplo consenso em torno de pontos não menos
fundamentais. Escondia-se, na realidade, não é a caracterização mais correta, uma vez
que o consenso era evidente e foi explicitado em inúmeras oportunidades. Na realidade,
a convergência de opiniões era tão forte que, por vezes, dispensava debates ou
controvérsias. Certos aspectos capitais acabaram sendo pouco debatidos.
A Carta de 1988, portanto, não representa um retorno a ordem legal criada pelo texto
constitucional de 1946. Muito menos teria fortalecido o Poder Legislativo às expensas
do Poder Executivo2. Tampouco representa uma pura e simples rejeição da “engenharia
institucional” do período autoritário. Por qualquer parâmetro que se use, o Poder
Executivo não pode ser qualificado de fraco. As bases deste poder presidencial são
institucionais e consagradas no texto constitucional e de forma alguma se resumem às
suas relações diretas com o eleitorado.
A quarta seção trata das conseqüências do modelo adotado pela Constituição de 1988 no
que se refere ao processo decisório e ao papel desempenhado pelo Executivo. Sob a
constituição atual, o Executivo assumiu papel de preponderância no interior da
produção legislativa. O Poder Executivo é hoje, de jure e de fato, o principal legislador,
do país4. A seção explora o significado desta preponderância, relacionando-a a
discussão precedente. O texto é fechado com uma breve conclusão.
3
Foram duas tentativas, uma na Comissão de Sistematização na votação final em Plenário. O apoio a
estas duas emendas. Consultar Figueiredo e Limongi 1999, cap 5 para detalhes.
4
Figueiredo e Limongi 1995.
II. Dos antecedentes: a crítica à Carta de 1946.
No entanto, como nota Hermes Lima, a necessidade de “domar o Executivo” deve ser
entendida menos como uma reação ao Estado Novo do que como uma tentativa de sanar
os problemas experimentados durante a República Velha:
“É oportuno salientar nada haver mais parecido com a Constituição de 1934 que
a Carta de 1946. Nas linhas fundamentais do espírito político que imperou na
elaboração dessas duas Constituições, elas são praticamente idênticas. Tanto na
constituinte de 34, como a de 46, foram assembléias preocupadas sobretudo em
impedir o poder avassalador, de tendências discricionárias, dominasse a cena
política (...) Os dispositivos sobre a elaboração e fiscalização do Orçamento
atestam essa tendência de maneira muito clara. Ela é também atestada pelos
dispositivos sobre o estado de sítio, que na constituição de 1946 mais minucioso
se tornaram. Todos estes grandes problemas da organização constitucional
brasileira da primeira república, cujo ciclo se findou em 1930, receberam na
carta de 34 e 46, tratamento, por assim, dizer especializado. Autonomia dos
Estados, intervenção, sistema representativo, estrutura da justiça, estado de sítio,
são questões que passaram a ser objeto de um conjunto de dispositivos pelos
quais se observa, antes de tudo, o empenho do legislador em prever e impedir os
abusos do poder, ou mais exatamente, -- do Poder Executivo” (1954: 14 e 15)
5
Para uma reconstituição mais completa deste ponto, consultar Kinzo 1980.
6
Isto é, da ação construtiva da norma jurídica.
faz governadores (foi derrotado em grandes Estados) nem deputados, nem
senadores. Quem os faz são os partidos nacionais. Quando, na política, os
resíduos do poder pessoal se fazem sentir, é por capitulação desnecessária do
Congresso” (1957: 92)7
A crise política de meados dos anos cinqüenta , ao que tudo indica, representou um
momento de virada para a reflexão institucional brasileira8. Afonso Arinos de Melo
Franco, por exemplo, relaciona sua conversão ao parlamentarismo e a consequente
passagem de defensor a crítico do modelo adotado em 1946, aos eventos políticos do
período:
“Eu fui, na Câmara dos Deputados, um dos mais convictos defensores do
presidencialismo. Por duas vezes intervim na discussão do assunto, naquela
Casa. (...) Nos dois pareceres que então ofereci às Comissões especiais, procurei
tratar exaustivamente a matéria, o mesmo acontecendo com meu contraditor, o
ilustre deputado Raul Pila, que lhes deu extensas respostas, sendo que o material
destes estudos foi publicado em 1958, pela Editora José Olympio, em livro que
prefaciei. Quando escrevi o prefácio minha opinião já havia sido revista, e isto
declarei com toda sinceridade. (...) As razões principais da minha mudança de
opinião não foram de ordem teórica ou jurídica, mas provieram, antes, de uma
honesta revisão de atitudes fundada na experiência política. A terrível crise de
agosto de 1954 apanhou-me na liderança da oposição e de meu partido, na
Câmara dos Deputados. Não preciso recordar o que foram aqueles angustiosos
momentos, vividos já lá vão dez anos. O que pretendo salientar é que aquele
turbilhão, em cujo centro o destino me colocava, começou a abalar a fundo as
convicções presidencialistas que eu absorvera na minha formação de mineiro da
Primeira República e de filho de político influente naquela fase. A segunda crise
constitucional, de novembro de 1955, com o golpe militar e a deposição de Café
Filho e Carlos Luz, encontrou-me também na liderança de meu partido e na
vanguarda da atuação política na Câmara. Confirmou-se, então, para mim,
graças à dura experiência vivida, a convicção de que o presidencialismo, no
Brasil, não é capaz de assegurar a ordem e progresso inscritos na nossa
bandeira.” (2005: 199 e 200)
7
As passagens citadas não recuperam inteiramente o argumento do autor que, em várias passagens, frisa a
importância das transformações econômicas, mais especificamente, da perda de poder da monocultura
cafeeira, para o desmonte do modelo vigente na República Velha.
8
Ver Pessanha 2002: 164 e seguintes para uma revisão das críticas ao modelo adotado em 1946 com
ênfase na produção jurídico-constitucional.
As razões para a condenação do presidencialismo se encontram expostas em inúmeros
textos do Autor9. A sua declaração de voto contra o impedimento de João Goulart e
pela adoção do parlamentarismo é das mais sintéticas e claras:
“Mas senhores congressistas, há outra razão e esta de maior gravidade. É que no
Brasil há duas origens para o poder político; o poder político está distribuído em
dois ramos; o presidente da república, cuja escolha, cuja eleição, se processa
cada vez mais e cada vez isso correrá, com a ruptura de todas as organizações
político-jurídicas previstas na Constituição, se elege arrastando uma inundação
emotiva em todo o país e cada vez mais se elegerá mais desta maneira porque só
poderá suscitar o voto da massa nacional, nas condições que ela atualmente vota,
o candidato que estiver em condições de despertar-lhe o fervor e o entusiasmo
por cima dos partidos, por cima da Justiça Eleitoral, por sobre as organizações
que chamei a pouco político-constitucionais do nosso país. Ao mesmo tempo
que tal se estabelece, no Poder Legislativo se recruta através da alquimia de que
se lançam mão todos os elementos sociológicos: os partidos, a política
municipal,as forças de pressão, as aspirações de classe, as esperanças proletárias,
os interesses econômicos e financeiros. E, então, temos assim um presidente que
cada vez mais representa um cesarismo plebiscitário e um Congresso que cada
representa um equilíbrio entre todas as forças da opinião e dos interesses
sociais.”10
9
Ver Franco 1961 172 para a transcrição completa do prefácio a que o Autor faz referência. A pasagem
central de seu argumento é transcrita em Franco 2005:201. Para uma reconstituição mais completa da
trajetória política e intelectual de Afonso Arinos, consultar Lattman-Weltman 2005.
10
In Lattman-Weltman 2005: 115-116. Note-se que a eleição de Janio Quadros foi interpretada pelo
mesmo autor em outra chave. Ver Lattman-Weltman 2005: 114 para transcrição do texto relevante.
A convicção de que o modelo adotado não era o mais adequado à hora presente também
encontra apoio entre setores do PSD. De acordo com Benevides (1979 225), o próprio
Kubitscheck teria compreendido
“que os parâmetros da Constituição de 1946 estavam exauridos. Essa
Constituição, considerada ‘retrógada’ pois alimentada por um ‘liberalismo
irrealista’ (num século em que a intervenção do poder estatal na atividade
econômica era uma fatalidade inexorável), proibia a delegação de poderes, o que
significava amarrar o Executivo –na sua força dinâmica e criadora—aos
caprichos de um Legislativo inorgânico e indisciplinado pela pluralidade da
representação partidária”
11
Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Reforma Constitucional. Sugestões para a Reforma
Constitucional apresentadas ao Ministro Nereu Ramos pela Comissão Especial de Juristas, constituída em
março de 1956. Departamento de Imprensa Nacional. Rio de Janeiro. 1956.
12
A comissão, em uma clara tentativa de obter apoio da UDN, propôs que a eleição do presidente e do
vice seria feita pelo Poder Legislativo caso nenhum dos candidatos obtivesse maioria absoluta dos votos.
Para uma melhor contextualização dos trabalhos da comissão e seu destino, consultar Draibe 1985 357.
Ver também Benevides 1975 80
Especificamente, no que se refere a este capítulo, cuja relatoria coube a Hermes Lima13,
os membros da comissão fizeram propostas visando disciplinar melhor os gastos
públicos e reforçar os poderes legislativos do Presidente. Quanto ao primeiro ponto,
propunha-se limitar o direito de proposição de projetos de lei pelos congressistas,
condicionando a deliberação dos projetos que aumentassem despesas à identificação das
correspondentes fontes de receitas. Quanto ao segundo aspecto, foram duas as principais
propostas. A primeira delas estabelecia prazos para apreciação projetos de lei de
iniciativa do Executivo por parte do Legislativo, que não poderiam exceder 120 dias na
Câmara e 60 no Senado. De acordo com a exposição de motivos que acompanha a
proposta:
Se o presidente solicita uma lei, milita a favor de sua iniciativa a presunção de
que a inspirou motivo de ordem ou bem público. Não deve a iniciativa do Chefe
do Estado sofrer retardamento seja por ação seja por omissão. Ao congresso
cumpre deliberar. É o que visa a modificação do parágrafo 3º. do artigo 67 (p.
26).
Ainda que não tenham sido acolhidas naquele momento, as propostas da comissão
revelam de forma clara o redirecionamento das preocupações institucionais no curto
período de vigência do texto constitucional. Mais importante do que as reformulações
específicas feitas, é o “espírito” que presidiu sua elaboração. Ao que tudo indica, o
problema maior deixara de ser “domar o executivo”. Importava agora evitar a demora e
a procrastinação das deliberações tornando o processo legislativo mais eficiente. A
iniciativa do presidente não poderia mais ser retardada por ação ou omissão, cumpria,
portanto, garantir que “trabalho do Congresso (...) não se entorpeça até a paralisação”
(p. 35).
13
Ver Hermes Lima (1974 156) para a sua apreciação da comissão e de suas propostas.
setores, incluindo representantes ilustres do PSD e UDN. Como visto anteriormente, a
posição de Afonso Arinos de Melo Franco, líder da UDN na Câmara, não é muita
diversa daquela exposta pela comissão de juristas reunida por Nereu Ramos. Na sua
análise da Evolução da Crise Brasileira14 são freqüentes as referências à “paralisia
discursiva”(p. 30) experimentada pelo Congresso, uma consequência inesperada da
adoção da representação proporcional:
“Se a representação proporcional era destinada a enfraquecer politicamente o
presidente, a verdade é que, na prática, mais do que ao Presidente, ela veio
enfraquecer politicamente o Congresso. Isto é explicável. A atomização das
maiorias, principalmente na Câmara, retira a qualquer partido a possibilidade de
controlar a situação, seja nas comissões, seja em plenário. Os pequenos partidos
podem adquirir uma importância desmesurada, muito maior que seu peso
numérico, sempre que o resultado das votações for apertado. Maiorias flutuantes
e precárias, integradas por grupos que se aproximam sem se juntar, impõem uma
constante necessidade de transação, às vezes no pior sentido de barganha, de
troca de vantagens, até de chantagens e corrupções. (...) Nada se pode fazer de
durável, de impessoal, de construtivo. Depende tudo das circunstâncias,
possibilidades e interesses (as mais das vezes pessoais) de cada dia.” (2005
91)15
O diagnóstico formulado pela esquerda, como é sabido, não era diverso. De acordo com
a célebre formulação de Celso Furtado (1965: 138), a Constituição de 1946
representaria um
“Poderoso instrumento na mão da velha oligarquia agrícola para preservar sua
posição como principal força política. O atual sistema federativo, ao atribuir
grande força ao senado, no qual pequenos estados agrícolas e as regiões mais
atrasadas têm influência decisiva, coloca o Poder Legislativo praticamente em
mãos de uma minoria da população do país que habita regiões onde os interesses
latifundiários exercem poder incontestado. Na Câmara, o número de deputados é
proporcional à população de cada Estado. Dessa forma, quanto mais analfabetos
tem um estado, maior o poder da minoria votante. (...) Como é nas regiões com
mais analfabetos que a oligarquia tem mais força, o sistema eleitoral contribui
para manter o predomínio desta.”
A conseqüência é que o
“Presidente da República teria que alcançar objetivos que são incompatíveis com
as limitações que lhe cria o Congresso dentro das regras do jogo constitucional.
Assim, os dois princípios de legitimação da autoridade – subordinação ao marco
constitucional e a obediência ao mandato substantivo que vem diretamente da
vontade popular – entram em conflito, criando para o presidente a disjuntiva de
trair o seu programa ou forçar uma saída não convencional, que pode inclusive a
renuncia.” (1965 140)
A crítica, quando não a condenação, do modelo adotado pela Carta de 1946 encontra
porta-vozes em todos os grupos políticos. Diferenças de ênfases e de termos não negam
o acordo substantivo subjacente. O conflito entre um Executivo plebiscitário e um
Congresso amorfo na pena de Afonso Arinos de Melo Franco se transmuta em
confronto entre o moderno e o tradicional na visão de Celso Furtado. O juízo de que o
Poder Executivo era frágil, que se via impedido implementar as medidas necessárias e
reclamadas pela sociedade por um Congresso conservador e moroso era dominante.
Para os fins deste texto, importa menos aferir o acerto destas interpretações do que notar
o consenso formado em torno de uma agenda de reformas16.
Seja como for, o fato é que estes diagnósticos negativos minimizam o sucesso
alcançado pelo modelo adotado. Este se mostrou capaz de solucionar o principal
problema enfrentado, garantindo a “autenticidade do voto”, isto é, assegurando a lisura
das disputas eleitorais, a representação das minorias e o rodízio do poder com base na
competição eleitoral pacífica17. Neste aspecto, o modelo adotado respondeu de forma
efetiva aos problemas enfrentados no passado.
18
A este respeito consultar Pilatti 2008, Martinez-Lara 1996 e Gomes 2005.
deliberação do plenário. A justificativa apresentada é significativa, posto que se
esperava que a medida adotada
“em vez de provocar o esvaziamento do plenário, terá efeito exatamente oposto,
uma vez que tanto os partidos majoritários como os minoritários –conscientes de
que a maioria dos presentes é suficiente para aprovar grande parte das
matérias—não poderão mais apostar na inexistência do quorum para fazer
prevalecer suas posições” (pag 14)
Sendo assim, não cabe pensar o Poder Legislativo e suas prerrogativas de forma
independente das que são conferidas ao Poder Executivo. Neste aspecto, o anteprojeto
inicial opta pela
“extinção do decreto-lei, atendendo a inúmeras sugestões de constituintes, de
funcionários do Congresso, dos cidadãos e de entidades da sociedade civil e
levando em conta o desgaste que esse recurso vem provocando no Poder
Legislativo. Ademais, é importante ressaltar que o decreto-lei é na realidade uma
gigantesca porta aberta por onde têm transitado, lado a lado, tanto leis urgentes e
inadiáveis, portanto necessárias ao país, quanto verdadeiros abusos jurídicos aos
quais o Congresso se vê levado a sancionar”
A definição das demais áreas de iniciativa exclusiva do Poder Executivo, como fixação
dos efetivos da Forças Armadas, criação de cargos, funções ou empregos públicos na
administração direta e autárquica e fixação das correspondentes remunerações, não
causaram maiores debates. Tampouco foi objeto de discussão a vedação a apresentação
de emendas que acarretassem aumentos de despesa nas matérias de iniciativa do Poder
Executivo.
19
Para os detalhes das decisões nesta comissão, consultar Afonso 2002 e Praça 2008.
20
Para uma análise mais detidas destas restrições e seus efeitos, consultar Figueiredo e Limongi 2008.
texto final. Mudanças foram mínimas e as que ocorreram tenderam a reforçar o Poder
Executivo21. Por exemplo, o texto original da subcomissão condicionava o pedido de
urgência do Executivo à aprovação pela Câmara. A partir do texto da Comissão, o
pedido passou a ser unilateral. Para os constituintes, a recuperação das prerrogativas do
Poder Legislativo pedia que este expurgasse seus velhos vícios, que se modernizasse
institucionalmente por meio da descentralização e a racionalização dos trabalhos e,
mesmo, forçando-o a agir como a malograda proposta de baixar o quorum revela. A
contrapartida esperada no tratamento das prerrogativas do Poder Executivo, no entanto,
não ocorre. Alternativas neste sentido raramente são consideradas.
A tese segundo a qual a Constituição foi escrita sob uma orientação parlamentarista a
que teria sido adicionada, à última hora, uma cabeça presidencialista não procede.
Ainda que seja verdade que o parlamentarismo tenha vencido as batalhas iniciais, não é
menos verdadeiro que seus defensores nunca consideraram suas vitórias como
definitivas. O Relator da Sub-Comissão do Poder Executivo, José Fogaça (RS-PMDB)
ao apresentar seu relatório, citou pesquisa de opinião feita pelo Jornal do Brasil
indicando o equilíbrio de forças do plenário quanto à questão, reconhecendo que a
21
Deixo de tratar de inúmeros aspectos relacionados e que seguem a mesma orientação, como por
exemplo, a valorização das Sessões Conjuntas do Congresso Nacional como instância decisória própria,
contornando-se a assim as dificuldades inerentes a um sistema bi-cameral. Para uma visão mais detida
desta questão, consultar Figueiredo e Limongi 1995.
22
Para a reconstituição dos trâmites específicos ao artigo 62 e sua relação com o debate relativo à forma
de governo, consultar Figueiredo e Limongi 2000 cap 5.
matéria continuaria aberta ao longo do processo. O texto que acompanhou seu
anteproejeto não deve, portanto, ser tomada como exercício retórico ou como uma
obrigação imposta pela etiqueta política:
“Não pretendemos –nem podemos- oferecer um modelo institucional acabado e
pronto. É uma proposta aberta, exposta ao dinamismo e ao processo democrático
que o Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte estabelece. Será,
por certo, alterada e enriquecida.” (Documentos da ANC, Vol 110: 2)
23
A Sub-Comissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos e, consequentemente, a Comissão de
Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições também trataram da matéria conferindo
mandatos de cinco anos a Sarney em seus projetos. Nestes casos com apoio dos respectivos relatores
Francisco Rossi (PTB-SP) e Prisco Viana (PMDB-BA). Dado o papel que este último veio a desempenhar
posteriormente, cabe notar que, inicialmente, este se opôs a que a comissão tratasse da matéria.
caso, de acordo com Martinez-Lara (1995: 135), a vitória da emenda em favor dos cinco
anos teria sido produto de um acordo entre Sarney e Ulysses.24
Se for verdade que instituições afetam o teor das decisões, não será talvez menos
verdadeiro que as instituições que importam não se resumem à forma de governo e às
leis eleitorais. A definição dos poderes legislativos do Poder Executivo são igualmente
crucias na medida em que afeta, de forma direta, o processo decisório. Como mostram
trabalhos recentes (Shugart e Carey 1994, Cheibub 2007), a distinção entre
presidencialismo e parlamentarismo é menos importante do que se acreditou por muito
24
Martinez-Lara apóia-se em entrevista pessoal com José Fogaça para sustentar sua afirmação.
tempo. A distinção mais importante diz respeito ao controle sobre a agenda decisória.
Em sistemas presidencialistas, o direito de propor alterações no status quo legal,
contrariamente ao que usualmente se propala, não cabe necessariamente ao Poder
Legislativo. O poder de propor e os meios para processar estas propostas de forma
favorável podem ser concentrados nas mãos do presidente. Esta tem sido a tendência
dominante das constituições presidencialistas mais recentes, norma seguida pela
Constituição brasileira de 1988.
Quadro 1
Poderes legislativos do Executivo, segundo constituições democráticas brasileiras de
1946 e 19888
Tabela 1.
Legislação Ordinária. Produção Legislativa por governo
1949-1964 e 1988-2007*
Partido do Coalizão de
Presidente governo na
Governo na Câmara Câmara dos Sucesso do Dominânci
dos Deputados Executivo a do
Deputados ** Executivo
(% Cadeiras) ***
(% Cadeiras) (%)
(%)
Está claro que o poder de agenda do Executivo não é suficiente para garantir a
aprovação da suas proposições. O sucesso do Executivo só pode ser garantido por meio
do apoio explícito da maioria dos legisladores. Leis só são aprovadas se votadas pelo
Legislativo. E isto é verdade inclusive para a manifestação extrema do poder de agenda
do executivo, as Medidas Provisórias. Para que se tornem leis, estas precisam ser
aprovadas pala maioria.26 Dito de outra forma, o poder de agenda não confere ao
Executivo a possibilidade de contrariar ou contornar a oposição do Legislativo. Assim,
se o Executivo tem sido bem sucedido na arena legislativa é por que, durante o período,
contou com o apoio da maioria os legisladores.
25
Este parágrafo e os seguintes apóiam-se extensamente em Figueiredo e Limongi 2007: pág 156 e
seguintes.
26
Antes da reforma de 2001, uma medida provisória podia ser tomada como lei enquanto não se formasse
uma maioria contrária. Hoje, para que tenha validade após 120 dias é necessário o apoio explicito de uma
maioria.
A relação entre a concentração do poder de agenda e a disciplina partidária é direta e
imediata. A maior centralização do processo legislativo significa que os membros do
Congresso possuem menor capacidade de influenciar, individualmente, o quê, como e
quando as propostas do Legislativo serão votadas. Esta definição fica nas mãos do
Presidente da República e dos líderes partidários, incluindo-se aqui o Presidente da
Mesa. Na realidade, ao contrário do que pretendiam os constituintes, o processo
decisório no interior do Poder Legislativo, por força das regras regimentais vigentes e
sua interação com as prerrogativas legislativas do Executivo notadas anteriormente,
acabou por ser altamente centralizado mãos dos líderes partidários. Note-se que o
modelo pretendido pelos constituintes, baseado na valorização do poder das comissões,
não vingou27. Tampouco vingou o modelo desenhado para o processo orçamentário que,
se esperava, deveria conferir maior importância ao PPA e a LDO.
O poder de agenda, portanto, não deve ser confundido com poder pessoal do presidente.
Trata-se de uma arma da maioria, facilitando sua ação ao contribuir para a solução dos
clássicos problemas de ação coletiva e, também, permitindo vencer mais facilmente as
resistências da minoria. Ou seja, a concentração dos poderes de agenda nas mãos do
presidente permite que este atue como um agente catalisador na formação da maioria
que irá apoiá-lo e, uma vez tendo esta sido formada, como seu agente.
V. Conclusões
Os redatores da Carta de 1988 foram advertidos, em mais de uma oportunidade, que não
deveriam se comportar como os constituintes de 1946 teriam agido. Paulo Affonso
Martins de Oliveira, o influente Secretário-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados,
nos primeiros dias de trabalho efetivo dos constituintes, em Audiência Pública
promovida pela Sub-Comissão do Poder Legislativo, notou que os constituintes de 1946
teriam outorgado ao
“Congresso Nacional tais poderes que ficou ele numa situação de superpoder
em relação ao Executivo. Atribuíram-se prerrogativas ao Congresso em todos os
campos, e aquelas atribuídas ao executivo não foram plenas nem exclusivas,
27
Sobre este ponto consultar, Figueiredo e Limongi 1999.
28
Ver Figueiredo e Limongi 2008 para um tratamento mais detido da questão.
nem privativas, como a constituição de hoje em dia estabelece, mas sempre
concorrentes. (...) O Congresso Nacional não se tendo modernizado, sendo lento,
profundamente conservador e sem uma visão mais ampla dos problemas
nacionais, sofreu no correr de 1946, grande desgaste de natureza popular. E o
Executivo, por meio de uma legislação solicitada ao congresso ou de atos
internos baixados por decretos, portarias, foi aos poucos enfrentando esta crise,
porque ele tinha de ter uma solução. Preocupa-me agora que o Congresso
Nacional, na feitura de uma nova constituição, queira estabelecer princípios
semelhante ao ocorreu em 1946: outorgar-se poderes ilimitados em detrimento
daquelas competências que deveriam caber ao Executivo” (DANC 14/05/87
Suplemento 59: 25)
Por sito mesmo, as alterações promovidas pelos militares na Constituição de 1946 não
foram tratadas como parte do “entulho autoritário”. Os constituintes deixaram ao
Executivo as competências que lhe haviam sido conferidas após 1964. A exclusividade
da iniciativa em matérias orçamentárias, tributárias e administrativas foi mantida. A
possibilidade do Congresso em alterar a proposta orçamentária e definir os gastos
públicos foi circunscrita, limitando-se a investimentos. Além disto, não se retirou do
Executivo a capacidade de ditar a pauta dos trabalhos legislativos, por meio da edição
de Medidas Provisórias e da solicitação unilateral de urgência. Recorrendo a um destes
instrumentos, o Executivo tem como forçar a deliberação das matérias de seu interesse,
vencendo os obstáculos usuais a que recorrem os que se opõem às suas propostas.
29
Note-se que os militares tampouco, a despeito de inúmeros ensaios e mesmo da aprovação de leis neste
sentido, forma capazes de promover o abandono da representação proporcional com lista aberta.
Nenhuma eleição do período pós 1946 foi regida por outro princípio. Ainda que a representação
proporcional tenha sido abandonada em favor do voto misto em fases iniciais do processo constituinte, a
discussão do tema não comandou grandes atenções ou foi objeto de maiores polêmicas. Os esforços e
energia dos reformistas parecem ter se concentrado no sistema de governo.
A redefinição das prerrogativas legislativas do Poderes Executivo e Legislativo alterou
a distribuição dos recursos políticos e, por isto mesmo, incidiu de forma direta sobre a
estrutura de incentivos dos atores políticos relevantes. De fato, a prerrogativa de propor
alterações do status quo encontra-se virtualmente concentrada nas mãos do Executivo.
Segue que os membros do Congresso contam com duas alternativas. Uma é juntar-se
coalizão liderada pelo Executivo, com os ônus e os bônus que ser parte do governo
acarreta. Esta é a única alternativa para os que pretendem influenciar o resultado das
políticas públicas no presente. A alternativa é fazer oposição, o que, no frigir dos ovos,
significa esperar a próxima eleição na expectativa que conquistando o governo se venha
no futuro influir nas políticas públicas.
Referências
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. (1961), Estudos e Discursos. São Paulo, Editora
Comercial Ltda.
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. (2005), Evolução da Crise Brasileira, 2ª. Edição,
Rio de Janeiro, Topbooks.
LEAL, Victor Nunes. (1993), Coronelismo, Enxada e Voto. 6ª. Edição. São Paulo,
Editora Alfa-Ômega
LIMA, Hermes. (1954) “Espírito da Constituição de 1946” in Hermes Lima ett alli,
Estudos sobre a Constituição Brasileira. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.
LIMA, Hermes. (1955), Lições da Crise. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora.
LIMA, Hermes. (1974), A Travessia (Memórias). Rio de Janeiro, Livraria José Olympio
Editora.
Fernando Limongi
Professor Titular do DCP/USP
Pesquisador do Cebrap
Autor de Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional (1999) e Política Orçamentária
no Presidencialismo de Coalizão (2008), ambos pela Editora FGV e em co-autoria com
Argelina Figueiredo.
Democracy and Development (2000) editado pela Cambridge University Press e em co-autoria
com Adam Przeworski, José Antonio Cheibub e Michael Alvarez.