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Sobre Filhos e Cães (Mateus 15:21-28)

Normalmente sou levado a utilizar os textos de Marcos, por gostar mais dele e por ser
o primeiro escrito. Entretanto, acho interessante as adições feitas por Mateus nesse
episódio. A história é bem conhecida. Porém, muito já ouvi sobre essa narrativa e, por
conta de tudo que já ouvi, acho que convém dar meu parecer sobre o texto.

Primeiramente vamos nos ater ao contexto. Lembrando que, sobre o contexto, vale
ressaltar que existe o contexto literário (em que lugar da obra de Mateus está situado
o texto) e o contexto do autor (de que lugar e época provêm o texto e a quem é
dirigido). Isso nos coloca diante de alguns problemas que precisam ser resolvidos.

Mateus escreve em um período onde existe uma forte disputa com os fariseus. Isto
porque, depois da guerra judaica (64-70 dc), os dois "judaísmos" (cristãos e fariseus)
lutam para reorganizar a fé judaica abalada por conta da destruição do templo e de
Jerusalém. Uma tribulação que "enganou" alguns judeus-não-cristãos e judeu-cristãos.
O primeiro grupo esperava o momento messiânico e o segundo o retorno de Jesus. O
evangelho de Marcos resolveu o problema dos cristãos e os fariseus lutavam para
resolver o problema dos outros.

Nessa disputa judaica, Mateus reedita o evangelho de Marcos. Ampliando e


acrescentando fatos que apontam o nível dessa disputa. Dando a Cristo a primazia e
um título subjetivo de verdadeiro intérprete das Torah. E em uma de suas
interpretações (de Mateus), ele recolhe esse episódio de Marcos e demonstra sua
visão de que a salvação em Cristo é Universal e não limitada a Israel. Para chegar
nessa conclusão, na controvérsia com os fariseus, Mateus já introduz esse
ensinamento (E no seu nome os gentios esperarão. Mateus 12:21). Mas, neste
episódio, Jesus ainda não enxergava isso. A visão limitada a Israel era ensinada por
Jesus a seus discípulos na sua primeira comissão: 

"E, chamando os seus doze discípulos, deu-lhes poder sobre os espíritos


imundos, para os expulsarem, e para curarem toda a enfermidade e todo o mal.
(...) Jesus enviou estes doze, e lhes ordenou, dizendo: Não ireis pelo caminho
dos gentios, nem entrareis em cidade de samaritanos;
Mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel;
E, indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus. 
Mateus 10:1-7"

Jesus envia seus discípulos somente "às ovelhas perdidas de Israel". Para aqueles
que julgam que esse era um pensamento temporal e que Jesus já se imaginava indo
aos gentios, o episódio dessa reflexão diz outra coisa: 

"Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. 


Mateus 15:24"

Para Jesus entender o amor do Pai foi preciso o amor de uma mãe. Uma mulher que
ama sua filha demonstra para Jesus o amor do Pai. Seus discípulos compartilham da
mesma opinião que Jesus, mas chegam a pedir que o Mestre, pelo menos, diga que
não irá atendê-la, pois Jesus nem respondia. Mas a mulher diz:

"Senhor, socorre-me! Mateus 15:25"

Sua dor não comove Jesus. Pelo contrário, em uma parábola ele deixa claro que,
diante da salvação oferecida, ela não fazia parte do povo eleito. Se o mundo todo
fosse uma família, ela seria um cão e os judeus os filhos. No momento (em que Jesus
estava) os filhos mereciam atenção e precisavam ser "alimentados".
Aquela mulher devia ter ouvido algo sobre Jesus. Alguma coisa lhe deu esperança,
mas, no lugar, recebeu uma palavra dura. O amor por sua filha faz com que devolva,
ao Mestre das parábolas, outra. Assumiu, no olhar de Jesus, seu papel de cão. E
suplicou comer das migalhas que os filhos deixavam cair da mesa. De tudo aquilo que
era oferecido aos judeus (e eles negavam), ela queria apenas as migalhas. O que
importava a ela não era ter a primazia ou a igualdade, apenas a libertação de sua filha.

"Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da
mesa dos seus senhores. 
Mateus 15:27"

Jesus não teve outra coisa a fazer diante daquela declaração:

"Então respondeu Jesus, e disse-lhe: O mulher, grande é a tua fé! Seja isso feito
para contigo como tu desejas. E desde aquela hora a sua filha ficou sã. 
Mateus 15:28"

Aquela mulher ensinou algo a Jesus. O Mestre teve sua aula. Ele compreendeu que a
missão do Messias era Universal. E compreendeu bem, segundo Mateus que, na
definitiva missão dos apóstolos, faz seu Jesus declarar:

"Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do


Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;
Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que
eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém. 
Mateus 28:19-20"

Por conta daquela mulher, Jesus passa a entender que Deus é o Deus de todos os
povos. Ensinamento esse que os profetas judeus já possuíam -  que nos diga Amós!.
E que muitos judeus de ontem e hoje compreendem da mesma forma. Entretanto,
para o Messias, isso ainda não estava claro.

Não existem cães! O que há é um mundo de filhos. Um mundo de ovelhas perdidas.


Mateus ensina para seus irmãos que a justiça de Deus não vê apenas os judeus que
perderam seu lugar de culto e sua casa. Mas todos os povos que, de alguma forma,
estão perdidos e necessitados. O Messias enviou seus discípulos a todos os povos.

Deus é o Deus da libertação de todos os povos. Deus é o Deus de todos os sofridos,


injustiçados e oprimidos. Deus é o Deus dos necessitados, não importando cor, raça,
credo, cultura ou sangue. Se mesmo Jesus pôde aprender isso, por que ainda pregar
um Deus partidário? Libertemos nossa mente para compreendermos o Deus de Jesus.
O Deus de todos! Não há cães! Há filhos com fome! E ele diz: "dai-lhes vós de comer."
(Mateus 14:16)

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