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Planejamento Urbano,

Parcelamento do Solo
e Meio Ambiente

2ª edição

Rio de Janeiro
UVA
2016
Rodolfo Vaz Rainer

Planejamento Urbano,
Parcelamento do Solo
e Meio Ambiente

2ª edição

Rio de Janeiro
UVA
2016
Copyright © UVA 2015
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer
meio sem a prévia autorização desta instituição.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa.

ISBN - 978-85-69287-07-0

Autoria do Conteúdo
Rodolfo Vaz Rainer

Design Instrucional
Angélica Maria da Silva

Projeto Gráfico
UVA

Diagramação
Isabelle Martins

Revisão
Tássia Braga
Lydianna Lima

R155 Rainer, Rodolfo Vaz


Planejamento urbano [livro eletrônico] / Rodolfo Vaz
Rainer – Rio de Janeiro : UVA, 2016.

456 KB.
ISBN 978-85-69287-07-0
Disponível também impresso.

1. Planejamento urbano. 2. Urbanização. 3.


Desenvolvimento sustentável. 4. Administração de
áreas metropolitanas. 5. Direito urbanístico - Brasil. I.
Universidade Veiga de Almeida. II. Título.

CDD – 711.4

Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA.


Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho.
SUMÁRIO
Apresentação...............................................................................................................7
Sobre o autor....................................................................................................................8

Capítulo 1 - A necessidade de organizar..........................9


A morfologia do espaço urbano.............................................................10
A caracterização dos processos de planejamento e de gestão.........21
A legislação social e o plano diretor......................................................50
Referências......................................................................................................64

Capítulo 2 - O uso do solo.................................................67


A legislação brasileira para o uso do solo......................................68
Os critérios de zoneamento.......................................................................85
Índices urbanísticos......................................................................................92
Referências...............................................................................................98

Capítulo 3 - Instrumentos da política urbana..................101


A legislação fundamentadora da política urbana brasileira.....102
O plano diretor..............................................................................................124
Planejar é fácil?..............................................................................................128
Referências...............................................................................................135

Capítulo 4 - As políticas urbanas e o meio ambiente – A


busca da sustentabilidade...........................................137
Legislação ambiental I...............................................................................138
Legislação ambiental II..............................................................................145
Sistema de licenciamento ambiental e direito de propriedade em
empreendimentos imobiliários...............................................................153
Referências......................................................................................................156

Considerações finais...............................................................157
7

APRESENTAÇÃO

Com este trabalho simples — Planejamento Urbano, Parcelamento


do Solo e Meio Ambiente — desejo apresentar aos estudantes de ne-
gócios imobiliários e demais interessados no tema uma visão inte-
gradora de elementos administrativos, antropológicos, sociológicos
e urbanísticos, visando proporcionar-lhes um melhor entendimento
do conjunto de necessidades componentes da formulação da legisla-
ção básica, que orienta o planejamento urbano e a gestão municipal
no cumprimento da função social da propriedade. Espero, igualmen-
te, estimular a observação e a análise da cultura — termo entendido
como a soma dos conhecimentos formais e informais — do grupo
social no qual nos inserimos e que são determinísticos para a for-
mulação de propostas de eventuais intervenções pretendidas em seu
ambiente de convívio.

Para a consecução deste livro, foram visitadas não somente obras de


autores estudiosos do tema, mas também publicações científicas pro-
duzidas em renomadas instituições de ensino superior do país e re-
vistas especializadas na publicação de artigos nas áreas jurídica e de
urbanismo, como pode ser observado nas referências.

Desejo, por fim, cumprimentar a professora Fátima Santoro por seu


incansável empenho no trabalho de formação profissional na área de
negócios imobiliários e a equipe de produção do Núcleo de Ensino a
Distância da Universidade Veiga de Almeida pela presteza e eficiência.
Também ao meu pai os meus agradecimentos pela paciência ao longo
da trajetória de execução deste trabalho.

Desejamos que você aproveite ao máximo esta experiência e que a


leitura desta obra promova uma oportunidade de reflexão sobre os
conteúdos abordados, contribuindo efetivamente para o seu enrique-
cimento cultural e acadêmico.
8

SOBRE O AUTOR

Rodolfo Vaz Rainer é mestre em Tecnologia e atua como engenheiro


eletricista e professor universitário, lecionando nas cadeiras de Física
Eletromagnética e Fenômenos de Transporte, para o ciclo básico das
engenharias, Instalações Elétricas Prediais e Planejamento Urbano. O
autor também já trabalhou como dirigente de um campus universi-
tário, como coordenador do curso de Engenharia de Produção e de
cursos de extensão universitária e como gerente de uma incubadora
de empresas.

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A morfologia do espaço urbano 9

CAPÍTULO 1
A NECESSIDADE DE ORGANIZAR

A desigualdade social brasileira é marcada por disparida-


des, como as que se evidenciam entre o número de pro-
prietários de terras, no campo, e de imóveis, na cidade,
contra o número dos chamados sem-terra, no primeiro
caso, e o dos sem-teto, no segundo. Ela é marcada também
pelos índices de acesso ao saneamento básico, que se re-
fletem nos problemas de saúde pública, e pelos resultados
da política educacional, que vêm gerando um crescente
contingente de analfabetos funcionais, entre muitos ou-
tros indicadores.

No entanto, esse quadro não é circunstancial. Ou seja, ele


surgiu de casualidades, de fatos ou de ações isoladas que
poderiam ser considerados como ponto de partida, ou que
pudessem ter ocorrido ao longo de nossa evolução de co-
lônia a nação. Esse quadro pertence a um processo históri-
co referente à formação da sociedade brasileira, presente
na história da formação da propriedade no Brasil.

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10 A necessidade de organizar

A MORFOLOGIA DO ESPAÇO URBANO

A história da gênese
O Tratado de Tordesilhas será, então, descrito como o mar-
co inicial. Ele foi o resultado de uma disputa entre Portugal
e Espanha, quando novas terras eram descobertas, graças ao
início das grandes navegações. Devido a ele, o início da ocupa-
ção provisória das terras brasileiras, em 1500, ocorreu a partir
de atos de posse, e o primeiro deles se refere à primeira missa
aqui celebrada. E com a nomeação de Martin Afonso de Souza
como governador-geral, em 1530, a coroa portuguesa, ao ou-
torgar poderes, iniciou a ocupação do território outrora con-
quistado. Essa concessão ocorreu por meio de três cartas ré-
gias: a primeira autorizava o governador-geral “a tomar posse
das terras que descobrisse” no novo mundo e a “organizar o
respectivo governo e a administração civil e militar”, a segun-
da “lhe conferia os títulos de capitão-mor e governador das
terras do Brasil”, e a última lhe “permitia conceder capitanias
das terras que achasse e se pudessem aproveitar” (FAUSTO,
1994, p. 44-45) a cidadãos que desejassem colonizar as novas
terras. Nessas condições, ele nomeou donatários, que recebe-
ram, então, a posse de extensas áreas de terra, denominadas
capitanias hereditárias, mas não a propriedade da mesma.

Isto significava, entre outras coisas, que não podiam


vender ou dividir a capitania, cabendo ao rei o direito
de modificá-la ou mesmo extingui-la. [...] Do ponto de
vista administrativo, eles tinham monopólio da jus-
tiça, autorização para fundar vilas, doar sesmarias,
alistar colonos para fins militares e formar milícias
sob seu comando. (FAUSTO, 1994, p. 44-45)

Os possuidores de sesmarias tinham, apenas, a obrigação


de cultivar a terra e recolher tributos à coroa portuguesa,
o que raramente se cumpria.

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A morfologia do espaço urbano 11

Estava, então, criado um privilegiado sistema de distribui-


ção de terras, uma organização administrativa utilizada
tanto em Portugal como na Espanha na época, mas que
aqui possuía a diferença de ser transmissível por herança
aos sucessores legítimos dos que tinham a posse outor-
gada pela coroa. O objetivo desse sistema foi claramente
de base econômica, voltado a atividades extrativistas e
agrárias. A orientação de Portugal também estimulava a
formação de vilas na costa brasileira, a fim de que a mer-
cadoria, originária desse modelo inicial de colonização,
pudesse ser despachada para a Europa. Ou seja, essa foi
a escolha menos dispendiosa para a ocupação da colô-
nia. Por essa razão, os povoados, inicialmente compostos,
seguiam a geografia sinuosa da paisagem, configurando
construções desalinhadas umas das outras. Isso carac-
terizava também a experiência de formação das cidades
portuguesas, ao contrário da espanhola, que era pauta-
da em planejamento espacial. Dentro dessa perspectiva
aventureira, a interferência da coroa portuguesa na orga-
nização das vilas só foi evidenciada a partir da descoberta
de ouro na capitania de Minas Gerais, momento em que,
por razões de ordem econômica, necessitava-se de maior
ordenação nos usos do solo dos aglomerados urbanos.

A infertilidade da terra em algumas capitanias, o desinte-


resse de alguns donatários — que nem mesmo vieram ao
Brasil para ocupar suas posses — e os frequentes ataques
indígenas em várias áreas do litoral fizeram com que o
sistema de capitanias hereditárias fosse extinto em me-
ados do século XVII, para ser substituído pelo regime de
governos-gerais. Na nova modalidade, a concessão das
sesmarias estava vinculada apenas à necessidade de colo-
nização mediante ocupação imediata via moradia e obri-

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12 A necessidade de organizar

gação do cultivo efetivo da terra. Portanto, efetivou-se


tão somente uma redistribuição das posses, ocasionada
devido à fragmentação de grandes propriedades rurais. A
condição estabelecida, em conjunto com a crescente imi-
gração, determinou nova estrutura agrária, mesmo com
a resistência das forças conservadoras oriundas dos lati-
fúndios baseados na mão de obra escrava, tanto de índios
como de negros.

Nesse momento, surgiu o direito de propriedade da terra.


Contudo, a despeito da condição estabelecida sob essa
nova perspectiva, manteve-se o entendimento de que
toda propriedade particular sem título legal — outorgado
nas condições impostas pela coroa e administrado pelos
governadores-gerais —, era pública ou devoluta1. Essa
consciência acabou por provocar crescente insegurança
entre os colonizadores, que se apossaram de terras de-
socupadas como maneira legítima de aquisição à medida
que a civilização se expandia geograficamente.

Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em


1808, um olhar, ainda que incipiente, mostrou preocupa-
ção em estruturar as cidades de acordo com os interesses
do Estado.

O século XIX revelou grandes mudanças sociais. De início,


o Brasil tornou-se independente de Portugal e houve a ex-
tinção do sistema de doação de sesmarias. Observa-se, de
1822 a 1850, a quase inexistência de uma regulamenta-
ção sobre terras; assim, o que havia sido transferido para
propriedade particular permanecia particular, podendo,

1
Terras desocupadas ou vagas.

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A morfologia do espaço urbano 13

segundo as leis civis, ser transferido a outrem livremente,


e o que estava sob o domínio público continuava público.
Contudo, as áreas desocupadas e não particulares eram
alvo de tomada de posse. Naquela época havia, portanto,
a necessidade de discussão acerca da regulamentação da
propriedade privada como condição para a continuação
do desenvolvimento do Estado.

Em 1850, a chamada Lei de Terras (Lei nº 601) veio dar


condições jurídicas, a fim de que as propriedades pudes-
sem tornar-se mercadorias aceitáveis em transações co-
merciais. Ela estabeleceu critérios que legitimaram o di-
reito à terra, tanto dos antigos proprietários de sesmarias
como dos posseiros. Foram, então, previstas a delimita-
ção da propriedade e a forma como se dariam as conces-
sões de novas propriedades a partir daquela data. Em ou-
tras palavras, a Lei de Terras privilegiou a legitimação das
antigas sesmarias que haviam sido concedidas e que não
haviam descumprido qualquer determinação legal ante-
riormente imposta, assim como privilegiou a legitimação
das posses ocorridas no período entre 1822 e 1850, além
da demarcação das terras devolutas.

A economia cafeeira expandiu-se, e, no final do século XIX,


houve a extinção do tráfico negreiro; em seguida, a pro-
clamação da República. Dada a forma como a Lei nº 601
foi promulgada, sua utilização, mediante a venda de terras
devolutas, pôde servir como um meio de financiamento, o
que possibilitou a transição para o novo formato de traba-
lho, realizado por mão de obra livre. Outra consequência da
regulamentação da propriedade foi o estímulo à imigração.

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14 A necessidade de organizar

Em 1891, a nova legislação transferiu a emissão dos tí-


tulos de propriedade para os estados. Na prática, isso
significou a transferência das terras devolutas do patri-
mônio da União para os estados, o que representou uma
grave falha no nível estratégico de organização da socie-
dade, pois permitiu que esse patrimônio fosse objeto de
especulação imobiliária. A necessidade de regularização
dos limites territoriais das propriedades e a consequen-
te definição da situação jurídica delas permitiram que as
oligarquias promovessem uma grande transferência de
propriedades, públicas ou privadas, submetendo, no se-
gundo caso, as terras de pequenos agricultores à ameaça
de serem incorporadas ao patrimônio dos latifúndios.

O avanço da economia cafeeira fez com que as rendas,


obtidas nas propriedades rurais, fossem investidas em
manufaturas nas cidades. Junto a esse movimento econô-
mico, o início da industrialização determinou o surgimen-
to de um mercado de trabalho, que contou com grande
participação, principalmente de imigrantes. De um lado,
a grande disponibilidade de mão de obra possibilitou um
nível salarial baixo, e de outro, a aceleração no mercado
de consumo. Por essas razões, pode-se considerar que os
fundamentos da desigualdade social brasileira — mani-
festada na segregação socioespacial — encontram-se re-
lacionados a esse caráter rentista2 das nossas elites. Já a
base da diferenciação entre a população rural e a urbana
pode ser associada ao “prestígio” relacionado ao estilo de
vida burguês, copiado do modelo europeu.

2
Quem vive de rendas de propriedades ou de investimentos.

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A morfologia do espaço urbano 15

Pela constituição de 1934, definiu-se uma legislação tra-


balhista para o país, mas, à medida que ela não era esten-
dida ao trabalhador rural, estabeleceu-se uma cidadania
excludente. A partir desse momento, houve o crescimento
das cidades e o consequente esvaziamento demográfico
do campo. Surge, então, uma reorganização espacial, com
o aparecimento de periferias com características de altos
níveis de pobreza e a favelização. Esse processo veio dis-
seminar o “capital político”.

Com o golpe militar de 1964, que levou ao endurecimento


do Estado em relação a movimentos sociais, tanto urbanos
como rurais, o planejamento de um projeto desenvolvi-
mentista e sua consequente implementação foram os res-
ponsáveis por obras de infraestrutura e pelo conjunto de
políticas de modernização da agricultura. A Lei nº 4.504,
conhecida como Estatuto da Terra, definiu um conceito
para o campo, caracterizou o uso social da terra e definiu
os níveis de produtividade para as propriedades. A caracte-
rização do uso social da terra foi feita, no § 1º do artigo 2º,
por, simultaneamente, favorecer “o bem-estar dos proprie-
tários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como
o de suas famílias”, além de manter “níveis satisfatórios
de produtividade”, assegurar “a conservação dos recursos
naturais” e observar “as disposições legais que regulam as
justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cul-
tivem" (BRASIL, Lei nº 4.504, 1964, art. 2º, § 1º).

Entretanto, ao mensurar o minifúndio e o latifúndio por


meio do conceito de módulos fiscais, variáveis conforme
a região do país, e caracterizar os níveis de produtividade
para classificar as propriedades como produtivas ou não,

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16 A necessidade de organizar

essa lei favoreceu as grandes propriedades, já que nelas


existiam maiores facilidades para a modernização da pro-
dução e o acesso ao crédito.

A constituição de 1988 não trouxe qualquer inovação em


relação ao Estatuto da Terra. Ao contrário, os avanços tec-
nológicos na agricultura, aliados às políticas de governo
que vêm favorecendo as grandes propriedades, continua-
ram contribuindo para a concentração de terras também
com fins especulativos, como, por exemplo, para fundos
de reserva.

Com o processo de abertura do mercado interno, dispara-


do nos anos 1990, a industrialização nacional sofreu um
arrefecimento, com a consequente redução de postos de
trabalho e o crescimento do setor informal. Ao mesmo
tempo, os bolsões de pobreza já instalados e crescentes
registraram aumento da violência. Todavia, a correlação
entre pobreza e violência não pode ser considerada como
direta, mas, ao contrário, como decorrência de diversos
fatores, inclusive a pressão dos meios de comunicação
sobre as pessoas, a fim de induzir a homogeneização
de suas aspirações e de seus modos de vida. A violência
também pode ser igualmente intensificada pela falta de
perspectivas pessoais e por uma crise de sociabilidade,
causada pela perda de valores morais e éticos e pela falta
de legitimidade das instituições.

Em contrapartida, a prática capitalista que vem sendo


adotada debilita igualmente nossas instituições, gerando
uma mistura entre elementos do tradicionalismo e da mo-
dernidade, fazendo com que, por vezes, estabeleça-se o

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A morfologia do espaço urbano 17

privilégio de arranjos pessoais ou corporativos e, em ou-


tros momentos, predominem as impessoais leis de mer-
cado, não atreladas aos valores morais e éticos vigentes
na sociedade.

Por esses motivos, a redistribuição da população brasilei-


ra, que, de forma geral, acompanha a evolução do merca-
do de trabalho, vem mudando seu padrão; ou seja, com
a redução do ritmo de crescimento das grandes cidades
devido à diminuição das oportunidades de emprego, flu-
xos migratórios contrários aos estabelecidos ao longo da
história do país estão sendo favorecidos.

A produção do espaço urbano


Em suma, a história da sociedade brasileira parte de uma
colonização com caráter aventureiro, estruturando a pro-
priedade privada a partir da legalização de posses. Pro-
moveu-se, em momento posterior, a função social da terra
com espaço ao favorecimento das elites. Nesse contexto,
a evolução das cidades deu-se pelas suas inserções, com
características distintas em cada região, constituindo o
que é possível designar como paisagem regional.

Essa paisagem, que mais pontualmente está associada ao


espaço urbano, é estudada mediante sua morfologia, que
nada mais é do que a ciência interdisciplinar que destina
ao entendimento do meio físico constituinte a forma ur-
bana, por meio de processos e pessoas que determinam
a sua formatação. São duas as linhas básicas para obten-
ção de dados pelo estudo: a metodologia cognitiva e a
normativa. Na primeira linha, ao trabalhar a percepção
e a classificação dos fatos, procura-se estabelecer o co-

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18 A necessidade de organizar

nhecimento da conformação urbana. Desse modo, tem-se


como objetivo explicar como a paisagem urbana foi for-
mada, ou ainda, por que foi. Já a segunda linha procura
estabelecer algo além, ou seja, como a paisagem deveria
ser ajustada a fim de que possa continuar atendendo às
demandas futuras da sociedade nela inserida.

Esse estudo fornece subsídios muito significativos para o


planejamento urbano. Ele serve como método de análise
para a compreensão de princípios e regras de traçado das
cidades e, consequentemente, para a compreensão das
características espaciais e físicas da estrutura formatada.
Ao estudar as questões econômicas, políticas e sociais,
são estabelecidos os princípios que determinam como as
ideias e intenções manifestam-se no processo de constru-
ção do espaço urbano. O entendimento do processo de
aculturação na evolução social acaba por ser determinís-
tico nas futuras intervenções a serem realizadas na for-
matação urbana.

Partindo, então, da compreensão de que um aglomerado


urbano pode ser conhecido e analisado por meio da con-
figuração de sua formação física, o estudo morfológico
buscará configurar os elementos que compõem a mesma.
A organização desses elementos forma o chamado tecido
urbano, que é constituído pelo padrão de parcelamento
do solo, pelo sistema viário implementado, pelo agrupa-
mento de edifícios e pelos espaços vazios do seu entor-
no. Ou seja, a configuração morfológica dá-se mediante a
configuração dos lotes, das edificações, das quadras, das
ruas, das praças, dos parques, dos monumentos e do mo-
biliário urbano. Todavia, ela não é estática; ao contrário,

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A morfologia do espaço urbano 19

transforma-se ao longo do tempo. Desse modo, o estudo


morfológico deve levar em conta essas transformações.

A respeito dessa questão, o geógrafo e pesquisador da


Universidade de Birmingham, M. R. G. Conzen, aponta
três aspectos no estudo do tecido urbano, que, na tradu-
ção livre do texto de J. R. W. Whitehand, apresentada no
trabalho de Renato Leão Rego e Karin Meneguetti (2011,
p. 33), mostram sua importância:

Primeiro, ele tem uma utilidade prática básica ao


prover orientação: nosso mapa mental e, portanto,
a eficiência com que funcionamos espacialmente,
depende do nosso reconhecimento dos locais. Se-
gundo, ele tem valor intelectual ao ajudar tanto o
indivíduo quanto a sociedade a se orientar no tem-
po: uma imagem da cidade, especialmente a de uma
cidade bem estabelecida, apresenta uma forte expe-
riência visual da história de uma região, ajudando
o indivíduo a se situar em uma maior amplitude da
sociedade em transformação, estimulando a compa-
ração histórica e assim fornecendo uma base mais
informada para a tomada de decisões. Terceiro, ele
tem valor estético: por exemplo, no impacto visual e
no sentido de orientação instituídos por elementos
dominantes como igrejas ou castelos, e no estímulo
à imaginação alimentado por variações na largura
e na direção das ruas. Estes três atributos estão in-
ter-relacionados e as experiências estéticas e emo-
cionais estão forte e particularmente entrelaçadas
– ainda que não necessariamente de modo depen-
dente – com a apreciação do significado histórico e
geográfico do tecido urbano.

Ao mesmo tempo, as expansões do tecido urbano tam-


bém podem ser diferenciadas, formando os “cinturões”
(ou “franjas”) urbanos (em inglês, urban fringe belts),
como referência à ocorrência de expansões, com algu-
ma uniformidade, que ocorriam no entorno das cidades

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20 A necessidade de organizar

medievais. A característica dessas expansões está no uso


misto do solo, ou seja, para fins residenciais, comerciais
e industriais, simultaneamente.

Ainda que sem continuidade projetada, seu crescimento


está associado a ciclos alternados de expansão e contra-
ção econômica. As expansões residenciais, de caracterís-
ticas velozes, ocorrem em momentos de economia em
crescimento. As expansões com uso misto do solo, de
características lentas, ocorrem quando há retração eco-
nômica. Em sequência a elas, são necessárias e realizadas
intervenções do poder público, que têm como objetivo a
introdução de melhorias na infraestrutura da área. Entre-
tanto, são, normalmente, mantidas ou até aumentam suas
distinções em relação à conformação original da cidade,
quando essas expansões deixam de ser consideradas
como periferia.

Deve-se, então, ter em mente que a identificação dos ele-


mentos morfológicos da área urbana e suas caracterís-
ticas estarão presentes no desenvolvimento daquela co-
munidade. Ao conjunto desses elementos morfológicos
dá-se o nome de “moldura morfológica”. Se a conforma-
ção de uma nova área edificada corresponder às carac-
terísticas mapeadas de um espaço, é possível dizer que
há “conformidade morfológica” entre elas. Se há detecção
de uniformidade e similaridade em várias partes de uma
região urbanizada, tem-se o conceito de “região morfoló-
gica”. E, por fim, se os cinturões urbanos não apresentam
conformidade morfológica com sua área de origem, pode-
-se dizer que há “incongruência” em seu traçado.

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 21

A CARACTERIZAÇÃO DOS PROCESSOS DE


PLANEJAMENTO E DE GESTÃO

Uma visão geral do planejamento, da gestão e


do desenvolvimento sustentável
Em linhas gerais, o termo planejamento pode ser enten-
dido como um permanente processo de trabalho que tem
por objetivo final a organização sistemática de meios a se-
rem utilizados a fim de atingir uma meta. Ele deverá con-
tribuir para a melhoria de uma determinada situação. No
caso presente, a meta relaciona-se à melhoria das cidades.

Essa organização sistemática ocorre em quatro etapas


básicas: a coleta de dados do objeto de estudo; o diag-
nóstico do problema e a prescrição das ações a serem de-
senvolvidas para que a meta possa ser alcançada; a imple-
mentação de etapas e ações propostas e o monitoramento
dos resultados obtidos — chamado de controle —, com as
respectivas ações corretivas previstas na segunda etapa.
O planejamento pode ser descrito como uma metodologia
contínua e permanente e que se destina a resolver proble-
mas de forma racional.

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22 A necessidade de organizar

Coleta de Diagnóstico
dados e Prescrição

Ações
Implementação
Corretivas

Figura 1 - Metodologia do Planejamento.

Em linhas gerais, o termo gestão pode ser entendido


como um processo contínuo de tomada de decisões ou
de implementação de ações concretas com o objetivo de
intervir diretamente no sistema em que se está inserido.
Trata-se do ato de administrar algo que foi planejado ou
uma contingência.

Já o termo sustentabilidade pode ser bem compreendido


como a gestão de recursos e serviços e sua orientação
de mudanças tecnológicas e institucionais, visando “asse-
gurar e alcançar a contínua satisfação das necessidades
humanas para as gerações presentes e futuras, dentro
dos limites da capacidade de sustentação dos sistemas
ambientais” (RODRIGUEZ, 1997, p. 99).

Duas outras definições são igualmente importantes nesse


contexto: desenvolvimento e qualidade. O primeiro ter-
mo pode ser sintetizado como o “processo de articula-
ção das estruturas políticas sociais e econômicas do país

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 23

com o objetivo de garantir o bem-estar de sua população”


(RODRIGUEZ, 2001, p. 2). Já para qualidade, admite-se o
significado de: adequação dos produtos ou serviços às ne-
cessidades do cliente, como premissa adotada por Joseph
Moses Juran, importante consultor de negócios e famoso
por seu trabalho com qualidade e gestão da qualidade em
negócios.

Em suma, para o presente estudo (do planejamento ur-


bano), pode-se considerar que se trata de um processo
por meio do qual serão estabelecidos objetivos relativos
ao desenvolvimento físico-territorial de uma determina-
da área, e, selecionadas as diretrizes consideradas mais
adequadas para orientar ações futuras na direção desses
objetivos, garante-se desenvolvimento sustentável para
a sociedade envolvida. Para a consecução desse planeja-
mento, processos de gestão deverão ser implementados e
continuamente avaliados. Já o índice de qualidade relati-
vo a esses processos e aos seus resultados poderá variar
de indivíduo para indivíduo e, por essa razão, configura-
-se algo mais difícil de precisar, a não ser pela tomada de
um índice médio de satisfação.

Anteriormente, foi evidenciado que o estudo de qualquer


processo gera o entendimento do seu padrão, o que, por
sua vez, gera a integração de sua forma e função no espa-
ço e no tempo.

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24 A necessidade de organizar

O estudo do processo evolutivo


da estrutura urbana

Estudo da Estudo do processo de


estrutura urbana evolução da formação social

Os processos econômicos, sociais e políticos impulsio-


nam, como visto, o desenvolvimento urbano. Desse modo,
no processo evolutivo da estrutura urbana, a integração
dos fatores determinantes da evolução desses processos
pode ser claramente identificada. Ou seja, entendendo os
fatos, pode-se montar o processo, definindo, assim, o iní-
cio da etapa de coleta de dados.

Dos fatos e sua contextualização histórica


A cidade nasce da necessidade de contato, comunicação,
organização e relações entre os homens. Em decorrência
disso, a vida urbana é complementar, mas também con-
turbada e contraditória. E, mesmo com esse cenário de
tensões e diversidades, foram impostos, pela esfera go-
vernamental, planos urbanísticos para algumas cidades,
que foram concebidos a partir de modelos perfeitos de
ordenação de cidade, nos quais inexistem contradições.
Como consequência, pode ser observado que a organiza-
ção de algumas delas, a partir da segunda metade do sé-
culo XX, mudou de uma imagem de ordenação, controle,
domesticável e planejado para a de um ambiente perver-
so, indomável e controlado por tensões sociais.

.........................................................................................................
A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 25

Ao falar especificamente das características brasileiras,


fica evidente que os centros regionais e as metrópoles
concentraram as oportunidades econômicas e de desen-
volvimento humano. Enquanto isso, municípios com me-
nos de 20 mil habitantes conviveram com o esvaziamento
econômico e demográfico. Essa situação alimentou o flu-
xo migratório para os centros regionais e as metrópoles.

Processo idêntico ocorreu entre o espaço urbano e o rural


no âmbito do município. As políticas adotadas enfocaram
esses espaços como se fossem isolados, mas as cidades
sempre dependeram do meio rural para as suas provisões
de alimentos e de água. Os grandes centros reproduziram
as mesmas contradições: zonas centrais cosmopolitas e
periferias abarrotadas de loteamentos irregulares e sem
acesso a serviços públicos. Como resultado, observa-se a
crescente dívida social e ambiental das cidades, que pas-
sam a exigir grande volume de recursos, assim como no-
vos instrumentos de gestão e arranjos institucionais, que
necessitam estabelecer parcerias entre o setor público e o
privado para efetivarem-se.

Nesse contexto, surgem as soluções de curto prazo, as


chamadas soluções de gestão, em que, não raro, a tomada
de decisão está baseada em habilidades básicas, como:
intuição, boas intenções, bom senso e experiência. Pode
ocorrer o emprego de alguma metodologia (quando há
sensibilidade para reconhecer sua necessidade). Essas
soluções conduzem ao emprego de mais recursos finan-
ceiros em programas “bem-intencionados”, que não se
traduzem em eficácia, mas no agravamento do problema,
pois não são levados em consideração os efeitos de longo
prazo dos mesmos.

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26 A necessidade de organizar

Disso decorre que pensar o espaço como exclusivamente


resultado de um plano pode ser um equívoco. Entretanto,
um plano abre diversas opções e possibilidades de cons-
trução do espaço desejado. Por outro lado, no entanto,
nem tudo que está determinado por ele pode vir a ser
refletido no espaço.

As metodologias e as proposições usadas pelo planeja-


mento urbano — que foi desenvolvido na sociedade do
século XX —, foram baseadas em critérios de racionalida-
de e de caráter exclusivamente técnico, não contemplan-
do qualquer forma de participação da sociedade civil nas
discussões de propostas para a cidade. Entretanto, essa
centralização e a legislação criada não responderam às
questões conflitantes dentro do contexto socioespacial,
como também não contribuíram para o acesso ao merca-
do imobiliário legal.

Por outro lado, foi sob a égide da troca de favores e clien-


telismos que a cidade “legal” se solidificou. Consequen-
temente, a gestão de outras etapas que são intrínsecas à
produção urbana, como fiscalização, regulação, investi-
mentos privados em empreendimentos públicos e aplica-
ção da legislação urbanística, acabou por possuir a mes-
ma conduta, refletindo no espaço urbano um resultado
caótico e desrespeitador.

No tocante às cidades brasileiras, não é difícil entender


que o planejamento tem, na cidade, uma visão que prio-
riza a ordenação do território, sua configuração arquite-
tônica, seus equipamentos coletivos, acabando por valo-
rizar a obra física pura e desconsiderar a construção da
cidadania de grande parte de seus habitantes.

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 27

Legada à condição de inoperante e de incapaz de enca-


minhar soluções para as pautas sociais, econômicas e
urbanas, a prática de planejamento encaminha-se, pela
década de 1990, para ser substituída por formas de “ges-
tões” mais flexíveis. O Estado muda substancialmente sua
função e seu papel na prática de exercer oportunidades,
análises e desenvolvimento para as cidades. Para atingir
o status de cidades globais, os governos locais compram
a ideia do Plano Estratégico, que foi difundida a partir
da experiência do planejamento estratégico de Barcelona,
desenvolvido a partir 1988.

Cidade global pode definir uma cidade que substitui as


características típicas das metrópoles industriais por
meio de mudanças em suas plantas industriais, tornando-
-as menores, automatizadas e não poluentes. Elas procu-
ram a especialização nos setores terciário e quaternário
da economia, mediante a incorporação de novas tecno-
logias, com ênfase na circulação de informações. Como
contrapartida a essa transformação metropolitana, veri-
fica-se o aumento tanto da economia como do emprego
informais, além do crescimento das desigualdades e da
pobreza como seus subprodutos.

Em suma, a concepção de planejar a cidade como formada


por categorias de funcionalidade e ordenação, nos moldes
da produção industrial, a qual a cidade moderna deveria
adequar-se, defendida até metade do século XX, é substi-
tuída pela concepção mercadológica. A principal consta-
tação é que o planejamento do território não é mais re-
presentado pelo controle rígido e fechado, e sim por uma
postura de coordenação flexível e aberta, transferindo a
execução e parte do planejamento de ações para unidades

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28 A necessidade de organizar

inferiores de administração, e promovendo incentivos ao


empreendedorismo das cidades e das metrópoles, a fim
de possuírem uma imagem forte e positiva.

No entanto, como salienta Maricato (2001, p. 62):

As propostas que enfatizaram a autonomia das ci-


dades e as disputas entre elas, para atração de in-
vestimentos e prestígio, alimentaram a campanha
de enfraquecimento do “Estado-Nação” ou, pelo
menos, desviaram a atenção dos governantes e go-
vernados sobre as políticas nacionais.

É nesse ambiente, no qual o projeto neoliberal — tônica


mundial —, que tem como meta a descentralização do po-
der e a desregulamentação dos compromissos estatais com
a sociedade, é que a redemocratização brasileira acontece.

O planejamento como solução


Diagnosticado o problema, a prescrição do caminho a ser
seguido surge em contrapartida às soluções adotadas de
curto prazo. Tratam-se de soluções baseadas em plane-
jamento estratégico, cujos resultados podem permitir
equacionar os problemas de forma diversa à que vinha
sendo realizada, graças à obtenção de soluções mais per-
manentes para a qualidade de vida urbana. Elas abarcam:

1. A compreensão dos sistemas urbanos desenvol-


vidos ao longo do tempo.

2. O estabelecimento de metas em comum acordo


com a sociedade envolvida.

3. O planejamento sob visão sistêmica.

4. Uma perspectiva mediante a utilização do para-


digma holístico.

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 29

A visão sistêmica nada mais é do que adotar a humildade


para poder proceder ao trabalho compartilhado, buscar
envolver-se em processos realizados por grupos hetero-
gêneos que proporcionam aprendizagem e crescimento
coletivos e multiplicar os conhecimentos adquiridos.

Já o paradigma holístico abarca a compreensão das múl-


tiplas relações de casualidade que se manifestam, tanto
no tempo como no espaço, em amplo horizonte; ou seja,
entende a existência de interligação entre todos os fato-
res, que não podem ser explicados separadamente e que
determinam um estágio. Esse modelo representa oposi-
ção ao pensamento (normalmente de gestão pública) que
trabalha a proximidade da relação causa e efeito.

Trabalhando a visão sistêmica


A ausência de políticas que abranjam as áreas metropoli-
tanas torna mais difícil equacionar os graves problemas
de controle, por exemplo, de enchentes, de poluição, de
destinação final de resíduos, de proteção dos mananciais
e de ocupação de áreas de risco. Os planos diretores,
quando existem ou são razoavelmente concebidos, só dia-
logam com a cidade formal, fato que responde, também,
pela ampliação da informalidade.

Desse modo, devem ser construídas políticas que valori-


zem a qualidade dos municípios, respeitando indicadores
como: habitação, emprego, educação, saúde, transporte
coletivo etc. Devem, ainda, ser criados mecanismos de in-
tegração urbana e rural. Essa visão implica o desafio de
um planejamento urbano democrático para o Brasil.

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30 A necessidade de organizar

Ao trabalhar a visão sistêmica, é fundamental o entendi-


mento da dinâmica urbana, como já discutido anterior-
mente. Isso pode ser realizado por meio da investigação
da inter-relação das variáveis socioeconômicas, políticas,
tecnológicas e culturais envolvidas. Essa investigação
deve seguir, basicamente, os seguintes passos:

i. Compreensão dos integrantes do sistema.


ii. Entendimento dos principais enlaces, ou feedba-
cks, existentes entre esses integrantes do sistema.
iii. Observação de que a mudança de um integrante
afetará os demais do sistema no espaço-tempo, o
que causa mudança tanto nos agentes como tam-
bém no espaço-tempo, e assim sucessivamente.

Pela natureza da dinâmica dos processos sociais, eco-


nômicos e políticos, pode-se deduzir que causa e efeito
não são, com frequência, relacionados a espaço-tempo.
Ou seja, suas estruturas não são de enlaces ou feedbacks
simples; seus fluxos de eventos não são lineares; o real
problema é de difícil identificação; com frequência, são
estudados os sintomas em vez de suas causas; e, em mui-
tos casos, será necessário o recurso de simulação com-
putacional para sua análise, devido ao grande número de
variáveis envolvidas.

Um importante ingrediente é a necessidade de maturi-


dade e inteligência política para entender que operar a
visão sistêmica será trabalhoso e complexo. Igualmente
importante é reconhecer que o processo de democratiza-
ção pode tornar-se frágil se não estiver pautado em me-
todologias que primem por instrumentalização e supor-

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 31

te à decisão. Posto que um processo decisório inclusivo,


aberto e coletivo em grande escala é, por certo, de gran-
de complexidade e de difícil implementação, algumas de
suas principais características poderão ser divisadas e
implementadas por etapas.

Em contraponto a essas dificuldades, somadas as resis-


tências conectadas com a tentativa de manutenção do
estado de conforto ou trocas de poder entre grupos oli-
gárquicos, cada vez mais estratégias para implantação de
gestões democráticas para as cidades vêm ganhando for-
ça e respaldo na sociedade brasileira.

A visão sistêmica e a busca do futuro


A prescrição objetiva, então, a melhoria da qualidade de
vida das comunidades urbanas, conduzindo, em conse-
quência, à reflexão sobre um ambiente ideal. Por essa ra-
zão, cabe questionar qual seria a cidade ideal.

Instantaneamente, poder-se-ia dizer que seria aquela com


disponibilidade imediata de construções a baixo custo,
ampla oferta de empregos com salários elevados, com ex-
celentes escolas, moradias próximas ao local de trabalho
e ausência de poluição ambiental, além de possuir belos
parques e oportunidades culturais, sendo, então, portado-
ra de índice zero de criminalidade, entre outras preferên-
cias individuais de seus habitantes. Porém, se tal cidade
existisse, pessoas de todas as partes mudar-se-iam para
ela, e, em consequência, o futuro desse ambiente não seria
promissor. As vantagens proporcionadas diminuiriam até
que deixassem de existir, como decorrência do aumento
da população. A cidade não mais ofereceria qualquer atra-

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32 A necessidade de organizar

tivo em comparação a outros lugares. Teriam início, então,


diversos tipos de pressão: diminuição da poluição ambien-
tal, da densidade de tráfego urbano, do crescente nível de
criminalidade, do consumo de drogas, do estresse, dentre
outras, que inibiriam seu crescimento.

A solução desse dilema pode ser tratada por meio da


abordagem sistêmica. A construção de uma visão com-
partilhada, em que se destaca o benefício resultante da
contribuição de diferentes modelos mentais que, emba-
sados em valores comuns, complementam-se uns aos
outros, constitui a abordagem em destaque. Entretanto,
outra ferramenta pode ser somada a essa linha de pen-
samento: a Busca do Futuro (em inglês, Future Search).
Trata-se de uma metodologia de mudança organizacional
com base nas ações da comunidade envolvida. A aborda-
gem proporciona inumeráveis aplicações, entre as quais
se incluem:

• O planejamento do desenvolvimento de comuni-


dades e do futuro de cidades, regiões, setores in-
dustriais e associações profissionais.

• O desenvolvimento de planos abrangentes de


reinvenção do governo.

• O planejamento do desenvolvimento regional.


• A gestão de conflitos entre partes litigiosas e di-
versos grupos de interesse no setor público.

• O desenvolvimento de parcerias em longo prazo


com clientes, fornecedores ou agentes reguladores
governamentais.

• A facilitação de esforços de desenvolvimento e


renovação organizacional.

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 33

• A condução de reuniões de planejamento estra-


tégico corporativo.

A Busca do Futuro pode ser descrita como constru-


ção compartilhada da mudança planejada, que engaja o
aprendizado coletivo e a criatividade de grandes grupos,
inspirando as pessoas a descobrir valores comuns em tor-
no de novas estratégias, direções futuras e ações conjun-
tas. O processo conjuga as melhores práticas associadas
ao planejamento estratégico, ao pensamento sistêmico e
às práticas de comunicações efetivas em grupo. Propicia
plena participação aos envolvidos, posicionamento acima
dos interesses pessoais e a consequente tomada de deci-
sões visando ao bem comum.

A “qualidade” futura em uma aglomeração


urbana — utilizando a visão sistêmica
Ao investigar o passado, evidencia-se que o bem-estar pú-
blico dizia respeito ao aporte de melhores soluções aos
problemas de drenagem, disposição do lixo, transportes,
abastecimento de água, tratamento de esgotos, escolas e
saúde pública. Não é mais verdade que melhores soluções
para cada um desses desafios refletir-se-ão, sempre, em
melhor “qualidade” de vida para todos. Solucionar indi-
vidualmente esses problemas leva ao risco de tornar-se
cúmplice do aumento de sua densidade demográfica,
como descrito antes, provocando o início de processos
sociais que reduzirão o bem-estar coletivo.

Uma sociedade pode escolher, então, o conjunto de pres-


sões sob as quais deseja existir. Um objetivo válido para
a liderança urbana local focar é a melhoria da qualidade

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34 A necessidade de organizar

de vida dos moradores, ao mesmo tempo em que se pro-


tege do tipo de crescimento urbano que venha a soterrar,
posteriormente, os ganhos conquistados. Uma importan-
te implicação nesse objetivo, e que pode ser amplamen-
te discutida, passa por considerações éticas e legais que
envolvem a elevação da atratividade da cidade para seus
atuais moradores, simultaneamente à redução da atrativi-
dade para movimentos migratórios que possam vir a con-
gestionar o sistema.

Planejando, então, em termos de população máxima, nú-


mero máximo de unidades habitacionais, altura máxima
permissível para as construções e número máximo de em-
pregos, escolhe-se o tipo de aglomerado urbano que se
deseja ser. Essa ideia pressupõe ser consenso a impossi-
bilidade de uma comunidade tornar-se e permanecer uma
cidade que é todas as coisas para todas as pessoas.

Atualmente, o Estatuto da Cidade propõe e legitima ins-


trumentos de planejamento urbano e de coação, como,
por exemplo, o parcelamento compulsório do solo, o Im-
posto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana
(IPTU) progressivo no tempo, a desapropriação com paga-
mento em títulos e a usucapião especial individual ou co-
letiva, entre outros. O uso adequado desses instrumentos
deverá contribuir para o término das invasões urbanas,
além do melhor ordenamento do território, mediante sua
adoção na etapa da prescrição.

O planejamento e a gestão de áreas urbanas


A implementação de ações está diretamente ligada à ges-
tão urbana. Nessa etapa, as decisões afetam de modo ime-
diato o número de ruas e bairros que serão construídos,

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 35

como também o número de áreas industriais e loteamen-


tos residenciais que serão implantados e a quantidade de
edificações que serão erigidas, por exemplo. Essas ações
físicas, amparadas pela política municipal de zoneamento,
determinam se haverá ou não e, se sim, qual o tipo de cres-
cimento urbano.

O controle do crescimento e do movimento migratório


tem sido efetuado em todos os tempos, mas, com fre-
quência, condicionado por considerações de curto prazo,
tendo resultados inesperados e indesejáveis em longo
prazo. Ou seja, atitudes que parecem humanitárias, no
curto prazo, podem encorajar o crescimento populacio-
nal com um maior amontoado de gente em áreas de opor-
tunidades econômicas declinantes. Ações que prometem
recompensas no curto prazo, quase sempre, terminam
por punir no longo prazo e vice-versa. Disso decorre que
a questão não é o controle ou a falta dele, mas a intenção,
a finalidade e a qualidade da decisão tomada.

A gestão guarda importante relação com o planejamento


desenvolvido pela visão sistêmica. O executivo municipal
terá, portanto, suas ações de gestão condicionadas ao pla-
nejamento aprovado, priorizando ações que acelerem a
caminhada rumo ao objetivo acordado, que foi imaginado
pela sociedade.

A retroalimentação será realizada por meio da fiscaliza-


ção dos investimentos realizados, da aplicação da legisla-
ção urbanística, do monitoramento periódico das medidas
ou índices de performance, registrados em um sistema
de informação e as suas consequentes ações corretivas,
trabalhadas de acordo com as prescrições constantes do
planejamento aprovado.

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36 A necessidade de organizar

Relação planejamento urbano e gestão


habitacional
A gestão habitacional pode ser descrita como o conjun-
to de processos dirigidos a articular (utilizar, coordenar,
organizar) recursos (humanos, financeiros, técnicos, or-
ganizacionais, políticos, naturais) que permitam produzir
e manter habitações, de acordo com as necessidades dos
usuários.

Por essa definição depreende-se que gestão habitacional


é a implementação de um planejamento habitacional,
comumente denominado política habitacional. Essa, por
sua vez, é o norteador das ações e deve estar articulada
a outras políticas, mais gerais e de outros setores. Como
a política habitacional é essencialmente o processo por
meio do qual as decisões são tomadas, ela relaciona-se
com os objetivos da sociedade e de seu modelo de de-
senvolvimento discutido em um planejamento maior, o
estratégico, que se discute neste capítulo.

O estabelecimento dessa política segue as mesmas etapas


do processo de planejamento, ou seja, as quatro etapas,
agora usualmente denominadas: levantamentos e análi-
-ses (coleta de dados), desenvolvimento de estratégias e
políticas (diagnóstico e prescrição), implementação e mo-
nitoramento e avaliação (ações corretivas), cujas princi-
pais características podem ser elencadas como:

a. Levantamentos e análises, que compreendem:


• A estimativa das necessidades atuais e projetadas.
• O levantamento da situação presente.

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 37

• A análise do potencial econômico e de desenvol-


vimento.

• A identificação de recursos disponíveis (financei-


ro, solo, recursos humanos etc.).

• A avaliação de resultados de intervenções passa-


das (feedback).

• As respostas da comunidade.

b. Desenvolvimento de estratégias e políticas,


que compreende:
• A definição clara de metas e objetivos.
• A identificação de pontos-chave e problemas.
• A identificação de estratégias alternativas e po-
líticas.

• A análise do custo e dos benefícios das alterna-


tivas.

• A identificação das consequências ao adotarem-


-se várias alternativas.

• A priorização das alternativas.


• A seleção das alternativas com melhor equilíbrio
entre objetivos e utilização de recursos.

c. Implementação, que compreende:


• A identificação dos órgãos que implementam.
• A mobilização dos recursos necessários.
• A especificação e a coordenação das atividades.
• A especificação dos programas e dos projetos.
• A preparação do orçamento dos programas.
• A especificação dos termos da implementação.

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38 A necessidade de organizar

• A especificação das medidas de performance.


• A supervisão das operações de rotina e ativida-
des de manutenção.

d. Monitoramento e avaliação, que compreendem:


• Monitoramento e avaliação periódicos.
• Avaliação de desempenho.
• Retroalimentação dos resultados obtidos em um
sistema eficiente de informações.

Planejamento sustentável
Ao discutir sustentabilidade em associação a planejamen-
to, deve-se destacar a existência de algumas correntes de
pensamento. A base delas está no entendimento de que
o desenvolvimento sustentável implica a manutenção do
“capital” natural, representado por recursos da natureza,
em um nível constante, admitindo-se, apenas, trocas entre
os demais “capitais”: o humano, que é representado pelo
conhecimento produzido pelo homem; o tecnológico, re-
presentado pela infraestrutura criada pela sociedade e o
moral, compreendido pela ética e pela cultura acumulada
no ambiente social.

A posição tecnocêntrica, baseada na ótica neoliberal, visa


ao intercâmbio entre capital natural e humano por meio
do tecnológico, sendo o primeiro valorizado apenas por
sua utilidade para o capital humano, com o progresso
tecnológico assegurando a ultrapassagem das barreiras
do capital natural. Em outras palavras, as gerações futu-
ras, por meio do capital tecnológico, devem compensar a
dilapidação do natural. Os componentes desse enfoque

.........................................................................................................
A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 39

consideram que a tecnologia tem (ou terá) capacidade de


compensar e solucionar qualquer desequilíbrio resultante
da ação do homem.

A posição antropocêntrica considera que o homem é o


objetivo final de qualquer ação ou atividade. Ela impõe
limites na confiança de que o capital tecnológico possa
compensar o declínio do natural, defendendo a prudência
no trato das questões ambientais pelo desconhecimento
da real magnitude dos impactos. Ela considera, também
e por esse motivo, a necessidade da manutenção de um
estoque mínimo para o capital natural. Com esses argu-
mentos, a posição antropocêntrica admite que a proteção
— a falta dela — de qualquer ambiente só se justificaria
se o ser humano fosse diretamente beneficiado.

A posição ecocêntrica comunal defende a preservação


ambiental, com economia estacionária (crescimento zero),
sendo possível a transformação entre as formas de capi-
tal, mas sem aumento do nível de consumo.

A posição ecocêntrica de ambientalismo radical preconi-


za a conservação ambiental rígida, com economia forte-
mente regulada pela minimização dos fluxos de matéria e
energia, da escalada econômica e do crescimento popula-
cional. Seus seguidores consideram que a preservação do
capital natural deve, a todo custo e em qualquer situação,
sobrepujar qualquer atividade ou ação do homem.

Ao analisar esses diferentes pontos de vista, pode-se lo-


gicamente concluir que, como a sociedade é heterogênea,
deve-se incorporar o processo de negociação como práti-

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40 A necessidade de organizar

ca de busca do ponto comum entre todos os posiciona-


mentos, já que, segundo Ignacy Sachs, “o desenvolvimen-
to sustentável é socialmente desejável, economicamente
viável e ecologicamente prudente”.

Ao longo de sua evolução, podem ser classificados os vá-


rios estágios de relacionamento da humanidade com o
meio ambiente da seguinte forma:

I. Preocupação com as forças da natureza: o ser hu-


mano desconhecia os processos naturais, pratican-
do quase exclusivamente atividades extrativistas,
as quais, dada as suas escalas, ainda provocavam
impactos pouco relevantes.
II. Crescimento autoconfiante: teve como base o
aprendizado de práticas agropastoris, que promo-
veram o próprio surgimento das cidades como su-
porte permanente para essas atividades.
III. Agressões e conquistas: efetivadas a partir do
aprimoramento de diversas técnicas, entre as quais
estão incluídas as de ordem urbanística, gerando
significativas interferências sobre o meio.
IV. Responsabilidade e unificação: corresponde ao
estabelecimento de amplo processo de retomada
de consciência, especialmente ambiental, em nível
planetário.

Por meio dessa classificação, é possível identificar alguns


períodos, dentre outros, na evolução do processo de ur-
banização:

• Início do conhecimento prático da ecologia e do


urbanismo (estágio das agressões e conquistas).

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 41

• Domínio de técnicas simples, que fundamentam


os atuais processos tecnológicos (estágio das agres-
sões e conquistas).

• Ocorrência de impactos significativos, provoca-


dos pelo acentuado crescimento populacional, pelo
extravasamento urbano indiscriminado e pela in-
tensa expansão industrial, sendo a técnica o instru-
mento de transformação da realidade, e a economia,
a base racional dessa transformação (estágio das
agressões e conquistas).

• Ampliação da conscientização ambiental, pelo


desenvolvimento das ciências em vários campos, in-
clusive os relacionados ao meio urbano (estágio da
responsabilidade e unificação).

Verifica-se que danos expressivos de ordem ecológica e/ou


socioeconômica, alguns em escala mundial, estão possibili-
tando a reinterpretação de questões fundamentais à sobre-
vivência humana e tornando necessária a revisão da base
racional economicista e dos valores de forma mais ampla,
com inclusão de valores éticos, culturais, sociais etc.

Justifica-se o planejamento sustentável com o uso da teo-


ria dos sistemas, que permite o desenvolvimento da visão
holística, que, por sua vez, favorece o desenvolvimento de
estudos sobre conformações de redes (CASTELLS, 2002),
desde as de ordem física e biológica até as de âmbito so-
cial, econômico ou institucional, entre outras.

Durante muito tempo, a gestão das cidades deparou-se


com grandes dificuldades para a implementação des-
sa visão, em função da falta de instrumentos legais que

..........................................................................................................
42 A necessidade de organizar

dessem sustentação a vários fenômenos urbanos. Dentre


eles, destacam-se os relativos à especulação imobiliária e
à dificuldade de efetivação de operações urbanas que en-
volvessem, em um mesmo processo, a iniciativa privada e
o poder público.

Depois de avanços e retrocessos no processo de inovação


na formulação de instrumentos destinados a enfrentar os
principais problemas urbanos, os princípios defendidos
pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana, depois
transformado no Fórum Nacional pela Reforma Urbana,
foram tratados politicamente pela tramitação do dispo-
sitivo, que era, em sua origem, denominado Lei de De-
senvolvimento Urbano, e hoje é aprovado sob o título de
Estatuto da Cidade.

Esse instrumento representa um importante elemento


que disponibiliza aos gestores urbanos e, em particular,
ao processo de planejamento urbano e regional, meios
para enfrentar alguns dos principais problemas urbanos,
que se agravaram ao longo dos últimos anos.

As etapas de um processo de planejamento, associado ao


desenvolvimento urbano sustentável, podem ser descri-
tas e entendidas a partir do seguinte diagrama:

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A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 43

Etapas: Etapas:

• Conceituação. • Descrição.
• Determinação. • Proposição.
• Instrumentação. • Prescrição.
Coleta de Diagnóstico
dados e Prescrição

Ações
Implementação
Corretivas
Etapas: Etapas:

• Controle. • Resolução.
• Revisão. • Acompanhamento.

I. COLETA DE DADOS:
Estabelecerá referências para apoiar a fase de diag-
nóstico e prescrição. Seu resultado pode ser descri-
to a partir das seguintes fases:

a. Conceituação: definição de conceitos e crité-


rios básicos, apoiados em fundamentos de quali-
dade e sustentabilidade.

b. Determinação: fixação de objetivos e delimita-


ção de informações a serem analisadas, de acordo
com as peculiaridades do objeto de intervenção.

c. Instrumentação: especificação de métodos e


ferramentas compatíveis e técnicas adequadas à
pesquisa, ao planejamento, à implementação e à
revisão do processo.

..........................................................................................................
44 A necessidade de organizar

II. DIAGNÓSTICO E PRESCRIÇÃO:


Resultará na elaboração do conteúdo específico,
que permitirá a implementação do processo de
transformação do estágio atual ao pretendido. Pode
ter por base três etapas fundamentais:

a. Descrição do estágio atual: é fundamentada


no inventário (descrição da situação para o conhe-
cimento dos dados) e na análise (organização dos
dados para a compreensão das questões envol-
vidas), que constituem estudos setoriais dos di-
versos aspectos envolvidos. Como produto final,
tem-se a inter-relação de todos esses aspectos em
conjunto, sob a forma de diagnóstico conclusi-
vo da situação atual (qualificação das questões),
apontando as principais condicionantes, deficiên-
cias e potencialidades que, em síntese, determi-
nam a fragilidade e a qualidade atual do objeto
(cidade ou setor urbano).

Deve-se observar que a cidade pode ser entendida


como um ecossistema formado por dois sistemas
básicos: o natural e o antrópico. No primeiro, que
é integrado por componentes abióticos (meio fí-
sico – composto pelo clima e ar, água, solo e sub-
solo) e bióticos (meio biológico – integrado pela
flora e fauna), tem-se como discussão fundamen-
tal que, em questões ligadas ao clima e ao ar, o
adensamento de volumes construídos provoca
uma série de alterações microclimáticas, envol-
vendo características de temperatura (formação
de "ilhas de calor"), precipitação, umidade relativa
do ar, nebulosidade, radiação, regime de ventos,
entre outras. A emissão de poluentes gasosos e

.........................................................................................................
A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 45

de materiais particulados à atmosfera gera a dete-


rioração da qualidade do ar, assim como a intensa
produção de ruídos (principalmente pela circula-
ção de veículos e pelas atividades industriais e de
serviços) conduz à poluição sonora.

Alterações qualitativas e quantitativas tanto da


água superficial como da subterrânea são deter-
minadas pela impermeabilização extensiva do
solo, rebaixamento do lençol freático e emissão
de poluentes hídricos. As várias transformações
da conformação original da superfície, as modifi-
cações nos níveis de consistência, a compacidade
e a transmissão hidráulica do solo, além da emis-
são de poluentes da parte agrícola mais ativa do
solo, promovem alterações físicas, químicas e
biológicas do solo e do subsolo.

A redução da diversidade biológica pela gradati-


va eliminação da cobertura vegetal nativa é cer-
tamente uma das principais características do
ecossistema urbano. Algumas populações, mui-
tas vezes reconhecidas como indicadoras de qua-
lidade ambiental na cidade, a exemplo das aves,
são, muitas vezes, reflexo do desaparecimento
de seus habitats primitivos na região de abran-
gência da cidade.

No segundo, o antrópico, que é relativo às mo-


dificações provocadas pelo homem no meio am-
biente, envolvendo aspectos territoriais, sociais,
econômicos e institucionais, verifica-se que a
multiplicação dos elementos construídos e as
atividades no ambiente urbano propiciam o des-

..........................................................................................................
46 A necessidade de organizar

conforto ambiental da cidade e das edificações, a


degradação da paisagem e, consequentemente, a
poluição visual.

Se, por um lado, a concentração de pessoas e de


atividades nas cidades promove a otimização da
infraestrutura e dos serviços urbanos, por outro,
a expansão da ocupação e o crescimento da po-
pulação provocam constante pressão, que deter-
mina a tendência à deficiência dos sistemas.

No que diz respeito ao sistema viário e aos trans-


portes, são crescentes as dificuldades de deslo-
camento pelo aumento progressivo da intensi-
dade de fluxos. Os sistemas de comunicações,
a partir de seus meios indiretos, reduzem a di-
versidade de formas de sociabilidade. São várias
as insuficiências nos sistemas de saneamento. A
impermeabilização excessiva do solo, a erosão e
as inundações comprometem a drenagem urba-
na. A degradação de mananciais provoca refle-
xos imediatos no abastecimento de água. O cons-
tante acréscimo de efluentes líquidos orgânicos
pressiona o esgotamento sanitário, e a crescente
quantidade de lixo satura as condições de coleta,
tratamento e disposição final de resíduos sóli-
dos, para citar alguns efeitos.

A tendência de crescimento da população e os


acentuados fluxos demográficos em grandes
centros urbanos acabam por promover a concen-
tração populacional nessas áreas, resultando no
aumento de demandas por serviços e infraestru-
tura de educação e atendimento infantil, saúde,

.........................................................................................................
A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 47

assistência social e previdência, abastecimento


alimentar, segurança, cultura e lazer, habitação,
entre outros. Tanto esses serviços como suas in-
fraestruturas sempre oscilarão entre a otimiza-
ção e a deficiência.

Os setores produtivos nos grandes centros ur-


banos são especialmente representados pelo se-
cundário e pelo terciário. A concentração urbana
e suas relações regionais promovem a chamada
economia de escala. Entretanto, em casos de supe-
ração de limites de atendimento de infraestrutura
e serviços, pode-se atingir uma economia de esca-
la ao inverso nas áreas urbanas. Por esse motivo,
muitas cidades deparam-se com a concentração
da pobreza e com o desemprego, na maioria das
vezes associados à estratificação da renda.

Quanto mais complexa torna-se a estrutura urba-


na, maiores serão os problemas de administração
e finanças públicas, especialmente pela baixa ca-
pacidade de gestão urbana de seus responsáveis
diretos. Além disso, muitas vezes ocorrem confli-
tos entre normas e legislações específicas, além
da falta de aderência adequada às características
urbanísticas locais.

b. Proposição: formulação de propostas alterna-


tivas de soluções para os problemas diagnosti-
cados, considerando a valorização das poten-
cialidades evidenciadas e os diversos fatores
intervenientes (recursos humanos, materiais, fi-
nanceiros, técnicos, tecnológicos, temporais, po-
líticos etc.) que irão compor as diretrizes que de-

..........................................................................................................
48 A necessidade de organizar

finirão o modelo básico para a gestão. As metas


preconizadas devem considerar as capacidades
de uso e de recuperação ou adaptação dos am-
bientes envolvidos.

c. Prescrição: depois de diagnosticados os fato-


res intervenientes do objeto estudado, sobre os
quais se formulam proposições visando maximi-
zar potencialidades e minimizar efeitos negati-
vos, chegam-se a situações em que as propostas
objetivam soluções definitivas. Todavia, diversas
condicionantes podem dificultar ou inviabilizar
sua implementação. Dentre elas, cabe citar os as-
pectos políticos, financeiros e técnicos. A partir
de uma situação ideal, chega-se à conclusão de
consolidação do possível, sob pena de não se al-
cançar qualquer dos objetivos originalmente for-
mulados.

III. IMPLEMENTAÇÃO:
Ela deverá garantir que as propostas formuladas
sejam efetivamente concretizadas, podendo ser es-
truturada da seguinte forma:

a. Resolução: que consiste na viabilização executiva


(ações físico-territoriais, sociais, econômicas e/ou
institucionais) e/ou na política das propostas (con-
dicionada ao grau de governabilidade, condições so-
ciopolíticas e nível de participação comunitária).

b. Acompanhamento: que corresponde à manu-


tenção e/ou manejo das áreas de intervenção e seu
respectivo monitoramento, com coleta, tratamento,
arquivamento, manutenção e operação de indicado-

.........................................................................................................
A caracterização dos processos de planejamento e de gestão 49

res de qualidade, que podem subsidiar a tomada de


decisões.

IV. AÇÕES CORRETIVAS:


Elas fornecerão a retroalimentação (feedback) de
comparação entre o que foi prescrito e o que está
sendo alcançado. Sua estrutura pode acontecer por:

a. Controle: que engloba a fiscalização das ações


propostas, conscientização para melhor viabiliza-
ção das mesmas e avaliação do processo de gestão.

b. Revisão: que envolve a adoção das medidas ne-


cessárias à atualização constante, total ou parcial,
das diretrizes adotadas, possibilitando ajustar re-
ciprocamente o estado real e o modelo básico ado-
tado, para que se possa atingir a qualidade ideal
preconizada.

Finalizando, pode-se dizer que a gestão do planejamento


pode ser subdividida em várias tipologias, segundo se-
tores ou áreas de atuação (ambiental, territorial, social,
econômica, institucional etc.). Além disso, a gestão não
pode prescindir de duas formas básicas de integração. A
primeira, unidimensional, especifica a dependência das
diversas etapas do processo entre si e das mesmas com
os objetivos pretendidos, estabelecendo o seu relaciona-
mento com processos de maior abrangência; a segunda,
multidimensional, define o caráter de multi, inter e de
transdisciplinaridade dos procedimentos.

..........................................................................................................
50 A necessidade de organizar

A LEGISLAÇÃO SOCIAL E O PLANO


DIRETOR

Ao planejar o futuro da cidade, mediante a incorporação


de todos os setores sociais, econômicos e políticos que a
compõem, torna-se cada vez mais importante, como foi
visto, a construção do compromisso entre cidadãos e go-
vernos na direção de um projeto que inclua a todos. Essa
ideia configura o desafio que o Estatuto da Cidade impõe
a todos os planos diretores que, agora, são obrigatórios
para as cidades brasileiras.

Tomam-se por base dois artigos da Carta Magna do país.


No § 4º do artigo 182 da Constituição é facultado ao po-
der público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que
promova seu aproveitamento adequado. Já o artigo 183
compreende que aquele que possuir como sua área urba-
na de até 250 m² por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, utilizando-a como moradia própria ou de sua
família, irá adquirir o domínio sobre ela, desde que não
seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Identificado como Lei federal nº 10.257, de 10 de julho


de 2001, o Estatuto da Cidade regulamenta os artigos 182
e 183 da Constituição, estabelecendo parâmetros e dire-
trizes para a política urbana no Brasil. Os instrumentos
oferecidos para que os municípios possam intervir no
processo de planejamento e gestão urbana e territorial

.........................................................................................................
A legislação social e o plano diretor 51

visam garantir ao cidadão a realização do direito à cida-


de. Em outras palavras, a importância desse estatuto ad-
vém da possibilidade de os cidadãos serem estimulados
a repensarem as cidades nas quais vivem. Ele pretende
oferecer meio e oportunidade para que se construam ou
reconstruam espaços urbanos humanizados, integrados
ao ecossistema em que foram implantados, mediante o
respeito à identidade e à diversidade cultural das cidades
brasileiras.

O artigo 1º, em seu parágrafo único, destaca que o esta-


tuto compõe-se de normas de ordem pública e interesse
social. Elas regulam o uso da propriedade urbana em prol
do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cida-
dãos, bem como do equilíbrio ambiental. O artigo 2º trata
da política urbana, enumerando as seguintes diretrizes
gerais para ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana:

I - Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendi-


do como o direito à terra urbana, à moradia, ao sane-
amento ambiental, à infraestrutura urbana, ao trans-
porte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer,
para as presentes e futuras gerações.
II - Gestão democrática por meio da participação da
população e de associações representativas dos vá-
rios segmentos da comunidade na formulação, exe-
cução e acompanhamento de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano.
III - Cooperação entre os governos, a iniciativa priva-
da e os demais setores da sociedade no processo de
urbanização, em atendimento ao interesse social.

..........................................................................................................
52 A necessidade de organizar

IV - Planejamento do desenvolvimento das cidades,


da distribuição espacial da população e das ativida-
des econômicas do município e do território sob sua
área de influência, de modo a evitar e corrigir as dis-
torções do crescimento urbano e seus efeitos negati-
vos sobre o meio ambiente.
V - Oferta de equipamentos urbanos e comunitários,
transporte e serviços públicos adequados aos interes-
ses e às necessidades da população e às característi-
cas locais.
VI - Ordenação e controle do uso do solo, de forma
a evitar:

a) A utilização inadequada dos imóveis urbanos.


b) A proximidade de usos incompatíveis ou incon-
venientes.
c) O parcelamento do solo, a edificação ou o uso
excessivo ou inadequado em relação à infraestru-
tura urbana.
d) A instalação de empreendimentos ou atividades
que possam funcionar como polos geradores de
tráfego, sem a previsão da infraestrutura corres-
pondente.
e) A retenção especulativa de imóvel urbano, que
resulte na sua subutilização ou não utilização.
f) A deterioração das áreas urbanizadas.
g) A poluição e a degradação ambiental.

VII - Integração e complementaridade entre as ativi-


dades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvi-
mento socioeconômico do município e do território
sob sua área de influência.
VIII - Adoção de padrões de produção e consumo de
bens e serviços e de expansão urbana compatíveis

.........................................................................................................
A legislação social e o plano diretor 53

com os limites da sustentabilidade ambiental, social


e econômica do município e do território sob sua área
de influência.
IX - Justa distribuição dos benefícios e ônus decor-
rentes do processo de urbanização.
X - Adequação dos instrumentos de política econô-
mica, tributária e financeira e dos gastos públicos
aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo
a privilegiar os investimentos geradores de bem-es-
tar geral e a fruição dos bens pelos diferentes seg-
mentos sociais.
XI - Recuperação dos investimentos do Poder Públi-
co de que tenha resultado a valorização de imóveis
urbanos.
XII - Proteção, preservação e recuperação do meio
ambiente natural e construído, do patrimônio cultu-
ral, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.
XIII - Audiência do Poder Público municipal e da po-
pulação interessada nos processos de implantação
de empreendimentos ou atividades com efeitos po-
tencialmente negativos sobre o meio ambiente na-
tural ou construído, o conforto ou a segurança da
população.
XIV - Regularização fundiária e urbanização de áreas
ocupadas por população de baixa renda mediante o
estabelecimento de normas especiais de urbanização,
uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a
situação socioeconômica da população e as normas
ambientais.
XV - Simplificação da legislação de parcelamento, uso
e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas
a permitir a redução dos custos e o aumento da ofer-
ta dos lotes e unidades habitacionais.

..........................................................................................................
54 A necessidade de organizar

XVI - Isonomia de condições para os agentes públicos


e privados na promoção de empreendimentos e ativi-
dades relativos ao processo de urbanização, atendido
o interesse social. (BRASIL, Lei nº 10.257, de 10 de
julho de 2001, art. 2º)

A construção de um plano diretor


O objetivo fundamental do plano diretor é estabelecer
como a propriedade cumprirá sua função social, de forma
a garantir o acesso à terra urbanizada e regularizada, re-
conhecendo a todos os cidadãos o direito à moradia e aos
serviços urbanos.

O artigo 39 do Estatuto da Cidade estabelece que

A propriedade urbana cumpre sua função social


quando atende às exigências fundamentais de or-
denação da cidade expressas no plano diretor, asse-
gurando o atendimento das necessidades dos cida-
dãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e
ao desenvolvimento das atividades econômicas.

Do que foi dito até aqui, decorre que planejamento terri-


torial é:

1. Definir o melhor modo de ocupar o sítio de um


município ou região, prever os pontos em que se
localizarão atividades e todos os usos do espaço,
presentes e futuros.
2. Converter a cidade em benefício para todos, demo-
cratizando as oportunidades para todos os moradores.
3. Garantir condições satisfatórias para financiar
o desenvolvimento municipal, democratizando as
condições para usar os recursos disponíveis de for-
ma sustentável.

.........................................................................................................
A legislação social e o plano diretor 55

4. Contribuir para redução das desigualdades so-


ciais, uma vez que ele irá redistribuir os riscos e
os benefícios da urbanização por meio da interação
com as dinâmicas dos mercados econômicos.

O plano diretor está definido como um instrumento básico


para orientar a política de desenvolvimento e de ordena-
mento da expansão urbana do município. Ele representa
uma política de nível estratégico, pois, ao fornecer dire-
trizes e instrumentos gerais para a sociedade brasileira,
permite diferenciações específicas na formatação regio-
nal. E, por essa razão, democratizar as decisões é de fun-
damental importância para transformar o planejamento
da ação municipal em trabalho compartilhado entre os ci-
dadãos e por eles assumido. Esse procedimento assegura
maior possibilidade de que todos se comprometerão e se
sentirão responsáveis e responsabilizados no processo de
construir e implementar o plano diretor. Em decorrência,
um plano assim trabalhado poderá introduzir o desenvol-
vimento sustentável nas cidades brasileiras.

Um plano diretor deverá, portanto, assegurar em seu eixo


fundamental:

1. Espaços adequados para a provisão de novas mo-


radias sociais que atendam à demanda da popula-
ção de baixa renda.
2. Condições atraentes para micro e pequenas em-
presas – item de importância vital para que haja
crescimento urbano equilibrado.
3. Que se evite ocupação irregular e informal do
território do município.

..........................................................................................................
56 A necessidade de organizar

É fundamental que esse plano seja construído em lingua-


gem acessível e clara. Ele deve originar um conjunto de
regras simples que todos entendam. Ou seja, entender o
plano diretor é condição essencial para saber defendê-lo
e aplicá-lo. Desse modo, dar boa redação ao plano é muito
importante. Essa providência irá facilitar a aplicação da
lei e a implantação das medidas previstas, além de evitar
pendências judiciais posteriores.

Etapas de elaboração do plano diretor


As etapas básicas são as mesmas para a elaboração de
qualquer planejamento, podendo apenas ser diferencia-
das pela nomenclatura adotada. No caso dos planos di-
retores:

1º. Leituras da cidade: REFERENCIAÇÃO (ou coleta


de dados).
2º. Formular e pactuar propostas: PLANEJAMENTO
(diagnóstico, proposição e prescrição – ou desen-
volvimento).
3º. Definir os instrumentos: IMPLEMENTAÇÃO (ou
ação).
4º. Definir o sistema de gestão e planejamento do
município: controle.

1ª etapa: leituras da cidade


Consiste em identificar e entender a situação do municí-
pio – a área urbana e a rural, seus problemas, seus con-
flitos e suas potencialidades. São dois tipos de leitura: a
técnica e a comunitária.

.........................................................................................................
A legislação social e o plano diretor 57

A leitura técnica caracteriza-se por:

i. Ajudar a entender a cidade pela comparação en-


tre dados e informações socioeconômicas, cultu-
rais, ambientais e de infraestrutura disponíveis.
ii. Revelar a diversidade, as desigualdades entre a
zona urbana e a rural ou entre bairros de uma cidade.
iii. Reunir análises de problemas e tendências de
desenvolvimento local e, sempre que possível, con-
siderar o contexto regional de cada município.
iv. Ser um processo de identificação e discussão dos
principais problemas, conflitos e potencialidades,
do ponto de vista dos diversos segmentos sociais.
v. Contemplar as possíveis alternativas para a solu-
ção dos problemas detectados, procurando enfocar
todo o território do município.
vi. Ser a ocasião para que todos conheçam visões e
modos de pensar diferentes dos seus.

Já a leitura comunitária caracteriza-se por reunir regis-


tros de memória de pessoas e grupos sociais, apontar ele-
mentos da cultura e da vivência e, assim, permitir que se
construam releituras coletivas de conflitos, problemas e
potencialidades.

Para visualizar as informações reunidas nas leituras téc-


nica e comunitária e localizá-las no território, podem ser
utilizados os seguintes mapas temáticos:

• De riscos para ocupação urbana: com a identi-


ficação das áreas de risco, de escorregamento, ero-
são, inundação, contaminação do subsolo ou outros
fenômenos desse tipo, e as áreas degradadas que
exijam ações especiais de recuperação.

..........................................................................................................
58 A necessidade de organizar

• De áreas de preservação cultural: com a identi-


ficação de áreas de preservação de patrimônio his-
tórico e cultural, tombadas ou protegidas, e as áreas
de valor cultural ou simbólico para a comunidade, a
fim de que sejam oficialmente protegidas pelo po-
der público.

• De estrutura fundiária: com a identificação da si-


tuação da propriedade da terra (regular e irregular),
da distribuição e de forma de uso das propriedades,
como, por exemplo, imóveis, lotes ou glebas que es-
tejam vazios, especialmente os que já são servidos
de infraestrutura. Esse tema é importante para que
se apliquem os instrumentos legais, e demandará
especial esforço dos municípios.

• Da evolução histórica da cidade e do território:


com a identificação do núcleo inicial da cidade, seus
marcos de origem, referências históricas e culturais,
principais períodos e fatores que determinaram a
sua forma de ocupação.

• Da inserção regional do município: com a iden-


tificação dos vínculos entre municípios, sejam eles
vizinhos ou não, com relação à circulação de pesso-
as, mercadorias, bens e serviços.

• Dos indicadores de mobilidade e circulação:


com a identificação dos deslocamentos da popula-
ção, da circulação viária, de transportes na cidade e
na região; localização das áreas de maior incidência
de acidentes de trânsito; quantificação da frota de
veículos, ônibus, automóveis, bicicletas, polos gera-
dores de tráfego, entre outros.

• Da caracterização e distribuição da população


e seus movimentos: com a identificação da popula-
ção por bairro e densidade; por faixa etária e escola-

.........................................................................................................
A legislação social e o plano diretor 59

ridade; por condições de emprego e de renda fami-


liar; por crescimento ou evasão de seu quantitativo.

• Da ocupação atual do território: com a identi-


ficação das atividades e formas de uso e ocupação
do solo já existentes, formais e informais, regulares
ou não, vazios urbanos e zona rural, áreas habita-
cionais, indicando diferentes padrões existentes na
cidade, áreas com edificações de maior altura, den-
sidades habitacionais, morfologias.

• Da infraestrutura urbana: com a identificação de


serviços e equipamentos e níveis de atendimento;
das redes de infraestrutura (esgotamento sanitário,
água, luz, telefone, drenagem, TV a cabo, infovias e
outras); das redes de equipamentos (educação, saú-
de, cultura, esporte e lazer etc.); da população aten-
dida por rede de água, esgotos e drenagem.

• Da atividade econômica do município: com a


identificação das atividades econômicas predomi-
nantes, inclusive as informais e sua importância lo-
cal e regional; das atividades em expansão ou em
retração, não só em termos de número de empregos
e de empresas, mas de sua participação na compo-
sição da receita do município.

• Da dinâmica imobiliária: com a análise do mer-


cado imobiliário, tendências em curso (áreas em re-
tração, em expansão, entre outras) e novos produ-
tos imobiliários.

• Da legislação: com o levantamento da legislação


urbanística, leis de uso do solo, parcelamento, códi-
gos de obras, posturas ambiental e patrimonial nos
âmbitos municipal, estadual e federal, que incidem
no município; identificação da atualidade dessa le-
gislação (em que e se a legislação está ou não sendo

..........................................................................................................
60 A necessidade de organizar

aplicada; em que as formas de ocupação contrariam,


tem contrariado ou podem vir facilmente a contra-
riar a legislação em vigor e por que).

• Dos estudos existentes: com o levantamento dos


planos, estudos e projetos sobre o município, seus
problemas, locais integrados, sociais, econômicos,
demográficos, ambientais; potencialidades e voca-
ção (por exemplo, estudos feitos em fóruns de de-
senvolvimento da prefeitura ou outras instituições).

Nesse ponto do trabalho, afloram alguns dos temas e


conflitos mais importantes para a cidade, dos quais são
exemplos: o direito à moradia versus a necessidade de
conservação do meio ambiente em área de proteção am-
biental irregularmente ocupada; a tendência à verticali-
zação em núcleo histórico; a concentração de lotes vagos
nas áreas centrais versus a expansão das periferias em
áreas sem infraestrutura ou ambientalmente frágeis; pro-
blemas de circulação versus problemas de congestiona-
mento; e ocupação de encostas ou de áreas inundáveis.

2ª etapa: formular e pactuar propostas


De nada adianta um plano diretor tratar de dezenas de
aspectos da cidade, mas não ter capacidade para intervir
sobre eles. Nessa etapa, devem ser definidos os temas prio-
ritários para o futuro da cidade e para a reorganização ter-
ritorial do município. É importante trabalhar com perspec-
tiva estratégica e sistêmica, selecionando temas e questões
cruciais para a cidade e que, se enfrentadas rapidamente e
com eficácia, podem redefinir o destino da cidade.

Para cada tema prioritário devem-se definir as estratégias


e os instrumentos mais adequados, considerando as ca-
racterísticas e os objetivos da cidade. Essas estratégias e
instrumentos serão os caminhos e os meios para construir

.........................................................................................................
A legislação social e o plano diretor 61

a cidade que se deseja, e, por isso, devem ser discutidos e


pactuados com todos os participantes do processo. A ta-
bela 1 mostra alguns exemplos de problemas que podem
ser identificados, a melhor solução, ou objetivos de con-
senso a serem alcançados como solução para o problema,
e a prescrição para implementação da solução, que é re-
presentada pelas estratégias desenvolvidas como resulta-
do da aplicação de técnicas de planejamento, na definição
do plano diretor de uma cidade.

O plano diretor deve incluir diversos enfoques: devem ser


considerados, de forma articulada, aspectos ambientais,
culturais, turísticos, econômicos e sociais, mesmo que, de
início, eles não se apresentem como eixos estratégicos.

Prescrição
Problema identificado Solução (Estratégia a ser adotada
(Tema) (Objetivo a ser alcançado)
na solução do problema)

Definir e assegurar espa-


ços nos quais se possam
desenvolver atividades
Criação de condições econômicas rurais e
Esvaziamento econô- urbanas, geradoras de
para gerar emprego
mico e populacional do oportunidades de empre-
e renda e reverter o go e renda; simplificação
município.
processo. da legislação; requalifi-
cação de imóveis deso-
cupados, para micros e
pequenas empresas.
Regularização fundiária
das áreas irregulares;
delimitação de áreas para
Moradia digna para Ampliação da oferta de habitação de interesse
social (áreas de ZEIS);
todos. novas moradias. incentivo às cooperati-
vas e à construção civil;
prevenção de ocupação
de áreas de risco.
Implantação do ge-
renciamento de riscos;
planejamento das inter-
Redução de riscos de venções de segurança e
escorregamentos, erosão, de recuperação de áreas
Riscos ambientais. degradadas; estabeleci-
inundação e contamina- mento da gestão susten-
ção do subsolo. tável das águas pluviais
urbanas; implantação do
controle de ocupação de
áreas de risco.

Tabela 1 - Exemplos de resultados da segunda etapa de um plano diretor.

..........................................................................................................
62 A necessidade de organizar

3ª etapa: definir os instrumentos


Nessa etapa, viabilizam-se as intenções expressas no
plano diretor. Os objetivos e as estratégias devem estar
estreitamente articulados aos instrumentos de planeja-
mento e de política urbana. O Estatuto das Cidades define
e regulamenta o conjunto de instrumentos passíveis de
uso. Eles servirão para regular o desenvolvimento urba-
no e poderão, simultaneamente, controlar o uso do solo,
influenciar o mercado de terras, arrecadar e redistribuir
oportunidades e recursos, se bem aplicados.

O Estatuto da Cidade (art. 4º) estabelece, ainda, que os


instrumentos de política econômica, tributária e finan-
ceira dos municípios devem adequar-se aos objetivos do
planejamento territorial. Isso significa que deve haver
coerência entre o modo de aplicar tributos (como IPTU,
ISS e, inclusive, a Lei Orçamentária) e o plano diretor do
município. As propostas de investimentos, inseridas no
plano diretor, devem orientar as prioridades de governo
definidas no Programa Plurianual (PPA) do município, nas
diretrizes orçamentárias e nos orçamentos anuais, que se-
rão elaborados depois de o plano diretor estar aprovado.

4ª etapa: o sistema de gestão e o


planejamento do município
A lei do plano diretor deve estabelecer a estrutura e o pro-
cesso participativo de planejamento para implementá-lo
e monitorá-lo. O monitoramento compreende avaliações,
atualizações e ajustes sistemáticos, que devem estar defi-
nidos na lei. O plano diretor deve definir também as ins-
tâncias de discussão e decisão do monitoramento, como
os conselhos, sua composição e suas atribuições (por
exemplo, por meio do Conselho da Cidade, no Sistema de

.........................................................................................................
A legislação social e o plano diretor 63

Gestão e no Planejamento do Município, ou em estruturas


assemelhadas, de forma coerente com a capacidade de
gestão do município).

A conclusão do plano diretor não encerra o processo de


planejamento. Ajustes podem e devem ser feitos. É reco-
mendável que o próprio plano diretor determine os meios
e a sistemática para revisá-lo (pelo Estatuto, o plano dire-
tor deverá ser revisto, pelo menos, a cada dez anos).

Fica evidenciado que o planejamento urbano, dessa for-


ma concebido, interfere diretamente no mercado imobi-
liário. Os profissionais da área devem, além de conhecer
o perfil de seus clientes, estar bem familiarizados com
as constantes diretrizes do planejamento, para que suas
orientações propiciem o atendimento das demandas com
a qualidade que cada componente de sua carteira deseja,
garantindo, com isso, sua continuidade no mercado.

..........................................................................................................
64 A necessidade de organizar

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vista dos Tribunais, 2002. p. 756.

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66 A necessidade de organizar

MONTEIRO, J. V. O planejamento municipal e estadual


frente ao crescimento demográfico: o segundo Brasil. Rio
de Janeiro: Centro de Estudos de Políticas de População e
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SACHS, I. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São


Paulo: Vértice, 1986.

SOUZA, Celina. Políticas públicas: questões temáticas e


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WHITEHAND, J. W. R. The changing face of cities: a study


of development cycles and urban form. Oxford: Basil Bla-
ckwell, 1987.

.........................................................................................................
A legislação brasileira para o uso do solo 67

CAPÍTULO 2
O USO DO SOLO

Ficou evidenciado, anteriormente, que a segregação socio-


espacial no Brasil está associada a diversos fatores com-
binados ao longo de nossa história. A estrutura fundiária
sempre direcionada à privatização, a tolerância às práticas
informais de acesso à terra e a excessiva burocratização
político-administrativa decorrem de uma inadequada base
jurídica. Em um estudo sobre a nova ordem jurídico-ur-
banística no Brasil, Betânia Alfonsin e Edésio Fernandes
(2006, p. 5-7) afirmam que "não há como enfrentar esse
enorme desafio que é promover reforma urbana no Brasil
se não se fizer uma profunda reforma jurídica no país:
cidade e cidadania são o mesmo tema, e não há cidada-
nia sem a democratização das formas de acesso ao solo
urbano e à moradia nas cidades. Não há como promover
mudanças significativas e estruturais desse padrão de ex-
clusão social, segregação territorial, degradação ambiental
e ilegalidade urbana que caracteriza o processo de urbani-
zação no Brasil, se não for também mediante uma reforma
do Direito, com o envolvimento sistemático dos operado-
res do Direito nas parcerias acadêmicas e político-institu-
cionais que se tem formado”. Pode-se, então, inferir que a
Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade são conside-
rados como movimentos nessa direção.

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68 O uso do solo

A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PARA O USO


DO SOLO

Historicamente, a utilização do zoneamento urbano como


ferramenta de regulação do uso do solo remonta ao iní-
cio da república. Naquele momento, a formação do Estado
brasileiro ampliava sua estrutura institucional para forne-
cer suporte à demanda de modernização das cidades em
crescimento. Secretarias, associadas à urbanização, foram
criadas para a articulação de reformas e ampliações no
sistema de infraestrutura. Desse modo, foram planejadas
e executadas obras tanto de saneamento, destinadas à am-
pliação das redes de água e esgoto e a canalizar as águas
pluviais, quanto para a melhoria do sistema de transpor-
tes, que incluíram os sistemas ferroviários, portuários e
de circulação viária. Essas intervenções foram justificadas
pela expansão das atividades administrativas e comerciais
que demandavam estruturas mais complexas do que as
implementadas durante o período colonial.

As intervenções realizadas nessa época foram conhecidas


como “intervenções sanitaristas”, porque elas estavam for-
temente ligadas a questões técnicas. Mas não só a essas
questões, a estética das áreas centrais das cidades também
se mostrava significativa. Em outras palavras, essas inter-
venções eram lastreadas por códigos de obras e posturas,
que se fundamentavam a partir de conhecimentos e expe-
riências advindas das diferentes tipologias de moradias,
comércio e serviços existentes nos aglomerados urbanos.

Entretanto, a estrutura do poder público estava domina-


da pelos interesses das elites e, desse modo, os planos e

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A legislação brasileira para o uso do solo 69

projetos apresentados vinculavam seus benefícios a essa


classe dominante, nas áreas por ela determinadas. Nesse
momento, os governos estavam sob forte influência das
ideias positivistas francesas1 , que criaram, aqui, um ra-
ciocínio que justificava o abandono dos menos favoreci-
dos. Em outras palavras, ao priorizar as grandes obras
sanitaristas e modernizadoras, justificava-se a não inter-
venção estatal nas demandas sociais, já que, como resul-
tado, a sociedade progrediria, supostamente, em decor-
rência dos planos implementados.

Nesse cenário, e em conjunto com a base econômica co-


mercial agroexportadora, que gerava bons excedentes fi-
nanceiros, observou-se o crescimento de uma nova classe
de investimento, movida pela também crescente procura
de moradias por parte da classe média e dos trabalhado-
res. O ramo imobiliário progrediu, então, a partir de pe-
quenos e médios investidores, que viram a oportunidade
de retorno financeiro por meio da diversificação de seus
negócios, mediante a construção de moradias para alu-
guel. A crescente produção desse tipo de produto impli-
cou a diversificação das tipologias habitacionais. Cons-
truíram-se as vilas, os conjuntos de corredores de casas
e, mais adiante, iniciou-se a verticalização das moradias.
Desenvolveu-se, com essa lógica, uma produção rentista,
em que se utilizava como fonte de lucro o pagamento de
aluguéis. Para os que não conseguiam ser atendidos den-
tro dessa nova modalidade, restou a opção de moradia em
cortiços, que bem caracterizou esse período da história
das maiores cidades brasileiras.

1
Segundo essa linha de pensamento, a sociedade progrediria se fosse
orientada, corretamente, por correntes de pensamento vanguardistas.

..........................................................................................................
70 O uso do solo

Entre 1920 e 1930 surgem os primeiros exemplos de


verticalização das moradias nos bairros centrais. Elas
seguiam, quase sempre, o padrão europeu, que se carac-
terizava pela homogeneidade na forma das construções,
mas, ao mesmo tempo, buscava que cada conjunto fosse
produzido para a maior densidade de habitantes possível.
O controle dessa verticalização ocorria, tão somente, por
disposições legais de regulação da relação entre a altura
da edificação e a largura do logradouro onde seria edifi-
cado, o pé direito dos pavimentos e a altura do prédio,
já que esse último condicionante se ligava à inexistência
de elevadores para a facilitação do acesso dos moradores
aos pavimentos mais altos.

Segundo Maricato (2003, on-line) “os Códigos Municipais,


elaborados no final do século XIX, tiveram um claro papel
de subordinar certas áreas da cidade ao capital imobiliá-
rio acarretando a expulsão da massa trabalhadora pobre
do centro da cidade”. Afirma, também, que essas normas
contribuíram não só para a ordenação do solo de uma par-
te da cidade, mas também para a segregação espacial.

Essa legislação veio se apresentar como a primeira forma


de zoneamento, realizado por meio da definição de pa-
drões urbanísticos diferenciados, que pretendiam o con-
trole social do espaço e a garantia da beleza da paisagem.
Definia, desse modo, o volume e a estética das edificações,
o que, por razões óbvias, afastou os pobres e sua forma de
moradia de determinadas áreas da cidade, protegendo os
valores imobiliários nela construídos. Nery Junior (2002)
afirma que, no momento em que a legislação apenas per-
mite algumas tipologias habitacionais, ela passa diversas

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A legislação brasileira para o uso do solo 71

formas de moradia popular para a ilegalidade, ou seja, as


casas superpostas, as vilas, as edificações de uso misto
etc. Supondo que os modos de morar das elites eram ide-
ais e que os demais não seriam condizentes com a salu-
bridade, conforto e segurança determinados, a legislação
tornou-se, sem qualquer dúvida, muito excludente.

Na chamada Era Vargas (1930–1945), o Estado passou à


condição de instituição, elaborando e decidindo sobre as
legislações urbanísticas e suas decorrentes intervenções.
Getúlio Vargas reorganizou o aparelho estatal, aprovou
importantes avanços na legislação trabalhista e afastou as
oligarquias agrocomerciais do Estado mediante a adoção
de uma política de industrialização.

Um novo padrão de urbanização surgiu, então, a partir


do momento em que o poder público assumiu o controle
e a responsabilidade pelas demandas habitacionais popu-
lares. Observou-se um acentuado crescimento das perife-
rias, alterando o modo de produção rentista. Ao ser intro-
duzida a função social da propriedade na Constituição de
1934, criou-se um parâmetro legal de orientação acerca da
natureza jurídica e política da propriedade, abrindo-se ca-
minho, desse modo, para o estabelecimento de limitações
ao privado em detrimento do bem comum. Entretanto,
esse parâmetro só foi melhor definido a partir da Consti-
tuição de 1988 e, por essa razão, foi contornado com certa
facilidade naquele momento.

Ao longo desse período em destaque, consolidaram-se,


como parte da estrutura administrativa, órgãos destina-
dos ao planejamento urbano. A partir de uma visão totali-

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72 O uso do solo

tária estabelecida, foram ampliados os sistemas viários e


de transporte, que permitiam novas possibilidades de lo-
calização para os produtos imobiliários, quer destinados
à elite ou aos pobres, quer para a indústria em expansão.
Estavam lançadas, assim, as bases de uma opção de mobi-
lidade urbana. Entretanto, a escolha deu-se pela ênfase na
construção de uma malha predominantemente rodoviária
em detrimento da ferroviária, o que acarretou resultados
na dinâmica das cidades e nos custos econômicos, que se
refletem na atualidade.

Mas os planos mantiveram o tratamento desigual entre as


diferentes áreas urbanas. Os bairros centrais continuavam
a apresentar um planejamento mais detalhado, com cons-
tantes revisões, de acordo com interesses particulares de
grupos de influência, desvinculados, normalmente, dos
interesses gerais da cidade.

Em várias cidades brasileiras, os códigos de obras foram


reformulados, passando a incluir princípios modernistas
de ocupação do solo. Esses princípios, lastreados no ur-
banismo americano, estavam baseados na regulação ur-
banística por meio da criação de zonas no tecido urba-
no. Desejavam, dessa forma, promover a otimização dos
usos e funções reservados para cada área do aglomerado
urbano. Como consequência, seriam obtidas uma acelera-
ção no desenvolvimento da cidade e uma diminuição dos
“usos indesejados”. Para que isso fosse possível, esses
princípios defendiam modelos de instituições e estruturas
organizacionais para o trabalho urbanista, além de uma
reformulação na formação profissional. Segundo Feldman
(2005), a simplificação da legislação e a incorporação de

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A legislação brasileira para o uso do solo 73

setores da sociedade em conjunto com os técnicos, para


que novas leis pudessem ser redigidas, foram questões
bastante discutidas à época. Entretanto, as mudanças, que
se puderam observar em vários códigos de obras, foram
a relação entre as alturas dos edifícios e a área livre dos
respectivos lotes, os padrões de ocupação para os grandes
conjuntos residenciais, que passaram a prever espaços
privados de uso coletivo, e a possibilidade de existência
de ruas exclusivas para uso de pedestres. Essas modifica-
ções geraram uma mudança gradativa nos tecidos urba-
nos, refletidas até os dias de hoje.

Segundo Rossetto (2002),

o período pós 1945 significou o surgimento de um


novo modelo de morar, não mais apoiado em rela-
ções de aluguel, e sim na produção de imóveis para
a venda. Essa mudança esteve associada à entrada
de um novo agente na produção imobiliária – o in-
corporador – e, como ele, práticas advindas de em-
preendimentos lucrativos. [...] A produção por in-
corporação significou investimentos em tipologias
com aproveitamento intensivo do solo.

Produtos habitacionais foram produzidos em escala, da


mesma forma que os produtos industrializados. Eles fo-
ram trabalhados como forma de buscar novos modelos,
destinados à crescente demanda exigida pela classe mé-
dia. Nesse momento, foi realizada uma nova configuração
no processo decisório de execução dos empreendimentos.
O cálculo da viabilidade econômica do projeto passou a
servir como base na proposição de um novo produto.

Ainda segundo Rossetto (2002), nesse processo, determi-


nava-se o modo de escolha do terreno por uma conjuga-

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74 O uso do solo

ção de fatores, tais como os benefícios advindos de sua


localização e as formas de uso, aprovadas para aquela
zona, que permitissem um maior aproveitamento do solo.
Nesse momento, observa-se que a determinação do pre-
ço do produto passou a não estar vinculado ao valor de
produção, mas ao valor agregado pelo mercado. E esse
fator determinou uma nova modalidade de acumulação
de capital.

A concepção mercadológica adotada promoveu uma adap-


tação dos conceitos arquitetônicos, afastando-os da di-
mensão social da produção, o que provocou a transfor-
mação da morfologia e da tipologia produzidas até então.
Iniciava-se um período de grande verticalização. Avanços
tecnológicos também vieram ajudar nesse processo. A
utilização de estruturas em aço na construção e o dispo-
sitivo elevador de cargas permitiram, assim, um melhor
aproveitamento dos terrenos. Os sistemas viários projeta-
dos viabilizaram, por outro lado, o início da verticalização
também nas periferias.

A trajetória das transformações políticas e econômicas,


com as suas consequências para o crescimento urbano,
demandou a ampliação da instrumentalização do pro-
cesso de expansão e convivência entre os modos de uso
do solo. Isso foi realizado por meio de modificações no
zoneamento das áreas urbanas, que bem responderam à
necessidade da manutenção dos interesses da dinâmica
capitalista implantada. Mais uma vez, mantiveram-se as-
segurados os interesses da elite, mediante a preservação
do alto valor agregado para as habitações em determina-
das áreas da cidade, a promoção da valorização fundiária

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A legislação brasileira para o uso do solo 75

para os proprietários de terras e o atendimento, também,


ao setor de construção civil, quando foi regulado o quanto
e onde poderiam ser realizadas as construções.

O zoneamento urbano continuou, como se pode eviden-


ciar, a permitir uma estruturação do espaço utilizado para
moradia das elites, por meio de sua inscrição com extremo
rigor de detalhes na legislação aprovada, conferindo, dessa
forma, grande proteção às áreas exclusivamente residen-
ciais por meio da inviabilização de quaisquer usos e tipo-
logias diferentes dos padrões nelas utilizados. Ao mesmo
tempo, de acordo com interesses do mercado imobiliário,
demarcou localizações com elevado potencial construtivo,
onde eram flexibilizados os parâmetros de uso e tipologia.
Em suma, foi uma legislação que, por fixar dimensões
para a divisão do solo, taxas de ocupação e tipologias
tipicamente para usos unifamiliares para as áreas mais
centrais, desconsiderou sistematicamente a lógica de pro-
dução da moradia popular. Em adição, os altos preços da
terra e a baixa capacidade de pagamento das camadas
mais pobres da sociedade provocaram, como alternativa
para as classes menos favorecidas, a opção de moradia
onde essas condições pudessem ser contornadas, ou seja,
nas periferias. Ali, na maioria das vezes, a divisão do solo
proporcionava a coabitação familiar e o uso misto das edi-
ficações, entre outras características. Aos que nem isso
conseguiam, restou a ocupação de áreas de risco ou que,
posteriormente, vieram a ser classificadas como de prote-
ção ambiental. Essa situação consolidou, em um primeiro
momento, a formação dos subúrbios populares e, a seguir,
das periferias e favelas.

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76 O uso do solo

Interpretações de diferentes autores demonstram que


essa forma irregular de ocupação do solo pode ser atri-
buída à ineficácia da lei em relação ao crescimento urba-
no. Em contrapartida, outros defendem que o espaço não
regulado é parte fundamental para a existência de uma
área valorizada, regulada e possuidora de infraestrutura.
Nesse caso, ao prevenir a ocorrência de ocupações desva-
lorizadoras em determinadas áreas e as permitindo em
outras, é possível manter ou até mesmo aumentar o valor
das primeiras. E isso pode ser facilmente entendido como
condizente com os interesses da classe dominante.

Com o início do regime militar em 1964, foi novamente


alterada a forma do planejamento urbano. Mediante uma
forte concentração nos processos decisórios, o governo
federal montou um sistema de financiamento para o se-
tor habitacional. Entram em cena o Sistema Financeiro de
Habitação – SFH e o Banco Nacional de Habitação – BNH
(2000). Ao mesmo tempo em que era montada a estrutu-
ra para o atendimento às classes menos favorecidas, per-
mitiam-se a ampliação e a consolidação da incorporação
imobiliária destinada ao atendimento da classe média.

Nesse mesmo momento, ocorreu a promulgação da Lei


dos Condomínios (Lei nº 4.591/64) ou Lei de Incorpora-
ções Imobiliárias, que veio regulamentar e disciplinar a
constituição de condomínios, uma vez que essa era a for-
ma cada vez mais utilizada como necessidade advinda do
sistema de verticalização de moradias.

Em conjunto com a política habitacional adotada, um


modelo de legislação urbanística, baseada também em
zoneamento urbano, contou com a incorporação da ne-

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A legislação brasileira para o uso do solo 77

cessidade de elaboração de um plano diretor para as cida-


des. A partir daí, muitos municípios, principalmente os de
médio porte, introduziram os primeiros instrumentos de
regulação urbanística e gestão do solo urbano a partir da
montagem do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo –
SERFHAU, que foi encarregado da definição de um marco
regulatório e do financiamento necessário à elaboração de
planos diretores de desenvolvimento integrado. Na deter-
minação legal de criação desse serviço (Lei nº 4.380/64),
estava estipulado que

os municípios que não tiverem códigos de obras e


urbanismo adaptados às normas técnicas do SER-
FHAU ou que aprovarem projetos e planos habita-
cionais em desacordo com as mesmas normas, não
poderiam receber recursos provenientes de entida-
des governamentais, destinados a programas de ha-
bitação e urbanismo. (AZEVEDO, 1976)

Instituiu-se, assim, o modelo de “termos de referência”,


que deveriam preceder os planos, predefinindo-os com
respeito aos seus conteúdos, prazos e custos. Essa ne-
cessidade fez com que muitos municípios formassem um
corpo técnico em seus quadros administrativos ou contra-
tassem consultorias.

A legislação, dessa forma produzida, constituiu-se de ins-


trumentos técnicos, baseados nas funções desempenhadas
no tecido urbano, o que estava de acordo com as propostas
modernistas. Manteve, por essa razão, os parâmetros de
zoneamento já amplamente utilizados. E, em função dos
modos de financiamento implementados, as políticas de-
finidas para infraestrutura, a produção industrial e habi-
tação definiram as zonas em termos dos usos residencial,
comercial e industrial. Sua aplicação, no entanto, foi desen-
volvida de acordo com algumas dinâmicas setoriais da ci-

..........................................................................................................
78 O uso do solo

dade. Dessa forma, sob nova apresentação, velhas práticas


continuaram a existir, em que se reproduziu um modelo
que desconhecia a maioria dos munícipes, segregando-os
em “moradores incluídos” na urbanidade e os dela “exclu-
ídos” (ROLNIK, 2003). Portanto, mesmo com uma intensa
produção habitacional, a urbanização apresentou uma
grande quantidade de assentamentos irregulares, onde
inexistiam infraestrutura e equipamentos públicos.

Combinando a fragilidade de muitas gestões municipais


com a grande concentração de recursos em apenas uma
instituição financeira, a prática administrativa brasileira
acabou por transformar a elaboração dos planos de desen-
volvimento urbano integrados em documentos utilizados
para justificar os investimentos que, muitas vezes, eram
negociados à margem dos interesses locais.

Mas novas necessidades se apresentaram ao cenário das


incorporações. Apareceram estruturas hierarquizadas,
que se responsabilizaram, em vários níveis, pela cons-
trução e pela venda de produtos imobiliários. Essa pro-
posta de fragmentação do processo produtivo permitiu a
redução dos custos e a padronização de componentes no
projeto. A contrapartida foi a redução na percepção de
qualidade por parte dos consumidores do produto. Nesse
período, segundo Leite (2006, p. 99), houve a

redução das áreas das unidades e o desenvolvimen-


to de empreendimentos em regiões novas, visando
adequar o preço do produto final à capacidade fi-
nanceira do comprador, até iniciativas para agregar
maior valor ao produto, como equipamentos de la-
zer e paisagismo nas áreas comuns, componentes
de segurança, plantas flexíveis, dormitórios rever-
síveis, acabamentos personalizados, vagas de gara-
gens extra ou para visitantes.

.........................................................................................................
A legislação brasileira para o uso do solo 79

Foi um período de “boom imobiliário”, mas em que a ativi-


dade de projetar cedeu lugar para a atividade de empreen-
der, fazendo com que os projetos realizados não fossem
integrados entre si e resultassem na diminuição do padrão
da paisagem urbanística.

A manutenção da visão modernista contribuiu para a ma-


nutenção de relações de proximidade entre os gestores pú-
blicos e os empreendedores. E, desse modo, foram também
mantidas as práticas de flexibilização e modificação nas
leis de zoneamento, para que interesses particulares pu-
dessem ser atendidos em detrimento aos das comunidades.

As mudanças, consolidadas nesse período, ainda causam


impacto na atualidade. Os planos diretores de desenvolvi-
mento integrado promoveram a construção da cadeia pro-
dutiva da incorporação imobiliária para a classe média. A
adoção de “parâmetros urbanísticos abstratos”, como, por
exemplo, o coeficiente de aproveitamento do solo, faci-
litou a aprovação de empreendimentos segundo a lógica
desenvolvida para o mercado imobiliário, que, agora, pro-
duzia “produtos-tipo” por segmentos de renda. Deve-se,
também, levar em conta a segmentação das modalidades
de financiamento em habitacional e não habitacional. Isso
se somou à racionalização da produção e ajudou no pro-
cesso de mercantilização da terra.

Com a extinção do Serviço Federal de Habitação e Urbanis-


mo - SERFHAU em 1974, o planejamento urbano passou a
ser promovido pelo Plano Nacional de Saneamento e pelo
Plano Nacional de Habitação Popular. Esse último preten-
dia extinguir o chamado “déficit habitacional” mediante

..........................................................................................................
80 O uso do solo

a construção de dois milhões de moradias para famílias


com renda de até três salários mínimos. Entretanto, para
que as municipalidades pudessem ter acesso ao financia-
mento público, havia novamente a necessidade de promo-
ção de modificações nas leis de zoneamento. As principais
excepcionalidades criadas foram a extensão do perímetro
urbano e o aumento da densidade de ocupação do solo
(ROLNIK, 2011). Segundo Rolnik, arquiteta, urbanista e
professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
USP,

o modelo proposto – a promoção de um sistema de


planejamento local que daria suporte às interven-
ções no campo dos investimentos urbanos opunha-
-se frontalmente a todo o sistema de planejamento
e execução orçamentária montado no país, baseada
na concentração de recursos nas mãos do Governo
Federal, depois da reforma tributária de 1966/1967,
limitando as possibilidades de avanço na capacida-
de de gestão e financiamento dos governos locais. É
neste momento também que o BNH assume a gestão
dos recursos do FGTS, tornando-se o maior banco
de segunda linha do país, encarregado de arrecadar
recursos financeiros para em seguida transferi-los a
agentes privados intermediários, se transformando
assim no locus da política habitacional e de desen-
volvimento urbano. (ROLNIK, 2008)

De um lado, o intenso crescimento urbano em conjunto


aos interesses do mercado e do poder público na produ-
ção de moradias populares a baixos custos e, de outro, a
necessidade de solução para os loteamentos clandestinos
fizeram surgir a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei
nº 6.766/79), que definiu critérios para a localização dos
parcelamentos, parâmetros mínimos para a divisão dos
lotes e passou a exigir contrapartidas de doação de áreas

.........................................................................................................
A legislação brasileira para o uso do solo 81

para fins institucionais e de circulação viária. Determinou


que o projeto de extensão urbana ficaria à cargo do em-
preendedor, e ao poder público caberia a fiscalização do
cumprimento das normas estabelecidas. Em outros ter-
mos, essa lei determinou regras básicas de parcelamento
do solo e deixou para a municipalidade a aprovação de
legislação urbanística complementar.

Como resultado desse novo modelo, é muito frequente,


como observa Santoro (2012, p. 105), encontrar, atualmen-
te, “Leis municipais de parcelamento do solo que apenas
reproduzem o conteúdo da Lei Federal, sem planejar suas
especificidades”, ou até as que “flexibilizam a Lei Federal,
criando situações de incoerência jurídica”.

Com o fim da era do “milagre econômico” e com o iní-


cio do processo de redemocratização do país, a década de
1980 acabou por apresentar avanços na política urbana.
O discurso, materializado pelo “Movimento Nacional pela
Reforma Urbana”, apresentou questionamentos quanto ao
modelo tecnocrático das políticas públicas, que permitiam
a manutenção dos interesses segregadores de uma elite
conservadora e do setor imobiliário de produção. Esse
processo permitiu o reconhecimento do direito à moradia,
à cidade e o incentivo à participação cidadã nos processos
de criação das políticas urbanas.

Ocorreu também nessa década a promulgação da nova


Constituição, na qual se incluiu um capítulo específico
para tratar da política urbana, uma conquista daquele mo-
vimento. O texto, então aprovado, viabilizou a criação de
novos instrumentos para o controle do uso e da ocupação

..........................................................................................................
82 O uso do solo

do solo, com o objetivo de democratizar o acesso à terra.


Definiu-se um modelo de descentralização, que permitiu
aos municípios maior autonomia para o uso dos instru-
mentos de planejamento e gestão urbana. Assim, uma
nova tentativa de rompimento das relações clientelistas,
destacadas anteriormente, foi realizada.

Entretanto, a crise econômica, vivenciada ao longo dos


anos 1980, conduziu o governo a praticar baixos públicos
em políticas urbanas, obras de infraestrutura. Além disso,
as construtoras foram obrigadas a encontrar no financia-
mento próprio de seus empreendimentos o caminho de
contorno para a queda nas vendas em virtude da escassez
de financiamentos para o setor. A terceirização, a constan-
te busca pela padronização dos processos e sistemas cons-
trutivos, associados à falta de mudanças na legislação ur-
banística, fez aparecer outra estratégia para os produtos.
Ela criou uma nova concepção do modo de vida: o “morar
bem”. Esse caminho obteve boa resposta em decorrência
do agravamento dos problemas sociais ligados ao abando-
no dos espaços públicos e à violência. Agregou, portanto,
status e, consequentemente, valor à mercadoria imobiliá-
ria, um bom apelo à cultura social aqui construída.

Segundo Maricato (2011, on-line), as décadas de 1980 e


1990 e o início dos anos 2000, orientados pelo pensamento
neoliberal, que detinha o poder de decisão no Brasil à época,
em associação às transformações capitalistas mundiais, im-
pactaram sensivelmente a estrutura das cidades brasileiras.

A desregulamentação do que já não era muito regula-


mentado, como o setor imobiliário, o desemprego, a
competitividade, a guerra fiscal, o abandono de polí-

.........................................................................................................
A legislação brasileira para o uso do solo 83

ticas sociais, como o transporte coletivo, as privatiza-


ções de serviços públicos, o planejamento estratégi-
co, o marketing urbano, dentre outros, se combinou
a uma tradição histórica de falta de controle sobre o
uso do solo e de segregação territorial e urbana.

A esse cenário somaram-se as tragédias causadas pelas


enchentes e desmoronamentos e o total descaso por parte
das municipalidades frente às populações que vivem em
condições precárias, próximas a córregos, encostas, áreas
de proteção aos mananciais.

Essa situação de crise levou a “soluções mágicas”, que de-


senvolveram a ideia de parcerias público-privadas para
a viabilização de intervenções urbanas. A intenção de
muitos municípios era a inclusão, na legislação, de exi-
gências de contrapartidas para a produção imobiliária, as-
sim como previsto na Lei de Parcelamento do Solo (Lei nº
6.766/79). E a permissão de pagamento dessas contrapar-
tidas em função da modificação de regras estabelecidas
possibilitou, mais uma vez, a interferência de interesses
econômicos em zonas específicas.

No ano de 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade, que re-


gulamentou e, desse modo, consolidou as inovações intro-
duzidas na Constituição de 1988. Entretanto, os condicio-
nantes preestabelecidos ao longo do período supracitado
permitem inferir que a manutenção do zoneamento, como
principal forma de ordenamento urbano, sem uma atualiza-
ção conceitual no que diz respeito à forma de pensar a in-
fraestrutura urbana por parte do poder público e em função
da dinâmica imobiliária, foi o propósito e o meio utilizados
para justificar as possibilidades de modificação de sua utili-

..........................................................................................................
84 O uso do solo

zação por parte do setor imobiliário, que continua a manter


sua influência sobre a forma de concepção da urbanidade.
As inovações, contidas nessa nova legislação, permitiram,
de um lado, a manutenção de um “regramento ordinário”,
por meio das leis de zoneamento, e, de outro, o reconheci-
mento legal de suas deficiências, mas propondo soluções
parciais e estrategicamente posicionadas, que vêm permi-
tindo a viabilização de sua aplicação.

.........................................................................................................
Os critérios de zoneamento 85

OS CRITÉRIOS DE ZONEAMENTO

O planejamento urbano, ao buscar a ordenação dos aglo-


merados urbanos, tem como objetivo maior resolver ou
evitar problemas inerentes às formas de convívio entre as
pessoas. Essa filosofia promoveu o desenvolvimento do
denominado “urbanismo técnico-setorial", que surgiu no
final do século XIX como resposta às péssimas condições
sanitárias dos aglomerados urbanos europeus.

Naquele momento, a densidade populacional das cidades


aumentava devido às transformações econômicas, sociais e
políticas, o que ocasionou uma crescente insalubridade das
vias públicas, resultado da inexistência de uma distribuição
de água potável e coleta de esgoto e lixo, implicando graves
problemas de saúde pública. O “urbanismo técnico-seto-
rial”, ou sanitarista, como foi chamado no Brasil, produziu
uma legislação voltada para a regulamentação de loteamen-
tos, arruamentos, gabarito de altura e distâncias entre edi-
ficações, assim como as condições para o uso e a ocupação
delas e do solo urbano (CAMPOS, F; MALTA, C., 1999).

A consequência natural de regulamentações dessa ordem


para o parcelamento, a ocupação e o uso que se dá ao
solo foi que ela instituiu, na verdade, uma modalidade de
planejamento. Ou, como aconteceu mais recentemente no
Brasil, elas tornaram-se legislação básica para o estabe-
lecimento de diretrizes na segunda etapa de um planeja-
mento urbano – a etapa de diagnóstico e prescrição, como
aqui já apresentado.

..........................................................................................................
86 O uso do solo

Essas leis definem as atividades que poderão ser exercidas


nas cidades, e sua importância está associada tanto aos
interesses comuns à comunidade quanto aos interesses
privados de indivíduos ou grupos. Em outras palavras, a
legislação deve ser elaborada para que os interesses pri-
vados de propriedade não causem prejuízos entre as par-
tes, ou entre a parte e a coletividade. Como exemplo, po-
de-se citar a divergência entre usos residenciais e alguns
usos comerciais, forçados à convivência por proximidade.
Como ficam os interesses de cada parte? Quem será fa-
vorecido na relação entre vantagens e desvantagens? Inú-
meros são os exemplos de litígios, mesmo na presença de
uma legislação: interações por vizinhança entre residên-
cias, bares, clubes, templos religiosos, comércio e serviços
em geral. Quem não conhece uma história de conflito?

A Lei federal nº 6.766/79, lei do parcelamento do solo,


é, atualmente, a base legal para que os municípios brasi-
leiros possam trabalhar uma ocupação adequada de seus
territórios. Leis complementares podem ser estabelecidas
pelos estados, Distrito Federal e municípios a partir dessa
regulamentação. Mas, em virtude de realidades urbanas
muito diferentes, consequência da grande extensão terri-
torial do país, vem sendo discutido um projeto de lei, o
de número 3057/2000, com a proposta de melhor regula-
mentar questões como as de proteção ambiental e exclu-
são socioespacial, dentre outras, aperfeiçoando, assim, a
lei de parcelamento do solo em vigor.

A partir das bases estabelecidas para a divisão do solo ur-


bano, os municípios devem definir, em legislação comple-
mentar, como ocorrerá a distribuição dos usos e as formas

.........................................................................................................
Os critérios de zoneamento 87

de ocupação no parcelamento realizado em acordo com


a Lei nº 6.766/79. Essas definições se dão de forma arti-
culada e resultam em diretrizes, que serão elencadas em
consonância com os objetivos propostos no plano diretor.

Em primeiro lugar, deve ser estabelecida a distribuição


dos usos. A esse procedimento é aplicada a denominação
de zoneamento urbano. Segundo a Associação Internacio-
nal de Administradores Municipais (USAID, 1964, p. 306),
o zoneamento “é a divisão de uma comunidade em zonas
para o fim de regular o uso da terra e dos edifícios, a al-
tura e o gabarito das construções, à proporção que estas
podem ocupar e à densidade da população”. Desse modo,
sua finalidade específica é a de delimitar geograficamente
áreas e a elas estabelecer uma função. A partir daí, são
descritas as regras de uso para as parcelas criadas, que
permitirão aos munícipes tirar de sua propriedade todo o
proveito e vantagens possíveis em virtude de sua posse.

Ao realizar uma revisão crítica do zoneamento, Mancuso


(1978) argumenta que esse instrumento de planejamen-
to produz a degradação do espaço urbano, devido à es-
pecialização formal e tipológica da cidade em partes, à
hierarquização dos tecidos urbanos, por meio de um cen-
tralismo acentuado em contraposição à dispersão das pe-
riferias, à segregação social, por meio da condução das
classes menos favorecidas para a periferia das cidades,
à transformação das partes ditas obsoletas da cidade em
guetos e à valorização fundiária.

Em adição, ao se estudar as distribuições de atividades


nas áreas urbanas ao longo do século XX, percebe-se as in-

..........................................................................................................
88 O uso do solo

tenções de distribuir atividades isoladamente por zonas,


o que reforça as críticas apresentadas por Mancuso. Esse
procedimento pode ser exemplificado pelos casos de ci-
dades planejadas, como, por exemplo, o de Brasília, que
possui setores exclusivos para habitações, hospedagem,
comércio etc. Embora a criação de zonas com apenas um
tipo de atividade permitida possa ser interessante em al-
guns casos, como isolando atividades que geram algum
tipo de poluição (sonora, visual etc.), uma certa mistu-
ra entre elas mostra-se também benéfica, evitando, por
exemplo, grandes deslocamentos entre áreas da cidade,
como ocorre em Brasília. Isso evidencia a necessidade de
“bom senso”, por meio de leituras técnicas e comunitárias
da cidade, melhorando a probabilidade de equilíbrio e har-
monia no processo de zoneamento.

Nessa linha de pensamento, destaca-se a caracterização,


feita por Silva (2007), de dez “zonas de uso”. São elas: a
de uso estritamente residencial; a de uso predominante-
mente residencial; a de uso misto; a de uso estritamente
industrial; a de uso predominantemente industrial; a de
uso comercial; a de uso de serviços; a de usos institucio-
nais para educação, saúde, esporte e lazer, cultura, assis-
tência social, culto, administração e serviços públicos; a
de usos especiais; e a de uso turístico. Ainda segundo ele,
a definição de zonas urbanizáveis, de expansão urbana e
de interesse urbanístico especial, além da definição e cata-
logação de combinações possíveis para os usos, só poderá
ser levada a termo a partir das realidades de cada cidade.
Pela razão apresentada por Silva (2007), em acordo com
as atividades preexistentes na cidade e o perfil que o pla-
nejamento urbano deseja imprimir a ela, deverão ser de-
finidos os parâmetros de uso de cada zona proposta. Ba-

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Os critérios de zoneamento 89

sicamente, a definição dos usos do solo depende de dois


princípios:

I. Do perfil que se pretende para cada zona.


II. Da distinção entre todas as atividades possíveis,
quais são incompatíveis e quais são complementares.

De forma simplificada, restringindo a tipologia das zonas


em residenciais, comerciais e industriais, pode-se dizer
que, nas primeiras, o zoneamento relacionará os usos
permitidos, excluindo os demais. Nas de uso comercial
e industrial, serão relacionados os usos permitidos para
os casos em que as zonas tenham caráter mais restrito
em suas atividades. Nas que, ao contrário, possuírem me-
nor restrição para as atividades a serem desenvolvidas,
os usos proibidos deverão ser relacionados. E, conforme
cada realidade específica, os usos serão mesclados me-
diante a gradação entre os usos proibidos e os permitidos,
com a inclusão do termo permissível. Esse termo associa-
-se a atividades que, a princípio, são proibidas, mas que,
mediante análise técnica, poderão ser permitidas por não
serem consideradas socialmente danosas para a popula-
ção da área em questão.

Para melhor compreensão, a tipologia básica do zonea-


mento urbano pode ser caracterizada mediante o seguinte
quadro:

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90 O uso do solo

PERCENTUAL
ZONA USUAL DA ÁREA CARACTERIZAÇÃO
DA CIDADE (%)
Tipos usuais: zonas unifami-
liares e zonas multifamiliares.
Para essas zonas é interessante
a apresentação de topografia
discretamente acidentada,
Residencial 40 com proximidade a lagos, rios
e parques. Não devem estar
muito afastadas dos locais
de trabalho, de compras, de
recreação, culturais e educa-
cionais. (USAID, 1964)
Tipos usuais: zonas centrais
e zonas de bairro. Para as
zonas centrais, as ruas e os
passeios devem ser largos, a
rede de transporte público
deve ser ampla, e os sistemas
de utilidade pública devem
Comercial 2a5 possuir grande capacidade.
Já as zonas de bairro devem
ser de pequeno porte e ter um
controle especial para evitar
efeitos danosos para a comu-
nidade em que se inserem.
(USAID, 1964)
Deve considerar o tipo de
indústria a ser instalada. As
indústrias maiores e mais
pesadas, assim como as de
natureza incômoda, devem
estar localizadas na periferia,
a sotavento2 da cidade, de
Industrial - modo que os odores, fumaças
e vapores sejam soprados
para longe, não alcançando
a área urbana. As indústrias
leves podem ser localizadas
próximas aos centros urbanos
por serem de menor porte
e não incômodas para suas
vizinhanças. (USAID, 1964)

Esses parâmetros representam as características básicas


para o entendimento das classificações. Eles podem variar
de acordo com as definições e premissas de pesquisado-
res. O entendimento do que significa comércio de pequeno
porte, indústria leve e pesada e poluidora ou não incômo-
da pode divergir de pesquisa para pesquisa. Entretanto,
cada sociedade tem a liberdade de definir, redefinir ou
ampliar as especificações desses usos.2
2
Bordo contrário àquele de onde sopra o vento.

.........................................................................................................
Os critérios de zoneamento 91

Como foi salientado anteriormente, muitos mecanismos


de flexibilização do zoneamento foram tentados para que
o mercado imobiliário mantivesse ou aumentasse suas
operações. Em paralelo, muitos municípios testavam no-
vas estratégias de reconhecimento da produção de “mora-
dias autoconstruídas” pela população que não tinha aces-
so ao mercado imobiliário formal. Uma dessas tentativas
foram as Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS, nos
anos 1980. Essa experiência foi reconhecida e incorporada
no Estatuto das Cidades, rebatizada para Zonas Especiais
de Interesse Social – ZEIS. Mediante o estabelecimento de
normas específicas, essas zonas foram operacionalizadas
pela demarcação de perímetros a serem ocupados, prio-
ritariamente, por habitações para a população de baixa
renda. Seu objetivo é a regularização fundiária de assenta-
mentos de origem informal. A estratégia para essas zonas
materializa-se por meio de um regime urbanístico espe-
cial, que dispensa as regras vigentes nas leis de uso e ocu-
pação do solo. Segundo Mourad (2000), esse instrumento
significa “a criação, via zoneamento, de uma reserva de
terras para os mais pobres da cidade, da mesma forma
que o zoneamento anterior havia criado reservas de ter-
ras para os usos industriais”. Mas, ainda segundo Mourad,
é um instrumento inovador, porque, de um lado, rompe
com a dinâmica segregacionista e, do outro, procura im-
pedir que os parcelamentos possam ser adquiridos por
setores do mercado imobiliário interessados em edificar
para classes de renda superior.

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92 O uso do solo

ÍNDICES URBANÍSTICOS

Como se afirmou anteriormente, em sequência à distri-


buição dos usos, são definidas as formas de ocupação no
parcelamento realizado em acordo com a Lei nº 6.766/79.
As definições são construídas para cada zona, de forma
articulada aos usos, sendo utilizadas, também, como dire-
trizes do plano diretor municipal.

A ocupação do solo está diretamente associada aos inter-


valos mínimos e máximos de parâmetros relativos aos es-
paços e às atividades neles desenvolvidas. Essa legislação
pode incentivar ou inibir determinadas características,
para que haja o ajuste nos intervalos pretendidos para os
parâmetros definidos.

Os índices urbanísticos definem os parâmetros. Eles tam-


bém permitem avaliar as metas programadas no planeja-
mento urbano. Dentre os vários índices amplamente utili-
zados, destacam-se os seguintes:

i. Dimensões do plano horizontal do lote:


Definido pela apresentação das medidas de área
do lote e sua testada3. A definição desse parâmetro
pode apresentar valores distintos para cada zona da
cidade, sendo que a área mínima do lote está regula-
mentada, pela Lei nº 6.766/79, em 125 m2 e, quando
o Projeto de Lei nº 3.057/2000 for aprovado, passa-
3
Testada nada mais é do que a denominação do comprimento da frente
do lote.

.........................................................................................................
Índices urbanísticos 93

rá a ser de 75 m2. Desse modo, a título de exemplo,


pode-se ter um plano horizontal de 600 x 20, que
corresponderá a uma área de 600 m² por uma testada
de 20 m.

ii. Recuos:
Também denominados afastamentos, são definidos
pelas distâncias mínimas da edificação, que devem
ser mantidas na frente, nos fundos e nas laterais
dos lotes em relação aos seus limites. Os recuos
têm como objetivo garantir requisitos mínimos de
salubridade, como ventilação e insolação. No caso
do afastamento frontal, utilizado nas zonas residen-
ciais, a definição também é feita para a amenização
da paisagem urbana, por meio do uso de jardins. Já
nas zonas comerciais, esse requisito é normalmente
dispensado, uma vez que o objetivo das vitrines de
exposição é a atração de clientes que estão na via pú-
blica. Os recuos são expressos em metros e podem
ter relação com a altura da construção.

iii. Cota mínima de terreno:


Definida como a fração mínima de terreno para a
edificação de uma residência unifamiliar, composta
de sala, um quarto, cozinha e banheiro. Em conjun-
to com o índice de aproveitamento, permite limitar
o número de residências que podem ser construídas
em cada lote, o que também estabelece uma relação
com o índice que define a densidade habitacional.

..........................................................................................................
94 O uso do solo

iv. Dimensão vertical:


Define a altura máxima da construção. Pode ser dada
em termos de números de pavimentos, no caso de
zonas residenciais, comerciais ou serviços vertica-
lizados, e em unidades métricas, no caso de zonas
industriais ou de comércios de grandes superfícies,
como shopping centers ou supermercados.

v. Índice de aproveitamento:
É definido pelo quociente entre a área máxima cons-
truída e a área total do lote. Para uma melhor com-
preensão da definição, suponha-se uma zona que
tenha um índice de aproveitamento igual a dois. De
acordo com a definição dada, a área construída po-
derá ter duas vezes a área total do lote.

vi. Taxa de ocupação:


Com a finalidade de garantir uma reserva de área li-
vre para cada lote, esse índice é definido como o per-
centual construtivo de um terreno, ou seja, o quanto
desse terreno pode ser utilizado pela edificação. Seu
valor é expresso em termos de percentual.

vii. Densidade demográfica:


Essa definição tem como objetivo caracterizar a re-
lação entre a população e uma determinada área em
que ela desenvolve alguma atividade. Normalmen-
te, esse índice é expresso em número de habitantes
por hectare (hab./ha), levando-se em conta que um
hectare vale 10.000 m². Algumas variações nessa
definição permitem uma melhor avaliação técnica
e financeira da distribuição de terras e da infraes-
trutura de serviços públicos postas à disposição da

.........................................................................................................
Índices urbanísticos 95

sociedade, ou que necessitam ser postas à disposi-


ção dela nas diferentes zonas urbanas. Dentre elas,
destacam-se:

• Densidade média urbana: definida como a rela-


ção entre a população que ocupa a área compreen-
dida no perímetro urbano e a área desse perímetro.

• Densidade residencial ou habitacional: definida


como a relação entre uma população e a área do
local em que se situa sua moradia.

Muitos debates vêm sendo travados com respeito aos índi-


ces de medição das densidades demográficas. Por exemplo,
baixas densidades podem ser consideradas como reduto-
ras da diversidade de usos das áreas urbanas, tornando-as
passíveis de problemas de criminalidade. Por outro lado,
altas densidades urbanas podem permitir um desenvolvi-
mento sustentável, uma vez que uma grande concentração
populacional maximiza a infraestrutura instalada, com a
respectiva redução dos custos tanto para sua implantação
quanto para sua expansão para as periferias. Além disso,
podem permitir uma diminuição da necessidade de trans-
portes de longa distância entre diferentes zonas, favore-
cendo uma melhor mobilidade urbana mediante a adoção
de práticas como o pedestrianismo e a redução da carga
imposta ao sistema viário e ao transporte coletivo. Entre-
tanto, um consenso será algo difícil de ser conseguido,
uma vez que as realidades dos municípios brasileiros são,
nesses casos, muito diversas.

Além desses, outros índices podem ser também utilizados


ou definidos. Entretanto, cabem algumas considerações

..........................................................................................................
96 O uso do solo

sobre uma possível estagnação conceitual inerente às leis


de uso e ocupação do solo urbano.

A trajetória de utilização do zoneamento para controle


da produção privada vem mantendo suas características
de atendimento dos interesses de determinados grupos
sociais, por meio da viabilização de atendimento a excep-
cionalidades. É possível inferir uma correlação entre os
parâmetros urbanísticos e a lógica do mercado imobiliá-
rio. E, nesse sentido, muitos autores e formuladores de
políticas públicas analisaram e ponderaram sobre essas
características, o que se refletiu nos avanços conquistados
com a regulamentação do Estatuto das Cidades, como foi
apresentado no decorrer desta narrativa.

Mas a questão da estagnação conceitual dessas leis não se


concentra na utilização desses instrumentos como forma
de ordenação urbana. Ela está na utilização dos parâme-
tros estabelecidos, tais como se descreveu anteriormente
em suas definições, independentemente da avaliação das
suas necessidades no município sob análise.

O conjunto de leis constitui-se, então, em um emaranhado


de regras, redigidas por meio de uma linguagem de difícil
entendimento por pessoas sem formação técnica, incidin-
do sobre um ou outro aspecto relacionado à produção do
tecido urbano. Essas regras não vêm buscando a apresen-
tação de resultados que representem interações sociocul-
turais com as populações envolvidas, fazendo com que os
resultados ligados à “qualidade espacial” para a coletivi-
dade urbana não logrem resultados satisfatórios na visão
do senso comum.

.........................................................................................................
Índices urbanísticos 97

Entende-se, portanto, que a estagnação conceitual se re-


fere mais ao exercício de aplicação da legislação para o
gerenciamento do que é ou não permitido fazer nas zonas
definidas, controlando, assim, a produção da cidade. To-
davia, o objetivo dessa legislação deveria ser o de promo-
ver a cidade desejada, que cumpre sua função social, por
meio de sua “qualidade urbanística”, com respeito ao es-
paço construído, em vez de perpetuar uma lógica de evitar
a cidade “indesejada”, controlando o que, supostamente,
seria nocivo a ela.

Segundo Feldman (2001), a legislação urbanística é cumu-


lativa. Isso significa a necessidade de utilização de antigos
dispositivos em adição a inovações, introduzidas em de-
terminados períodos. A incorporação dessas inovações se
dá a partir de disputas sociais, políticas e econômicas, que
introduzem ou excluem pautas, mecanismos e dispositi-
vos na legislação, mas, por outro lado, mantendo o modo
em sua operacionalização.

..........................................................................................................
98 O uso do solo

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100 O uso do solo

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1964.

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 101

CAPÍTULO 3
INSTRUMENTOS DA POLÍTICA
URBANA

Como já foi dito, a Constituição de 1988 representa o mar-


co inicial na promoção de uma política urbana, que obje-
tiva tanto o ordenamento quanto o desenvolvimento das
funções sociais das cidades brasileiras. Por estabelecer
que propriedade e função social da propriedade são prin-
cípios fundamentais, a Carta Magna os inclui junto aos
direitos e deveres individuais e coletivos, o que resultou
em sua consideração como Constituição Cidadã.

..........................................................................................................
102 Instrumentos da política urbana

A LEGISLAÇÃO FUNDAMENTADORA DA
POLÍTICA URBANA BRASILEIRA

Conforme observa o constitucionalista Alexandre de Mo-


raes (2004, p. 266), a Constituição

[...] Adotou a moderna concepção de direito de pro-


priedade, pois, ao mesmo tempo em que o consa-
grou como direito fundamental, deixou de caracte-
rizá-lo como incondicional e absoluto. A referência
constitucional à função social como elemento estru-
tural da definição do direito à propriedade privada
e da limitação legal de seu conteúdo demonstra a
substituição de uma concepção abstrata de âmbito
meramente subjetivo de livre domínio e disposição
da propriedade por uma concepção social de pro-
priedade privada, reforçada pela existência de um
conjunto de obrigações para com os interesses da
coletividade, visando também à finalidade ou uti-
lidade social que cada categoria de bens objeto de
domínio deve cumprir.

Por intermédio dessa visão, o direito à propriedade deixa


de ser individualista para ser tratado com as restrições
impostas pela função social da propriedade, ou seja, mes-
mo que ela seja um direito fundamental, o direito indivi-
dual não será preponderante diante do direito coletivo.

Outro ponto que merece destaque é o estabelecimento de


competência privativa aos municípios com relação ao di-
reito urbanístico, o que caracteriza a priorização dos inte-
resses locais nessa matéria. Segundo José Afonso da Silva
(2006, p. 65),

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 103

A competência municipal não é meramente suple-


mentar de normas gerais federais ou de normas
estaduais [...]. Trata-se de competência própria que
vem do texto constitucional. [...] Por isso, as compe-
tências da União e dos Estados esbarram na com-
petência própria que a Constituição reservou aos
Municípios, embora estes tenham, por outro lado,
que conformar sua atuação urbanística aos ditames,
diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento ur-
bano estabelecidos pela União e às regras genéricas
de coordenação expedidas pelo Estado.

Em sequência a esse novo ordenamento, estabelecido pela


Carta Magna de 1988, tem-se na Lei nº 9.785/99 uma alte-
ração no modelo de parcelamento do solo urbano. Rogério
Gesta Leal (2003, p. 207-208) destaca:

Os objetivos específicos da política urbana delinea-


dos [...] configuram a obrigação do Estado – funda-
mentalmente do Município – de promover a defe-
sa dos interesses de sua comunidade em toda sua
extensão [...]. Em outras palavras, objetivamente, as
funções sociais da cidade compreendem – a partir
do texto normativo – o acesso de todos à moradia,
aos serviços urbanos, ao transporte, ao saneamen-
to, à saúde, etc., sendo da maior relevância que tam-
bém as normas ambientais sejam respeitadas.

A Lei nº 9.785/99 representa, então, uma modernização


da Lei nº 6.766/79. Com ela, passa-se a considerar de in-
teresse público e social os parcelamentos populares que
estejam vinculados a programas habitacionais, facilitando
a regularização desse tipo de assentamento.

Constituída por quatro artigos, a Lei nº 9.785/99 altera,


parcialmente, o Decreto-Lei nº 3.365/41, que dispõe sobre
a desapropriação por utilidade pública, a Lei nº 6.015/73,
que dispõe sobre os registros públicos, e a Lei nº 6.766/79,
que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano.

..........................................................................................................
104 Instrumentos da política urbana

Pode-se dizer que são dois os objetivos da Lei nº 9.785/99.


O primeiro refere-se à permissão, concedida ao poder pú-
blico, para a realização, e a sua consequente legalização, de
desapropriações judiciais com fins habitacionais. O segundo
objetivo é aumentar a autonomia dos municípios para tra-
tar as questões pertinentes ao parcelamento do solo urbano,
englobando tanto a formulação dos requisitos urbanísticos
quanto as práticas relativas aos procedimentos administra-
tivos de aprovação, de regularização e de registro dos parce-
lamentos, inclusive no campo das ações de interesse social.

ALTERAÇÕES, RELATIVAS À POSSE DE ÁREAS


DESAPROPRIADAS, INTRODUZIDAS PELA LEI Nº 9785/99

I. No Decreto-Lei nº 3.365/41, que trata da desapro-


priação por utilidade pública:

O inciso I, do artigo 5º, passa a admitir a desapro-


priação de glebas tanto para loteamentos quanto
para desmembramentos, caracterizando como de
utilidade pública, para fins de desapropriação, o
parcelamento, com ou sem edificação, “para a sua
melhor utilização, econômica, higiênica ou estética;
a construção ou ampliação de distritos industriais”.

Acrescentou o § 3º, que veda qualquer outra utiliza-


ção do imóvel desapropriado para fins de parcela-
mento popular, impedindo, então, a retrocessão do
parcelamento.

II. Na Lei nº 6.015/73, que trata dos registros públicos:

Introduziu a alínea 36, no inciso I, do artigo 167.


Nele, quando a desapropriação objetivar a execução
de parcelamento popular destinado às classes de

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 105

menor renda, os cartórios de registro de imóveis de-


verão proceder aos registros da imissão provisória
na posse, da cessão e da promessa de cessão.

Essa alteração promoveu a adequação entre a Lei nº


6.015/73 e o Decreto-Lei nº 3.365/41.

III. Na Lei nº 6.766/79, que trata do parcelamento


do solo:

Também com a finalidade de compatibilização com


as legislações sobre desapropriação por utilidade pú-
blica e sobre os registros públicos foram introduzi-
das as seguintes modificações no texto original da lei:

a. Introduziu os §§ 4º e 5º, no artigo 18, para dispen-


sar a apresentação de título de propriedade quando
o parcelamento popular dependesse de conclusão de
processo judicial expropriatório, substituindo, nesses
casos, o título de propriedade por peças do processo
expropriatório, tais como a decisão que concedeu a
imissão provisória na posse, o decreto de desapro-
priação, o comprovante da sua publicação na impren-
sa oficial e, quando formulado por entidades delega-
das, da lei de criação e de seus atos constitutivos.

b. Modificou o artigo 26, que, acrescido de mais qua-


tro parágrafos, permite disciplinar a averbação da
posse em nome do poder público expropriante e a
titulação da cessão da posse aos beneficiários finais
dos parcelamentos executados. Mediante o valor da
indenização, fixado por sentença judicial, o instru-
mento da cessão da posse, averbado no registro de
imóveis, converte-se em compromisso de compra e
venda ou em compra e venda, conforme as obriga-
ções estiverem pendentes de serem cumpridas ou

..........................................................................................................
106 Instrumentos da política urbana

estiverem cumpridas. O último dos quatro parágra-


fos estabelece que “os compromissos de compra e
venda, as cessões e as promessas de cessão valerão
como título para o registro da propriedade do lote
adquirido, quando acompanhados da respectiva
prova de quitação" (BRASIL, Lei nº 6.766, de 19 de
dezembro de 1979, art. 26, § 6º), o que dispensa a
lavratura de escritura definitiva.

c. Introduziu a ressalva no inciso II, do artigo 50,


para garantir plena eficácia às alterações introduzi-
das no Decreto-Lei nº 3.365/41 e na Lei nº 6.015/73.
Uma vez que foi concebida a imissão na posse de
áreas expropriadas para a implantação de parcela-
mentos sociais como título provisório, houve a ne-
cessidade de inclusão da posse na desapropriação
como título legítimo.

ALTERAÇÕES NA LEI Nº 6.766/79, RELATIVAS À MAIOR


AUTONOMIA PARA OS MUNICÍPIOS NA QUESTÃO DO
PARCELAMENTO DO SOLO URBANO, INTRODUZIDAS
PELA LEI Nº 9.785/99

a. Foram acrescentados ao artigo 2º os §§ 4º ao 6º,


com definições que conceituam e diferenciam situ-
ações não descritas anteriormente, tais como os be-
nefícios mínimos de infraestrutura básica para que
o parcelamento possa ser considerado como lote. As
definições introduzidas também permitem a padro-
nização de conceitos, diferenciando o lote do parce-
lamento social e o de parcelamento comum.

Obs.: O § 5º teve sua redação alterada pelo artigo


55, da Lei nº 11.445/07, do qual foi retirada a exi-
gência de pavimentação nas vias de circulação.

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 107

b. No artigo 3º foi estabelecido que os municípios


podem criar, por legislação, zonas de urbanização
específica, dentro ou fora dos limites urbanos ou
de expansão urbana. Essa legislação deverá, então,
atender a situações de recuperação de centros de-
teriorados, de urbanização de assentamentos irre-
gulares, de urbanização de áreas degradadas, den-
tre outras, como as situações em que determinado
projeto de urbanização não se harmonize com os
requisitos urbanísticos do seu entorno. Além disso,
como nem todos os municípios dispõem de planos
diretores, o texto permite aos municípios o uso da
lei em substituição ao plano diretor.

c. O artigo 4º teve sua redação modificada no inciso


I, no qual é deixado claro que caberá aos municípios
a determinação dos indicadores urbanos mínimos e
máximos, a definição de seus índices urbanísticos,
tanto no que se refere às dimensões mínimas dos
lotes, ressalvado quando o loteamento se destinar
à urbanização específica ou edificação de conjuntos
habitacionais de interesse social, como ao disposto
no inciso II do mesmo artigo.

Obs.: A Lei nº 10.932/04, em seus artigos 2º e 3º,


altera a redação do inciso III e introduz o § 3º, trans-
ferindo ao âmbito do licenciamento ambiental a exi-
gência de reserva de faixa não edificável.

d. A alteração do artigo 7º, pela inclusão de um pa-


rágrafo único, ampliou o prazo máximo de vigência
das diretrizes de adequação dos cronogramas de
obras dos parcelamentos. Ou seja, acrescentou-se

..........................................................................................................
108 Instrumentos da política urbana

mais um instrumento à disposição dos municípios


com a finalidade de estimular a produção de novos
parcelamentos, sem a exigência de investimentos de
curto prazo e permitindo a comercialização orienta-
da e programada de lotes.

e. A alteração realizada no artigo 8º tem como fina-


lidade produzir a agilização dos procedimentos de
exame e aprovação dos processos de parcelamento,
dispensando a fase de fixação de diretrizes para to-
dos os municípios.

f. No artigo 9º, altera-se seu caput e acrescenta-se


o § 3º, para reafirmar o prazo do cronograma de
execução das obras em quatro anos e para suprimir
a exigibilidade de apresentação, à prefeitura, em
conformidade com a sistemática de registro em vi-
gor, do título de propriedade. Nesse caso, deve ser
apresentada a matrícula da gleba, o que simplifica o
exame de propriedade pelas prefeituras. Caso sejam
constatadas, a qualquer tempo, alterações que deve-
riam ser conhecidas no momento de realização da
matrícula, o que é suscetível de ocorrer até o regis-
tro imobiliário do parcelamento, deverão ser toma-
das como insubsistentes tanto as diretrizes expedi-
das quanto as aprovações efetivadas pela prefeitura.

g. No artigo 10 é reafirmada a alternativa da apre-


sentação da matrícula ao título de propriedade, e in-
troduzida a ressalva ao disposto no § 4º, do artigo
18, que diz respeito ao mesmo procedimento para
as glebas desapropriadas para fins habitacionais.

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 109

h. O caput do artigo 11 foi alterado para também


estabelecer que, na ausência de disposições urba-
nísticas vigentes para as regiões em que se situem
os parcelamentos, serão aplicadas a eles as dispo-
sições urbanísticas definidas para os loteamentos.

i. No artigo 12, foi incluído um parágrafo único, es-


tabelecendo a obrigatoriedade de cumprimento do
projeto de parcelamento, no prazo previsto pelo
cronograma de execução, que foi aprovado pela
prefeitura municipal. Em caso de descumprimen-
to dessa obrigatoriedade, a pena será a de caduci-
dade. Esse procedimento foi adotado para que a
municipalidade não se subordinasse a um projeto
particular de parcelamento não inteiramente con-
cretizado, unicamente porque ele foi registrado
no cartório de registro de imóveis. Dessa forma,
se o registro do parcelamento equivale ao registro
de um título, a desconstituição do título em que
se fundou o registro será sempre o bastante para
invalidá-lo, admitindo à prefeitura outras opções
além do que a de apenas buscar a conclusão das
obras inacabadas pelo incorporador. Ou seja, apli-
cada essa sanção, se assim entender a prefeitura,
nova aprovação poderá viabilizar outro projeto na
parte inacabada do parcelamento.

Obs.: A Lei nº 12.608/12 renomeou o parágrafo


único como § 1º e acrescentou dois ao artigo 12,
estabelecendo vinculação do que trata o caput do
artigo ao atendimento dos requisitos constantes da
carta geotécnica de aptidão à urbanização, nos mu-
nicípios com áreas suscetíveis à ocorrência de des-

..........................................................................................................
110 Instrumentos da política urbana

lizamentos de grande impacto, inundações bruscas


ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.
Vedou, também, a aprovação de projetos de lotea-
mentos e desmembramentos em áreas de risco defi-
nidas como não edificáveis, nos planos diretores ou
em legislação deles derivada.

j. A alteração do artigo 13 estabelece que as propos-


tas de parcelamentos sejam aprovadas pelas prefei-
turas, exceto nas condições discriminadas nos inci-
sos I, II e III, quando caberá aos estados normalizar
e fiscalizar as aprovações que serão realizadas pelos
municípios, ou seja, quando os loteamentos e des-
membramentos em áreas de interesse especial, em
áreas limítrofes do município, e quando ele abranger
uma área superior a 1.000.000 m².

k. O texto do artigo 16 foi substituído para que se


estabelecesse o cumprimento de prazos, a serem fi-
xados pela municipalidade, para exame de um pro-
jeto de parcelamento, com as consequentes sanções
para o seu descumprimento.

l. Nova redação foi dada aos incisos I e V do arti-


go 18. No primeiro, foi introduzida a certidão da
matrícula como alternativa à apresentação do títu-
lo de propriedade para o registro do parcelamento.
No inciso V, é compatibilizado o prazo de execução
de duração do cronograma do parcelamento, fixa-
do em quatro anos, como em outros artigos da lei.
A introdução de mais dois parágrafos, o § 4º e o
§ 5º, visou à compatibilização da apresentação de
documentos quando dos parcelamentos populares,
em acordo com o § 4º do artigo 18, que, como já

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 111

foi visto, trata da condição de dispensa do título de


propriedade em parcelamentos populares.

m. Ao ser transferida para os municípios uma maior


autonomia para a regularização dos parcelamentos,
eles deverão, em contrapartida, definir seus índices
urbanísticos, tanto no que se refere às dimensões
mínimas dos lotes quanto às reservas e destinações
públicas para as suas diversas regiões, além das dis-
posições contidas nos artigos 3º e 4º da lei, que tra-
tam dos requisitos mínimos para o parcelamento do
solo urbano. Disso decorre o acréscimo, no artigo
40, do § 5º.

n. O artigo 43, que trata da execução de um lotea-


mento não aprovado, necessitava de especificação
de sanção para a infração, o que foi realizado com o
acréscimo do parágrafo único.

o. A inclusão do artigo 53-A e seu parágrafo único


objetivou o reconhecimento de que as ações públi-
cas nos campos dos loteamentos e dos desmembra-
mentos são de interesse público e que não sejam
confundidas com as ações de agentes particulares.

Ao mesmo tempo em que essas modernizações eram intro-


duzidas na legislação urbanística, processos de negocia-
ção entre o Fórum Nacional de Reforma Urbana, institui-
ções de classe, governos, setor imobiliário e de construção
civil ocorreram ao longo dos anos 1990, que culminaram
com a aprovação do projeto de Lei federal nº 10.257, em
10 de julho de 2001, que ficou conhecido como Estatuto
das Cidades.

..........................................................................................................
112 Instrumentos da política urbana

Essa lei representa um marco para o direito urbanístico


dentro da nova ordem constitucional vigente. As diretri-
zes nele estabelecidas apresentam uma série de mecanis-
mos com a finalidade de ordenar o desenvolvimento das
funções sociais da propriedade urbana e das cidades, con-
forme previsto na Constituição.

O Estatuto das Cidades estabelece objetivos, finalidade


e princípios, que devem ser adotados pelos municípios,
para que se possa trabalhar uma reforma urbana. Ficam, a
partir da definição de diretrizes, delineados mecanismos
ou instrumentos que permitirão a execução de uma polí-
tica urbana.

DIRETRIZES PARA EXECUÇÃO DE POLÍTICA URBANA

Dentre todas as diretrizes gerais, previstas no artigo 2º do


Estatuto da Cidade, destacam-se as seguintes:

a. Garantia do direito a cidades sustentáveis, o que


pode ser entendido como o direito à terra urbana,
à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestru-
tura urbana, ao transporte e serviços públicos, ao
trabalho e ao lazer, para as atuais e para as futuras
gerações.

b. Gestão democrática, que deve ser realizada me-


diante participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunida-
de, compreendendo a formulação, a execução e o
acompanhamento de planos, programas e projetos
de desenvolvimento urbano.

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 113

c. Ordenação e controle do uso do solo, com o ob-


jetivo de evitar que haja utilização inadequada dos
imóveis urbanos; o parcelamento do solo, a edifica-
ção ou o uso excessivo ou inadequado da infraes-
trutura urbana; a retenção especulativa de imóvel
urbano, que resulte em sua subutilização ou não
utilização; e a deterioração das áreas urbanizadas.

d. Justa distribuição dos benefícios e ônus decor-


rentes do processo de urbanização e a recuperação
dos investimentos do poder público como resposta
da valorização de imóveis urbanos.

e. Regularização fundiária e urbanização de áreas


ocupadas por população de baixa renda mediante
o estabelecimento de normas especiais de urbani-
zação, uso e ocupação do solo e edificação, consi-
deradas a situação socioeconômica da população e
também as normas ambientais.

Os limites então estabelecidos não significam, de manei-


ra alguma, prejuízo para a autonomia de qualquer muni-
cípio da federação, porque as normas foram construídas
de forma genérica. Fica, por essa razão, bem determinado
que eles devem aplicar as diretrizes gerais, de acordo com
as suas realidades locais. Isso implica a constituição de
uma ordem legal urbana própria e específica, tendo como
instrumentos fundamentais a lei orgânica municipal e o
plano diretor.

O controle das finanças públicas, descrito na alínea f, inci-


so III, do artigo 4º, como gestão orçamentária participati-
va, fundamenta-se nos princípios constitucionais da parti-

..........................................................................................................
114 Instrumentos da política urbana

cipação popular e da democracia direta, preconizados no


parágrafo único do artigo 1º da Constituição. E, para que
o cidadão exerça o seu direito de fiscalização da execução
dos orçamentos públicos, é condição necessária que ele
participe também da elaboração e execução dos mesmos,
cabendo ao poder público assegurar essa participação,
como disposto no § 3º, do artigo 4º do Estatuto. Já o seu
artigo 44 estabelece que a gestão orçamentária participa-
tiva “incluirá a realização de debates, audiências e con-
sultas públicas sobre as propostas do plano plurianual,
da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual”,
como condição obrigatória para que se dê a aprovação do
orçamento municipal pela sua câmara legislativa. E o arti-
go 43 dispõe que os instrumentos a serem utilizados para
garantir esse tipo de gestão serão os órgãos colegiados de
política urbana; os debates, audiências e consultas públi-
cas; as conferências sobre assuntos de interesse urbano; a
iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas
e projetos de desenvolvimento urbano; o referendo popu-
lar e os plebiscitos.

Portanto, as diretrizes gerais da política urbana, defini-


das na Lei nº 10.257/01, são, como já se disse, normas
gerais de direito urbanístico, ou seja, balizam e induzem
a aplicação dos instrumentos de política urbana nela re-
gulamentados. Em consequência, como considera Nelson
Saule Júnior (2001, p. 16):

O Poder Público somente estará respeitando o Es-


tatuto da Cidade, quando os instrumentos previs-
tos forem aplicados com a finalidade de atender às
diretrizes gerais previstas na lei. A aplicação pelos
Municípios do Plano Diretor, da operação urbana
consorciada, do direito de preempção, da outorga
onerosa do direito de construir, tem que atender às
diretrizes como a de combater a especulação imo-

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 115

biliária, de garantir a gestão democrática da cidade,


de implementar o direito às cidades sustentáveis,
de promover a regularização da urbanização e re-
gularização fundiária das áreas urbanas ocupadas
pela população de baixa renda. A possibilidade do
uso desses instrumentos pelos Municípios contra-
riando as diretrizes gerais da política urbana pode-
rá ser questionada, até por via judicial [...].

E, “com base no próprio Estatuto da Cidade, esta prática


poderá ser considerada como uma lesão à ordem urbanís-
tica nos termos do artigo 53”.

Obs.: O artigo 53, na verdade, altera o artigo 1º, da Lei nº


7.347/85, que é a lei de ação civil pública de responsa-
bilidade por danos causados ao meio ambiente e outros
interesses coletivos. Nele, foi incluída a possibilidade de
acionar na Justiça os responsáveis por danos morais e pa-
trimoniais à ordem urbanística.

INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA

Segundo o §4º do artigo 182 da Constituição,

É facultado ao Poder Público municipal, mediante


lei específica para área incluída no Plano Diretor,
exigir nos termos da lei federal, do proprietário do
solo urbano não edificado, subutilizado ou não uti-
lizado, que promova seu adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de: parcelamento ou edi-
ficação compulsórios; imposto sobre a propriedade
predial e territorial progressivo no tempo; desapro-
priação com pagamento mediante títulos da dívida
pública, de emissão previamente aprovada pelo Se-
nado Federal, com prazo de resgate de até dez anos,
em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegura-
dos o valor real da indenização e os juros legais.

..........................................................................................................
116 Instrumentos da política urbana

Ou seja, essas penalidades, na verdade, constituem-se


como instrumentos, colocados à disposição do poder
público municipal, permitindo que ele possa promover,
junto aos proprietários de imóveis urbanos, um compor-
tamento direcionado a fazer com que suas propriedades
cumpram uma função social. Sua aplicação está condicio-
nada ao preenchimento de dois requisitos básicos. O pri-
meiro é ter sido aprovado um plano urbanístico para o
município, dispondo sobre as exigências concretas para a
propriedade urbana atender sua função social, bem como
sobre o procedimento e o prazo para o cumprimento das
exigências. O segundo requisito é o de que a propriedade
urbana em questão deva pertencer à área definida como
urbana no plano diretor.

A Lei nº 10.257/01 regulamenta a utilização desses instru-


mentos, permitindo sua aplicação em situações nas quais
a propriedade urbana não atenda à sua função social, ou
seja, a de não estar edificada, a de estar subutilizada, ou,
ainda, a de não estar sendo utilizada. As demais situações
possíveis e que impliquem em desrespeito ao princípio
da função social da propriedade, como o uso indevido ou
nocivo da propriedade urbana, poderão ser inibidas por
outros instrumentos, tais como as multas, a suspensão de
licença urbanística, a sua interdição ou, de forma mais ex-
trema, a sua demolição.

São instrumentos estabelecidos no Estatuto das Cidades:

a. Parcelamento, edificação ou utilização compul-


sórios (arts. 5º, 6º e 42):

i. Parcelamento ou edificação compulsória:


Para que a municipalidade possa aplicar o parce-

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 117

lamento, edificação ou utilização compulsórios,


é condição fundamental que o plano urbanístico
local tenha especificado quais são as formas de
uso, de ocupação e quais atividades da área ur-
bana, delimitada no plano diretor, são permitidas
para que seja possível atender aos objetivos esta-
belecidos na política urbana.

O parcelamento ou edificação compulsórios são


instrumentos a serem utilizados como forma de
obrigar os proprietários de imóveis urbanos a uti-
lizar socialmente seus imóveis, evitando a espe-
culação imobiliária e provocando, por consequên-
cia, benefícios à coletividade.

ii. Subutilização e utilização compulsória:


O Estatuto da Cidade estabelece um critério geral
para identificar se uma propriedade urbana se en-
quadra na categoria de propriedade subutilizada.
O § 1º do artigo 5º define que o imóvel será con-
siderado subutilizado no caso em que seu apro-
veitamento seja inferior ao mínimo estabelecido
no plano diretor. Nesses casos, será suficiente
que o poder público exija do proprietário a utili-
zação da propriedade no potencial mínimo de uso
fixado no plano, como, por exemplo, para habita-
ção social, centros culturais, para implantação de
equipamentos públicos, de centros comunitários,
atividades econômicas promovidas por organiza-
ções ou cooperativas populares, sem que haja a
necessidade da realização de algum tipo de parce-
lamento ou edificação na propriedade.

..........................................................................................................
118 Instrumentos da política urbana

Com base no plano diretor, ou em lei municipal


específica, lastreados no § 2º, do artigo 5º do Esta-
tuto, o proprietário deverá ser notificado pela mu-
nicipalidade para a obrigação de parcelar, edificar
ou melhor utilizar sua propriedade, devendo essa
notificação ser averbada no cartório de registro de
imóveis. No § 4º do mesmo artigo fica estabeleci-
do o prazo de um ano, a partir da notificação, para
que o proprietário protocole um projeto no órgão
municipal competente, e de dois anos, a partir da
aprovação do projeto, para que as obras do em-
preendimento sejam iniciadas. No caso de em-
preendimentos de grande porte, o Estatuto prevê,
no mesmo parágrafo e artigo, a possibilidade, em
caráter excepcional, de que a legislação permita a
previsão da conclusão das obras por etapas.

Para o caso dos imóveis urbanos subutilizados, o Estatuto


não prevê um prazo específico, cabendo ao município, por
meio de sua legislação, a definição desse prazo. Porque,
como a característica básica nessas situações é que o imó-
vel tenha uma edificação que não atenda ao interesse da
coletividade ou que não esteja sendo utilizado, e para a
redefinição de sua utilização ou para a retomada de seu
uso, na maioria dos casos, não será necessária a apresen-
tação de um projeto para a nova edificação ou reforma.
Nesses casos, será suficiente implementar uma utilização
concreta ao edifício.

A exigência da averbação no registro de imóveis é neces-


sária, pois havendo alienação do imóvel, em data poste-
rior à notificação, poderão ser transferidas ao adquirente
ou promissário comprador todas as obrigações previstas

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 119

na lei, sem a interrupção do prazo fixado para o parcela-


mento, a edificação ou a utilização. Segundo o artigo 6º, a
alienação ou transferência do imóvel não gerará a extinção
da obrigação. Ou seja, a transmissão do imóvel, “por ato in-
ter vivos ou causa mortis", em data posterior à notificação,
transferirá as obrigações de parcelamento, edificação ou
utilização, sem a interrupção de quaisquer prazos fixados.

b. Imposto sobre a propriedade predial e territo-


rial urbana progressivo no tempo:
Segundo Nelson Saule Júnior, a progressividade do
imposto predial territorial urbano pode ser fiscal
ou extrafiscal e está fundamentada no artigo 145,
§ 1º, no artigo 150, inciso II, e no artigo 156, § 1º
da Constituição, com o objetivo de promover a jus-
ta distribuição da riqueza inerente à propriedade.
Sendo concebido, afirma, como instrumento de rea-
lização da justiça social, sua aplicação independe
da ocorrência dos pressupostos estabelecidos no §
4º, do artigo 182 da Carta Magna.

Disso decorre que a finalidade do poder público


municipal na utilização do IPTU progressivo no
tempo não é a arrecadação fiscal, mas sim uma for-
ma para induzir ao proprietário do imóvel urbano
o cumprimento da obrigação estabelecida no plano
urbanístico local.

Nessa concepção, o artigo 7º do Estatuto estabelece


que, sendo descumpridos as condições e os prazos
previstos para o parcelamento ou edificação nos ter-
mos da lei municipal específica, o município deve
aplicar o imposto progressivo, mediante a majora-

..........................................................................................................
120 Instrumentos da política urbana

ção da alíquota pelo prazo de cinco anos consecu-


tivos. O mesmo artigo define que o valor a ser apli-
cado a cada ano, também fixado por lei municipal
específica, não poderá exceder a duas vezes o va-
lor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota
máxima de quinze por cento. Para os casos em que
a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não for
atendida em cinco anos, a municipalidade deverá
manter a cobrança pela alíquota máxima, até que
se cumpra a referida obrigação, ficando, ainda, ga-
rantida a prerrogativa de desapropriação do imóvel
para fins de reforma urbana nos termos do § 2º do
mesmo artigo. Além disso, fica proibida a concessão
de isenções ou de anistia relativas à tributação pro-
gressiva, como disposto no § 3º.

c. Desapropriação para fins de reforma urbana:


No § 4º, inciso III, do artigo 182 da Constituição está
previsto um tipo de desapropriação que representa
um dos casos de exceção ao artigo 5º, inciso XXIV,
da mesma lei, pelo qual a desapropriação será efetu-
ada mediante justa e prévia indenização em dinhei-
ro. No caso em que o instrumento em estudo seja
aplicado, o pagamento da indenização deverá ser
realizado por meio de títulos da dívida pública, de
emissão previamente aprovada pelo Senado Federal,
com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas
anuais e sucessivas, assegurados o valor real da in-
denização e os juros legais. Essa definição garante
que o instrumento se destina à garantia do cumpri-
mento da função social da propriedade, ou seja, des-
tina-se à promoção de uma reforma urbana.

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 121

O § 2º, do artigo 8º do Estatuto, define que o valor da


indenização para essa modalidade de desapropriação:

i. Refletirá o valor da base de cálculo do IPTU,


descontado o montante incorporado em função
de obras realizadas pelo poder público na área
onde o mesmo se localiza após a notificação de
que trata o § 2º do artigo 5º.

ii. Não computará expectativas de ganhos, lucros


cessantes e juros compensatórios.

O critério disposto nesse artigo, segundo Nelson


Saule Júnior, ao não considerar, na apuração do va-
lor da indenização, “a valorização imobiliária decor-
rente de investimentos públicos, assim como o va-
lor referente ao potencial de construção decorrente
da legislação urbanística” (SAULE JÚNIOR, 2001, p.
6), vem evitar que o município

[...] Continue destinando uma significativa parce-


la dos seus recursos para o pagamento de indeni-
zações de imóveis urbanos, com base no valor de
mercado, sem que estes tenham de fato um uso
social que atenda os interesses da comunidade. Es-
ses recursos passam a ser aplicados na prestação
dos serviços para a coletividade, ao invés de bene-
ficiar individualmente aqueles que se apropriaram
da riqueza da cidade com a utilização do espaço
urbano para fins de especulação imobiliária. (SAULE
JÚNIOR, 2001, p. 28)

Fica justificado, então, na visão de Nelson Saule Jú-


nior, como meio de respeitar o princípio da igualda-
de e promoção da justa distribuição de benefícios e
ônus da atividade urbanística, ser o valor da indeni-
zação inferior ao valor de mercado.

..........................................................................................................
122 Instrumentos da política urbana

O § 4º do mesmo artigo 8º estabelece a obrigatorie-


dade de o município promover o adequado aprovei-
tamento do imóvel no prazo máximo de cinco anos,
contado a partir da sua incorporação ao patrimônio
público, fazendo com que a municipalidade assu-
ma, agora, a obrigação de promover, e concretizar,
que a propriedade desapropriada tenha uma função
social.

O Estatuto, por meio do § 5º do artigo 8º, possibili-


ta que sejam estabelecidas, para o aproveitamento
do imóvel desapropriado, parcerias com os agentes
privados e empreendedores imobiliários, visando
permitir sua alienação ou, por meio de licitação, sua
concessão para uso por terceiros. Já o § 6º mantém,
para o adquirente ou concessionário do imóvel de-
sapropriado, as mesmas obrigações de parcelamen-
to, edificação ou utilização com o objetivo de o imó-
vel cumprir com a sua função social, como definida
nos termos do plano diretor.

INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Os instrumentos que são definidos para a promoção da


regularização fundiária constam do artigo 5º do Estatuto.
São eles:

i. Pela alínea a, do inciso III, o plano diretor.


ii. Pelo inciso V:
a. Na alínea f, as zonas especiais de interesse social.
b. Na alínea g, a concessão de direito real de uso.
c. Na alínea h, a concessão de uso especial para
fins de moradia.

.........................................................................................................
A legislação fundamentadora da política urbana brasileira 123

d. Na alínea i, o parcelamento, edificação ou utili-


zação compulsórios.
e. Na alínea j, a usucapião especial de imóvel urbano.
f. Na alínea l, o direito de superfície.
g. Na alínea m, o direito de preempção, ou seja, a
preferência na aquisição.
h. Na alínea p, as operações urbanas consorciadas.

O artigo 42, como já apresentado, estabelece que o plano


diretor delimite as áreas urbanas onde poderá ser aplica-
do o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios,
considerando a existência de infraestrutura e sua conse-
quente demanda para utilização. Por essa razão, as áreas
não edificadas, subutilizadas ou não utilizadas poderão
ser delimitadas como áreas urbanas para fins de regula-
rização fundiária, onde poderão ser aplicados os instru-
mentos destinados a garantir que a propriedade urbana
atenda à sua função social.

A usucapião urbana, como instrumento de regularização


fundiária de áreas urbanas privadas, estabelecido pelo
artigo 183 da Constituição, reconhece o direito de domí-
nio a quem possuir como sua qualquer área ou edifica-
ção urbana de até 250 m², por cinco anos, ininterrupta-
mente e sem oposição, utilizando-a para a sua moradia
ou de sua família, desde que não seja proprietário de ou-
tro imóvel urbano ou rural. Com base nessa definição, o
artigo 10 do Estatuto possibilita o direito de a usucapião
urbana ser reconhecida coletivamente, mediante senten-
ça judicial, servindo, então, de título para o registro no
cartório de imóveis.

..........................................................................................................
124 Instrumentos da política urbana

O PLANO DIRETOR

Ao tratar da terceira etapa de elaboração de um plano di-


retor, afirmou-se a necessidade da coerência entre a apli-
cação dos instrumentos de política econômica, tributária
e financeira municipais e as propostas construídas para o
planejamento do seu território.

Essa coerência advém do equilíbrio entre o ideal e o possí-


vel de ser realizado. Uma análise de viabilidade econômi-
ca das diversas propostas deve ser considerada e, a par-
tir dela, eventuais alterações poderão ser necessárias em
prescrições relativas à tipologia e taxa de ocupação para o
uso do solo; à hierarquização e padrões elencados para o
sistema viário; à manutenção e ampliação da infraestrutu-
ra de saneamento, drenagem pluvial, energia, iluminação,
comunicações etc., e também aos equipamentos urbanos
de saúde, habitação, educação, lazer, entre outros; às
propostas para os serviços urbanos, como os de limpeza
pública, transporte coletivo, defesa civil, segurança pú-
blica, prevenção e combate a incêndio, assistência social
etc. Além disso, uma eventual dilatação no cronograma
definido para cada etapa, ou para o conjunto, poderá ser
também decidida ou melhor aplicada em detrimento das
demais propostas, em função dos recursos disponíveis ou
que possam ser disponibilizados.

Essa adequação implica na escolha dos instrumentos de


gestão do município e é orientadora das prioridades de
governo nas definições do Programa Plurianual – PPA, nas
diretrizes orçamentárias e nos orçamentos anuais.

.........................................................................................................
O plano diretor 125

A prescrição deve, então, considerar a implementação do


plano segundo quatro bases:

I. A base legal, composta pelos instrumentos de


controle e regulamentação do solo urbano, que po-
dem ser divididos em duas categorias:

a. De caráter jurídico-urbanístico:

i. Lei de Zoneamento Urbano.


ii. Lei de Parcelamento Urbano.
iii. Lei de Edificações (código de obras), que,
por meio de um conjunto de normas, trata da
regulamentação das construções, reconstru-
ções e reformas de prédios da área urbana.
iv. Código de Posturas, que trata de regulamen-
tar a utilização dos espaços públicos e priva-
dos na cidade. Ele não se compõe de normas de
construção de espaço, funcionando como um
elemento controlador da vida urbana, como o
uso de calçadas, os níveis de ruído, os horários
de funcionamento do comércio e demais ativi-
dades etc.
v. Lei do Solo Criado, que estabelece um coefi-
ciente construtivo diretamente proporcional às
dimensões do imóvel. Esse coeficiente pode ser
negociado entre os poderes privado e público,
que poderão autorizar a construção acima dos
limites estabelecidos no plano diretor com o
objetivo de incentivar e regularizar o desenvol-
vimento urbano.

..........................................................................................................
126 Instrumentos da política urbana

b. De caráter fiscal e tributário, como o imposto


sobre lucros imobiliários, o imposto territorial
progressivo, dentre outros impostos, taxas e
contribuições.

II. A base técnica, que se estrutura em programas,


planos setoriais, projetos e planos de ação. De ca-
ráter urbanístico-institucional, é representado por
programas de recuperação urbana e programas de
formação de estoque de terras, por exemplo.

III. A base administrativa, que consiste no aparelha-


mento dos agentes e das prefeituras. De caráter po-
lítico, pode ser representado, por exemplo, por uma
política de subsídios à construção habitacional, por
políticas específicas para regiões metropolitanas e
cidades de porte médio, por políticas de desapro-
priação e por políticas de organização de base e re-
presentação coletiva.

IV. A base orçamentária e financeira, que consiste


do plano plurianual, diretrizes orçamentárias e or-
çamentos anuais, e que viabilizará recursos para a
consecução das metas estabelecidas.

De tudo que foi dito sobre as diretrizes e os instrumentos


urbanísticos, disponibilizados para a produção de um pla-
nejamento urbano, definidos para facilitar o acesso à terra
bem localizada e que permitam que as propriedades cum-
pram sua função social, é também importante que o plano
diretor seja construído em linguagem acessível e clara. Ele
deve resultar em um conjunto de regras simples, que to-
dos entendam, posto que entendê-lo passa a ser condição

.........................................................................................................
O plano diretor 127

essencial para saber defendê-lo e aplicá-lo, facilitando a


aplicação da lei e a implantação das medidas, previstas
em conjunto com a sociedade, além de evitar pendências
judiciais posteriores.

Para que um plano funcione, ele precisa orientar as ações


necessárias à consecução das metas propostas. E, se um
plano diretor se constitui em um documento muito mais
complexo que um plano de trabalho cotidiano, como já
deve ter sido percebido pelas discussões anteriores, o fato
de ele lidar com valores muito diferentes, várias vezes
conflitantes, e com as ações de um número muito gran-
de de atores, pode determinar limitações de escolhas de
alternativas por parte dos atores envolvidos. Assim, por
exemplo, a limitação de atividades impostas em um pro-
cesso de zoneamento irá excluir essa escolha por parte
dos atores.

Portanto, o plano diretor constitui-se em um instrumen-


to “eminentemente político”, como bem destaca Roberto
Braga (1995).

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128 Instrumentos da política urbana

PLANEJAR É FÁCIL?

Para que o plano diretor realmente funcione, será preciso


que ele seja utilizado como referência no momento em
que se for implementar as ações necessárias à consecução
das metas prescritas. Roberto Braga analisou dados rela-
tivos à experiência com os Planos Diretores de Desenvol-
vimento Integrado – PDDIs de 107 municípios paulistas,
pesquisados pela Faculdade de Engenharia de São Carlos,
em 1975. Sua conclusão sobre o que descreveu como os
motivos principais do fracasso desses planos foi:

I. A obrigatoriedade da elaboração do plano diretor


não conscientizou os agentes públicos municipais
da importância do planejamento enquanto um pro-
cesso mais eficiente de gestão, os quais encararam
o plano apenas como uma exigência burocrática e
inútil ou como um instrumento útil apenas para fa-
cilitar a obtenção de financiamentos públicos.

II. A elaboração da maioria dos planos diretores


por órgãos ou empresas estranhas à administração
pública local, o que tende a acarretar os seguintes
problemas que inviabilizaram sua implementação:

a. Os planos ficam interessantes tecnicamente,


mas inviáveis politicamente.
b. Os planos não ficam bons nem tecnicamente
nem politicamente, pois os elaboradores não co-
nhecem a realidade local.

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Planejar é fácil? 129

c. O plano diretor torna-se um corpo estranho à


administração local que não participou de sua
elaboração e, portanto, não o encara como um
instrumento legítimo, não tendo, assim, interesse
na sua implementação.

Se, então, consideramos que o plano diretor é um instru-


mento político, seu objetivo deverá ser o de democratizar
a política urbana, dando a ela maior transparência. Os as-
pectos, tais como a normatividade excessiva, a generali-
dade das diretrizes, a exclusão de parcelas significativas
da chamada cidade “legal” e a rigidez no tratamento dos
desiguais, que podem se apresentar no resultado final do
trabalho, virão a atrapalhar seu objetivo.

Se esse planejamento adquirir um caráter eminentemente


técnico, de difícil elaboração e entendimento pela socie-
dade em que será aplicado, o resultado será um proces-
so evolutivo do tecido urbano que continuará fortemente
conectado às excepcionalidades e às relações clientelistas
que vêm definindo as normas de uso e ocupação do solo
urbano.

A técnica é fundamental para um bom planejamento, mas


não é o único ingrediente, e isso fica evidente nas conclu-
sões de Roberto Braga, elencadas anteriormente. Ou seja,

Se um plano for muito bom tecnicamente, mas in-


viável politicamente, não será executado; o mesmo
se dá ao inverso, as propostas de um plano podem
ser muito justas politicamente, mas se não tiverem
nenhuma viabilidade técnica de serem implemen-
tadas, não passam de demagogia barata. (BRAGA,
1995)

..........................................................................................................
130 Instrumentos da política urbana

Disso resulta a necessidade de um equilíbrio entre os as-


pectos políticos e técnicos na elaboração de um documen-
to dessa complexidade e que afetará significativamente
toda uma sociedade. Fica claro, então, que também o ato
de planejar dependerá de uma negociação política, na con-
cepção correta do termo, já que a proposta básica do pro-
cesso, concebida na Carta Magna, é democrática e cidadã,
implicando a transparência da política urbana.

Ser utilizado como referência para a consecução das ações


propostas é requisito fundamental para que o planejamen-
to dê resultados efetivos. Isso significa que, em contrapo-
sição, a opção por não seguir uma ação, que tenha sido
especificada no plano, deverá estar embasada por uma
justificativa convincente e legítima, já que imprevistos
são passíveis de ocorrência e, como afirma Renato Saboya
(2006, on-line), no planejamento urbano, “as ações efetiva-
mente implementadas pelo Poder Público acabam sofren-
do a influência de muitos outros fatores”, como, por exem-
plo, a opinião pública e as pressões políticas.

Como o contexto sob o qual as decisões de implementação


das ações são tomadas é mutante no tempo, é importante
que o plano elaborado seja um norteador para elas, ainda
que para isso haja necessidade da promoção de revisões.
Entretanto, as eventuais modificações não devem alterar
a lógica do plano como um todo. Se essa situação vier a
ocorrer, ele perderá seu sentido de existência. A vantagem
de se construir um plano reside na promoção da integra-
ção entre as ações, fazendo com que todas elas estejam
combinadas para que seja possível alcançar os objetivos
desejados. Dessa forma, “a sinergia entre as ações deve
ser maximizada, de modo que a consequência de uma atue

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Planejar é fácil? 131

no sentido de reforçar ou complementar as consequências


das outras" (SABOYA, 2006, on-line).

Se o plano possui equilíbrio entre a tecnicidade e o com-


ponente político, resultando em um documento orienta-
dor de ações futuras, ele ainda deve apresentar credibi-
lidade, com respeito à legitimidade das orientações, sua
assertividade e representatividade, para que os tomadores
de decisão possam controlar os fatores de influência, já
destacados anteriormente. As orientações serão legítimas
quando forem concebidas dentro de um processo trans-
parente e honesto de debates, discussões e negociações,
momento em que as informações colhidas tenham sido
amplamente divulgadas, sem distorções ou manipulações
de nenhum tipo, o que, na verdade, é algo um tanto difícil
de acontecer.

As decisões serão acertadas quando forem “adequada-


mente exploradas em termos das consequências previstas,
das alternativas disponíveis e dos objetivos e valores dos
atores participantes do processo de elaboração do plano"
(SABOYA, 2006, on-line). Renato Saboya observa, ainda,
que o termo "decisões acertadas" sugere “que as diretrizes
tenham sido objeto de reflexão e ponderação, e que todos
os recursos técnicos (mapeamentos, levantamentos, pes-
quisas, etc.) e políticos (negociações, identificação de valo-
res, etc.), dentro da capacidade do município, tenham sido
utilizados”, o que significa que, dentro de um determinado
contexto de conhecimento e de capacidade de atuação, o
plano elaborado representa “o melhor que se poderia ter
alcançado" (SABOYA, 2006, on-line).

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132 Instrumentos da política urbana

E, garantindo que os valores, contidos no plano elabora-


do, sejam provenientes de uma parcela representativa da
sociedade, e não de um ou mais grupos sociais ou políti-
cos, é imperativo que exista a participação popular, não
apenas por força do Estatuto das Cidades, mas por uma
necessidade de conferir representatividade e, consequen-
temente, credibilidade ao próprio plano. Procedendo des-
ta forma, será possível evitar que o plano seja associado a
essa ou àquela gestão, fazendo com que a plataforma de
governo se direcione para a priorização de ações rumo à
consecução dos objetivos propostos em um pacto cida-
dão. Desse modo, caso o plano não tenha credibilidade,
seu poder de influenciar nessa decisão será pequeno. Isso
permitirá que os objetivos e valores dos técnicos e polí-
ticos, responsáveis por obras públicas, por exemplo, os
usem como referência no momento de decidir as ações a
serem implementadas, em detrimento do que foi disposto
no plano aprovado. Ao contar com alta credibilidade, o
plano diretor terá a capacidade de fazer com que esses
atores “abram mão” de alguns de seus valores em função
dos valores que estão pactuados e aprovados. Essa lógica
é também válida para os demais atores.

Se, por um lado, o plano precisa representar um orienta-


dor para construir credibilidade, por outro, ele precisa ter
credibilidade para ser efetivamente utilizado como refe-
rência, ou seja, tem-se aí a possibilidade da existência de
“um círculo que pode ser vicioso ou virtuoso" (SABOYA,
2006, on-line). A história dos planos no Brasil tem mostra-
do que o que tem predominado é o círculo vicioso da falta
de credibilidade, gerando desrespeito ao que foi proposto
como solução para os problemas de uso do solo urbano.

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Planejar é fácil? 133

Corroborando esse argumento, Joyce Reis Ferreira da Silva


(2014) afirma que a nova forma contemporânea de produ-
ção do espaço urbano tomou proporções incalculáveis na
escala do urbano, por meio da arquitetura do espetáculo,
investimentos de grandes eventos, novos modelos de fle-
xibilizações urbanísticas, massiva produção habitacional
e replicação de produtos imobiliários, como condomínios
fechados em lugares nunca imaginados. Segundo ela, esse
“arquitetura do espetáculo” intensificou-se a partir do
anúncio do Brasil como sede dos jogos Pan-Americanos
de 2007, da Copa das Confederações em 2013, da Copa
do Mundo de futebol de 2014 e das Olimpíadas de 2016.
Essa foi a oportunidade em que se fez sentir os interesses
do capital, “sob à custa de numerosas remoções forçadas,
valorização do solo urbano, perda da identidade local e
substituição do comércio local, pagas, em geral, pelas po-
pulações mais vulneráveis" (SILVA, 2014, p. 77).

Outras inovações surgiram ao final dos anos 2000, viabili-


zando as parcerias público-privadas, executadas mediante
concessões urbanísticas, que foram além da flexibilização
de parâmetros urbanistas, posto que transferiram, segun-
do F. F. Souza (2011), a prerrogativa do direito de desa-
propriação de uma área à iniciativa privada, assim como a
iniciativa de execução de um projeto urbanístico. Em ou-
tros casos desse tipo de parceria público-privada, foram
os projetos urbanísticos associados à concessão da execu-
ção de serviços públicos.

Em resposta ao aquecimento econômico,

[...] Num período de cinco anos, sobretudo de 2006


a 2010, grandes empresas construtoras e incorpo-

..........................................................................................................
134 Instrumentos da política urbana

radoras passaram a ofertar habitação para as ca-


madas de baixa renda da população e imprimiram
um ritmo acelerado na verticalização e no espraia-
mento dos tecidos urbanos. [...] Uma forma inédita
de empresariamento da produção da habitação se
construiu, desde então, articulando Estado, empre-
sas construtoras, e capital financeiro. Ou dito de
outra maneira, constituiu-se uma forma de produ-
ção que encarou habitação social como um negócio
imobiliário (SHIMBO, 2012, p. 13).

Assim, como já foi dito anteriormente, ao não serem im-


plementados os instrumentos urbanísticos que permitam
o acesso à terra bem localizada e que permitam que a pro-
priedade exerça sua função social, esse tipo de produção
vem de encontro a mecanismos como o zoneamento, man-
tendo, dessa forma, as características de excepcionalidade
no uso do solo urbano. Segundo Fix (2011, p. 222),

O elemento central passa a ser o comando sobre o


preço e o uso do solo urbano: criação de novas fron-
teiras imobiliárias e de novos produtos, que mobi-
lizam o ideal de vida das famílias do ponto de vista
da tipologia dos empreendimentos, das fachadas,
da localização. A pressão se impõe, assim, sobre a
organização espacial: nas decisões de localização
(novas fronteiras nas periferias das grandes me-
trópoles, no interior, em outros estados), de escala
(grandes empreendimentos), de forma arquitetôni-
ca e urbana (grandes loteamentos, condomínio-clu-
be, bairros-condomínios, etc.).

Então, ficam claras as dificuldades de implantação de um


planejamento urbano diante das condições de contorno
estabelecidas pela cultura da sociedade brasileira. Tal si-
tuação pode ser ainda pior se um plano diretor não tiver
credibilidade e representatividade.

.........................................................................................................
135

REFERÊNCIAS

BRAGA, Roberto. Plano Diretor Municipal: três questões


para discussão. Caderno do Departamento de Planejamen-
to, Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP, Presidente
Prudente, v. 1, n. 1, p. 15-20. 1995.

FIX, M. Financeirização e transformações recentes no cir-


cuito imobiliário no Brasil. 2011. 263 f. Tese (Doutorado
em Desenvolvimento Econômico) – Instituto de Economia,
UNICAMP, Campinas.

LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e pos-


sibilidades da constituição do espaço urbano. Rio de Janei-
ro: Renovar, 2003, p. 207-208.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpre-


tada e legislação constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2004, p. 266.

SABOYA, Renato T. de. Planos diretores como instrumento


de orientação das ações de desenvolvimento urbano. Arqui-
textos, São Paulo, ano 7, n. 074.05, Vitruvius, jul. 2006. Dis-
ponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/
arquitextos/07.074/338>. Acesso em: jul. 2015.

SAULE JÚNIOR, Nelson; ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cida-


de: novos horizontes para a reforma urbana. Cadernos Pó-
lis, 4. São Paulo: Pólis, 2001.

..........................................................................................................
136 Instrumentos da política urbana

SHIMBO, L. Z. Habitação social de mercado: a confluência


entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro.
Belo Horizonte: C/Arte, 2012.

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São


Paulo: Malheiros, 2006, p. 65.

SILVA, Joyce Reis Ferreira da. Zoneamento e forma urbana:


ausências e demandas na regulação do uso e ocupação do
solo. 2014. 297 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento
Urbano e Regional) - Faculdade de Arquitetura e Urbanis-
mo, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16139/
tde-30062014-114611/>. Acesso em: jul. 2015.

SOUZA, F. F. A batalha pelo centro de São Paulo: Santa Ifi-


gênia, concessão urbanística e projeto nova luz. São Paulo:
Paulus, 2011.

.........................................................................................................
Legislação ambiental I 137

CAPÍTULO 4
AS POLÍTICAS URBANAS E O
MEIO AMBIENTE - A BUSCA DA
SUSTENTABILIDADE

A Constituição de 1988 incorporou a proteção ao meio am-


biente, tratando do tema em um capítulo próprio, no qual de-
fine importantes mecanismos de defesa da questão ambiental
no Brasil. Nesse sentido, em seu artigo 225, estabelece que “to-
dos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Por outro lado, também é preciso compatibilizar meio am-


biente e desenvolvimento. Por essa razão, no § 1º, inciso III,
do mesmo artigo 225, fica estabelecida a necessidade de:

Definir, em todas as unidades da Federação, espaços


territoriais e seus componentes a serem especial-
mente protegidos, sendo a alteração e a supressão
permitidas somente através de lei, vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atribu-
tos que justifiquem sua proteção.

Desse modo, está definido que esses espaços sejam preser-


vados da devastação e da ação do poder econômico. Mas, por
outro lado, a ação desse último deve também ser pautada pelo
princípio do desenvolvimento sustentável, tal como previsto
mais adiante no inciso VI, do artigo 170 da Constituição, o que
vem caracterizá-lo como um elemento fundamental na exe-
cução das políticas econômicas de desenvolvimento do país.

..........................................................................................................
138 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

LEGISLAÇÃO AMBIENTAL I

Segundo Édis Milaré,

Compatibilizar meio ambiente com desenvolvimen-


to significa considerar os problemas ambientais
dentro de um processo contínuo de planejamento,
atendendo-se adequadamente às exigências de am-
bos e observando-se as suas inter-relações particu-
lares a cada contexto sociocultural, político, econô-
mico e ecológico, dentro de uma dimensão tempo/
espaço. Em outras palavras, isto implica dizer que
a política ambiental não deve erigir-se, constituir-se
em obstáculo ao desenvolvimento, mas sim em um
de seus instrumentos, ao propiciar a gestão racio-
nal dos recursos naturais, os quais constituem a sua
base material (MILARÉ, 2007, p. 62)

Eis aí uma questão cultural delicada. É importante que a


mudança de paradigma seja realizada para que uma maior
lucratividade na atividade econômica não continue a se
opor ao princípio do desenvolvimento sustentável, que
é de proporcionar qualidade de vida para as atuais gera-
ções, assim como para as futuras.

Como legislação ambiental, tem-se como principais instru-


mentos normativos o Decreto nº 24.643, de 10 de julho de
1934, conhecido como Código de Águas de 1934, e o De-
creto-Lei nº 1.985, de 29 de janeiro de 1940, denominado
como Código de Minas de 1940, e, mais recentemente, o
Código Florestal, Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965.

.........................................................................................................
Legislação ambiental I 139

O reflexo de uma maior preocupação com os problemas


ambientais, decorrentes da falta de planejamento dos es-
paços urbanos, aparece com a aprovação, em 1981, da Lei
nº 6.938, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambien-
te e o Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA. Ela
vem responder ao aumento na visibilidade dos problemas,
relativos à qualidade de vida da população de vários cen-
tros urbanos, principalmente da parcela mais pobre dela,
que, por falta de opção, instalava-se em áreas periféricas,
degradadas, ou ao longo de canais de rios, de zonas de
mangue e áreas classificadas como “menos nobres” em
termos de especulação imobiliária.

A Lei nº 6.938/81 estruturou os órgãos do Estado brasilei-


ro para que fosse possível o trato das questões relativas
ao meio ambiente. Surgiu como resultado das pressões
políticas internacionais, considerada a linha mestra da
sistemática criada para buscar um meio ambiente ecologi-
camente equilibrado.

O artigo 2º, da Lei nº 6.938/81, estabelece que:

A Política Nacional do Meio Ambiente tem por obje-


tivo a preservação, melhoria e recuperação da qua-
lidade ambiental propícia à vida, visando assegurar,
no País, condições ao desenvolvimento socioeconô-
mico, aos interesses da segurança nacional e à pro-
teção da dignidade da vida humana, atendidos os
seguintes princípios:

I. Ação governamental na manutenção do equilíbrio


ecológico, considerando o meio ambiente como um
patrimônio público a ser necessariamente assegura-

..........................................................................................................
140 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

do e protegido, tendo em vista o uso coletivo;


II. Racionalização do uso do solo, do subsolo, da
água e do ar;
III. Planejamento e fiscalização do uso dos recursos
ambientais;
IV. Proteção dos ecossistemas, com a preservação
de áreas representativas;
V. Controle e zoneamento das atividades potencial
ou efetivamente poluidoras;
VI. Incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias
orientadas para o uso racional e a proteção dos re-
cursos ambientais;
VII. Acompanhamento do estado da qualidade am-
biental;
VIII. Recuperação de áreas degradadas;
IX. Proteção de áreas ameaçadas de degradação;
X. Educação ambiental a todos os níveis do ensino,
inclusive a educação da comunidade, objetivando
capacitá-la para participação ativa na defesa do
meio ambiente.

Já os objetivos e as diretrizes da Política Nacional do Meio


Ambiente estão definidos nos artigos 4º e 5º como:

Artigo 4º:

A Política Nacional do Meio Ambiente visará:


I. À compatibilização do desenvolvimento econô-
mico social com a preservação da qualidade do
meio ambiente e do equilíbrio ecológico;
II. À definição de áreas prioritárias de ação go-
vernamental relativa à qualidade e ao equilíbrio

.........................................................................................................
Legislação ambiental I 141

ecológico, atendendo aos interesses da União,


dos Estados, do Distrito Federal, do Territórios e
dos Municípios;
III. Ao estabelecimento de critérios e padrões da
qualidade ambiental e de normas relativas ao uso
e manejo de recursos ambientais;
IV. Ao desenvolvimento de pesquisas e de tecno-
logias nacionais orientadas para o uso racional de
recursos ambientais;
V. À difusão de tecnologias de manejo do meio
ambiente, à divulgação de dados e informações
ambientais e à formação de uma consciência pú-
blica sobre a necessidade de preservação da qua-
lidade ambiental e do equilíbrio ecológico;
VI. À preservação e restauração dos recursos am-
bientais com vistas à sua utilização racional e dis-
ponibilidade permanente, concorrendo para a ma-
nutenção do equilíbrio ecológico propício à vida;
VII. À imposição, ao poluidor e ao predador, da
obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos
causados, e ao usuário, de contribuição pela utili-
zação de recursos ambientais com fins econômicos.

Artigo 5º:

As diretrizes da Política Nacional do Meio Am-


biente serão formuladas em normas e planos,
destinados a orientar a ação dos Governos da
União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Ter-
ritórios e dos Municípios no que se relaciona
com a preservação da qualidade ambiental e ma-
nutenção do equilíbrio ecológico, observados os
princípios estabelecidos no artigo 2º desta Lei.

..........................................................................................................
142 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

Parágrafo único. As atividades empresariais pú-


blicas ou privadas serão exercidas em consonân-
cia com as diretrizes da Política Nacional do Meio
Ambiente.

Essa lei incluiu o zoneamento como um dos instrumen-


tos postos à disposição da Administração Pública para dar
efetividade aos princípios da política ambiental, como fica
claro nos incisos I, II, III, V e IX do artigo 2º, e para que seja
possível o cumprimento da função social da propriedade,
mais tarde estabelecido na Constituição de 1988.

Citando outros autores, Ioberto Tatsch Banunas (2003)


apresenta o entendimento do termo zoneamento como
“uma medida não jurisdicional, oriunda do poder de po-
lícia, com dois fundamentos mestres: repartição do solo
urbano municipal e a designação de seu uso”. No entanto,
quando se trata do zoneamento ambiental, há um conflito
quanto ao “direito adquirido” e ao “direito de proprieda-
de”. Mas, para Ioberto Banunas, como não existe o “di-
reito adquirido de poluir”, o zoneamento pode proteger
o meio ambiente em situações nas quais o interesse da
coletividade supera o interesse particular.

O zoneamento ambiental ou ecológico, da mesma forma


que o urbano, consiste na divisão do território municipal
em frações ou parcelas nas quais são autorizadas deter-
minadas atividades. Ele permite também a possibilidade
de interdição, de modo absoluto ou relativo, do exercício
de outras atividades nas frações. Segundo Paulo Affonso
Leme Machado (2008), mesmo que o zoneamento não re-
solva todos os problemas ambientais, um grande avanço
pode ser conseguido em direção ao planejamento ambien-
tal e à minimização dos impactos ambientais.

.........................................................................................................
Legislação ambiental I 143

Os requisitos para a elaboração do zoneamento ambiental


e as etapas desse processo ainda não são objeto de legisla-
ção específica. Por essa razão, cada unidade da federação
pode estabelecer seus critérios. Isso dificulta o estabele-
cimento de um parâmetro mínimo de ações que devem
ser observadas quando da construção de um “mapa” de
usos e ocupações no solo do município. E, nessa condição,
a normatização mais importante para orientação de pos-
turas referentes às questões ambientais é a Lei nº 6.938.
Neste sentido, o artigo 9º define quais instrumentos po-
dem ser utilizados para dar efetividade à política ambien-
tal desejada, em qualquer nível da federação. Entre eles
está a criação de espaços territoriais especialmente pro-
tegidos pelo poder público federal, estadual e municipal,
tais como áreas de proteção ambiental, de relevante inte-
resse ecológico e reservas extrativistas.

Por meio do planejamento e do controle de usos e de ati-


vidades no solo do município ou da região metropolitana,
evitar-se-á danos significativos que podem comprometer a
qualidade de vida da população que ali reside. Mas, não se
pode esquecer de que os municípios não são compostos
apenas por áreas urbanas, mas também possuem áreas
rurais, que igualmente necessitam de planejamento para
definir seus usos e formas de ocupação.

Para ambos os casos, áreas urbanas ou rurais, também a


Lei nº 6.766/79, em seu artigo 3º, apresenta exigências
ambientais. Nesse caso, vedando o parcelamento do solo:

I – Em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações,


antes de tomadas as providências para assegurar o
escoamento das águas;

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144 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

Il – Em terrenos que tenham sido aterrados com ma-


terial nocivo à saúde pública, sem que sejam previa-
mente saneados;
III – Em terrenos com declividade igual ou superior
a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigên-
cias específicas das autoridades competentes;
IV – Em terrenos onde as condições geológicas não
aconselham a edificação;
V – Em áreas de preservação ecológica ou naquelas
onde a poluição impeça condições sanitárias supor-
táveis, até a sua correção.

.........................................................................................................
Legislação ambiental II 145

LEGISLAÇÃO AMBIENTAL II

Dentre as exigências ambientais estabelecidas em outras


leis federais, pode ser destacado o licenciamento ambien-
tal perante o órgão competente integrante do Sistema
Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA. Então, todos os
empreendimentos e atividades potencialmente poluidores
ou que sejam causadores de degradação ambiental, em
que podem estar incluídas algumas das modalidades de
parcelamento do solo, têm necessidade de obtenção das
devidas licenças ambientais, na forma da Lei nº 6.938/81,
e da Resolução nº 237/97, do Conselho Nacional do Meio
Ambiente – CONAMA.

No caso de empreendimentos potencialmente causadores


de significativo impacto ambiental, é exigido, para a con-
cessão da licença, um estudo prévio de impacto ambiental
(EIA). Esse estudo, abrange, segundo o artigo 2º da Reso-
luação nº 001/86 do CONAMA, as seguintes atividades:

I. Estradas de rodagem, com duas ou mais faixas de


rodagem;
II. Ferrovias;
III. Portos e terminais de minério, petróleo e produ-
tos químicos;
IV. Aeroportos, conforme definidos pelo inciso I, ar-
tigo 48º do Decreto-Lei nº 32/66;
V. Oleodutos, gasodutos, minerodutos, troncos co-
letores e emissários de esgotos sanitários;

..........................................................................................................
146 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

VI. Linhas de transmissão de energia elétrica, acima


de 230 Kw;
VII. Obras hidraúlicas para exploração de recursos
hidrícos, tais como: barragem para quaisquer fins
hidrelétricos, acima de 10 MW, de saneamento ou
de irrigação, abertura de canais para navegação,
drenagem e irrigação, retificação de cursos d'água,
abertura de barras e embocaduras, transposição de
bacias, diques;
VIII. Extração de combustível fóssil (petróleo, xisto,
carvão);
IX. Extração de minério, inclusive os da classe II, de-
finidas no Código de Mineração;
X. Aterros sanitários, processamento e destino final
de resíduos tóxicos ou perigosos;
XI. Usina de geração de eletricidade, qualquer que
seja a fonte de energia primária, acima de 10 MW;
XII. Complexo e unidades industriais e agroindus-
triais (petroquímicos, siderúrgicos, cloroquímicos,
destilarias de álcool, hulha, extração e cultivo de
recursos hidróbios;
XIII. Distritos industriais e Zonas Estritamente In-
dustriais – ZEI;
XIV. Exploração econômica de madeira ou de lenha,
em áreas acima de 100 ha (cem hectares) ou meno-
res, quando atingir áreas significativas em termos
percentuais ou de importância do ponto de vista
ambiental;
XV. Projetos urbanísticos, acima de 100 ha (cem
hectares) ou em áreas consideradas de relevante in-
teresse ambiental a critério da SEMA e dos órgãos
municipais e estaduais competentes;

.........................................................................................................
Legislação ambiental II 147

XVI. Qualquer atividade que utilizar carvão vegetal,


derivados ou produtos similares, em quantidade su-
perior a dez toneladas por dia;
XVII. Projetos agropecuários que contemplem áreas
acima de 1.000 ha, ou menores, neste caso, quando
se tratar de áreas significativas em termos percen-
tuais ou de importância do ponto de vista ambien-
tal, inclusive nas áreas de proteção ambiental.

É interessante ressaltar que o CONAMA pode, a qualquer


tempo, estabelecer outros casos em que o estudo seja
obrigatório. Mas, as definições, estabelecidas nessa reso-
lução, são importantes para possibilitar a existência de
previsibilidade na política ambiental vigente.

Entretanto, de acordo com o inciso II, do artigo 8º, da Lei


nº 6.938/81, o EIA não é exigível somente quando houver
necessidade de emissão de licença, mas em todos os casos
julgados procedentes pelo CONAMA. Portanto, a realiza-
ção de empreendimento público, autorizado ou concedi-
do, ou privado, sem a existência do estudo previsto, torna
o empreendimento ilegal e passível de paralização ou em-
bargo, por meio de ação civil pública.

O artigo 6º da Resolução nº 001/86 do CONAMA estabe-


lece quatro atividades técnicas a serem abordadas no EIA.
São elas:

I. Diagnóstico ambiental da área de influência do


projeto, completa descrição e análise dos recursos
ambientais e suas interações, tal como existem, de
modo a caracterizar a situação ambiental da área,
antes da implantação do projeto, considerando:

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148 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

a) o meio físico - o subsolo, as águas, o ar e o cli-


ma, destacando os recursos minerais, a topogra-
fia, os tipos e aptidões do solo, os corpos d'água,
o regime hidrológico, as correntes marinhas, as
correntes atmosféricas;
b) o meio biológico e os ecossistemas naturais - a
fauna e a flora, destacando as espécies indicado-
ras da qualidade ambiental, de valor científico e
econômico, raras e ameaçadas de extinção e as
áreas de preservação permanente;
c) o meio socioeconômico - o uso e a ocupação do
solo, os usos da água e a socioeconomia, desta-
cando os sítios e monumentos arqueológicos, his-
tóricos e culturais da comunidade, as relações de
dependência entre a sociedade local, os recursos
ambientais e a potencial utilização futura desses
recursos.

II. Análises de impactos ambientais do projeto e de


suas alternativas, através de identificação, previsão
da magnitude e interpretação da importância dos
prováveis impactos relevantes, discriminando: os
impactos positivos e negativos (benéficos e adver-
sos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e lon-
gos prazos, temporários e permanentes; seu grau
de reversibilidade, suas propriedades cumulativas
e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios
sociais;

III. Definição das medidas mitigadoras dos impac-


tos negativos, entre elas os equipamentos de con-
trole e sistemas de tratamento de despejos, avalian-
do a eficiência de cada uma delas;

.........................................................................................................
Legislação ambiental II 149

IV. Elaboração do programa de acompanhamento e


monitoramento dos impactos positivos e negativos,
indicando os fatores e parâmetros a serem consi-
derados.

Com um campo de análise muito amplo, o EIA é aplicado,


também, aos parcelamentos urbanos, às restrições de edifi-
cação relativas às Áreas de Preservação Permanente – APP,
definidas e delimitadas pela Lei nº 4.771/65, conhecido
como Código Florestal, e pela Resolução nº 004/85 do CO-
NAMA, que está atualmente em processo de reformulação.

As normas federais protegem, na forma de APP, a vegeta-


ção situada:

I. Ao longo da margem dos corpos d'água, em faixa


que varia de 30 a 500 metros;
II. Nas encostas ou partes destas com declividade
superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior
aclive;
III. Nas restingas, como fixadoras de dunas ou esta-
bilizadoras de mangues;
IV. Nas bordas dos tabuleiros ou chapadas a partir
da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca infe-
rior a 100 metros em projeções horizontais; e
V. Em altitude superior a 1.800 metros.

É importante notar que os limites da Lei nº 4.771/65, in-


clusive as faixas marginais ao longo dos corpos d'água,
aplicam-se também às áreas urbanas. E a supressão de ve-
getação em APP pode ocorrer excepcionalmente em casos
de utilidade pública ou interesse social, mediante autori-
zação prévia do órgão competente integrante do SISNA-

..........................................................................................................
150 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

MA. Para o caso das áreas urbanas, a Medida Provisória


nº 2.166 admite que essa autorização seja efetivada por
órgão municipal, com anuência prévia do órgão estadual,
e desde que o município possua conselho de meio ambien-
te e plano diretor.

Já o Estudo de Impacto de Vizinhança– EIV, também um


documento técnico, é requisito prévio para a concessão
de licenças e autorizações de construção, ampliação ou
funcionamento de empreendimentos ou atividades que
possam afetar a qualidade de vida da população residen-
te na área ou nas proximidades. Deve ter respaldo em lei
municipal, ao contrário da licença ambiental, que é esta-
dual. Sendo mais um dos instrumentos trazidos pelo Esta-
tuto da Cidade, nele, são ponderados os efeitos positivos
e negativos do empreendimento proposto na qualidade de
vida da população residente na área e suas proximidades.
Desse modo, sua finalidade é instruir e assegurar ao poder
público a existência de capacidade do meio urbano para
comportar determinado empreendimento.

O artigo 37 do Estatuto da Cidade afirma que o EIV deverá


considerar a qualidade de vida da população residente na
área e suas proximidades. E, como nos centros urbanos
cada área possui características peculiares, é razoável que
a lei defina quais os empreendimentos que dependerão
de EIV para obter as licenças ou as autorizações neces-
sárias mediante critérios diferenciados para cada região.
Em outras palavras, a lei municipal que institucionaliza
o EIV deve guardar correspondência com o zoneamento
definido.

.........................................................................................................
Legislação ambiental II 151

Fazem parte das análises do EIV, no mínimo, as seguintes


questões:

i. Adensamento populacional.
ii. Equipamentos urbanos e comunitários existentes.
iii. O uso e a ocupação do solo definidos.
iv. A valorização imobiliária.
v. A geração de tráfego e a demanda local por trans-
porte público.
vi. A ventilação e a iluminação do local.
vii. A paisagem urbana e o patrimônio cultural.

Por fim, em relação ao meio ambiente artificial, existe


uma preocupação específica com o zoneamento industrial
e que decorre da observação da diminuição da qualidade
de vida nos centros urbanos. A Lei nº 6.803/80 estabele-
ce, em seu artigo 1º, que nas áreas críticas de poluição
a que se refere o artigo 4º, do Decreto-Lei nº 1.413/75,
que regulamenta o controle da poluição industrial, serão
definidas em esquema de zoneamento urbano, aprovado
por lei, compatibilizando as atividades industriais com a
proteção ambiental. E, no seu § 1º, define que essas zonas
serão classificadas nas seguintes categorias:

i. Zona de Uso Estritamente Industrial – Onde de-


vem se localizar os:

Estabelecimentos industriais cujos resíduos sólidos


e gasosos, ruídos, vibrações, emanações e radiações
possam causar perigo à saúde, ao bem-estar e à se-
gurança das populações, mesmo depois da aplica-
ção de métodos adequados de controle e tratamen-
to de efluentes.

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152 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

Segundo Ioberto Tatsch Banunas (2003), é necessário que


essa zona esteja localizada em “áreas que apresentem ele-
vadas capacidades de assimilação de efluentes e proteção
ambiental, respeitadas quaisquer restrições legais ao uso
do solo”, que “favoreçam a instalação de infraestrutura e
serviços básicos necessários ao seu funcionamento e se-
gurança” e que “possam manter, em seu contorno, anéis
verdes de isolamento capazes de proteger as zonas circun-
vizinhas contra possíveis efeitos residuais e acidentes”.

ii. Zonas de Uso Predominantemente Industrial –


Destinada,

Preferencialmente, à instalação de indústrias cujos


processos, submetidos a métodos adequados de
controle e tratamento de efluentes, não causem incô-
modos sensíveis às demais atividades urbanas e nem
perturbem o repouso noturno das populações, [...]

Ou seja, é uma zona intermediária entre a de uso estritamen-


te industrial e a de uso diversificado. Segundo Ioberto Tatsch
Banunas (2003), a localização dessa zona deverá favorecer a
“instalação adequada de infraestrutura de serviços básicos
necessária a seu funcionamento e segurança”, além de dis-
por, “em seu interior, de áreas de proteção ambiental que
minimizem os efeitos da poluição, em relação a outros usos”.

iii. Zona de Uso Diversificado – É a zona cujos pro-


cessos produtivos são complementares às ativida-
des desenvolvidas no meio urbano ou rural em que
se situam, e com ela se compatibilizam, independen-
temente do uso de métodos especiais de controle da
poluição, porque não ocasionam inconvenientes à
saúde, ao bem-estar e à segurança da coletividade.

.........................................................................................................
Sistema de licenciamento ambiental e direito de propriedade em empreendimentos imobiliários 153

SISTEMA DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL


E DIREITO DE PROPRIEDADE EM
EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS

Todo o processo de legalização de um processo de par-


celamento urbano é obtido na Lei nº 6.766/79, artigos 4º
ao 36, correspondentes aos capítulos II a VII, e nas Leis
nº 9.785/99 e nº 10.932/04, que nela introduzem modi-
ficações, todas já comentadas anteriormente. Os passos
necessários que caracterizam todo o processo correspon-
dem, basicamente, a quatro fases.

A primeira fase relaciona-se à definição de diretrizes pelo


poder municipal:

i. Do traçado dos lotes.


ii. Do sistema viário.
iii. Dos espaços livres e áreas reservadas para os
equipamentos urbanos e comunitários.

Os municípios com população inferior a cinquenta mil ha-


bitantes e aqueles cujo plano diretor contiver diretrizes de
urbanização para a zona em que se situe o parcelamento
podem dispensar, por lei, essa primeira fase do procedi-
mento administrativo previsto na Lei nº 6.766/79.

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154 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

Na segunda fase, pelo artigo 9º dessa lei, há necessidade


de apresentação de um projeto composto de:

i. Desenhos técnicos.
ii. Memorial descritivo.
iii. Cronograma proposto para a execução das obras
a cargo do empreendedor, com duração máxima de
quatro anos. Caso o projeto seja relativo a desmem-
bramentos, o artigo 10 prevê um procedimento de
registro simplificado, como já discutido anterior-
mente.

A terceira fase, prescrita pelos artigos 12 a 17, consiste na


aprovação do projeto, que resulta na emissão da licença
urbanística para o empreendimento, após ser analisado e
aprovado pela prefeitura por conformidade às definições
das diretrizes por ela estabelecidas na primeira fase.

Além disso, de acordo com diretrizes estabelecidas pelos


estados, os municípios devem verificar a conformidade de
parcelamentos enquadrados nas seguintes situações:

i. Que estejam localizados em áreas de proteção de


mananciais.
ii. Que se localizem em áreas de proteção de patri-
mônio cultural, paisagístico e arqueológico.
iii. Que se localizem em áreas limítrofes do municí-
pio ou que pertençam a mais de um município.
iv. Que estejam localizados nas regiões metropoli-
tanas ou em aglomerações urbanas.
v. Que se localizem em áreas superiores a um mi-
lhão de metros quadrados.

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Sistema de licenciamento ambiental e direito de propriedade em empreendimentos imobiliários 155

A quarta e última fase do procedimento administrativo é


o registro do parcelamento, como estabelecido nos artigos
18 a 24. A submissão do parcelamento ao serviço de regis-
tro de imóveis deve ser realizada no prazo de 180 dias da
aprovação do projeto, sob pena de caducidade. E, no caso
de parcelamento popular destinado às classes de menor
renda, ou em imóvel declarado como de utilidade pública,
ou com processo judicial de desapropriação em curso e
imissão provisória na posse, desde que promovido pela
União, estados, Distrito Federal ou suas entidades delega-
das autorizadas por lei a implantar projetos de habitação,
fica o empreendimento dispensado da apresentação de tí-
tulo de propriedade.

Já, quando o parcelamento estiver registrado, seu cancela-


mento só poderá ser efetivado:

i. Por decisão judicial.


ii. A requerimento do empreendedor, com anuência
da prefeitura, enquanto nenhum lote houver sido
objeto de contrato.
iii. A requerimento conjunto do loteador e de todos
os adquirentes dos lotes, com anuência da prefeitu-
ra e do estado.

..........................................................................................................
156 As políticas urbanas e o meio ambiente – A busca da sustentabilidade

REFERÊNCIAS

BANUNAS, Ioberto Tatsch. Poder de polícia ambiental e


o município: guia jurídico do gestor municipal ambiental
orientador legal do cidadão ambiental. Porto Alegre: Salu-
na, 2003.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasi-


leiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em


foco. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

RODRIGUES, Eder Bomfim. O desenvolvimento sustentável e


a reforma do Código Florestal no Brasil. In: Âmbito Jurídico,
Rio Grande, XIV, n. 85, fev. 2011. Disponível em: <http://
www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revis-
ta_artigos_leitura&artigo_id=9005>. Acesso em: jul. 2015.

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel da; AGUIAR FILHO, Valfredo


de Andrade. Zoneamento ambiental urbano e desenvolvi-
mento sustentável. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano
18, n. 3556, 27 mar. 2013. Disponível em: <http://jus.com.
br/artigos/24067>. Acesso em: jul. 2015.

SIMÕES, Maria Luísa Duarte. Princípio da gestão democrá-


tica no direito ambiental. Revista Jus Navigandi, Teresi-
na, ano 19, n. 4056, 9 ago. 2014. Disponível em: <http://
jus.com.br/artigos/30212/umapincelada-juridica-sobre-
-o-principio-da-gestao-democratica-no-direito-ambiental-
-brasileiro>. Acesso em: jul. 2015.

.........................................................................................................
157

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que se possa atuar em um mercado dinâmico, inserido


no quadro estudado pelas ciências sociais aplicadas e não
pelas ciências exatas, torna-se importante analisar o pro-
cesso de formação da sociedade na qual se deseja atuar e/
ou propor intervenções de qualquer natureza.

Ao observarmos a formação da nossa sociedade, identifica-


mos que, já na época da colonização, foi criado um privile-
giado sistema de distribuição de terras. Embora este tenha
sofrido modificações, elas apenas legitimaram as posses
ocorridas anteriormente. Em momento posterior, a ideia de
se estabelecer a função social da terra não diminuiu o espa-
ço do favorecimento das elites.

Nesse contexto, a evolução das cidades em cada região


deu-se a partir de características distintas, hoje evidencia-
das pelo estudo de suas morfologias. Por outro lado, a aná-
lise das questões econômicas, políticas e sociais permitem
o estabelecimento dos princípios que determinam como as
ideias e intenções estão manifestadas no processo de cons-
trução do espaço urbano. O entendimento do processo de
aculturação na evolução social é determinante para as futu-
ras intervenções a serem realizadas na formatação urbana.
Esses elementos, por sua vez, constituem-se considerações
importantes na formulação da legislação de controle do
uso do solo.

..........................................................................................................
158

Tecnicamente, o planejamento urbano vem somar a esse


entendimento conceitos desenvolvidos para a administra-
ção de organizações e empreendimentos, agora adaptados
para trazer melhor interação entre os agentes sociais, dimi-
nuindo conflitos de convivência.

O planejamento urbano, por meio da proposição de uma


organização sistemática, ocorre em quatro etapas básicas:
a coleta de dados do objeto de estudo; o diagnóstico do
problema e a prescrição das ações a serem desenvolvidas
para que a meta possa ser alcançada; a implementação de
etapas e ações propostas; o monitoramento dos resulta-
dos obtidos, chamado de “controle”, com as respectivas
ações corretivas previstas na segunda etapa. Dessa forma,
ele constitui um processo por meio do qual serão estabe-
lecidos objetivos relativos ao desenvolvimento físico-ter-
ritorial de uma determinada área, e, quando selecionadas
as diretrizes consideradas mais adequadas para orientar
ações futuras na direção desses objetivos, será possível
garantir sustentabilidade para o desenvolvimento da so-
ciedade envolvida. Para a consecução desse planejamento,
processos de gestão deverão ser implementados e conti-
nuamente avaliados. Ou seja, ações políticas são utilizadas
para priorizar metas determinadas e não para determiná-
-las. Assim, de acordo com esse contexto, a tomada de de-
cisão não mais deverá basear-se em habilidades básicas,
como intuição, boas intenções, bom senso e experiência.

Uma das ferramentas mais utilizadas no planejamento ur-


bano é o zoneamento, que remonta ao início da república.
Naquele momento, a estrutura do poder público — então
dominada pelos interesses das elites — construía planos e
159

projetos com benefícios evidentes para a classe dominante


nas áreas por ela determinadas. Em consequência, os códi-
gos municipais subordinaram certas áreas da cidade ao ca-
pital imobiliário, o que acarretou a expulsão da classe tra-
balhadora pobre para áreas distantes do centro da cidade.

Devido ao fato de a função social da propriedade ter sido in-


troduzida de forma incipiente na constituição de 1934, foi
criado um parâmetro legal de orientação acerca de sua natu-
reza jurídica e política, o que estabeleceu limitações ao priva-
do em detrimento do bem comum. Esse parâmetro, porém, só
foi melhor definido a partir da constituição de 1988 e, mesmo
assim, ainda não surtiu o efeito desejado (ou imaginado). Nes-
se sentido, ocorreram reformulações nos códigos de obras,
que, por influência dos princípios modernistas de ocupação
do solo, promoveram a regulação urbanística a partir da cria-
ção de zonas no tecido urbano. Desse modo, propunha-se a
promoção da otimização dos usos e funções reservados para
cada área do aglomerado urbano e, como consequência, a ob-
tenção de aceleração no desenvolvimento da cidade e tam-
bém uma diminuição dos “usos indesejados” do solo.

Contudo, a trajetória das transformações políticas e eco-


nômicas, com as suas consequências para o crescimento
urbano, demandaram a ampliação da instrumentalização
do processo de expansão e de convivência entre os modos
de uso do solo. A manutenção da visão modernista contri-
buiu para a manutenção de relações de proximidade entre
os gestores públicos e os empreendedores. Desse modo,
foram também mantidas as práticas de flexibilização e de
modificação nas leis de zoneamento para que interesses
particulares pudessem ser atendidos em detrimento aos
das comunidades.
160

Entretanto, o intenso crescimento urbano em conjunto


com os interesses do mercado e do poder público na pro-
dução de moradias populares de baixo custo e a necessida-
de de solução para os loteamentos clandestinos, fez surgir
a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766/79),
definindo critérios para a localização dos parcelamentos,
parâmetros mínimos para a divisão dos lotes e passou a
exigir contrapartidas de doação de áreas para fins institu-
cionais e de circulação viária. Essa Lei determinou, então,
regras básicas de parcelamento do solo e deixou para a
municipalidade a aprovação de legislação urbanística com-
plementar, o que criou situações de incoerência jurídica.

No ano de 2001 foi aprovado o Estatuto da Cidade. As


inovações dessa legislação permitiram tanto a manuten-
ção de um “regramento ordinário”, por meio das leis de
zoneamento, quanto o reconhecimento legal de suas defi-
ciências. Mesmo assim, porém, permitiu também soluções
parciais e estrategicamente posicionadas, que vêm viabili-
zando sua aplicação.

Em consequência desse novo ordenamento legal, a de-


finição da função social da cidade compreende o direito
de todos ao acesso à moradia, aos serviços urbanos, ao
transporte, ao saneamento, à saúde, etc., pondo também
em relevo o respeito às normas ambientais. Portanto, as
diretrizes gerais da política urbana, definidas no Estatuto
das Cidades, são normas gerais de direito urbanístico, ba-
lizando e induzindo a aplicação dos instrumentos de polí-
tica urbana nela regulamentados, permitindo que o poder
público possa promover, junto aos proprietários de imó-
veis urbanos, um comportamento direcionado para fazer
com que suas propriedades cumpram uma função social.
161

Para a utilização das ferramentas disponibilizadas na le-


gislação, os municípios devem preencher dois requisitos
básicos. O primeiro é aprovar um plano urbanístico para o
município, dispondo sobre as exigências concretas para a
propriedade urbana atender sua função social, bem como
sobre o procedimento e o prazo para o cumprimento das
exigências. O segundo requisito é o de que a propriedade
urbana em questão deve pertencer à área definida como
urbana no plano-diretor. Também é importante que o pla-
no seja construído em linguagem acessível e clara. Ele deve
resultar em um conjunto de regras simples, que todos en-
tendam — condição essencial para que se possa defendê-lo
e aplicá-lo —, facilitando a implantação das medidas, que
devem ser previstas em conjunto com a sociedade, além de
evitar pendências judiciais posteriores.

O plano-diretor precisa representar um orientador para


construir credibilidade, mas também precisa ter credibili-
dade para ser efetivamente utilizado como referência. A
história dos planos no Brasil, no entanto, tem mostrado
que predomina um círculo vicioso de falta de credibilida-
de, gerando desrespeito ao que foi proposto como solução
para os problemas de uso do solo urbano. Assim, o pro-
blema é que se continua a permitir as flexibilidades que
favorecem os grupos dominantes. Essa situação associa-se
à falta de definição e à implementação dos instrumentos
urbanísticos, que visam permitir o acesso à terra bem loca-
lizada e que a propriedade exerça sua função social, facili-
tando a especulação no setor imobiliário.

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