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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – UFRRJ

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO – IE
PRÓGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA – PPGPSI

DÉBORA REGINA SILVA DA CONCEIÇÃO

MULHERES PERIFÉRICAS: CARTOGRAFIAS DA VIOLÊNCIA


INTERSECCIONAL.

Texto apresentado à Universidade Federal Rural do Rio


de Janeiro – Departamento de Pós-graduação de
Psicologia para exame de qualificação no curso de
Mestrado.

Orientadora: Luciene de Fátima Rocinholli.

Seropédica | 2021
MULHERES PERIFÉRICAS: CARTOGRAFIAS DA VIOLÊNCIA
INTERSECCIONAL.

Resumo

O presente projeto de pesquisa tem como objetivo analisar os processos de subjetivação na vida
das mulheres do território da baixada fluminense. Pretende-se compreender no território -
utilizando-se da ótica dos teóricos Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari - a relação
desses processos com as negligências sociais encontradas pela problemática das desigualdades
interseccionais e quais são as suas consequências para a vida dessas mulheres. Será utilizado o
método cartográfico para acompanhar os processos de produção de subjetividade em rodas de
conversas semanais, totalizando dez encontros, com duração de uma hora e trinta minutos e
com no máximo dez participantes, fomentando temas relacionados a experiência de ser mulher
na baixada fluminense. Os encontros ocorrerão nos Centros de Referência de Assistência Social
na baixada fluminense de modo presencial, entretanto, poderão ser realizados de forma remota,
caso sejam impossibilitados por determinação sanitária para prevenção da COVID-19, através
da plataforma Meet, por chamada de vídeo. Os temas propostos nas rodas de conversa serão
construídos com o equipamento da Secretaria Municipal de Assistência Social de acordo com
a demanda relacionada a violência estrutural de gênero e interseccionalidade e servirão como
questões disparadoras permitindo a discussão do que seja importante para o grupo em cada
encontro. Espera-se com o estudo dar visibilidade as violências interseccionais e valorizar as
potências das mulheres na reivindicação por políticas públicas que reverberem na
transformação dos cenários da violência social.

Palavras-chave: Interseccionalidade; processo de subjetivação; cartografia; baixada


fluminense.

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PERIPHERAL WOMEN: CARTOGRAPHIES OF INTERSECTIONAL VIOLENCE.

Abstract

This research project aims to analyze the processes of subjectivation in the lives of women in
the Baixada Fluminense of Rio de Janeiro. It is intended to understand in the territory - using
the perspective of theorists Michel Foucault, Gilles Deleuze and Felix Guattari - the relationship
of these processes with the social negligence found by the problem of intersectional inequalities
and what are its consequences for the lives of these women. The cartographic method will be
used to monitor the production processes of subjectivity in weekly conversation circles, totaling
ten meetings, lasting one hour and thirty minutes and with a maximum of ten participants,
promoting themes related to the experience of being a woman in the Baixada Flumiense of Rio
de Janeiro. The meetings will take place in the Social Assistance Reference Centers in the city
of Rio de Janeiro, presencial, however, they may be held remotely, in case they are prevented
by sanitary determination to prevent COVID-19, through the Meet platform, by video call. The
themes proposed in the conversation circles will be constructed with the equipment of the
Municipal Social Welfare Department according to the demand related to structural gender
violence and intersectionality and will serve as triggering questions allowing for the discussion
of what is important to the group at each meeting. It is hoped that the study will give visibility
to intersectional violence and value the powers of women in the demand for public policies that
reverberate in the transformation of social violence scenarios.

Keywords: Intersectionality; subjectivation process; cartography; Baixada Fluminense.

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Introdução

O problema a ser investigado neste trabalho é a invisibilização das mulheres da baixada


fluminense expostas à violência devido a desigualdade de gênero. Inicialmente, as questões e
justificativas envolvidas neste projeto giram em torno do tema da interseccionalidade de gênero,
raça e classe. E ainda, são marcados por processos pessoais, acadêmicos, políticos e
socioculturais, os quais, inevitavelmente, se atravessam. Além disso, ao importante exercício
de demarcação do meu lugar de fala, escuta e implicação, o exponho enquanto mulher nascida,
criada e acadêmica da baixada fluminense, hoje feminista e de cor, logo, atravessada pelas
defasagens de políticas públicas que possibilitassem o contato com a luta feminista e contra a
violência estrutural interseccional. A exposição do lugar que parto remete ao lugar de recusa de
neutralidade do pesquisador, rompendo com a barreira entre sujeito que conhece e o objeto a
ser conhecido, estabelecendo uma relação, um movimento de afetos e atravessamentos
permanentes entre os dois com o tema, que de acordo com Paulon (2005) tem relação à análise
de implicações na pesquisa-intervenção.

A vivência no território junto a pensamentos e coletivos acadêmicos me fizeram


enxergar o quanto essa violência faz parte das capilaridades estruturais sociais. Estruturas as
quais, na ausência de representação de empoderamento e a forte presença da estrutura opressora
e patriarcal, atravessam a subjetividade das mulheres periféricas violentamente. Assim, as
capilaridades negligentes e opressoras se caracterizam como pilares invisibilizados do território
produzindo subjetividades femininas a todo instante.

Em relação aos processos pessoais acadêmicos, destaco a potência dos estudos em


psicologia e pela prática crítica da área nos espaços e fenômenos socioculturais. Por meio de
algumas disciplinas como aluna do curso na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro tive
contato primeiramente com a análise das subjetividades e dos processos de subjetivação
realizados por Michel Foucault e, em seguida, pelos teóricos Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Desde então me inclinei, de forma fluida, às leituras dessa vertente da psicologia social e
processos de subjetivação contemporâneos, voltados aos eixos de gênero, trabalho, classe social
e cultura. Tais leituras permitiram-me à compreensão que temas como “gênero”, “violência”,
“sujeito” não são dados a priori, dotados de uma essência e, por isso, a-histórico. Ao contrário,
possibilitam problematizar, como analisa Foucault (2018), que a realidade é marcada pelos
embates entre os diferentes discursos presentes no tecido social, sendo que alguns deles
emergem e se tornam hegemônicos. Como resultado, passam a legitimar como “único” ou

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“aceitável” determinados modos de ser e estar no mundo em detrimento de outras formas de
existência.

Outra experiência vivenciada e que contribuiu para a reflexão sobre os processos de


violência na subjetividade da mulher deste território, diz respeito ao estágio realizado na
Secretaria Municipal de Assistência Social de Nova Iguaçu, no Centro de Referência de
Assistência Social de Austin (CRAS Austin). Esse equipamento do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) é a referência da rede de atenção social básica e tem entre os seus
objetivos “prevenir o risco social, fortalecendo os vínculos familiares e comunitários e
promovendo a inclusão das famílias e dos cidadãos nas políticas públicas, no mercado de
trabalho, na vida em comunidade” (SPINK & RAMOS, 2016, p. 310), os quais em sua maioria
estão localizados em áreas de vulnerabilidade social.

Na ocasião vivenciei diversas manifestações interessantes sobre a temática da mulher


nesse território. Elas – muitas acompanhadas pelos filhos pequenos - eram a grande maioria
que frequentava, sem parceirx, o espaço, o qual promovia reuniões mensais por meio do Serviço
de Proteção e Atenção Integral a Família (PAIF)1. Em um desses encontros eu tive a
oportunidade de realizar uma roda de conversa sobre assédio e a maioria dos participantes era
mulheres. Na ocasião surgiram os temas de violência atravessados pela construção de gênero e
seus impactos na subjetividade das mulheres e dos homens ali presentes. Algumas
estereotipavam outras mulheres pelas vestimentas e atitudes, outras questionavam o que poderia
ser assédio, e ainda tiveram as que atentamente silenciaram-se e ao final da reunião quiseram
conversar em particular.

Além das experiências com o trabalho prático voltado às mulheres, meu trabalho de
conclusão de curso teve enfoque no estudo do processo de construção da diferença sexual e sua
capacidade de produzir subjetividades, o que me gerou forte interesse em dar continuidade ao
tema. Por meio deste processo pessoal, me senti convocada ao potente exercício de investigar
e analisar os processos de produção de subjetividades nestes espaços de contato com este
território, localizado aos redores dos grandes centros urbanos com suas demandas sobre o

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O PAIF é um serviço da proteção social básica que tem como objetivo prevenir o rompimento dos vínculos
familiares e a violência no âmbito das relações, garantindo o direito à convivência familiar e comunitária. É de
cumprimento obrigatório e exclusivo do CRAS, consiste na oferta de ações e serviços socioassistenciais de
prestação continuada por meio do trabalho social com famílias em situação de vulnerabilidade social. (Lei nº
12.435, Art24-A, 2011)

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assunto, tecendo compartilhamentos da experiência dessas mulheres periféricas, ao instigar
provocações através de diálogos de estreitamento.

A vivência acadêmica descrita acima permitiu-me também a reflexão sobre os processos


políticos e socioculturais que se revelam na realidade da população brasileira, no estado do Rio
de Janeiro, e no foco da presente proposta de estudo, a baixada fluminense. No Brasil
enfrentamos o fato de estarmos entre os piores países do mundo em representação das mulheres
no governo. Dados do IBGE (2018) mostram que a representação política feminina era de
39,1% nos cargos gerenciais em 2017 e no atual governo, este cenário piora ainda mais. Na
matéria emitida pelo site da câmara, a representação feminina é de 9% - com a legitimação do
presidente atual, afirmando que as que ocupam a porcentagem valem por todos os outros 91%
de cargos ocupados por homens -, ao passo que no mundo é de 20,7%. Apesar disso, as
mulheres são 52% da população brasileira, o que serve como denúncia de que os homens
continuam gerenciando a política representando toda sua população com pouquíssima
representatividade da maior parcela dela. Importante destacar que o cenário é muito pior se
formos considerar a classe e a raça da população não espelhada nos seus representantes.
Portanto, revela-se a necessidade de pesquisas e práticas acadêmicas que vão ao encontro desse
território e a esta questão social, onde as mulheres sofrem negligências e violências por razões
justificadas pelo imaginário social da diferença de gênero, que a submete a um lugar de menor
valor. Diante disso, considero importante construir um lugar de representatividade e
visibilidade das mulheres desse território para que elas expressem a experiência de suas
subjetividades afetadas pela sua condição de gênero.

Segundo dados do Dossiê Mulher realizado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio
de Janeiro (ISP 2021), a cada vinte e quatro horas quatro mulheres são vítimas de lesão corporal,
doze são vítimas de estupro, quatro mulheres são vítimas de ameaça e pelo menos uma é vítima
de importunação ofensiva ao pudor. Estes casos são os notificados, o que segundo o mesmo
Instituto a realidade pode revelar um número muito maior devido às subnotificações que já era
um problema e se intensificou com o isolamento social decorrente da COVID-19, dificultando
a vítima a denunciar seus agressores. Do total de casos de feminicídio no estado do Rio,
aproximadamente 25% ocorreram na baixada fluminense, esta que também enfrenta grave
realidade de subnotificação e piorou pela impossibilidade de as mulheres saírem de casa para
denunciar seus agressores com o isolamento social. Estes são crimes cujo impacto é silenciado,
praticados sem distinção de lugar, de cultura, de raça ou de classe, além de ser a expressão

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perversa de um tipo de dominação masculina, ainda fortemente cravada na cultura brasileira.
Cometidos por homens contra as mulheres, suas motivações são o ódio, o desprezo ou o
sentimento de perda da propriedade sobre elas (AQUINO, 2015, p. 11). Assim sendo, a
diferença de gênero afeta violentamente as subjetividades dessa população.

Na baixada fluminense, os dados apontam que a representatividade da mulher nos


cargos públicos é ínfima e escassa. Todos esses dados e a falta de informações complementares
para elucidar a participação da mulher em esferas públicas de poder, representam impacto na
vida dessas mulheres que, como veremos adiante, através de levantamento de dados, são
negligenciadas e invisibilizadas, tendo seus direitos e subjetividades violadas por este cenário
da diferença sexual. O historiador social Linderval Monteiro (2005) em sua análise histórica
sobre o território da baixada denuncia a falta de observação ao território periférico:

“o pouco que foi até agora escrito acerca da Baixada Fluminense é insuficiente
para que se possam pensar os problemas daquela periferia urbana como bem
estudados. Diversos aspectos da vida social e política que persistem ali
continuam intocados ou foram extremamente pouco analisados.”
(MONTEIRO, 2005, p.488)

Justificativa

Devido a realidade de violências vividas pelas mulheres e o apontamento da demanda


por observações voltadas a periferia, tendo em foco a baixada fluminense, essa problemática
revela-se um campo profícuo à psicologia social e dotado de possíveis manifestações e
capacidades de transformação da realidade de violação. Através das análises de subjetivação -
um processo dinâmico, afetado pelas instituições sociais, práticas socioculturais e pelo tempo
histórico - definido por Foucault (2018), pretendemos conhecer como essas mulheres se
expressam na forma de se colocar no mundo, perpassadas pelos cenários de violência,
negligência e invisibilidade interseccional. Nos interessa observar, no território periférico
também invisibilizado, os modos de subjetivação que se manifestam através das vivências das
mulheres, agenciadas pelas violências estruturais presentes no território.

A partir da experiência, que favorece a visibilidade de subjetividades periféricas, busca-


se conquistar a possibilidade de movimentos que promovam mudanças de cenários negligentes
no território. De acordo com o psicólogo social Domenico Hur (2019), observar as forças
atuantes no agenciamento – esquemas de operação das forças influentes na formação subjetiva

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– de subjetividades, favorece a provocação de potencialidade e percepção sobre as
possibilidades de compor e gerar movimentos internos e sociais. Promovendo novos processos
e caminhos no território e pelo território, portanto, linhas de forças agenciadoras que podem se
manter, mesclar, criar ou se dissipar. Logo, ao observar os modos de agenciamento e promover
novos encontros e linhas de forças agenciadoras, impulsionar a capacidade de gerar
movimentos outros na sociedade, na comunidade, nas políticas públicas e na saúde coletiva.

Portanto, torna-se importante e urgente a investigação do que as mulheres desse


território têm a revelar, através de suas experiências invisibilizadas, sobre os processos de
subjetivação atravessados pela diferença de sexo e interseccionalidades. Além disso, qual a
relação das instituições e estruturas sociais de desigualdade de gênero sob a realidade de
violência estrutural enfrentada por essas mulheres? E ainda, quais são os impactos da
intervenção territorial, por meio da criação de espaços de diálogo e compartilhamento, na
existência delas?

A proposta de pesquisa ora apresentada pretende demonstrar a relevância da


investigação desses processos de subjetivação perpassados pela desigualdade de gênero, que
acarretam o problema social da violência em diversos âmbitos, negligências sociais e a
invisibilidade que, na maioria dos casos, são silenciosamente enfrentados. Além disso, este
estudo justifica-se pela importância de desenvolver trabalhos acadêmicos que promovam
espaços de fala e visibilidade com foco na experiência das mulheres da região periférica: a
baixada fluminense. Nota-se também como essencial a valorização das potências - através
desses espaços de diálogo – com o objetivo de, ao se enxergarem como cidadãs de direito
potentes, reivindicar políticas públicas com a possibilidade de transformar as consequências
violentas e negligenciadoras das desigualdades interseccionais que impactam na saúde das
mulheres.

Objetivo Geral

Analisar os processos de subjetivação atravessados pela violência estrutural na vida das


mulheres do território da baixada fluminense.

Objetivo específico

1.Identificar como as violências estruturais agenciam as relações neste território.

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2.Analisar como as construções sociais de gênero e suas interseccionalidades afetam e
produzem as subjetividades femininas.

3.Identificar negligências, invisibilidades e silenciamentos tecidos nas subjetividades


femininas.

4.Observar e acompanhar possíveis modos autênticos de enfrentamento às violências de gênero


presentes no território da baixada fluminense.

5. Acompanhar o traçado das linhas de fuga capazes de agenciar movimentos que transformem
a realidade violenta e reacionária das mulheres na baixada fluminense.

Referencial teórico

O caminho escolhido para construção deste projeto de pesquisa foi estruturado pelos
conceitos que permeiam a violência interseccional e a formação da subjetividade. Assim,
abordarei o conceito de interseccionalidade e os processos de estruturação de gênero, raça e
classe, as quais afetam diretamente nas subjetivações sociais. Esse caminho busca destrinchar
os movimentos sociais que produzem as opressões interseccionais e as violências submetidas
às mulheres a fim de criar o arcabouço teórico necessário para avançar na pesquisa. Cabe
ressaltar que foram encontradas poucas referências bibliográficas sobre trabalhos na baixada
fluminense referente aos impactos na subjetividade da mulher. Entretanto, um analisador
importante nos estudos encontrados foi o constante direcionamento à algumas negligências
sofridas pela população da região: a invisibilidade social, as políticas marcadas por ilegalidades
e a violência.

A Sociedade Civil “Fórum Grita Baixada” (2019), através do boletim de violência


contra a mulher, publicou os tipos de violência cometidas, as mais afetadas e quem eram os
principais agressores. Segundo o boletim, em 2017, 31% dos feminicídio do Estado do Rio de
Janeiro ocorreu na Baixada Fluminense além das diversas outras violências cometidas (sexual,
moral, física, psicológica, patrimonial, tentativa de feminicídio, entre outras). Das que sofreram
com essas múltiplas violências, 61,7% eram mulheres negras. O boletim ainda informa que
60% dos casos de violência foram praticados por conhecidos (Ex-companheiro, companheiro,
parente, amigo/vizinho). Levando em consideração que um dos maiores motivos que levam as

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mulheres a permanecerem convivendo com seus agressores é a dependência financeira (IPEA,
2019), além da raça, como visto acima, a classe dessas mulheres também se apresenta como
importante aspecto na pesquisa territorial da violência estrutural. Outra informação alarmante
dada pelo boletim do Fórum “Grita baixada” é de que a maior parte dos casos de feminicídios
e violência contra mulheres não chegam a ter registros oficiais. Portanto, além do gênero
enquanto influenciador nos dados de violências, as causas que parecem levar as mulheres a
situações graves de abusos são permeadas pelos eixos de raça e classe. Logo, trata-se de uma
violência consequente das opressões interseccionais (CORRÊA e ZIRBEL, 2021) que
aprofundaremos a seguir.

No final da década de 1970, o feminismo negro reivindicou espaço diante da


invisibilidade das experiências das mulheres negras, por meio de críticas coletivas ao
feminismo branco, que lutava por direitos específicos negligenciados a mulheres brancas, como
direito ao trabalho por exemplo – enquanto as mulheres negras nunca deixaram de trabalhar
duro. Além disso, ao movimento antirracista – focado nas opressões que viviam os homens
negros, mas que muitas vezes reproduziam o machismo com as mulheres pretas –
(AKOTIRENE, 2019). Como herança dessas críticas aos movimentos que não abarcavam as
múltiplas formas de opressão vivenciadas pelas mulheres pretas, a problemática da
interseccionalidade foi cunhada, dentro de um quadro interdisciplinar, pela intelectual afro-
estadunidense Kimberlé W. Crenshaw (1989).

O termo conquistou popularidade acadêmica após uma Conferência Mundial Contra o


Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância na África do Sul,
no ano de 2001. A partir de então, a interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-
metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, o capitalismo e o cisheteropatriarcado
(AKOTIRENE, 2019). Enfim, esse conceito pretende superar o fracasso do feminismo
reprodutor do racismo e o do movimento negro reprodutor do machismo, tendo a proposta de
considerar e dar atenção às múltiplas fontes de identidade, sem ter a pretensão de impor alguma
teoria globalizante da identidade (HIRATA, 2014, apud KIMBERLÉ, 1994) ou de
hierarquização de opressões.

Para compreender as consequências estruturais e dinâmicas da interação dos eixos


cruzados de subordinações opressoras, irei aprofundar inicialmente sobre os processos da
construção de gênero, em seguida da raça e, por fim, da classe. Na construção cultural do gênero
e do sexo, abordarei a teoria feminista contemporânea de Judith Butler (2018) - teoria queer -

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e os limiares históricos para essa construção tornar-se naturalizada, explorados cuidadosamente
pelo psicanalista, também contemporâneo, Joel Birman (2016). Butler (2018) vai além das
críticas levantadas pelas feministas clássicas ao gênero enquanto um constructo social,
questionando a definição da ideia do sexo, fundando assim a teoria queer. Para a autora o
próprio sexo teria interpretações por meio de significados culturais. Sendo assim, o corpo é em
si mesmo uma construção influenciada pelos discursos de relação de poder e o gênero é o que
sustenta o binarismo do sexo. Portanto, a diferença binária do sexo, para Butler, é cultural e já
consiste em submeter o corpo a um conjunto de regulações sociais que imprimem naturalidades
inerentes entre gênero, sexo, prazer e desejo. A partir destas teorias que defendem a produção
cultural do feminino e masculino avançaremos no questionamento das regularizações inscritas
ao feminino e a historicidade do corpo sendo definidor das formas de desejo, prazer e sexo.

Com relação a construção histórica, Birman contará em seu livro “Gramáticas do


erotismo” (2016) que, anterior ao gênero binário, o que era considerado desde a Antiguidade
pelos filósofos como Aristóteles e Galeno era o conceito de sexo único. Este conceito
estruturava a ideia de que a mulher era um homem imperfeito, havendo homologia entre as
genitálias dos dois corpos, neste sentido, a mulher poderia se tornar um homem. Nesta
configuração a hierarquia entre os dois é inextinguível – pois ainda que ela se tornasse um
homem, deveria ser respeitada a hierarquia entre eles -, a mulher estaria nos polos da
imperfeição, passividade, escuridão e não verdade e o homem seria sinônimo de perfeição,
atividade, luminosidade e verdade.

Todavia, com o Renascimento no século XVII, as representações dos corpos e suas


diferenças incorruptíveis foram demarcando-se, tendo então a origem da diferença entre eles na
natureza do organismo humano. Foi então no século XVIII que a estrutura do paradigma
hierárquico do sexo único tornou-se insustentável devido a novos ideais de igualdade de direitos
entre os cidadãos diante da lei, formulado pela Revolução Francesa. Então, o novo modelo de
sexo binário foi constituído e fundamentado pela diferença sexual, e tornou as finalidades e as
possibilidades sociais do homem e da mulher inscritas na determinação biológica natural. Feito
uma síntese histórica, observa-se que, depois de muitos anos naturalizada em nosso imaginário
social, a diferença sexual tem sua temporalidade de significados.

Já a noção de raça enquanto critério de classificação humana se instituiu em meados do


século XVI. De acordo com o filósofo contemporâneo Silvio Almeida (2019), o sentido do
termo está totalmente ligado a circunstâncias históricas e permeado por conflitos, poder e

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decisão, logo, não é um termo fixo e estático. As circunstâncias históricas da raça ligadas a
esses dispositivos têm como agenciamento a constituição política e econômica da sociedade.

No século XVI, a expansão comercial burguesa e da cultura renascentista construiu vias


para o ideário filosófico do Iluminismo, o qual definiu a ideia do homem universal. Ao definir
esse constructo, o Iluminismo transforma o homem europeu no ideal e define também “todos
os povos e culturas não condizentes com os sistemas culturais europeus em variações menos
evoluídas” (ALMEIDA, 2019, p.18). Esse ideário filosófico, além de observar o homem
cartesiano, também o considera como aquele que se pode conhecer, sendo então sujeito e objeto
do conhecimento. Com isto, aqueles – brancos europeus – que fundaram a ideia de homem
universal passam a estabelecer múltiplas diferenças entre os humanos e a classificá-los e
compará-los tomando a si mesmos como modelo.

Essa distinção entre civilizado e primitivo, promoveu o movimento de ampliar a


civilização com o objetivo de proporcionar os princípios da liberdade, da igualdade, do Estado
de direito e do mercado. Por meio desse movimento de levar a civilização aos primitivos
instaurou-se um processo violento, de destruição e de morte feito em nome da razão do
Iluminismo. Este movimento foi, portanto, o colonialismo (ALMEIDA, 2019). Assim, por meio
de práticas brutais e exploratórias destinadas a civilizar e ampliar o acesso aos princípios do
Iluminismo, baseadas na distinção “civilizado X primitivo” proveniente da ideia da
universalidade do homem, ocorreu o colonialismo.

A psicóloga Grada Kilomba (2020) faz uma análise sensível deste processo de uso da
raça como ponto-chave para naturalização da prática colonizadora. Segundo a autora, o racismo
constrói a ideia de discursos, imagens, gestos, ações e olhares que colocam o sujeito negro e as
Pessoas de Cor como o “Outro”, assim como a ideia de Outridade – que ela entende como
resultado da projeção dos aspectos reprimidos na sociedade branca. Essa concepção de
Outridade se refere a processos que projetam para fora – para o Outro – partes cindidas da
psique. Esse movimento acontece como mecanismo de defesa do ego, quando somente a parte
“boa” do ego é reconhecida e considerada como “eu” (self) e o resto, a parte “indesejada” e
“má”, é rejeitada e projetada como algo externo sobre o “Outro”.

No projeto de colonização, isso ficou claro nos discursos que validaram o domínio e o
extermínio de pessoas racializadas. A partir da fantasia de que o sujeito negro quer possuir e
tomar algo que pertence ao “senhor” branco (cana-de-açúcar, fruto, cacau), legitima-se a ideia

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de dominar e explorar os negros, embora toda a produção e plantação, pertencesse, de fato, aos
colonizados que a produzia. É nesse processo que o sujeito branco afirma algo sobre o “Outro”
(negro) que ele, branco, se recusa – em negação – a reconhecer em si próprio (problemático,
difícil, perigoso, preguiçoso, exótico, incomum, secularizado, agressivo e “sujo”). Com isso, o
sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo e o branco torna-se a vítima compassiva, ou
seja, o opressor torna-se oprimido e o oprimido, o tirano. Essa repressão e projeção permite ao
branco esconder a historicidade de sua opressão e se construir e legitimar como civilizado e
decente, enquanto os “Outros/as” racializados se tornam as/os incivilizadas/os, agressivos e
selvagens, naturalizando-se, assim, o domínio dos “Outros/as”. Diante da estrutura traçada, os
autores Silvio Almeida (2019) e Grada Kilomba (2020) analisam as práticas presentes na
sociedade contemporânea reprodutoras dessa lógica racista: o racismo estrutural, institucional
e cotidiano.

Assim como a estrutura da raça, a classe também é uma das estruturas que submete
interseccionalmente as mulheres a violências, dessa vez na estrutura econômica com a divisão
sexual do trabalho. Silvia Federici (2017) analisa e relaciona o extermínio da Caça às bruxas,
na Europa do século XVI com a acumulação primitiva – início da instauração do capitalismo -
e a demarcação dos espaços público e privado. Na divisão dos espaços destinou-os o privado
às mulheres e o público para os homens. Com isso, camponesas foram expulsas de suas terras,
que eram fonte do seu sustento, a pobreza tomou conta da Europa e aqueles que tinham capital
para sustentar financeiramente a propriedade privada tiveram suas funções delimitadas com a
divisão sexual do trabalho. As mulheres, então, cuidariam da casa e dos filhos, enquanto os
homens cuidariam dos negócios nos espaços públicos. Na divisão, a “função da mulher” teve
legitimidade embasada na ideia de essência feminina e, além disso, a importância do trabalho
reprodutivo realizado no âmbito doméstico exercido pelas mulheres na acumulação do capital
foi invisibilizada e desvalorizada, estando na ideia de “não trabalho”.

Além da função restrita ao espaço privado, as mulheres que possuíam saberes empíricos
sobre as ervas ou sobre o controle da reprodução, maior liberdade sexual, ou mesmo as
parteiras, se não demonstrassem serem “boas católicas”, além de terem essas práticas ancestrais
proibidas, eram nomeadas de bruxas. Isso porque esses saberes e práticas eram considerados
místicos e ameaçadores, vistos como desafiando a hegemonia do poder do capital. A bruxa,
portanto, era toda mulher desviante que não se submetia a lógica do espaço privado, a

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maternidade, que discutia, que tinha a vida sexual livre e não somente dedicada à procriação e
ao casamento, a mendiga e a mulher que não chorava sob tortura (FEDERICI, 2017).

Aqueles que comandavam o regime do “Novo Mundo” submeteram a população a forte


vigilância, oferendo recompensas para aqueles que denunciassem as bruxas escondidas e
punições para as que lhes oferecessem ajuda. Eles defendiam que as bruxas eram mulheres
adoradoras do diabo, capazes de realizar práticas hereges e magias para enfeitiçar e amaldiçoar
as famílias e seus membros. Esse impacto sobre as mulheres, mortas e torturadas na fogueira,
além de agenciar os modos de existir, viver ou morrer da mulher, reverberou também em todo
o processo econômico capitalista. A base para que a divisão sexual do trabalho fosse instaurada
foi a expropriação dos corpos femininos, para que eles fossem “liberados” de qualquer
obstáculo que lhes atrapalhassem de funcionar como máquinas de produção de mão de obra e
trabalho reprodutivo (FEDERICI, 2017). Assim, a mulher foi designada a limitadas
possibilidades – literalmente – de existência, excluída de funções políticas e econômicas.
Portanto, “a caça às bruxas foi um elemento essencial da acumulação primitiva e da ‘transição’
ao capitalismo” (FEDERICI, 2017, p. 294).

Mesmo perdendo força na Europa no século XVII, a demonização e os tabus


desenvolvidos pela caça às bruxas foram ganhando força nas colônias, de modo que as vítimas
das opressões passaram a ser os sujeitos racializados. As mulheres indígenas e as pretas
africanas escravizadas eram subordinadas às violações da colonização, violações
fundamentadas na ideia de que eram seres humanos inferiores, não civilizados, selvagens,
bestializados e primitivos, logo, que precisavam ser domesticados, catequizados e castigados
caso manifestassem subversão aos mandos de seus “senhores”. Seus saberes ancestrais e
costumes culturais foram rechaçados e proibidos, considerados como práticas também místicas,
hereges e demonizadas. A depreciação cultural, segundo Federici, foi o projeto de expropriação
e exploração, o qual foi justificado e validado pelas construções de gênero, raça e acumulação
primitiva, e que conduziu ao extermínio tanto das mulheres, como dos povos colonizados. Aqui
o gênero se encontra com a raça, portanto, no delineamento de opressões e violências
entrecruzadas.

Portanto, a acumulação primitiva se iniciou submetendo as mulheres a violências em


diversas instâncias. Desde a divisão sexual do trabalho à ocupação das mulheres dos espaços
públicos, as mulheres foram diretamente afetadas pela estrutura histórica-metodológica de
classes, antes despropriadas das suas terras, dos seus trabalhos e dos seus importantes serviços

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domésticos, e até hoje, por ainda precisarem lutar para alcançar direitos iguais de gênero. E
ainda, muitas sem autonomia financeira acabam sendo agenciadas ainda mais por relações
violentas profissionais, domésticas e familiares.

Através das análises estruturais dos eixos opressores que fazem parte das violências
interseccionais é possível observar que são violências engendradas na estrutura política,
econômica, histórica e simbólica da sociedade que se manifesta por meio da dominação e
exploração (CORRÊA e ZIRBEL, 2021). Nesse sentido, são consideradas como violências
estruturais fomentadoras das desigualdades sociais e das práticas de dominação,
marginalização, abandono e descaso atravessando diretamente na formação da subjetividade
das mulheres periféricas. Processo no qual irei aprofundar adiante com o objetivo de demarcar
os instrumentos que utilizo de observação, experiência e estudo nesta pesquisa.

Primeiramente é importante abordar a definição de subjetividade. O conceito foi


compreendido por Félix Guattari sendo um fenômeno não acabado, logo, é um processo de
constante transformação, segundo aquilo que nos afetamos e de acordo com aquilo que vivemos
no encontro com o outro. Em “Cartografias do desejo” (1996) o teórico invalida a noção de que
temos a posse de uma subjetividade e afirma que esta é volátil e constituída de diversas
maneiras. Assim, a subjetividade seria então produzida por agenciamentos de enunciação,
produzindo sentido tanto por agentes individuais (sistemas de percepção, de afeto, corporais
biológicos etc.) como agentes grupais (sistemas sociais, midiáticos, econômicos, tecnológicos
etc.).

Diante disso, Guattari afirma que a subjetividade circula nos conjuntos sociais sendo
em sua essência social, assumida e vivida nas existências particulares/singulares. Partindo deste
princípio, há formas diferentes de viver assumindo os atravessamentos sociais da produção
subjetiva, uma é de forma alienada, outra é de forma criativa e singular. A primeira, caracteriza-
se quando o indivíduo se submete à subjetivação tal como a recebe, alheio a si próprio e a um
conhecimento de si muitas vezes de forma opressora. A segunda, o indivíduo, em uma relação
de expressão e criatividade, se reapropria dos componentes da subjetividade de forma
consciente, assumindo lugar ativo no processo de subjetivação.

Com isso, as formas diferentes de subjetivação demarcadas por Guattari (1996) nos
revelam que a provocação criativa à essas estruturas bem estabelecidas socialmente são capazes
de gerar situações de crises. Um momento transitório de desconstruções dos processos de

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opressões já estabelecidos e normalizados: micro revoluções. Essas situações, para Guattari,
caracterizam-se como micropolíticas, correspondentes ao que o teórico chama de molecular, às
forças instituintes e móveis, “às questões de uma analítica das formações do desejo no campo
social” (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 127). Além da micropolítica o teórico também define
a macropolítica: aquilo que é instituído, estratificado, o Estado e conjuntos sociais instituídos,
portanto, desta vez correspondente ao molar. O psicólogo social Domenico U. Hur (2019)
explora os conceitos de Guattari e acrescenta a potencialidade das revoluções moleculares
enquanto movimento de transmutação das estruturas psicossociais e molares. A revolução
molecular atuaria, segundo o psicólogo, como rachaduras no instituído, criando novos
movimentos e fluxos de autoanálise e autogestão em corpos que pareciam ordenados e
esvaziados, logo, alienados.

A importância de provocar essas rachaduras também é abordada pela socióloga


feminista brasileira Heleieth Saffioti (2004/2019) como um processo de micropolítica. Segundo
a feminista, a micropolítica interpenetra-se na macropolítica e vice-versa, sendo assim, gera
força de transformação em ambas. Essa produção incessante atualiza a potência coletiva para
transformar a realidade social, criando a possibilidade de ação política diante da realidade de
violência estrutural - muitas vezes submetidas a opressões interseccionais - e defasagem na
saúde pública - invisibilizadas e silenciadas que as mulheres periféricas e interseccionais estão
expostas.

Por último, é importante demarcar o que, neste trabalho, compreende-se como violência
interseccional, violência que apresenta traços históricos estruturais como mencionado acima.
Essa violência é definida como uma ruptura de qualquer forma da integridade – física, moral,
psíquica ou sexual - de uma pessoa, podendo ser explícita ou velada (SAFFIOTI, 2004). Seus
efeitos podem ser múltiplos como morte e anulação da autonomia da mulher, minando seu
potencial como pessoa e membro da sociedade, além de provocar repercussões intergeracionais
(MENDES e GOMES, 2013). As consequências desse problema social e de saúde pública
podem impactar essas mulheres de diversas formas, deixando-as mais expostas a situações
negligentes de saúde pública, como prostituição sem nenhum tipo de direito, uso de drogas,
gravidez indesejada, doenças, suicídio, danos físicos e questões psicológicas. Podem ser
expressas em atitudes visíveis como comportamentos e atos violentos ou as sutis e legitimadas
por estruturas históricas e culturais, por vezes, difíceis de serem detectadas (CORRÊA e
ZIRBEL, 2021).

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Além disso, a violência de gênero – eixo opressor interseccional - promove a
despotencialização das mulheres as reduzindo a meros objetos, inclusive por elas mesmas.
Segundo Saffioti (2004/2019), devido a organização social de gênero, as impunidades dos
agressores das mulheres e as violações normatizadas no dia a dia, as mulheres são destituídas
de poder para mudar a situação de violência. E ainda, com as múltiplas estruturas de opressão,
“No que tange a violência de gênero, não é difícil observar que a mulher é considerada um mero
objeto não apenas por seu agressor, mas por ela mesma. Faz parte do discurso da vítima
considerar-se somente objeto, ou seja, não sujeito” (SAFFIOTI, 2019, p. 151). Nota-se, então,
a importância do diálogo sobre o tema, com o objetivo de análise atenta e de pôr em prática as
provocações de fendas e rachaduras analisadas por Domenico U. Hur (2019) que convidam à
análise do cotidiano e a possibilidade de transmutações sociais e subjetivas.

Baseada nos referenciais bibliográficos expostos, pretendemos avançar nas discussões,


trabalhando nas lacunas bibliográficas direcionadas ao público, e analisar na prática os
processos de subjetivação através da temática da exposição da mulher periférica a violência
estrutural sob olhar interseccional. Sendo assim, produzir conhecimento, visibilidade e quiçá
revoluções moleculares para as mulheres da baixada fluminense usuárias do serviço da proteção
social básica oferecido pelo SUAS.

Método

Como método de pesquisa será utilizado a Cartografia, proposto por Deleuze e Guattari
(2004) e utilizado por outros autores na investigação de processo de produção de subjetividade
(Passos, Kastrup e Escóssia, 2014). A escolha desse método ao contrário de privilegiar a
simples coleta e descrição de informações, possibilita acompanhar processos presentes no
território investigado, evidenciando a trama composta pelos discursos e práticas engendrados
pelos atores envolvidos na temática pesquisada. Neste sentido, o método cartográfico não busca
estabelecer um caminho linear e único para investigação frequentemente utilizados em
pesquisas na área das ciências humanas. Sua importância reside, entre outras coisas, à uma nova
forma de perceber o sujeito em suas relações com o mundo. Este passa a ser visto como
múltiplo, com ilimitadas possibilidades de agenciamentos e conexões no seu ambiente. Esta
perspectiva possibilita que o confronto com outras experiências e discursos, tidos como
diferentes, seja um encontro criativo, que amplie a sempre limitada visão que temos de nosso
mundo.

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Em suma, a cartografia é encarada como processualidade, produção de possibilidades
que decompõe as normas instituídas e compõe novas ordens de múltiplas direções. Essa
perspectiva nos permite pensar a produção histórica de instituições como, gênero, violência,
classe, raça e territorialidade. Incita a romper com as práticas positivistas que acreditam em um
indivíduo uno, com uma essência, e que opera dentro dos regimes de causa e efeito, para
pensarmos os objetos de nossa análise de múltiplas formas, e enquanto acontecimentos que
estão imediatamente junto de nós, diretamente articulados com a materialidade de nossa prática.

O dispositivo rodas de conversa será apresentado como disparador das experiências a


serem cartografadas. A roda de conversa possibilita uma pesquisa narrativa em que o
pesquisador se insere como sujeito da pesquisa viabilizando as discussões, trocas e partilhas de
experiências, desenvolvendo reflexões em um processo mediado pela interação do grupo
(MOURA e LIMA, 2014). Pretendemos que o dispositivo faça a mediação para que a conversa
torne o ambiente propício para diálogos onde as pessoas presentes nela se sintam à vontade
para partilhar e escutar, emitir opiniões relevantes para os sujeitos da roda.

Nas rodas de conversa, o diálogo é um momento singular de partilha, porque


pressupõe um exercício de escuta e de fala, em que se agregam vários
interlocutores, e os momentos de escuta são mais numerosos do que os de fala.
As colocações de cada participante são construídas por meio da interação com
o outro, seja para complementar, discordar, seja para concordar com a fala
imediatamente anterior. (MOURA e LIMA, 2014, p. 100)

Segundo as autoras, esse ambiente promove a ressonância entre os sujeitos, de histórias


de vida diferentes e maneiras próprias de pensar, sentir e enxergar a vida e as situações vividas.
Nesse sentido, a roda de conversa é a participação coletiva de debate pela troca das experiências
singulares e sociais, socializando saberes, implementando saberes outros, divulgando
conhecimentos, valorizando, construindo e reconstruindo novos conhecimentos através do
grupo.

O presente trabalho de pesquisa irá analisar e observar, através da Cartografia, as


manifestações e atravessamentos da construção do gênero interseccional na subjetividade de
mulheres jovens usuárias dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) localizadas
na baixada fluminense. Em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência Social
(SEMAS) do município de Nova Iguaçu, serão realizadas rodas de conversas nos equipamentos
indicados pela SEMAS, com duração de uma hora e trinta minutos, fomentando temas

18
relacionados a experiência de ser mulher na baixada fluminense. A proposta inicial tem o
objetivo de formar dois grupos abertos de oito a dez mulheres, com dez encontros semanais. A
equipe de pesquisa será formada por três profissionais, eu, como pesquisadora do tema e mais
duas pesquisadoras voluntárias graduandas do curso de psicologia na Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro.

Os temas propostos nas rodas de conversa serão construídos com o equipamento da


SEMAS em reunião prévia ao início das rodas de conversa, de acordo com a demanda
relacionada a violência estrutural de gênero e interseccionalidade. Esses temas servirão como
questões disparadoras, no entanto, a proposta é promover um ambiente confortável para
permitir que os temas possam se entrecruzar com o que seja importante para o grupo em cada
encontro. De acordo com a situação sanitária de pandemia do COVID-19 no período de
realização das rodas de conversa, será avaliada a possibilidade de os encontros serem realizados
presencialmente ou por plataformas online de vídeo chamadas, considerando a mesma
quantidade de participantes, frequência e duração dos encontros.

Os registros das rodas de conversa serão feitos através de diário de bordo, o qual será
escrito por todas as pesquisadoras participantes do encontro. Essa construção visa incluir os
pesquisadores e os pesquisados, permitindo a ampliação e publicização da análise das
implicações que se cruzam na pesquisa (BARROS e PASSOS, 2020). Nele abordaremos nossos
afetos, implicações e questões de cada roda a fim de construir uma viagem-intervenção coletiva.

Todas as participantes assinarão um termo de consentimento livre e esclarecido para


participação na pesquisa. O projeto de pesquisa passará pela avaliação do Comitê de Ética da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro para análise e terá início após a sua aprovação.

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Cronograma

Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Atividades Período (2021)
Revisão bibliográfica X X X X X X X X X X X X

Elaboração do projeto X X X X X X X X X X

Defesa do projeto de Qualificação X


Submissão ao comitê de ética de
pesquisa X
Construção de rede com os
equipamentos X X
Período (2022)
Realização dos encontros e rodas de
conversa X X X X X X
Análise das experiências X X X
Elaboração da escrita dos capítulos X X X X X X X
Preparação para publicação X X X
Redação final X X
Defesa de dissertação X

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psicanálise, 2.ed., Civilização brasileira: Rio de Janeiro, 2016.

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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. São
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