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“Talvez Paris seja o centro do universo.

Isabella Pascucci

Ficha técnica: Meia-Noite em Paris (Midnight in Paris, Espanha, EUA, 2011); Direção:
Woody Allen; Roteiro: Woody Allen; Elenco: Owen Wilson, Rachel McAdams, Kurt Fuller, Mimi
Kennedy, Michael Sheen, Nina Ariadna, Carla Bruni, Yves Heck, Corey Stoll, Adrien Brody, Marion
Cotillard, Léa Seydoux; Gênero: Fantasia, Romance; Duração: 100 min.

Em seus filmes, Woody Allen já se aventurou pela Europa. Em Match Point


(2005), viajou pela Inglaterra e pela Espanha. Passou pela França no musical
Todos Dizem Eu Te Amo (1966), e retornou ao país, mais especificamente a capital
francesa, Paris, em um de seus melhores trabalhos, Meia-Noite em Paris (2011).
Allen, que não conseguia financiamento para produzir seus filmes em Nova York,
seguiu viagem para uma próspera turnê de filmes europeus. No longa-metragem
passado na França, Gil (Owen Wilson), um jovem roteirista norte-americano, viaja
para Paris com sua namorada e seus sogros, e para Inez (Rachel McAddams) e sua
família, a viagem servia apenas para organizar alguns preparativos do casamento e
para passear pela bela cidade. Já Gil, desde o começo de sua jornada em Paris, se
apaixona pela ideia de ficar em Paris e pelas histórias que já passaram por lá. Ele
almeja uma vida menos compromissada e atribulada, como a que vive em Beverly
Hills, e sonha em morar na Cidade da Luz escrevendo romances ao invés de ter que
lidar com os roteiros hollywoodianos pelo resto de sua existência.
Gil se encanta por cada esquina de Paris, e sonha em sentar no Cafe de
Flore e trabalhar em seus livros, assim como o autor Ernest Hemingway, que
inclusive cita a cafeteria em seu livro “Paris é uma Festa”, obra autobiográfica e
póstuma, por ter sido lançada em 1964, enquanto Hemingway faleceu em 1961.
Ernest, praticamente uma entidade da literatura, traz em seu livro não-ficcional
memórias dos anos em que morou na Cidade da Luz e momentos agitados dos
anos 1920, enquanto Paris se torna, em suma, uma personagem da obra, com
feição viva e iluminada, influenciando a formação de grandes artistas da época.
Hemingway conta que a cidade, principalmente nos anos 1920, abrigava escritores,
poetas e artistas plásticos, e essas pessoas reais foram retratadas em seu livro. O
casal F. Scott e Zelda Fitzgerald (que ganharam capítulos só para eles), Gertrude
Stein, T.S Eliot, Ezra Pound, James Joyce, Salvador Dali, Pablo Picasso, entre
outros. E Gil, de Meia-Noite em Paris, é fissurado por cada um desses, assim como
é pelos “Loucos Anos Vinte”, apelido para 1920.
O realismo fantástico de Woody Allen já pode ser visto lá pelos 17 minutos do
filme. Gil não queria sair para dançar com um casal de amigos de Inez que eles
haviam encontrado mais cedo, por querer andar e ver a cidade, além do fato que a
incompatibilidade entre ele e Paul (Michael Sheen) era clara. O protagonista então
foi abordado por um carro do século XX e levado para uma festa, onde ele não
acreditava nas pessoas que estava encontrando. Chegou até a achar que era
brincadeira ao conversar com os Fitzgerald e ao ouvir o compositor de “You´ve got
that thing”, Cole Porter, cantando ao vivo e a cores. Gil começou a acreditar mais na
fantasia de Allen, ainda extasiado, quando viu Ernest Hemingway, e quis até mesmo
levar o seu livro para o famoso autor analisar. Vivendo nesse período por um tempo,
e conhecendo pessoas em que Gil tanto se espelhava, como ele poderia voltar para
sua vida pífia? Allen, como o incrível desenhista de personagens que é, conseguiu
trazer em poucos traços as características desses artistas americanos exilados na
França e como cada um deles vive e lida com a Cidade da Luz, que como o próprio
Gil expressa no filme: “Talvez Paris seja o centro do universo.” Acompanhar o
desenvolvimento de Gil vivendo essa série de encontros e ainda, suas decepções
ao voltar para a “vida real” é um gostoso ápice, como quando se acorda de um
sonho.
A escolha de Woody Allen para um filme com situações tão improváveis faz
mais sentido ainda quando relacionada ao fato de que no século passado, os norte-
americanos tiveram que tolerar a bela imagem de Paris, por ser uma cidade que
prestigiava e dava espaço aos artistas, e também onde os mesmos podiam procurar
abrigo, a fim de ter seu talento reconhecido, coisa que não era de praxe acontecer
nos Estados Unidos da América. A cidade-museu trazia os artistas para si no século
XX. Allen, por sua vez, não acredita na arte como museologia e defende que a arte
não foi feita para ser ostentada, e sim, vivenciada, e já chegou a fazer piada com o
ostracismo da Cidade Luz no filme Dirigindo no Escuro (2003). Em Meia-Noite em
Paris, isso é inserido na relação de Gil com Paul, amigo de Inez. O amigo, que tem
uma postura de um homem sábio e parece ter uma enciclopédia no cérebro, leva
sua namorada, Gil e Inez para visitarem as estátuas de Rodin e o Jardim de
Versalhes, e na tentativa de evidenciar tanto conhecimento, chega a discutir com a
guia turística. Durante os passeios, contou diversos fatos históricos que
provavelmente leu em obras biográficas ou em livros de histórias, mas para Gil, e
para quem vê de fora, Paul só parecia uma pessoa inconveniente que queria se
exibir. “É um pseudointelectual”, segundo Gil.
No longa-metragem, o amor e o romance também são desenvolvidos. Alguns
parágrafos acima, eu relatei que Gil e Paul tinham uma incompatibilidade clara, mas
por incrível que pareça, Gil e Inez também não são tão compatíveis assim em seu
relacionamento. Com ideias diferentes de futuro, e conceitos bastante divergentes
do que é diversão, eles estão longe de ser o casal hollywoodiano perfeito que
vemos em tantos filmes. No entanto, Gil redescobre o amor em uma de suas
“passadinhas” pelos anos 20, e acaba conhecendo Adriana, que era modelo e
também amante de diversos artistas conhecidos daquela época. O protagonista se
encanta por ela e repensa seu relacionamento com Inez, chegando até a considerar
prolongar sua estadia no passado por tempo indeterminado para viver um romance
com Adriana. Ela, entretanto, era apaixonada pela Belle Époque, e assim como Gil,
queria viver em uma França do passado e voltar para o fim dos anos 1800. Já para
Gil, o momento em que eles estavam era perfeito, por ser um entusiasta dos anos
1920. Nesse contexto, vem à tona uma pequena crise existencial de Gil, que pode
escolher viver na realidade da década de ouro, podendo conviver com seus ídolos e
de fato ficar com a mulher que ama, Adriana; ou voltar ao presente, com sua
carreira indo por cursos indesejados, e prestes a casar com Inez, mulher pela qual
ele parece ter dúvidas se realmente ama ou não. Quanto ao que ele realmente
escolheu, contar para quê? A obra, que abriu o Festival de Cannes de 2011, vale
ocupar 100 minutos do seu tempo.
No que diz respeito a termos mais técnicos, a escolha dos atores é uma
gostosa surpresa. Owen Wilson, que até então vinha de produções hollywoodianas
menores e com destaque apenas em Marley e Eu (2008) e Os Excêntricos
Tenenbaums (2001), se mostrou um ator perfeito para trabalhar com Allen, daqueles
que você vê uma cena de atuação e já imagina que é da característica direção de
Woody. Os atores da Paris dos anos 1920 também merecem uma bela ênfase,
destacando Adrien Brody como Salvador Dalí, que trouxe a essência, o tom de voz
e o modo de se comportar do pintor surrealista para dentro do filme, assim como
Corey Stoll, o aclamado Ernest Hemingway, que alcançou o pessimismo perfeito
para reproduzir o autor, junto a seu trejeito e sua postura excêntrica. Em suma, o
elenco me parece perfeito e não consigo imaginar a obra de outra maneira, senão
com os atores que nela trabalharam. Desde os sotaques marcantes às
interpretações ímpares, perfeitos. Em relação a fotografia do filme, ela não deixa
nada a desejar. Afinal, como deixaria com os primeiros minutos do longa-metragem
se passando por alguns dos mais belos pontos turísticos de Paris? O início se passa
como uma linha do tempo de um dia, desde a manhã até o anoitecer. Com uma
iluminação natural, são mostrados famosos pontos turísticos como o Museu do
Louvre, a Catedral de Notre Dame, a avenida Champs Élysées e a aclamada torre
Eiffel. O que impressiona, é que a maior beleza não se encontra nesses
prestigiados lugares, e sim, ao mostrar o cotidiano dos parisienses, como os
característicos cafés da cidade, ruas congestionadas, parques, praças e simples
esquinas, mas que demonstram o quão única é a Cidade da Luz.
Meia-Noite em Paris é capaz de nos envolver em uma atmosfera de romance
e também, de reflexão. Afinal, quem nunca sonhou em viver em outra época por não
se identificar com a atual? Mas por outro lado, a grama do vizinho sempre parece
mais verde. É aquela velha história, parece mais gostoso desejar e não obter o que
queremos, porque no final das contas, com os nossos objetivos atingidos, será que
iremos sossegar e nos satisfazer ou outras vontades e inquietações vão continuar
vindo à tona? Gil passa por isso em carne e osso e percebe que não importa a
época que se vive, a existência vai sempre dar um jeito de parecer insuficiente ou
insatisfatória, e procurar a felicidade em outras épocas ou lugares é irrelevante,
porque ela vai estar onde você almejar. Esse balanço entre pessimismo e otimismo
que traz o filme, junto às escolhas que Gil tem que fazer, o deixa mais belo ainda.
Só não mais belo que Paris.

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