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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS Uma Era Secular

Reitor
Pe.Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Charles Taylor
Vice-reitor
Pe.Josélvo Follmann, SJ

EDITORAUNISINOS Tradutores
Nédio Schneider e Luzia Araújo
Diretor
Pe. cedro Gilberto Gomes, SJ

ConselhoEditorial
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Carlos Alberto Gianotti
Pe.Luas Fernando Rodrigues, SJ
Luiz Henrique Rodrigues
]'e. I'edro Gilberto Gomes, SJ

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93022-000 São Leopoldo RS Brasil

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Fax:51.35908238 EDITORA UNISINOS
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T

Sumário

Prefácio 7
13
Introdução

PARTEI
A obra da Reforma
Capítulo l. Os baluartes d
41
da fé/RBP n oPBBggPP00no uRPPPPPPPnoo

117
Capítulo 2. O surgimento) da sociedade
sociedade disciplinar.................................
disciplinar
181
ldicação ..............................
Capítulo 3. A grande erradicação ......
os sociais 197
Capítulo 4. Os imaginários sociais modernos
modernos ............
:) cleal smo......pp -oe--pppp-pp -. 259
Capítulo 5. O espectro do idealismo.

PARTEII
O momento decisivo
idencial ............................... 269
Capítulo 6. Deísino Providencial
n n nnnnn-nn nnnnnnaannnH. 325
Capítulo 7. A ordem impessoal..

PAKTElll
O efeito nova
357
Capítulo 8. Os mal-estaresda Modernidade....
383
Capítulo 9. O sombrio abismo do tempo .......
417
Capítulo 10. 0 universo da descrença em expansão
445
Capítulo 11.As trajetórias do século XIX...

PARTE IV
Narrativas de secularização
495
Capítulo 12.A Era da Mobilização ..
555
Capítulo 13. A Era da Autenticidade.
593
Capítulo 14. Religião hoje

PARTE V

Condições de crença
633
Capítulo 15.A estrutura imanente.
697
Capítulo 16. Pressões cruzadas..........
725
Capítulo 17. Dilemas l
789
F
Capítulo 18. Dilemas 2
829
Capítulo 19.As fronteiras inquietas da Modernidade
849
Capítulo 20. Conversões
903
Epílogo: as muitas histórias....
Índice temático e onomástico ... 907
Capítulo 12

A Era da Mobilização

jl] Tentemosver a que ponto chegamos nessahistória do despontar da mo-


derna secularidadeno Ocidente. O final do século XVlll assistiu à emergência
de uma alternativa viável ao cristianismo na forma do humanismo exclusivo;
ele assistiu igualmente a um certo número de reações contra este e contra a
compreensãode vida humana que o produziu. Foi o início do que estou cha-
mando de efeito-nova, da escalaconstantemente ampliada de novas posi-
ções-- algumas críveis, algumas não críveis, outras difíceis de classificar
que se tornaram opções acessíveisa nós. Porém, tudo isso aconteceu no seio
das elites sociais,algumasvezes -- quando se chegou a desenvolver novas
formas de descrença -- unicamente entre a intelligentsia. E esse processo de
pluralização da elite continua durante o século XIX, em diferentes ritmos,
cominterrupções de diferentesduraçõesem diferentes sociedades.Foi esse
processoque estive acompanhando, ao menos em alguns de seus aspectos,
nos capítulos precedentes.
Porém, de alguma maneira, nos dois séculos interpostos, as situações di-
fíceis por que passaram os estratos naquela época mais elevados se torna-
ram as de sociedadesinteiras. Não foi só a paleta de opções (religiosas e não
religiosas)que se ampliou, mas também o próprio lugar do religioso, ou do
espiritual, na vida social mudou. Como se deu isso?
Neste ponto, ingressamos no terreno da "teoria da secularização". Isso di-
zia respeito principalmente à explicação das várias facetas da secularidade l (a
retração da religião na vida pública) e 2 (o declínio em termos de fé e prática),
masobviamente haverá muitas sobreposiçõesdessascom a secularidade 3 (a
mudança nas condições da fé). Particularmente, a relação entre esta última
e a secularidade 2 com certeza será estreita. Não porque as duas mudanças
sejam idênticas, ou mesmo porque devam andar juntas. A mudança que me
interessaaqui, a (3), implica, entre outras coisas,o despontar de uma alter-
nativa humanista. Esta é a precondição para (2), o surgimento da descrença
de fato, que, por seuturno, muitas vezescontribui para (2),o declínio da
prática. Nada faz com que essasconsequênciassejam inelutáveis, mas elas
496 497
ParteIV Narrativas desectílarização Capíflílo 12. A Era da À4obíllzízção

de modo algum acontecerão, a não ser que ocorra a pluralização original de Segunda Guerra Mundial e como que se precipitou após a década de 1960.'
alternativas. Quanto aos EUA, há quem estime um crescimento constante da adesão reli-
Assim, visando entender como as que eram alternativas para poucos se giosa desde a Revolução direto até a década de 1960,apenas com um declínio
tornaram alternativas para muitos, será útil apoiar-se naquilo que seconhece relativamente leve desde então.;
a respeito do declínio ou falta de declínio da fé. Essahistória é incrivelmente Essefato naturalmente não deveria surpreender-nos. Devemos situa-lo
complicada, com amplas variações entre diferentes países, regiões, classes. no contexto do impulso reformista, comprovadamente subjacentea todo o
ambientes, etc. E como nos capítulos precedentes, minha abordagem enfo- movimento, do qual a "secularização"é uma ramificação.Todosos esforços
cará principalmente algumas fases do processo em algumas sociedades (es- anteriores para reconstituir a Igreja visaram alcançar níveis crescentesde
pecialmente a Grã-Bretanha,. a França e, às vezes, os EUA, com ocasionais prática ortodoxa. O último grande impulso do catolicismo francês,anterior
olhadas para outras partes). Ê desnecessáriodizer que os meus comentários ao esforço do século XIX, havia sido a Contrarreforma do século XVll, que
neste ponto serão muito provisórios. Porém, arrisco a esperança de que, ain- logrou alcançar e integrar na igreja pessoas que anteriormente haviam sido
da assim, poderão ser úteis, que algumas linhas gerais de mudança poderão pmticantes marginais. Ele realizou missões internas de amplo espectro- E
ser visibilizadas, ao menos nos paísesmais detidamente abordados,e que, algo análogoaconteceunas culturas de cunho mais protestante da Grã-
dessamaneira, eles possam ser uma pequena contribuição para a história Bretanha e da América, com missõese movimentos de reavivamento que
geral da secularizaçãono Ocidente. saíram a campo para trazer para a Igreja os que estavam fora dela.
Podemos,agora, estar tentados a pensar que a condição espiritual da eli- Nos casosbritânico e francês,um objetivo claro daquelesque finan-
te tornou-se a condição espiritual das massasem grande parte por meio de ciaram essasmissões,grossomodono século XIX, era prevenir a difusão da
difusão. Esta foi favorecida pela expansãoda educação formal padronizada, cultura metafísico-religiosafendida da classealta e da ítzfeiiíge/ltsía,
para a
pela disseminaçãoda alfabetização e, em consequência,de níveis mais eleva- qual a descrençaera uma opção real. Ninguém poderá duvidar que esse
dos de escolarizaçãoe, mais recentemente,pelo forte incremento da prepa- foi o objetivo principal da restauraçãopromovida pelo catolicismo francês,
ração universitária. A condição da elite muitas vezes se tornou generalizada mas ele também figura no movimento evangelicalda Inglaterra do final do
também pelo fato de a sociedade moderna induzir cada pessoa a adorar o século XVlll, nos esforços empreendidos por Chalmers na Escócia no início
mesmomodo de vida, tender a apagar a distinção entre cidade e interior do século XIX e em outras regiões. Por que essesmovimentos tiveram êxito?
e inculcar em cada uma o mesmo imaginário social em relação à sociedade Onde eles tiveram êxito? E por que tudo entrou em colapso em décadas
como um todo, particularmente com a penetração dos meios eletrõnicos em mais recentes?A partir dos elementos expostos acima, podemos ver que
toda parte. os anos de 19600u imediaçõesconstituem um momento divisor de águas
Ora, tudo isso desempenhouum papel importante, particularmente em em todos os três paísese, de fato, em muitos outros no mundo ocidental;
tejnpos recentes.Porém, o caminho que de fato levou de lá até aqui foi muita o que aconteceu?E é claro que o grande enigma da teoria da secularização
mais acidentado e indireto do que pode ser captado por uma simples história continuam sendo os EUA.Por que essasociedade permaneceu, de modo tão
da difusão. Para começar,em alguns países,houve práticas religiosas que flagrante, à parte de outros países atlânticos?
surgiram no século XIX e às vezes também no século XX. Há quem estime que Seriamuita loucura da minha parte achar,por um minuto que sela,
o apogeu da prática católica na França ocorreu por volta de ]870,após a crise que poderia responder a essasquestões. Elas talvez sejam irrespondíveis
da Revolução com suas campanhas de "descristianização", a igreja constitu- nos termos em que muitas vezes são postas pelos sociólogos, que são leva-
cional e outros traumas desse tipo.: dos por sua disciplina a procurar explicaçõesmediante fatores universais.
Depois disso, houve um declínio, que se tornou abrupto na década de Em relação a estes, porem, verifica-se regularmente que são menos do
1960.Personalidades favoráveis à adesão às igrejas surgiram na Inglaterra que aparentam.
durante o séculoXIX,alcançandoo ponto alto por volta do início do século Assim, um dos falares a que muitas vezes se faz referência na teoria da
XX, quando teve início um lento declínio, que se tornou mais rápido após a secularizaçãoé o da "diferenciação", o processopelo qual funçõesque origi-
nalmente eram executadasconjuntamente se cristalizam à parte e passama
l Robert Tomba (France.']8]4-1914. London: Longman, 1996, p. ] 35) localiza o ponto alto no ano de fazer parte de esferas separadas, com suas próprias normas, regras e insti-
1880; Geram Cholvy e Yves-Made Hilaire(llfsfoi're rellgfeizsc de la Früncc confemporaíne. 7800y1880. Paras:
Privar, 1985,p. 317), por sua vez, localizam-no mais cedo, por volta de 1860.Fiz a média da diferença. Callum Brown. A RevisionistApproach to ReligiousChance, in: SteveBruce (Ed.)- l?e/rgfaiinlzd
Ralph Gibson('4 Socüzl Hísfory o(FrencbCalão/ícísm1798-]974.London: Routledge, 1987,p. 230) concorda Mover/íízatíozt.
Oxford: Oxford University Press,1992
com essalocalização temporal ' Reger Finke. An Unsecular Arnerica, in: Bruce (Ed.)- Religion nizd À4oderlzizafíon
498 499
Parte IV Nat"Falidas de seca,{tarização Capítulo 12. A Era da Mobilização

tuições.'Por exemplo, no passado,a unidade familiar foi tanto local de vida quanto o cristianismo promoveram, eles próprios, em diferentes épocas,vá-
quanto local de produção. Porém, esta última função desde então transferiu. rios tipos de desencantamento.
se para fora dela e as empresas em que ela agora tem lugar formam a esfera JoséCasanovatrouxe argumentos persuasivoscontra a identificação de
que concebemoscomo "a economia", com sua própria racionalidade intrín. diferenciação e privatização. Indubitavelmente, ocorreu uma separação e
seca. De modo similar, a Igreja costumava prover educação e "atendimento à emancipaçãode esferasseculares,como as do Estado, da economia e da ciên-
saúde", sendo que agora estas têm lugar em instituições especializadasmui- cia. Porém, isso não implica de modo algum "que o processo de secularização
tas vezes financiadas e geridas pelo Estado. traria na sua esteira a privatização e, alguns acrescentaram, a marginalização
E claro que essesdesenvolvimentos são relevantes para o nosso tema da religiãono mundo moderno". Pelocontrário,alega Casanova,hoje "es-
como um todo. No mínimo, alguns deles talvez possam ser tomados como tamos testemunhando a 'desprivatização' da religião... Tradições religiosas
uma descrição da secularidade 1, relegando [)eus e re]iglão às margens de mundo afora têm-se recusadoa aceitar o papel marginal e privatizado que
várias esferaspúblicas. Mas até mesmo essaequiparação levanta problemas, asteorias da modernidade assim como as teorias da secularizaçãotêm reser-
e quando se tenta usar a diferenciação para explicar a secularidade 2. neces. vado para elas".7
sabiamentese levantam objeções.A dificuldade com a equiparaçãode di- Dificuldadesde outro tipo surgemcom generalizações
que parecem
ferenciaçãoe secularidade l é a seguinte: o fato de a atividade numa dada plausíveis em alguns casosimportantes, mas acabamnão sesustentando em
esfera seguir sua própria racionalidade inerente, não permitindo o tipo mais termos mais amplos, como é o caso da conexão entre urbanização e secula-
antigo de normativida de baseada na fé, não significa que ela não possa muito ridade 2. Há quem argumente que o inverso parece ser verdadeiro para os
bem ainda ser moldada pela fé. Assim, um empresário atuante na moderna EUA.' E .a generalização pode não se sustentar em relação ao Reino Unido
não poderia conciliar sua atividade com a interdição da usura pela durante o século XIX.s
igreja medieval, mas um calvinista devoto não se veria impedido de realizar Aqui chegamos a um ponto-chave desse tipo de pensamento histórico
eu negócio para a glória de Deus, dando boa parte dos lucros para a carida- As situaçõessão tão variadas e suí generfs,e falares reconhecidamentere-
de etc. De modo similar, uma médica moderna não terá o hábito de mandar petíveis podem ser entendidos e vividos de modo tão diferenciado nessas
seu paciente tocar uma relíquia, mas sua vocação para a medicina pode estar situações,que, no fim das contas, teremos mais certeza a respeito de certos
profundamente fundada em sua fé. Seguem-seproblemasóbvios relativos à atributos causaisparticulares do que jamais poderemos ter a respeito do que
diferenciação frente à secularidade 2.s
parecem ser as generalizações baseada neles. Weber estava consciente dessa
O equívoco, neste último caso referente à médica, é identificar seculari. situação complicada e Bruce valeu-se vigorosamente dela para criticar alguns
zaçãocom desencantamento. Porém, caso sepresuma que (na nossa civiliza- dos seus críticos.:'
ção) secularização inclui alguma espécie de declínio ou recessão da fé cristã
(e/ou judaica), essaidentificação não tem como subsistir. Como afirmaram
repetidamente Weber,Gauchet, Berger e muitos outros,ótanto o judaísmo.

5Ollvler Tschannen l.esfAáoríesde /asá:u/arfsafíoll.Geneve: Droz, 1992,capítulo IV Pau[o' ]-au]us, 2004]. PublicRelígfoirsin fhe À4odenTWór/d. Chicago: University of Chicana Press,1994, p-
5.20.211

' Roger Finke, .4n Ullseci lz í'À)zmícu, p. 154ss. zatÍol! flt Westerll Europe, ]848-19]4 New York: St.
Martin's Press, 2000, Introdução; e em Europcn/l Re/igion ín fhe Age of Grcat Cifíes, 1830-]930. London
Routledge, 1995, Introdução; 'cf. também Callum Brawn. The Dcafh of Chrisfian Bríraín. London: Rout-
ledge,2001.
'''' " Steve Bruce, Pluralism and Religious Vitality, in: Steve Bruce (Ed.) Religlon and Àlodernízaffon.
Oxford: Oxfard University Press,1992,p. 170-194.No seu livro A facial Hisfary of French(-alHolicisln
] 789.]g]4 (Londres: Routledge, 1989, p. 170-180), Ralph Gibson discute "la carte Boulard", o mapa dese-
nhado em 1947por Chanoine Boulard, mostrando as grandes diferenças regionais em termos de pratica
religiosa na França.François Furei descreveu essemapa como "um dos documentos mais cruciais e mais
misteriosos sobre a França e sua história". O mistério reside no fato de esse mapa espelhar aproxima-
damente mapas que podem ser desenhados a respeito de diferenças similares no século XIX e até no
século XWl] Essas diferenças de longo prazo dificultam o mapeamento de níveis de prática com base em
variáveis sociais e económicas;os efeitos destas variam demais de região para região. Parte da explicação
para essasdiferenças reside "na história do catolicismo francês anterior à Revolução:..lProvavelmente,
e necessárioremontar à Reformacakóbcaou até mesmo (em muitos casos)à história socialda Idade
500 Parte IV Natratipas de secttla?ização

Então,o que significa tudo issopara a ideia da "secularização"?E lugar-


T V
CapÍttito.12.A Era daMobilização

dessascontestações.Porém,issonão quer dizer que não se ganhou algo im-


501

comum dizer que, em nossa civilização, ocorreu algo que merece esse título, portante ao passar por elas. Isso nos permite refinar nosso relato a respeito do
embora, algumas vezes, isso seja contestado por estudiosos.'' O problema, que aconteceuexatamente.Afinal, o que ocorreu foi mais do que apenasuma
no entanto, é definir exatamenteo que foi isso que aconteceu.De fato, até mudança;o que queremosincluir sob o título "secularização"?
O fato de o
as objeções a que a "secularização" realmente tenha ocorrido suscitam essas clero não mais poder arrastar as pessoasdiante de tribunais eclesiásticospor
questõesde interpretação. não pagarem os seus dízimos de fato significa que somos menos religiosos?
Qualquer um pode ver que tem havido declínios na prática e na fé con- Por si só certamente não. Hoje há sociedades muito devotas, nas quais isso
fessada em muitos países, particularmente em décadas recentes, e que Deus não acontecenem pode acontecer.É claro que nenhum papa ou bispo pode-
não está presente no espaço público como nos séculospassados,e assimpor ria fazer com que um governante pedisseperdão de joelhos, como aconteceu
diante no tocante a um grande número de outras mudanças. Porém, como com Henrique ll da Inglaterra e Henrique IV do Império. Porém, isso já havia
entender e interpretar essasmudanças pode não ser tão evidente. se tornado impossívelna época em que Henrique VTllda Inglaterra impôs o
Há de fato duas grandes razões para objeção. Geralmente se concebe a seu ato de supremacia ou as tropas do Imperador Carlos V saquearam Romã
+

secularização"como uma designaçãopara algum tipo de declínio em ter- Isso significa que a "secularização" aconteceu, em essência,no início do sécu-
mos de religião. Sendo assim, você pode perguntar se, na nossa era, a religião lo XVl? Não podemos simplesmente identificar "religião" com o catolicismo
realmente retrocedeu tanto quanto parece; ou, assumindo que ela não ocupa do século Xll e, então, computar cada movimento de afastamento disso como
mais tanto espaço assim, você pode querer saber se ela alguma vez teve todo declínio, como argumentou persuasivamente David Mártir.::
esse espaço. Em outras palavras, você pode questionar nossas imagens de Nesseponto, parte do problema intelectual e certamenteboa parte da
uma anterior idade de ouro da religião, uma "idade da fé"; afinal, por baixo H
r
razãopara a reaçãoemocional se deve ao fato de haver também um impor-
de um exterior mudado, as coisas talvez não sejam tão diferentes assim. tante "impensado" (se posso usar esse termo foucaultiano) que serve de
Ambas as alegações suscitam questões de interpretação. O que é religião? base para boa parte da teoria da secularização- Oponentes da teoria falam
Se alguém a identificar com os grandes credos históricos, ou até com a crença de uma "ideologia" da secularização,e uma que julga falsa a religião e, por
explícita em seres sobrenaturais, parece ter havido declínio. Porém, se você isso. inexoravelmente em declínio. Os variados cenários da "morte de Deus
incluir um amplo espectro de crençasespirituais e semiespirituais; ou sevocê que mencionei anteriormente podem ser vistos como variantes disso. Porém,
jogar sua rede ainda mais longe e pensar a religião de alguém como a forma o termo "ideologia" estáfora de lugar aqui. Ele implica que o partidarismo
assumida por sua preocupação última, então de fato se pode argumentar que levou a melhor sobrea erudição, que reina a má-fé. Bruce tem toda razão em
a religião está mais presente do que nunca. refutar essa proposição.n
Em segundo lugar o que é o passadocom que estamoscomparando a Porém, isso não descarta a proposição de que boa parte da sociologia/
nós mesmos?Nem mesmoem erasda fé todo mundo foi realmente devoto. história da secularizaçãotenha sido afetada/moldada por um "impensado",
Como ficam os paroquianos relutantes que raramente compareciam?Eles que está relacionado de modo mais complexo ao ponto de vista do autor em
realmente são tão diferentes das pessoasque hoje se declaramnão religio- questão, isto é, não simplesmente como uma extensão polêmica da visão de
sas?Eu próprio creio que a tese da secularizaçãoconsegue resistir à maioria alguém, mas no sentido mais sutil de que o próprio quadro de referência de
alguém, suas convicções e valores, podem constringir a imaginação teórica
Média, com muita frequência não documentada" (p. 177).Yves-Made Hilaire (U71eC/zréfie/zféau XIXe dessa pessoa.
Sfêcle?Lille: PUL, 1977, volume 1, p. 552) defende uma posição análoga. Parte da explicação para as Mais do que partidarismo inflamado e polêmico, estaé a verdadeira pe-
diferenças quanto à prática nas diferentes regiões do norte'da França remonta a "les efforts de la
dra de tropeço da ciência social neutra. No prefácio a uma obra contempo-
Réforme catholique{ poursuivis méthodiquement au XVllle siêcle dans les diocesesde Boulogne et
de St Omer à I'ouest et dana celui de Cambrai à I'est. [.-] Un Partzde Pressyà Bou]ogne,un Fénelon rânea pode-se ler isto: "Qual das religiões tratadas aqui, se houver alguma,
à Cambrai, aidés par un clergé nombreux et actif. semblent avoir durablement marqué leur diocese é 'verdadeira' não é assunto do cientista social, que deveria sempre aspirar a
[aos esforços da Reforma cató]ica, envidadas metodicamente durante o século XVlll nas dioceses de
Bolinha e Saint Omer no oeste, e na de Cambrai, no leste. [...] Um Partz de Pressyem Bo]onha,um
valorizar a neutralidade, mesmo que seja difícil atingir esseestado"." A ênfa-
Fenelon em Cambrai, auxiliados por um clero numeroso e ativo, parecem ter marcado suas dioceses se deveria ser dada a esta última cláusula. Determinar o que aconteceu exata-
de forma duradouras
ii Por exemplo, Michael Hornsby-Smith. Recent Transformations in English Catholicism: Evidence mente depende de um grande número de juízos interpretativos, de questões
of Secularization?,in: Bruce (Ed.). Re/lgfonandÀ4oder]zfzatza]z,
p- 118-]23;David Martin. TowardsElimi-
nating the Concept of Secularization, in: J. Gould (Ed.). PenguiizSirrueyaf the Sacia/Scienccs.
Harmonds- David Martin, Relígíous azia Secz{/ac p. 67.
worth: Penguin Books,1965,p. 169-182.A partir de então,Martin propôssuaprópria versãode uma tese Bruce, Re/{gí0}2alia À'foderllízatíon, p. 1-2
da secularização, mas cônscio de sua crítica anterior. i4 Steve Bruce. ReZigíolt ízl À4oderll Brífaín. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. viii
502 Parte IV= Narrativas de secularização Capítulo 12. A Era da Mobilização 503

como a natureza exala da religião ou o conteúdo da fé cristã, e estasserão Por essa razão, temos que estar conscientes das maneiras pelas quais um
profundamente matizadas pelo nossocredo substantivo.Assim, o autor da impensado" a respeito da secularização,assim como os variados modos
citaçãoacima prossegue no seu livro apontando algumas razõespara o declí- do credo religioso,podem complicar o debate. E, de fato, há um poderoso
nio na religião. Ele menciona o desenvolvimento da ciência e da tecnologia impensado nessetipo em operação: um ponto de vista que sustentaque a
Não é por sustentar a teoria-padrão da "morte de Deus" de que a ciência de- religião deve declinar seja (a) porque ela é falsa e a ciência mostra que isso é
saprova a religião, a qual então desapareceria. Pelo contrário, ele rejeita isso assim; seja (b) porque ela é crescentemente irrelevante, agora que podemos
explicitamente. As pessoasseriam hábeis demais em isolar as suas ;'crenças curar a tinha com soluçõeslíquidas; ou (c) porque a religião estábaseada
da evidência aparentemente contraditória". Porém, ele pensa que a disponi- na autoridade e as sociedadesmodernas conferem um lugar de importância
bilidade de soluções técnicas para problemas da vida tende a nos afastar da crescente à autonomia individual; ou alguma combinação dessas três. Isso é
religião. "Não há necessidade de ritos ou fórmulas religiosos para proteger o forte não tanto por ser amplamente sustentadopela população em geral -
gado da tinha quando se pode comprar uma soluçãolíquida reiteradamente quão amplamente parece variar de sociedade para sociedade --, mas porque
comprovada como uma excelente cura para essacondição."'s é muito forte entre intelectuais e acadêmicos,até mesmo em países como
Porém, isso me parece confundir desencantamento com o declínio da re- +

os EUA,onde a prática religiosa em geral é muito intensa. Na verdade,'a ex-


ligião, e, em consequência, falsifica novamente a relação complexa, às vezes clusão/irrelevância da religião muitas vezes faz parte do pano de fundo não
contraditória entre as religiões dominantes na nossa civilização, o judaísmo percebido da ciência social, da história, filosofia, psicologia. De fato, até mes-
e o cristianismo, e o mundo encantado ao qual me referi acima. Nosso desa- mo sociólogosda religião não crentesmuitas vezes mencionam como seus
cordo neste ponto se volta para nossasrespectivascompreensõesde religião, colegasem outras partes da disciplina expressam surpresa pela atenção de-
que inicialmente nem podem deixar de ser moldadas em grande parte por votada a um fenómeno tão marginal.i7 Nesse tipo de ambiente, juízos distor-
nossos credos substantivos. cidos inconscientemente engendrados por esseponto de vista muitas vezes
Não estou defendendo nenhuma tese "pós-moderna" no sentido de que podem medrar sem contestação. Este foi o ponto bem colocado do crí decoeur
cada um de nós está aprisionado em seu próprio ponto de vista e nada pode [protestol de David Martin a respeito de "eliminar a secularização".:'
fazer para convencer racionalmente o outro. Pelo contrário, penso que po- Ora, é claro que o meu escrito também é moldado por um "impensado
demosaprese'atarargumentospara induzir outros a modificar seusjuízos e diferente, e tentarei articular algo nesse sentido aqui, porque penso que essa
(o que está estreitamente ligado a isso) a ampliar suas simpatias. Porém, essa é a maneira de fazer o debate avançar. I'orém, a melhor maneira que encon-
tarefa é muito difícil e, o que é mais importante, jamais estará completa. Nós tro para fazer issoé contrastando-ocom o que estáimplícito em muitas das
não decidimos de uma vez por todas deixar nossos"valores" diante da porta teorias da secularização predominantes.
quando entramos na classe de sociologia. Eles não contam apenas como pre- A noção básicasubjacenteaos modos "ortodoxos" da teoria nessedomí-
missasconscientesque podemos descontar.Elescontinuam a moldar nosso nio'Pé que "modernidade" (em certo sentido) tende a reprimir ou reduzir
pensamentoem um nível muito mais profundo, e somenteum intercâmbio religião" (em certo sentido). Não discordo disso; há um sentido com o qual
franco continuado com quem tem pontos de vista diferentes nos ajudará a estou de acordo. Um dos principais objetivos deste livro é definir com mais
corrigir algumas distorções que eles engendram.:ó exatidão essesentido. Tampouco discordo da definição de religião proposta
por muitos teóricos ortodoxos. Assim, Bruce propõe a seguinte descrição de-
'5/d, ibid., p. 132-133.Trata-sede uma visão comum. Hugh McLeod cita o ditado holandês: "Fertili- finidora: "Para nós, religião consiste em ações,credos e instituições pregados
zantes artificiais produzem ateístas"(in: H. McLeod, Secular Cities?, in: Bruce (Ed.). Rellglo/zaprdModer- com base na assunção da existência de entidades sobrenaturais com pode-
mzafion.p' 61)-E Rudolf Bultmann: "Não sepode utilizar luz elétricae aparelhode rádio, em casosde
doença,empregarmodernos meios médicos e clínicos, e simultaneamente acreditar no mundo dos espí- res de intervenção ou de poderes ou processos impessoais possuidores de
ritos e dos milagres do Novo Testamento"; in: New Zesfainenfand À ythologyand Ofher BasfcWrftings. Ed. e propósito moral, que têm a capacidadede estabeleceras condiçõespara os
trad. [inglesa] pqr 11:h.ubertM. Ogden. Phi]ade]phia: Forest Press,1984,p. 4 [ed. porá.:Novo Testamento assuntos humanos ou de intervir neles".zo
e mitologia, in: R. Bultmann. Demífologízaçãa.'co/franca de ensaios.Trad. Walter Altmann. São l eanoldcc
Sinoda[aEPG,]999, p. 5-47,aqui p. 91. ' ' "'
i' Algo precisa ser dito para que se compreenda que as profundas diferenças que existem entre 17Por exemplo,Bryan Wilson. Reflectionson a Many-SidedControversy, in: Bruce (Ed.). Re/lglon
crentes e não crentes quanto ao impensado em nossa civilização são análogas a uma diferença cultural azia .IModerlíízatíolí, p. 210.
Assim como os eruditos da cultura A podem ter problemas para entender a cultura B se não contestarem 8Ver nota 9 acima.
suas categorias de fundo antes não questionadas, assim também nesse caso;a diferença é que, no nosso 9Adoto a distinção feita por Hugh McLeod entre "ortodoxos" e"revisionistas", em sua discussãona
caso,tanto os crentes quanto os não crentes tendem a operar no âmbito de categoriasque excluem IntroduçáaaH.McLeod(Ed.)-EuropcanRellgíonínfheH8eagGreatCíties. .. . - - ' I' ,
(diferentes) aspectos da realidade complexa em que ambos estamos vivendo hoje. Desenvolverem esse :' Roy Wallis e SteveBruce. Secularization: The Orthodox Model:in: IJruce tba.). ixengianana lwuH'
ponto na Parte V
ernízatíon,p. 10-11.Cf. tambémBruce. Re/Üíolz{lí theÀ4ode/'zz
Wor/d.Ox ford: Oxford University Press,
504 Pal'te IV Narrativas de sectltarização Capítlrro ]2. Á Era da Àfobílízação 505

E claro que há muitas coisasque se poderia cavilar no detalhe. Um Tendo abandonado a tentativa de definir religião de um modo que seria
dos grandes problemas dessa definição é o de traçar o limite: há várias universalmenteaplicável, gostaria de particularizar ainda mais aquilo que
formas de perspectiva "espiritual" hoje em dia que não parecem invocar ficou sob pressãocom a modernidade. Valendo-me da discussãofeita no pri-
o "sobrenatural", mas muitas vezes é difícil dizer. Porém, esse tipo de pro- meiro capítulo, quero acercar-me do fenómeno de duas direções ao mesma
blema afetará toda e qualquer definição. Mais problemático é o fato de tempo. Quero enfocar não só as crenças e ações "baseadas na existência de
sobrenatural" ser um termo desenvolvido na civilização cristã; a linha entidades sobrenaturais" (também conhecidas por "Deus"), mas também na
exalaentre o "natural" e o que estáalém dele não está demarcada em perspectiva da transformação dos seres humanos que os leva além ou para
outra parte. Esta seria uma objeção se a definição em questão pretendesse fora do que normalmente é entendido como florescimento humano, inclusi-
ser usada numa sociologia/históriado mundo; porém, de fato estamos ve em um contextode razoávelmutualidade (isto é, onde trabalhamospelo
mirando realmente para a história do Ocidente,dos primórdios do cris- florescimento mútuo). No caso cristão, isso se refere à nossa participação no
tianismo latino e, dentro desse domínio, o termo "sobrenatural" oferece amor (agápe)de Deus pelos sereshumanos, que por definição é um amor
uma boa aproximação inicial. que vai além de qualquer mutualidade possível, um dar-se a si mesmo não
amarrado a nenhuma medida de justiça. Captamos a especificidade dessafé
Além disso, estou de acordo com o intento de Bruce nesseponto, que é
somente se a tomarmos por dois lados, a saber. em termos do que ela presu-
prevenir uma definição tão larga e inclusiva de religião que acabemossus-
tentando que nada mudou. Algo importante simplesmente aconteceu; tem me como um poder sobre-humano (Deus) e em termos do que essepoder
nos chama a fazer.da perspectiva de transformação que ele abre.:3
havido um declínio em algo muito significativo, que a maioria das pessoas
Desço a essenível de especificidade porque acredito que a batalha prin-
reconhece pelo termo "religião". Não precisamos acompanhar as massas no
uso desse termo, mas necessitamos de ízigumapalavra ao tentar entender o cipal, tanto entre grupos e indivíduos quanto dentro deles, foi moldada por
significado desse declínio, e "religião" certamente é a mais cómoda.:' uma polarização entre essetipo de perspectiva de transformação e uma vi-
são que emergiu no século XVlll no contexto da ordem moral moderna e da
Outra coisa que me agradana definição de Bruce é que ela inclui os
sociedade comercial, descrita por mim no capítulo 4. Trata-se da visão que
poderes impessoais", reconhecendo, assim,o lugar importante ocupado
descreve nosso objetivo mais elevado em termos de um certo tipo de flores-
em nosso passadoreligioso "encantado" pelo que chamei no capítulo 2 de cimento humano, em um contexto de mutualidade, cada um/uma perseguin-
forças morais
do sua própria felicidade sobre a base da vida e da liberdade asseguradas,
Tendo essadefinição em mente, posso concordar com Bruce no que diz numa sociedade de benefício mútuo. Embora esta tenha sido, antes de tudo,
respeito ao fenómeno crucial:
uma visão providencialista, com lugar para algum tipo de Deus, surgiram
Emboraseja possível conceitualizá-la de outras maneiras,a secularizaçãose refere, em variantes que se voltaram contra quaisquer ilusões de uma transformação
primeira linha, àscrençasdas pessoas.O cerne do que queremosdizer quando falamos
mais elevada, que eles viam como um perigo para a ordem da mutualidade,
desta sociedade como mais . secular'. do que a anterior é quç.a crença religiosa influencia
as vidas de menos pessoasdaquela do que desta sociedade.ZZ em suma, como "fanatismo" ou "entusiasmo". A partir daí, logo se desenvol-
veram formas ateístasou agnósticas.
1996,p. 7. David Martin ofereceuma definiçãosimilar: "Entendo por 'religioso' a aceitaçãode um nível Parecehaver duas posturas bem diferentes em nossacivilização, ambas
de realidade situado além do mundo observável pela ciência, ao qual se adscrevemsignificados e propo-
silos que completam e transcendem os do reino puramente humano"(Á Ge?zero/TheoW oÍ Sect{/arízafíozi. podendo ser descritas como temperamentos e como pontos de vista. O que
New York: Harper 1978,p. 12) pensa alguém de Francisco de Assis e sua renúncia à sua vida potencial como
l Com issonão seafirma que não possahaver outrostipos de reflexãopara osquais uma definição mercador, sua austeridade, seus estigmas? Pode-se ser profundamente mo-
mais ampla possa ser útU, como constatamosna obra de Daniêle Hervieu-Léger. La Re/zpolztour À,dano;re
Paras:Cera,1993, e em l,e PéZednef le CoJloertí.Paras:Flammarion, 1999.As vezes ajuda a compreender vido por essechamado a ir além do florescimento, sendo, portanto, tentado
nossasociedaderessaltaros elementos comuns avisões diferentes, que se estendem por cima do que nor- pela perspectiva da transformação; ou pode-se vê-lo como um exemplar pa-
malmente percebemos como o divisor secular/religioso. Mas para os meus propósitos aqui necessito do
conceito mais estreito radigmático do que Hume chamou de "as virtudes monásticas",como um
Bruce! Re/ígíonaziaModernÍzafíon,p. 6. Às vezes o fenâmenó é definido como "a diminuição praticante da autonegaçãoirracional e uma ameaçaà mutualidade civil
do significado social da religião". Nessesentido, Wallis e Bruce citam Wilson na p. 11, manifestando
aprovação.Mas não há realmente contradição nesseponto. Ambos os fenómenos ocorrem. Porém
eu prefiro enfocar a crença individual, não só porque muitas vezes não é fácil comparar o signifi- 3 E claro que isso é uma exposição totalmente cristã dessa perspectiva mais elevada; hár porém,
cado social da religião em diferentes sociedadese diferentes eras,mas também porque muitos dos formas análogas em muitas outras religiões: ir além do selfconecta a pessoaa À4a/iakarunaou à grande
exemplosque Bryan Wilson dá do significado social em declínio claramente dependem da relação compaixão, a um caminho de transformação situado além do florescimento ordinário (na verdade, ne-
causal com a crença em declínio - seja porque há menos pessoascrendo ou sua crença é menos forte ndo uma das principais condições do que ordinariamente é visto como florescimento, ou .seja, o self
e menos intensa. Cf. suas Reflections on a Many-Sided Controversa, in: Bruce (Ed.). Redigi'oPI
and continuado); o chamado a submeter-sea Deus no islamismo, que confere aos humanos um poder ao qual
À,'roderllízafíon, p. 1 95-210. ' só têm acessodessamaneira. E assim por diante.
506 Parte IV! Natratiuas de secularização CapÍtLtto
12.A Era daMobilização 507

É claro que há um bom número de pessoasque querem situar-seentre um todo nos deixou? Qual é a complicação? Quais são asvulnerabilidades e
o que podemos chamar de perspectiva da transformação e de perspectiva os pontos fortes da religião e da descrençahoje? Agora entramos no domínio
da imanência. Esse é o caso particularmente em nossa época, em que a do que designei de secularidade 3 e é claro que são as respostasdadas nesse
última perspectiva tende a ser apoiada por uma visão materialista. Muitos domínio, no andar de cima, que interessamà maioria das pessoas,aosnão
assumiramuma posição situada entre os dois extremos,esquivando-se do acadêmicos, mas não só a eles.
materialismo ou da visão estreita da moralidade do benefício mútuo, mas Ora, boa parte da confusão que reina quanto a concordar ou não com
não querendo retornar às fortes demandas da visão da transformação, com a "secularização" se deve à imprecisão no que tange a quanto dessacons-
suas crenças de grande alcance a respeito do poder de Deus em nossas trução estamosnos referindo. Se estamosfalando apenasdo andar térreo,
vidas. No séculoXIX, vem à mente Vectorjugo ou os unitaristas e ex-uni- então há uma ampla concordância quanto à tendência geral, mesmo que
taristas como Emerson ou Matthew Arnold. A lista poderia ser estendida haja alguma contestação nos detalhes. Bruce muitas vezes alicia uma ampla
indefinidamente. Essetipo de posição não é insignificante; na verdade, em comunidade de estudiososque supostamente concorda com a seculariza-
algumas sociedades contemporâneas, em uma ou outra variante, pode até ção, incluindo, por exemplo, Martin e Berger. Caso essa alegação seja proce'
constituir a maioria (porém, se você levar em conta as ambivalências das dente, ela se estende apenas ao andar térreo. Uma vez chegando ao porão
pessoas,fazer estimativasnessaárea estámuito longe de ser algo fácil). ou ao andar de cima, as divergências são evidentes.
Porém, as pessoas assumem uma postura desse tipo num campo polarizado Vejamosquais são as censuras que os "revisionistas" fazem aos teóri-
pelas duas perspectivas extremas; elas se definem em relação aos opostos cos da corrente principal. Como vimos acima, uma forte objeção é que eles
polarizados, ao passo que as pessoasque se encontram numa oposição po- tomam algum aspecto da modernização, como a urbanização ou a indus-
larizada não retribuem o favor mas costumam definir-se uns em relação trialização ou o desenvolvimento da sociedade de classes ou o surgimen-
aosoutros, ignorando a posição intermediária (ou assimilando-a abusiva- to da ciência/tecnologia,e os encaramcomo operando constantemente no
mente ao outro lado). E nesse sentido que as duas perspectivas extremas sentido de minar e marginalizar a fé religiosa; ao passoque, argumentam
definem o campo. os revisionistas,o movimento real não é nem um pouco linear em muitos
Assim, poderíamos concentrar-nos na seguinte proposição como o ponto casos. As vezes, como na Grã-Bretanha, a urbanização e a industrialização
central da "secularização": a modernidade levou a um declínio na perspecti- levaram ao desenvolvimento de novas formas que de fato cresceram du-
va da transformação. Até aqui os teóricos ortodoxos da secularização concor- rante o século XIX. Um caso similar pode ser apontado em relação à Bélgica
dariam comigo, mesmo que possamnão ter nenhum interesseem escolher e algumas partes da França. Ademais, há grupos étnicos específicos,como a
transformação como uma questão central. Então, em que divirjo da teoria classe trabalhadora irlandesa, os galeses, e assim por diante.
(ortodoxa) da secularização? A acusaçãolevantada contra os teóricos ortodoxos é que eles de alguma
A dificuldade em toda essadiscussãoé que há alguma falta de clareza maneira acreditam que essesdesenvolvimentos modernos por si sós mi-
acerca do que exatamente representa a teseda "secularização". Há, de fato, nam a crença ou a tornam mais resistente, em vez de verem que essasnovas
versõesmais estreitase versõesmais amplas.O que eu chamo de corrente estruturas na verdade minam as antigas formas, mas deixam aberta a pos-
principal da teseda secularizaçãopode ser comparadocom uma residência sibilidade para que novas formas possam florescer.Essaimputação parece
de três andares. O andar térreo representa a alegaçãofatual de que o credo e justificada, senão eles não teriam ignorado tão facilmente essaevidência
a prática religiosos sofreram declínio e que agora "o escopoe a influência das contrária. Em outras palavras, os revisionistas depuseram o equívoco dian-
instituições religiosas"são menores do que no passado.24
O porão contém te da porta do "impensado" dos teóricos predominantes.
algumas afirmações sobre como explicar essasmudanças. No caso de Bruce, Isso pode até ser considerado injusto, particularmente por sociólogos
a explicaçãoé dada em termos de fragmentação social (incluindo o que mui- cujo campo de trabalho não é o séculoXIX e que, muitas vezes,achamque
tas vezesé chamado de "diferenciação"), o desaparecimento da comunidade não precisam ocupar-se com a história. Porém, não obstante, parece haver
(e o crescimento da burocracia) e a crescente racionalização.'s algo aí. Essaimpressão é reforçada quando seconsidera a resposta que Wallis
Porém, isso não esgota as versões mais ricas. Estas acrescentam um andar e Bruce propõem para as exceções.Eles concordam que asigrejas podem de-
acima do térreo quanto ao lugar da religião hoje. Onde o movimento como sempenharum papel que torna a secularizaçãomais lenta ou a inibe, como
mostram os casos dos irlandeses e poloneses, mas então eles concluem:
u Bruce,Re/]lgío/zín f/zeÀ,bode/'lz
Inox/d,p. 26. Essespadrões históricos e culturais específicossugerem um principio heurístico simples
3 Id.,ibid.,p.39. a saber que a diferenciação social, a societalização e a racionalização geram secularização
508 509
Parte I'U Narrativas de sectllarização Capítulo 12. A Era da Mobilização

excetoonde a religião descobre.e mantém atividades diferentes da aüvidade de relacionar de que a tecnologia moderna torna difícil crer em mágica e no mundo encan-
indivíduos com o sobrenatural.ü
tado, fazendo dela uma tese sobre religião em geral ("Não há necessidadede
A última cláusula deve ser lida à luz da definição anterior de religião, em ritos ou fórmulas religiosos para proteger o gado da tinha..."), parece que es-
termos de "entidades sobrenaturais". Dizer que a religião descobre outras tamos lidando com assunções fortemente emolduradoras. Talvez possamos
coisaspara fazer além de nos relacionar com ela equivale a dizer que as enti- articula-las em duas proposições(conexas):(1) a tese do desaparecimento,(2)
dades religiosas descobrem outras funções ou tarefas que, por definição, são a tese epifenomênica.
não religiosas.Nessecaso,a religião não estáfuncionando em seu próprio A primeira diz que a motivação independente para a crençae a ação re-
interesse,mas dando suporte para alguma outra coisa.Ela tem uma "função' ligiosas (casoela de fato não tiver sido sempre epifenomênica) tende a desa-
em outro domínio, nesse caso o da "defesa cultural". parecer nas condições impostas pela modernidade. A segunda diz que, nas
Isso pareceimplicar que "religião" não é mais uma força motivadora in- condições da modernidade (se não sempre), a crença e a ação religiosas só
dependente nas condiçõesimpostas pela modernidade. Traduzido para os podem ser epifenomênicas, isto é, funcionais em relação. a alguns objetivos
termos da polaridade exposta por mim acima, assume-seque, na moderni- e propósitos distintos. A segunda tese parece estar implícita no "principia
dade, a perspectiva da transformação perdeu a maior parte do seu poder de heurístico" citado acima; e a primeira parece implicada na rejeição de Bruce
atrair pessoas,de modo que algo como as mesmasaçõese instituições que à visão que ele atribui aos "críticos da abordagem da secularização",isto é, de
ela costumava sustentar podem permanecer só seforem movidas por algum que há "uma demanda latente duradoura por religião' .u
outro motivo. Porém. eu também atribuo essasteses a Bruce e Wallis e Bruce não por-
Porém, com essetipo de afirmação já nos encontramos no andar superior. que eles as tenham proposto (plena e claramente), mas com base nas razões
Isso revela que porão e piso superior estãointimamente conectados;isto é, jreconhecidamente 'indiretas) de que, caso sustentassem a negação dessas
que a explicação que se dá para os declínios registrados com a "seculariza- proposições, eles não argumentariam do modo como fazem; ou ao menos
ção" estão estreitamente relacionados com a imagem que se tem do lugar perceberiam que suas aHrmaçõesnecessitam de mais reforço. Porém, é claro
da religião hoje. Isso dificilmente causará surpresa; qualquer explicação em que um grande número de pessoassustentam algo como essasduas propo'
termos de história toma como pano de fundo certa visão da gama de moti- lições. E podemos compreender porque elas podem parecer plausíveis a pes-
vações humanas, em cujo contexto as teses explicativas particulares fazem soasque estãoocupando uma posição firme na perspectiva imanente. I'idem
sentido. Por exemplo, várias explicações "materialistas", para as quais a reli- parecer plausíveis, seja (a) porque parece a pessoas com esse.ponto de vista
gião é sempre "superestrutura", suas formas devendo sempre ser explicadas que a ciência já refutou a religião, e/ou (b) porque o motivo religioso estava li-
mediante, digamos, estruturas e processos económicos, estão, com efeito, gado unicamente à miséria, ao sofrimento e ao desespero da condição humana
negando às aspirações religiosas qualquer eficácia independente. Elas asse- ('coração de um mundo sem coração" -- Marx; desespero ' E. P Thompson);
veram para todos os tempos aquilo que acabei de afirma r que a secularização quando os humanos assumemo controle de seu mundo e de sua sociedade, o
predominante pareceestar dizendo da Era Moderna.:' impulso religioso necessariamenteatrofia.29
Assim, um foco de desacordo muito importante, inclusive entre aqueles Então, o que Bruce parece estar sugerindo acerca do lugar da religião
que se encontram juntos no andar térreo, surge em virtude do respectivo hoje? A citação a respeito da tinha no gado parece alinha-lo com uma versão
quadro que pintam do andar superior, quadro que igualmente os faz divergir modificadade (a). Sua posiçãosoacomo uma prima refinada,do final do
quanto ao porão historicamente explicativo. Isso em grande medida subjaz século XX, da predição resoluta de Renan: "il viendra un tour oü I'humanité
àsdisputas históricas a que aludi acima. ne croira plus, mais oü elle saura; un jour oü elle saura le monde métaphysi-
Se tomarmos essa aparente negação da força motivadora independente que et moral, comme elle sait déjà le monde physique [chegará o dia em que
da religião e a juntarmos com a elisão a que me referi acima, que tomou a tese a humanidade não mais crerá, mas em que ela conhecerá;um dia em que
ela conheceráo mundo metafísicoe moral assimcomo já conheceo mundo
3 Wallis e Bruce, Secularization: The Orthodox Model, p. 17. Cf. também Bruce, Re/ígíolzílz f/zeÀ4o-
físicos";;' ou seja, é o que Renan teria dito se ele tivesse reconhecido como as
derlz Inox/d, p. 62
p Estamosno domínio geral a que aspessoastem se referido em termos de "Narrativas Mestras'' pessoas são realmente hábeis em separar as suas "crenças da evidência apa-
alternativas. Uma Narrativa Mestra é uma exposição que radica os eventos a serem explicados por ela
dentro de algumacompreensãodo curso geral da história. Isso,por suavez, estáintimamenteligado a
uma certa visão da gama de motivações humanas. Exemplos disso são as diversas descrições iluministas zsBruce, ReZljgíolíílz the À'fode/'7zInox/d, p. 58
do progresso, a descrição marxista, as descrições da modernidade como decadência e perda da coesão 29Cf. a passagemde Paul Benichou, citada no capítulo 1. . ', n.
moral, e similares 30Apud'Sylvette Denêfle. Socíolo8te
de la Sécularísatíon.Paris-Montréal: i Harmattan, ivv/, p' 70'7't'
511
510 Parte IV: Narrativas de secularização Capíttiío 12. A Era da Mobilização

rentemente contraditória". Porém, Bruce procura com veemência distinguir- ta tomou forma na crítica/rejeição "leiga" ou "secular" da religião como um
se da antiga posiçãomaterialista-racionalista,da ideia comtista de que, em perigo, até um inimigo do florescimento humano. A segunda respostaleva
dado momento, a ciência eliminará a religião.'' a um entrincheiramento em certa definição desseflorescimento, que é posto
De certo modo, ele parecevislumbrar um ponto de chegadadiferente como o padrão absoluto do bem e do mal, do certo e do errado. Cada uma
para o desenvolvimento como um todo; não no materialismo universal, mas dessasposiçõesé inerentemente frágil, mais precisamenteaberta à desesta-
na indiferença amplamente difundida. bilização pela outra. A segunda pode ser abalada pela atração que sente pela
A fragmentação da cultura religiosa pede ser vista, em tempo, no cristianismo amplamen- perspectiva da transformação,ou por algo que reivindique a natureza ab-
te difundido, tido como certo e aceito acriticamentedo período pré-reformatório, sendo soluta, de longo alcance,dessaperspectiva.A primeira é vulnerável a todas
substituído po! uma indiferença à religião igualmente difundida, tida como certae aceita as dúvidas e segundas intenções decorrentes das fortes imagens de floresci-
acriticamente."
mento em nossa cultura.
O ateísmo e o agnosticismo com princípios provavelmente não se torna- Isso não significa que todos estejam preocupados. As pessoasmuitas vezes
rão as posições-padrão, porque "são traços característicos das culturas religio- conseguem, de qualquer modo em boa parte de suas vidas, ficar calmas e bem
sase atingiram seu auge na era vitoriana".:: A sugestão parece ser, antes, que entrincheiradas em uma ou outra dessasposições ou nas várias posturas de
a questãocomo um todo perderá a força. Sucederácom a religião como tal compromissoque mencionei anteriormente. Há humanistasexclusivosdes-
mais ou menos como foi com certas questões políticas em torno da religião, preocupados; mas também crentes serenos, que até estão muito satisfeitos com
como a batalha feroz travada na França entre católicos monarquistas e repu- o seu próprio desempenho. Estes últimos podem ter adorado uma perspectiva
blicanos anticlericais. Os partidários comprometidos diminuem em ambos os de transformação sem aquilatar plenamente o que isso significa. (Isso se apli-
lados e, em algum momento (esperamos), gerações futuras se perguntarão o ca, de fato, em certa medida, a virtualmente todos os crentes). Porém, todos
que foi toda aquela confusão. permanecem vulneráveis, no sentido de que poderão surgir circunstânciasem
Ou como Bruce põe a questão em um livro posterior: que eles sentirão a força do apelo oposto. E seeles não sentirem, muitas vezes
Na medida em que consigoimaginar um ponto de chegada,não seria uma irreligião au- os seus filhos e suas filhas sentirão. Esta me parece ser uma das lições dos anos
toconsciente; é preciso se preocupar demais com religião para ser irreligioso. Seria, antes, de 1960,no quais a sede pelo absoluto era muito evidente, mesmo que ela mui-
uma indiferença amplamente difundida (o que Weber chamou de ser religiosamente não
tas vezesnão tenha assumido uma forma "religiosa'
musical); nenhuma religião socialmente significativa; e as ideias religiosas não sendo mais
comuns do que seria o caso se todas as mentes fossem apagadas e as pessoas começassem Ora, nisso tudo, não estou reivindicando para mim mesmouma posi-
do zero a pensarsobreo mundo e seu lugar nele." ção de objetividade, Livre de qualquer "impensado". Pelo contrário, situo-me
É claro que isso pode até estar correio, mas me parece profundamente na outra perspectiva;por exemplo, sou motivado pela vida de Franciscode
Assim;e isso tem algo a ver com a pergunta por que essequadro do desapa
implausível. É porque não estou conseguindover a "demanda por religião'
simplesmente desaparecendo dessa maneira. Parece-meque nossa situação regimento da aspiração religiosa independente me parece tão implausível.;s
(a situação humana perene?) tem de estar aberta para dois apelos. Um (em Porém,isso não quer dizer que nos encontremos simplesmente em algum
todo caso, em nossa civilização) é a atração por uma perspectiva da transfor- lugar à parte, onde fazemos declaraçõesuns para os outros à parte de nossas
mação. O outro vem de um aglomerado de resistênciasa essetipo de apelo. respectivaspremissasúltimas. Presumivelmente,uma ou outra visão a res-
Estas surgem em parte em decorrência dos abusos e das distorções que afe- peito da aspiraçãoreligiosa pode permitir entender melhor o que realmente
tam as versões correntes da perspectiva da transformação em nossa cultura; aconteceu.Situar-se em uma ou outra perspectiva pode facilitar o acessoa al-
e em parte do fato de que, ao seguir essaperspectiva,corremos o risco de gumas ou outras noções; porém, ainda resta a questão de como essasnoções
excluir-nosdos modos de florescimento humano que foram desenvolvidos podem trazer algum resultado no atual relato da história.
em nossa cultura, e com os quais estamos profundamente comprometidos. Assim, permitam-me tentar expor uma alternativa proposta nos últimos
Em nossa sociedade (refiro-me à ocidental), somos atraídos em primeira séculos,que oferece um quadro diferente da secularização. Sucintamente, a
linha para alguma forma de fé cristã ou, em nossomundo cadavez mais tese predominante, no que se refere diretamente a esse ponto, é que a maio-
plural, por um compromisso judaico, islâmico ou budista. A segunda respos-
asNa verdade, você não precisa ter fé para acreditar na importância continuada da motivação reli-
si Ver Bruce, Re/l8íoll íti f/ze À,'foderlí Wor/d, p. 38, 49, 58. giosa independente. Você poderia pensar que a evolução pregou uma peça cruel na raça humana e nos
dotou de uma sede insaciável de transformação, que não foi correspondida por nenhuma possibilidade
Jd.,Ibid.,P.4.
'a /d., fbíd., P. 58
objetiva. Essame parece ser a segunda hipótese mais provável depois do teísmo e ainda mais plausível
N Steve Bruce. God is Dera. Oxford: B]ackwe]], 2002. p. 42. do que a Tesedo Desaparecimento.
512 ParteIV: Narrativas de sectttarização Capítulo 12. A Era da Mobilização 513

ria das mudanças identificadas (por exemplo, urbanização, industrializa- isso foi e é evidente na criação de novas formas, substituindo aquelasformas
ção,migração,o rompimento das comunidadesmais antigas) têm um efeito arruinadas ou inviabilizadas por essesagentes "secularizadores". O vetor de
negativo sobre as formas religiosasanteriormente existentes.Muitas vezes todo essedesenvolvimento não aponta na direção de algum tipo de morte
elas tornam algumas das práticas mais antigas impossíveis, enquanto outras térmica da fé.
perdem seu sentido ou sua força. Algumas vezes isso levou grupos inteiros Assim sendo, deveria ficar claro que isto não é uma tentativa de mostrar
a adorar alguma visão diferente, antitética ao cristianismo, ou até a toda e que a religião permanececonstante, que, numa definição apropriada, sua
qualquer religião: como o jacobinismo, o marxismo ou o anarquismo (por continuidade refuta a secularização(o andar térreo). Pelocontrário, o cenário
exemplo, na Espanha); porém, também ocorreu que aspessoasresponderam presente, despido das formas mais antigas, é diferente de e irreconhecível
ao colapso, desenvolvendo novas formas religiosas. Isso aconteceu em parte para uma épocamais antiga. Ele é marcado por um inaudito pluralismo de
mediante a fundação de novas denominações, como o metodismo e suas ra- pontos de vista, religiosos,irreligiosos e antirreligiosos, no qual o número
mificações. Mas isso podia acontecer também mediante novos modos de or- de posições possíveis parece estar crescendo sem fim. Em consequência, ele
ganização e novas orientações espirituais no interior das igrejas mais antigas é marcado por uma grande dose de fragilização mútua e, por conseguinte,
já estabelecidas,como, por exemplo, na Igreja Católica. por um movimento entre os diferentes pontos de vista. Isso naturalmente
Nossa situação conter\porânea resulta de u m desenvolvimento posterior, depende do meio em que se vive, mas está cada vez mais difícil encontrar
que pode ser datado no período posterior à Segunda Guerra Mundial, mais um nicho em que fé ou descrençasão algo óbvio. E, em consequênciadisso,
precisamente, os anos de 1960e suas decorrências. Nesseprocesso, as pró- a proporção de fé é menor e a de descrença maior do que em qualquer outra
prias construçõesdo século XIX e do início do séculoXX, que constituíram época ,passada;e fica ainda mais claro que isso é assim se religião for definida
respostaspara o colapso anterior, foram minadas por aquilo que só pode ser nos termos da perspectiva da transformação.
descrito como uma revolução cultural de alguma magnitude. Enquanto ana- Assim,minha própria visão de "secularização",que livremente confesso
lisamos e discutimos esseponto, novas formas voltam a desenvolver-se. ter sido moldada pela minha própria perspectiva como crente (mas que, não
Estaleitura nos permite ver certascoisasque a leitura predominante ocul- obstante, espero ser capaz de defender com argumentos), é que certamente
ta. Em primeiro lugar ela não vê o declínio como linear, isto é, o declínio de tem havido um "declínio" da religião. A fé religiosa passou a existir num cam-
uma coisaque permaneceu imutável por séculos sob a ação constante de um po de escolhasque inclui várias formas de objeção e rejeição; a fé cristã existe
único conjunto de causas.A continuidade consisteno fato de que as formas em um campo em que há também um amplo leque de outras opções espiri-
mais antigas foram minadas (grossoznodo)tanto no início do século XIX quan- tuais. Porém, a história que nos interessanão é simplesmente uma história
to no final do século XX. Porém, a descontinuidade reside no fato de que tan- de declínio, mas também de uma nova determinação do lugar do sagrado ou
to as formas em questão quanto as forças que as minaram foram diferentes;' espiritual na vida individual e social. Essanova localização tornou-se uma
Em segundo lugar, ela nos permite perceber que e como as formas de religião oportunidade para recomposições da vida espiritual em novas formas, e para
realmente mudaram, e que estão mudando novamente hoje. novos modos de existência tanto na relação com Deus quanto fora dela
Em suma, chego muito perto de concordar com a tese predominante no
andar térreo; quanto ao porão, há alguma convergência: fatores como urba- [2] Talvez eu possa dar uma ideia melhor do que implica essaleitura, ofe-
nização, migração etc. contam. Porém, o modo como eles contam não é pro- recendo uma história sumarizada escandalosamentesimplificada dos dois
duzindo uma atrofia na motivação religiosaindependente. Pelocontrário, e últimos séculose pouco, ou seja, do movimento de uma era de descrença
de alguns da elite (século XVIII) para a era da secularizaçãodas massas(o
%Ralph Gibson, ao discutir o casoda França do século XIX, formula a questão assim, no seu livro .A século XXI). Desejo apresentar alguns tipos ideais no estilo de Weber, visan-
SocialHlsfory of FI'e/íchCafholicisi7i(Londres:Routledge, 1989,p. 227): "Tem sido costumeiro encarar esse do marcar bem a distinção entre os diferentes estágios." Falei anteriormente
período como um período de descristianização,em que a influência da fé católicasobre os coraçõese
mentes de homens e mulheres francesese sua capacidade de determinar seu comportamento declinou de formas religiosas que foram minadas por desenvolvimentos posteriores a
constantemente, enquanto a França passavapor um processo de 'modernização', do qual não só a secu- eles.Talvez a melhor maneira de defina-los seja em termos de dois aspectos:
larização,mas também o declínio da crença religiosa foram aspectosnecessários.Essavisão, no entanto,
éum produto daquelafé inocentena modernidade,que levou tantoscatólicosa aplaudirem acondena- a matriz social dentro da qual a vida religiosa era conduzida e as formas de
çãoda liberdade, do progresso e da civilização moderna por Pio IX. Na medida em que a França passou espiritualidade em que essa vida consistia.
por um processode modernização[-.], ele não foi necessariamente
incompatíve] com o cata]icisma
Houve, de'fato, um certo número de forças contraditórias em ação na França, no século XIX, resultando
numa evoluçãodo comportamentocatólico, que estevelonge de ser linear. A antiga imagem de uma 37Devo muito àsinteressantes discussõescontidas nas obras de McLeod, Brown, Blatschke, Raeidts
descristianização
linear deve serdefinitivamente destinadaao depósitode lixo da história". Van Rooden. Wolffe e outros
514 Parte iV: Narrativas de secularização CapÍttito 12. A Eta da Mobilização 515

O primeiro tipo é a matriz do ancfe/zrégíme.Neste ponto, recorrendo à crenças e essesrituais não oficiais. Fazia parte da santidade de uma data em
discussãoque fiz acima sobre o desenvolvimento dos modernos imaginários particular, como a Sexta-feira Santa, que ela pudesse ter essesoutros efeitos
sociais,podemos dizer que a compreensão de ordem difundida entre o povo benéficos. Elementos religiosos pré e pós-axiais coexistiam sem dificuldades
(contrárias às concepçõesdo Iluminismo que circulavam entre as elites) é Vale a pena esclarecer esse ponto porque sucessivas elites reformistas; tanto
de um tipo pré-moderno,uma ordem de complementaridadehierárquica, clericaisquanto leigas, tenderam a repudiar boa parte da religiosidade popular
que estáfundada na Vontade Divina ou na Lei que perdura desde tempos como "pagã" e "supersticiosa";e nessaatitude elesforam seguidospor posterio-
imemoráveis ou na natureza das coisas.Essanoção de ordem vale tanto para res críticos "iluministas" da religião; como se a compreensão popular da Sexta-
a sociedade em termos amplos: estamossubordinados ao rei, ao lorde, a bis- feira Santa estivesse limitada ao seu poder de favorecer as colheitas. A tentação
pos, à nobreza, cada um em seu grau, quanto para o microcosmo do povoa- da moderna estrutura "desencantada" é seguir os clérigos reformistasmais se-
do ou da paróquia, onde sacerdotese nobres (ou, na Inglaterra, cavaleiros e veros de tempos passados e considerar a religiosidade popular como completa-
párocos)detêm o poder e cada pessoa tem o seu lugar. Na verdade, somente mente distinta da fé cristã; nossos ancestrais camponeses teriam aderido a essa
pertencemos a essasociedade mais ampla por sermos membros dessemicro- visão numa espéciede sincretismo festivo, mas os elementos combinados te-
cosmolocal. riam sido bem distintos e animados por püncípios diferentes: o cristianismo
Nessemundo paroquial, o ritual coletivo ainda toma um grande espaço, teria a ver com devoção, o amor de Deus, o ritual popular com controle, mani-
inclusive nas sociedades que passaram pela Reforma. Isso tem a ver, em par- pulação. Dentre os autores aos quais tenho recorrido aqui, é Obelkevich que às
te, com quais rituais foram passados adiante e, nesse tocante, há um leque vezesparece seaproximar dessaperspectiva."
em que a lista obviamente diferirá de sociedadescatólicaspara sociedades Porém, isso é entender mal a natureza do estrato pré-axial do cristianismo
protestantes. Porém, a despeito de todas astentativas feitas nas últimas (e até popular. Como vimos acima, os rituais da religião pré-axial tinham a ver com
em algumas áreas católicas, como, por exemplo, as dominadas pelos jante asseguraro florescimento humano e proteger contra as ameaçasda enfermi-
nestas) para expungir elementos "mágicos" e "pagãos",'8 existiam elementos dade, fome, inundação etc. Elessobreviveram no que chamei no capítulo 2
substanciais da "religiosidade popular" na Inglaterra, por exemplo. Essesnão de compromisso pós-axial, no qual são combinados com uma forma religiosa
consistem tanto em rituais proibidos (embora eles também tenham existido, que inclui uma aspiraçãoa algum bem mais elevado do que o florescimen-
por exemplo, na consulta às "cunning women [mulheressábiasj" por exem- to, a saber,a salvaçãoou a vida eterna ou o Nirvana. Este último costuma
plo) quanto no significado não ortodoxo dado a festas da Igreja. Assim, em ser buscado mais singelamente pelas elites que Weber chamou de "ziirfuo-
algumas partes da Inglaterra, a Sexta-feira Santa era importante não só pela sí" religiosos: monges, sanyasín,bhíkhus.A combinação, contudo, não é mera
razão teologicamente ortodoxa, mas também porque o poder que continha justaposição de elementos estranhos uns aos outros. Em geral, ocorre uma
fazia dela um bom dia para plantar safrase habilitava biscoitos marcados verdadeira simbiose.
com cruzes a salvar a casa do fogo. Significados similares não oficiais esta- Nem mesmono período pré-axial o ritual era simplesmenteuma ten-
vam contidosna vésperade Ano Novo, na vésperade SãoMarcos (24 de tativa de manipulação de poderes superiores, como diríamos hoje, porque
abril), na véspera do Dia de Todos os Santos [ba//oweelz,
31 de outubro] e na era acompanhado por um sentimento de reverência para com essepoderes
véspera de SãoJogo (23 de junho). Essesrituais muitas vezes têm sua origem superiorese, muitas vezes,por um sentimento de estar errado em voltar-
em costumes pagãos antigos (por exemplo, ha//oweerzse inspira em parte no se contra eles, captada, por exemplo, por um termo como hybrís, bem como
festival céltico de Samhain) e tinham a ver com "prevenir o mal, trazer boa por sentimentos de devoção e gratidão por favores conferidos.'' Á /orfíori, no
sorte e cimentar a solidariedade da comunidade".:9 A não ser que fossem quadro das religiões pós-axiais, essesmodos de reverência e devoção foram
perseguidose atormentados pelasautoridades, a maioria dos paroquianos renovados. Tome-seum casocomo o do poder de favorecer a colheita pela
não via nenhuma contradição entre suavida litúrgica mais ortodoxa e essas semeadura na Sexta-feira Santa. A interpretação manipulativa negligencia
o entendimento popular de que o que conferia poder nessedia era basica-
w Cf. Keith Thomas. /{ellgian and tbe Declftzeo#À4agfc.
New York: Scribner 1971led. porá.:Re/fgãa eo mente ortodoxo: o fato de estesero dia em que Crista morreu por nós.Nós
dec/ílzíoda }nagüz.Trad. Denise Bottmann e Tamás Rosa Buena. São Paulo: Cia. das Letras, 19911. vemos isso reiteradamente na história cristã, como, por exemplo, no culto às
39John Wolffe. Gadalld G}'eaferBdtaílt. Londres: Routledge, 1994,p. 80-82.Descrições similares da
natureza composta da religião popular podem ser encontradas em James Obelkevich. Relfdolz and Ru-
ral Socfey; Souf/z Z.ízldseyIZ825-.2875.Oxford: Oxford University Press, 1976, capítulo Vl; Sarah Williams
" Obelkevich, Religfon nnd lura/ Socíefy, capítulo VI. Jeffrey Cox(The Engllsh Chiírcbes. in n Secular
l<elÜlous Be/iefa7id Popular Clllflíre í z Soilthwark. Oxford: Oxford University Press, 1999, capítulos 3 e 4; e Sofíefy.New York: Oxford University Press,'198i, p 95) também parece compartilhar essavisão; ele fala
referente à França em Philippe Boutry. Prêfxesef Pnrofssesau pausdu cilré d'Zrs. Paris: C.erf. 1986, parte lll, de "antigos acréscimos não cristãos" e "superstição semipagã
capítulo 2, e Yves Hilaire. Une C/zrétíelzfé au X.IXe Síêc/e?.Lille: PUL 1977, volume 1, capítulo XI. 4i Robert Lane Fox. nngazls alia C/zrístíaJís. New York: Knopf. 1986.
516 Parte IV! Narrativas de secularização 517
CapÍtl!!o 12. A Era da Mobilização

re[íquias. ]'odemos pensar em um exemp]o moderno, re]atado por Phi]ippe olhos de muitos clérigos. Nesseponto, havia outra fonte de atrito com o clero
Boutry, no seu livro sobre o departamento de Ain no século XIX. Estando o e um alvo para o zelo reformistadesteúltimo.a
cura de Ars ainda vivo, os paroquianos já começaram a colecionar suas "re- Nessa forma do alzcíenríÜílne, temos uma estreita conexão entre ser mem-
líquias". Porém, isso se deu pelo fato de o considerarem o paradigma de um bro da Igreja e fazer parte de uma comunidade nacional, masparticularmente
santo cura"; e os critérios de santidade, nessecaso, eram muito parecidos com de uma comunidade local; essaconexão era cimentada em parte pela coexis-
os da igreja universal: caridade, oração, abnegaçãoetc. Williams afirma algo tência do ritual e da oração ortodoxos oficiais, de um lado, com formas rituais
similar ao enfatizar-a importância do "bom vigário" e o valor de recebersua relacionadas com defesa, sorte, prevenção do mal, de outro. Estesúltimos
bênção. Porém, os critérios de bondade eram profundamente cristãos: amabili- estavam destinados a proteger indivíduos e também a comunidade. Quanto
dade,sinceridade, cuidado com o seu rebanho, doaçãoautossacrificial." a todo essenível profundo, pré-axial, estamosnele todos juntos quando nos
De modo similar, os ritos de passagempossuem significados adicionais: o dispomos a certas práticas. O abstinente negligencia o corpo por inteiro. Essa
batismo marcava o ingresso na comunidade, a confirmação era um rito simbó- síntese de pré e pós-axial continua por muito tempo, inclusive em socieda-
lico de ingresso na idade adulta. SarahWiUams mostrou o quanto era impor- des que passarampor um processode reforma, cujo objetivo era elevar o
tante, até no século XX, a cerimónia de "igrejamento [c/ztrrc/zíng]"
para os an- comprometimento pessoalacima dos rituais comunitários (de muitos deles)
glicanos que não pertenciam à elite. Você não deveria sair de casanovamente e expurgar os elementos mágicos e pagãos destes.
após o nascimento da criança antes de levar a criança à igreja. Violações muitas Porém, essasformas da comunidade local foram interrompidas. De cer-
vezeseram punidas pelos vizinhos. Porém, a força "protetora" dessesrituais to modo, essainterrupção começou com a própria Reforma, mas a força da
não era algo à parte do seu significado "cristão", mas construído com base nele, religiosidade popular permite que sejam reconstituídas,muitas vezessobre
como, por exemplo, dar graças a Deus pelo nascimento de uma criança.'s uma base alterada. Como vimos acima (capítulo 2), é característico de todo o
Não conseguimos separar nitidamente o cristão do "pagão" nessaforma período moderno que aselites sociais se tornaram distanciadas e até hostis a
religiosa; mas, não obstante, havia uma disparidade importante nesse modo boa parte da cultura popular, numa tentativa de remodelá-la. Uma das coisas
alzcfe/z
régmede vida religiosa.Os mesmosrituais eramvividos e entendidos que eles impuseram com frequência foi o desencantamento, a supressãoda
de um modo pelas elites, clericais e/ou outras, de um lado, e de outro bem dife- religião "mágica" e não ofidal. E isso, por si só, já basta para interromper
rente pela maioria popular. do ou tro lado. Como vimos, as elites não se sen riam aquilo que chamamos de formas do arzcíenrég7ne.As elites muitas vezes têm
confortáveis em muitos dos rituais e práticas populares e, muitas vezes, esti- um tremendo poder para impor essas mudanças; sua separação mesma das
veram tentados a refazê-los ou até a aboli-los. Quanto ao lado popular, temos, formas populares pode destabilizá-las.Reside na natureza mesma da religião
pela natureza das coisas,menos evidência de como as pessoasentendiam sua em um mundo encantado, como acabei de mencionar, que ela define a prá-
vida religiosa.Porém,a partir dos exemplosque citamose de outros, parece tica, não simplesmente nem mesmo primordialmente de indivíduos, mas de
claro que elas valorizaram e responderam às marcas de santidade pessoal em sociedades inteiras.
seus sacerdotes, que para elas essas marcas tinham mais a ver com caridade, Essetipo de religião é singularmente vulnerável à detecção das elites, já
cuidado pelo rebanho e abertura para cada pessoa (em contraposição a uma que, muitas vezes, elas estão em posição de restringir severamente, quando
relação demasiado próxima da nobreza rural ou dos notáveis) e não estavam não de pâr um fim a todos os rituais coletivos centrais.Se o próprio rei não
tão relacionadas com formas heroicas de autonegação, em termos sexuais ou quer mais desempenhar o seu papel, o que se pode fazer? C)u seasrelíquias e
outros (excetona medida em que a abnegaçãoestavadiretamente a serviço estátuas dos santos são queimadas, como continuar a recorrer ao seu poder?
da caridade). De mais a mais, a religiosidade popular possui uma dimensão A reforma a partir de cima pode, portanto, acabarbrutalmente com uma
festiva muito importante: dias de santos, peregrinações a santuários, celebra- boa porção de religiosidade popular sem necessariamente põr alguma coisa
ções, em que cerimónias religiosas eram combinadas com festividades mais
em seu lugar para muitas das pessoasimplicadas. E isso não foi só um fim de
terrenas: banquetes, dança -- combinadas de modo demasiado promíscuo, aos /acto,mas podia ser visto também como uma espéciede refutação. ]'ara aque-
les que acreditavam nas influências e forças residentes em certos lugares e
42Boutry, Prêtres ef PnroÍsses,p 346-354. Sarah Williams, Relígfous Belíe$p. 100, 107-108. Yves-Made
Hilaire apresentaum argumento similar a respeito de "le bon prêtre" e aponta particularmentepara a certas coisas,o próprio fato de que puderam ser destruídos sem uma retalia-
reputação daqueles que punham suas vidas em risco para ajudar outros durante as epidemias de cólera; ção terrível parecia indicar que o seu poder havia desaparecido. Nessalinha,
Une C/zréffeztté,capítulo Vll
4aWolffe, Goda71dGreaferBz"ífaí?z,
p. 78; SaramWilliams, Urban Popular Religion and Rites of Passa-
ge, in: Hugh McLeod(Ed.). Europenll Relf8ían fn f Áge of areal Cities; ainda Williams, Relfgíous Be/fey. H Hilaire (Une CArétfenté,
volume 2, p. 631-633)fala do cristianismo "festimtfestivoj" dos estratos
capítulo 4 populares.
Capíttllo IZ. A Era da M.obilização 519
518 Parte IV: Narrativas de sectlarização

os reformadores deram continuidade a uma prática que repetidamente havia Elateve início com a queda de Napoleão. A Igreja Católica da Restauração
sido empregada para difundir a fé. Quando SãoBonifácio derrubou os bos- tenta recuperar o terreno perdido e é apoiada por muitos grupos de lideran-
ques de carvalhos sagrados do germanos pagãos,o objetivo foi justamente ça, motivados pela piedade e/ou preocupados com a ordem social.
esseefeito demonstrativo. E os missionários que seguiram os conquistadores Porém, de modo geral, os esforços da Igreja da Restauração permanece-
no México se apressarama destruir os templos e cultos dos nativos com a ram dentro do que chamei acima de imaginário social "barroco". Na verdade,
mesma intenção e resultados similares.a a Igreja ultramontanista que emergiu da Revolução confere uma nova forma
Nós, desafortunadamente, não temos muito conhecimento desse proces- a esseimaginário; a ordem flui de cima para baixo, vindo de Deus e passando
so a partir desseponto de vista, porque as reflexões e deliberações das não- pela hierarquia, e o objetivo é a reconstituição de uma sociedade totalmente
elites quase por definição náo são registradas prodigamente. Porém, parece cristã, vista como uma sociedade de complementaridade hierárquica, na qual
provável, tanto a priori quanto em termos do que conhecemos, que elas co- cada ordem desempenha o seu papel para o bem do todo. Em primeiro lugar,
meçaram a preencher o vácuo compondo um novo ponto de vista e um con- foi reafirmada a aliançaentre trono e altar, mas o objetivo de preservar o lu-
junto de práticas, derivado em parte do antigo e em parte do que seofereceu gar crucial da Igreja obviamente admite uma variante mais "democrática", na
pelo caminho em termos de nova crença ou crenças. qual as demais hierarquias são abandonadas, sendo a Igreja a única a man-
A Reforma inglesa proporciona um exemplo bastante antigo disso, a ter o papel de guia dentro de uma sociedade de resto baseada na igualdade
respeito do qual temos alguma noção de suas diferentes fases. No início, complementar -- a fórmula da "democracia cristã" do início do século XII.
imposta pelas elites, ela suprimiu à força as principais práticas de um ca- Entretanto, como outros imaginários "barrocos", a despeito do dano cau-
tolicismo que constituíaa fé viva da maioria." Foi uma minoria de não- sado pela Revolução,esseem questão ainda incorporou, no início, grande
elites que cooperou a partir de sua convicção; na verdade, na forma do parte das compreensões hierárquicas baseadas nas Formas e, no nível po-
lollardismo, alguns dentre o povo anteciparam Cromwell e Cranmer em pular, muita coisado mundo encantado,ainda que policiadaem favor da
quase dois séculos.Porém, para a maioria das pessoasabriu-se um vazio, ortodoxia. A sociedade ainda é vista como orgânica e o lugar do indivíduo
um sentimento de perda que criou as condições para a restauração da anti- nessetodo orgânico é o definidor essencial da obrigação e do dever. A Igreja
ga fé, apenas levemente alterada, sob Mana. Porém, mais adiante naquele é a de toda a sociedade,à qual toda pessoadeve pertencer; e, ademais, a força
século, descobrimos que a maioria passou a sentir-se em casa na Igreja da inerente às obrigações sociaisprovém do sagrado, do qual a Igreja é guardiã
Inglaterra, sobre a base de um compromisso entre velhas práticas e a nova e articuladora. As sociedadesorganizadas por essetipo de igreja são, nesses
liturgia, que se torna e permanece,ela própria, o alvo de minorias críticas, termos (soltos), "durkheimianas", no sentido de que igreja e sagrado social
principalmente de cunho puritano. sãouma coisasó -- ainda que a relaçãoentre o foco primário e o secundário
Ora, esseprocessode destruição engendrada pela elite e de recriação esteja invertida, já que para Durkheim o social é o foco principal, refletido no
popular voltou a ocorrer muitas vezesnos séculosseguintes.Menciono tão divino, ao passo que para o catolicismo ultramontano vale o oposto
somente que, na história da França, a Contrarreforma do século XVll, parti: Essetipo de tentativa de restabelecero cristianismo, em toda parte, ge-
cularmente sob o clero jansenista, muitas vezesimplicou a proibição ou abo- rou esforços contrários, que tomaram a forma de movimentos secularistas
lição de práticas populares; em seguida, a Revolução e a descristianização do de cunho liberal ou radical e que, muitas vezes,encontraram sua inspira-
período jacobino, para não falar da prisão e do exílio de sacerdotes e bispos, çãona RevoluçãoFrancesa.O resultadofoi uma fissuraprofunda e níveis
provocou uma severa interrupção da prática religiosa. importantes de dissidência nas classesmédias. Além disso, essadissidência
Com este último evento obviamente chegamos a uma nova era. Pela pri
se espalhou para baixo na direção das classesmais baixas ou trabalhadoras,
medravez, os destruidores oferecem uma nova ideologia anticristã para pre-
particularmente destasúltimas. Uma razão para isso era bastante evidente: a
encher a lacuna. No curto prazo, eles foram notavelmente malsucedidos: a
Igreja ultramontana geralmente apoiava o sfaflfsqtro monárquico-hierárqui-
República e seu novo calendário não vingaram. I'orém, uma batalha de longo co, e isso levou aqueles que sofriam devido a isso a se oporem a ela.47
prazo foi travada entre elites católicase "republicanas"para renovar a ima-
gem da França.
+7Boutry (Prêfresef Pnroisscs,
parte 1,capítulo 2), mostra como, no Departamentode Ain, um clero
rural majoritário observavacom grande suspeiçãopara todo o modo de vida da pequenaclassede tra-
4sA criação de novos cultos continua hoje, às vezes em simbiose com, às vezes em oposição à Igreja balhadoresque estavacomeçandoa seformar num número limitado de centros.Recebendoum salário
no México, como mostra aobra de Claudio Lomnitz sobre "La Santa Muerte [A morte santas";cf. Claudio individual e aparentemente não integrados em uma comunidade reconhecível, os trabalhadores pare-
Lomnitz. Deathalia f/zeJdcaof À4exíco.New York: Zune Books, 2005,p. 483-497. ciam virtualmente condenados a uma vida de dissipação. Eles necessitavam ser conduzidos pela mão
q'Ver Eamon Duffy. TheSfrfppíllgo$t;ze.4/fará.New Haver: ValeIJniversity Press,1992. Essaabordagem obviamente afugentou os traballladores.
520 Parte IV: Narratioas de sectitarização Capítulo 12. A Era da Mobitimção 521

Porém,provavelmente algo mais profundo estavaaquandoaí, algo que ela estava ligada também a um tipo específico de comunidade, a saber, a pa-
veio mais claramente à luz do dia quando a Igreja mudou para a filosofia "de- róquia. A erosão e o rompimento dessacomunidade, o deslocamento de seus
mocrática cristã". O abismo cultural entre elite e massa,que é característico membros para as cidades, minou e marginalizou suas práticas de modo tão
da Idade Moderna, torna difícil defender uma igreja que seja realmente para efetivo quanto a reforma imposta pelas elites e, àsvezes, até mais.
toda pessoa na sociedade. Isto é, as vidas devocionais de diferentes meios Ademais, acrescente-se a isso que a relação com as elites com que se pas-
provavelmente divergirão mais do que divergiam na Idade Média, época em sou a lidar, a dos empregadores e magistrados urbanos, logo resvalou para
que a maior parte das elites ainda participava da cultura religiosa de peregri- a luta de classes.Uma vez que o mundo encantado vai sumindo ou se passa
nações e visitação a relicários própria das pessoas comuns. Além disso, quais- a uma relaçãomuito diferente com ele, como ocorreu com os trabalhadores
quer que tenham sido as diferenças naquela época, elas eram abarcadaspelo urbanos; uma vez que a cultura da elite tomou seu próprio caminho, sendo
sensode compromisso comum, que é inescapável à religião em um mundo que este caminho passou a dominar a Igreja oficial, e uma vez que surgiu
encantado. Quando temos de "bater as divisas" da paróquia para proteger um conflito de classescom os empregadores,inevitavelmente se instaurou
nossascolheitas ou tocar o carrilhão da tempestade para impedir o granizo, um sentimento de alienaçãoreligiosa nas pessoas.Elas podem, então, ser
estamostodosjuntos nisso,o nobre rural tanto quanto o trabalhador rural. recrutadas para alguma visão oposta, que nessassociedadesultramontanas
Porém,é claro que o estranhamentocultural-devocional foi exacerbado geralmente era uma visão humanista secular.
ainda mais pelo conflito de classe.Uma vez surgida a consciênciade que Essabraçadade causasconvergepara o efeito principal, que é este:o
não somos parte de uma comunidade orgânica, mas sofremos exploração - e novo morador da cidade, que não está mais em relação com uma comunida-
podemos ver que essaconsciência jamais esteve longe da superfície, nem de viva,. como ainda era o casode alguns migrantes temporários anteriores,"
mesmo no auge do ancíenrégíme-, levanta-se também a questão de que lado passoua sentir um vazio em sua vida espiritual e teve de encontrar uma
está a Igreja estabelecida.Na maioria das vezes,a respostaera clara para maneira de compor novas formas e devotamentos comunitários na nova si-
boa parte da Europa: a hierarquia apeava do lado da ordem estabelecida,ou tuação.A "descristianização"das classestrabalhadoras urbanasno final do
seja,dos proprietários de terras e empregadores.Mas havia casoscontrários século XIX muitas vezes tem mais a ver com isso do que com uma real con-
em número bem suficiente para mostrar que a decorrente alienação das não versão a novas ideologias leigas. Algo similar talvez possa ser dito sobre o
elites em relação à Igreja não precisava ter acontecido. declínio da prática entre a classetrabalhadora da população urbana inglesa
Este é o ponto em que os processos de urbanização e industrialização no mesmo período.
adentram o nosso quadro explicativo. Eles favoreceram o processo de desin- De qualquer modo, o vazio quer ser preenchido; e as novas ideologias
tegraçãodas formas do a/zcíelzrégíme,em parte meramente pelo deslocamen- leigas são candidatas possíveis e às vezes fortes; particularmente quando
to e grandes transferências para áreas em que havia poucas igrejas, mas mais os líderes e organizadoresda nova classetrabalhadora e dos movimentos
profundamentepor tirar massasde pessoasdo contextoparoquial em que socialistas são inspirados por elas. Na Inglaterra do final do século XVI, ain-
essasformas faziam sentido. Boaparte da religiosidade popular estavaligada da havia unicamente formas do cristianismo a que se poderia recorrer para
ao contexto agrícola ou relacionada com os costumes de uma comunidade preencher a lacuna. Na Europa do final do século XIX, o leque de escolhas se
particular e não pôde ser recuperada no novo contexto (embora muita coisa ampliou de modo crucial. Modalidades de humanismo exclusivo passaram a
também tenha sobrevivido). Avançando para a época da Terceira Repúbli- figurar entre as opções. E a postura muitas vezes reacionária da Igreja apenas
ca, podemos ver que a abertura da zona rural, o deslocamento em direção ajudava a torna-las mais plausíveis.
às cidades,o impacto de novas instituições nacionais,como, por exemplo, o Essetipo de desenvolvimento ocorreu na França e na Espanha; e algo
exército, tudo isso teve o efeito de desagregar as formas antigas. A despei- similar teve lugar até em certas sociedadesprotestantes,como na Prússia-
to dos esforços de jansenistas e jacobinos, muitas das formas do catolicismo Alemanha, onde a classetrabalhadora converteu-se em um movimento so-
medieval permaneceram vivas na França rural de meadosdo século XIX.48 As cial-democrata, filosoficamente comprometido com o materialismo.s'
pessoascontinuavam a tocar o carrilhão da tempestade quando havia amea- O fato notável é que isso não foi toda a história. A Igreja ultramontana do
ça de granizo, por exemplo. Porém, toda essaclassede práticas não estavasó século XIX também teve um êxito notável entre as massaspopulares, entre as
ligada a uma coletividade, como vimos que é típico da religião "encantada"; rurais certamente, mas também entre as urbanas, incluindo os trabalhadores

u Ver Eugen Weber.Peasalífsíltfo Fre7ích}7?ett.


Londres: Chatto, 1979,capítulo 19; e Boutry, Prêfresef 49Weber, Peasazlfsí ífo FrelzcAlnen, p. 281-282
Paroisses, passiln. 5'Ver, por exemplo, Hugh McLeod, EillopealtRe/fgíolt,p. 11-18
522 Parte IV NalYatioas de secularização 523
Capítll/o 12. .4 Era da À4obflfzação

Ela conseguiu isso porque, a despeito de sua pretensão de ser a Igreja imutá francesado século XVll na verdade, ascruzadas podem ser vistas como um
vel, ao encarar um mundo apóstata, ela se adaptou em certos aspectos cruciais. exemplo ainda mais antigo. Porém, essasmudanças tiveram lugar dentro de
Ela abandonou a feição do rigorismo, a postura severapara com os pecadores, um contexto socialmais amplo, o do reino e da Igreja, que não eram vistos,
da qual o jansenismo havia sido a forma principal, e assumiu a postura mais eles próprios, como produtos da mobilização, mas, pelo contrário, como já
compassivaque Alfonso de Liguori já havia advogado no século XVIII. Ela se existentes,como o pano de fundo inalterado e inalterável de toda a legiti-
tornou mais tolerante com e aberta para modos populares de piedade, incluin- mação
do locais de supostos milagres, como, por exemplo, Lurdes (o mais famoso). E Porém, numa "Era da Mobilização", essepano de fundo não está mais aí.Fica
ela passou a propor uma piedade mais cálida, mais emocional, da qual a devo- cada vez mais claro que qualquer estrutura política, social e eclesial a que aspire-
ção ao Sagrado Coração foi o exemplo precípuo. Alguma coisa dessa mudança mos deve ser mobilizada para dentro da existência. Isso fica evidente, em dado
pode ter ocorrido por razões táticas,mas muita coisa deve ser posta na conta momento, até para "readonários", cujos paradigmas se encontram no arzcíelz régí-
das correntes pós-românticas que já eram fortes em toda a Europa e que esta- }ne.Muitas vezes eles são forçados a agir de acordo com esseentendimento antes
vam presentes também na Igreja. Quaisquer que tenham sido as razões, ela de conseguirem chegar a reconhecê-lo por eles mesmos. Mas cedo ou tarde seu
voltou as costas para algumas das posturas mais condenatórias e desdenhosas discurso muda e os aspectosda velha ordem que querem reinstaurar se tornam
das elites reformistas anteriores em relação às massas. formas a serem estabelecidas,eternamente válidas talvez, por estarem de acordo
Porém,a Igreja também se adaptou em outro aspectocrucial. Eu disse com a vontade Deus ou em conformidade com a natureza, mas ainda um ideal a
acima que o imaginário adorado oficialmente por ela era o do a/!cíelzrégíme, ser realizado, e não algo já presente. À medida que esseentendimento desponta
baseado na hierarquia, numa sociedade orgânica em que cada um/uma tinha através do espectro político/eclesial, adentramos a Era da Mobilização.
seulugar e se devia obediênciaà hierarquia. De fato, porém, ela começou a O modelo do arzcíelz
régzmeentrelaçou Igreja e Estado, apresentando-se a
subverter na prática essapostura, porque muita coisado que ela queria fazer nós como vivendo numa ordem hierárquica que gozava do endossodivino.
requeria, não a reedição de ordens existentes em hierarquias vetustas, mas a Em sociedades baseadas nesse modelo, a presença de Deus era inevitável; a
organização da pessoas leigas em novas corporações, seja para levantar fun- própria autoridade era vinculada com o divino e várias invocaçõesde Deus
dos (como ocorreu na gigantesca campanha em prol da construção de lacre eram inseparáveis da vida pública. Houve, porém, mais de uma forma desse
Coeur de Montmartre), seja em peregrinações e em várias formas de aposto- tipo em nosso passado. Entre os séculos XVI e XVlll, passamos de uln modelo
lados leigos, alguns dos quais mais tarde vieram a ser chamadas coletivamen- original, existentena Idade Média e em certo número de culturas não oci-
te de 'Ação Católica". A Igreja Católica estavairrevogavelmente engajada na dentais, para outro bem diferente. É este segundo modelo que define o que
mobilização, o que, para mim, significa organizar e recrutar pessoascomo desejo chamar de tipo da mobilização.
membros de organizações com algum propósito definido. Porém, isso repre- A forma anterior, a do allcíelzrégíme,estava conectada ao que sepode cha-
senta novas formas de ação coletiva, criadas pelos próprios participantes; e mar de "mundo encantado". Essetermo obviamente é emprestadode Max
isso não tinha um lugar próprio no modelo do a/zcíellréWme.Gradualmente Weber.introduzindo o antânimo ao termo "desencantado",usado por ele.
o conteúdo começoua irromper da forma. A fim de visualizar melhor o que Em um mundo encantado,há um forte contraste entre sagradoe profano.
isso implica, permitam-me apresentar o segundo tipo ideal. Com sagrado refiro-me a certos lugares, como igrejas, certos agentes, como
sacerdotes,certos tempos, como festas maiores, certas ações,como rezar a
[3] Essetipo pertence essencialmente ao que podemos chamar de Era da Mo- missa, nos quais o divino ou o sagrado estápresente. Em contraposiçãoa
bilização. estes,outros lugares, pessoas,tempos e açõessão tidos como profanos.
O que quero dizer com "mobilização" neste ponto? Uma faceta óbvia de Em um mundo encantado,há uma maneira óbvia pela qual Deus pode
seusentidoé que essetermo designaum processono qual as pessoassão estar presente na sociedade: nos loa do sagrado. E a sociedade política pode
persuadidas, empurradas, forçadas ou intimidadas a adorar novas formas de estar estreitamente conectada com estes e ela mesma pode ser concebida
sociedade, igreja, associação. Isso, em geral quer dizer que elas são induzidas como existente num plano superior. Ernst Kantorowicz nos informa que um
mediante ações de governos, hierarquias eclesiásticase/ou outras elites, não dos primeiros usos do termo "corpo místico" na história europeia se referiu
só a adorar novas estruturas, mas também, em certa medida, a alterar seus ima ao reinado francês.si O próprio rei podia ser um dos elos entre os planos, re-
Binários sociais e seu senso de legitimação, bem como o seu senso do que é de presentado respectivamente pelo corpo mortal e pelo corpo imortal do rei
importância crucial em suas vidas ou sua sociedade.Descrita dessamaneira,
a mobilizaçãojá teve lugar durante a Reforma inglesaou a Contrarreforma Ernst Kantorowicz. The Kíllg's 7ho Bodíes.Princeton: Princeton University Press,1997
524 Parte IV Narrativas de sectltarização CapÍttllo 12. A Era da Mobilização 525

Ou, falando uma linguagem levemente diferente, nessassociedadesmais na vida, atumno sentido de beneficiar outros mutuamente. Ele requer uma
antigas,o reinado não existia sóno tempo comum, secular,regido pela norma sociedade estruturada em benefício mútuo, na qual cada um e cada uma
de uma forte transitividade, mas existia também num tempo mais elevado. respeita os direitos dos outros e lhes oferece certos tipos de auxílio mútuo.
E claro que há diferentes espécies de tempos mais elevados a eternidade O articulador antigo mais influente dessa fórmula é John Locke, mas a con-
platónica, em que há um nível em que estamos todos juntos além do fluxo cepçãobásica dessaordem de serviço mútuo chegou até nós mediante uma
jtemporall; a eternidade de Deus como compreendida pela tradição cristã, série de variantes, incluindo algumas mais radicais, como as apresentadas
uma espéciede agregaçãodo tempo num só lugar; e vários tempos originá- por Rousseaue Marx.
rios, no sentido de Mircea Eliade.sz Porém, em tempos mais antigos, quando o plano era entendido como Provi-
Então, com o avanço do desencantamento, especialmente nas sociedades dencial e a Ordem vista como Lei Natural, que era o mesmo que a Lei de Deus,
protestantes,outro modelo tomou forma, tendo relaçãotanto com o cosmo construir uma sociedade que preenche essesrequisitos era encarado como cum-
quanto com o regime político. Nesseprocesso, a noção de [)esígnio ]Desfgn] pra' o desígnio de Deus. Viver numa sociedade como essaera viver numa so-
foi crucial. Se tomarmos o cosmo, houve uma mudança do mundo encan- ciedade em que Deus estava presente, de forma alguma como era próprio do
tado para um cosmo concebido em conformidade com ciênciapós-newto- mundo encantado, mediante o sagrado, mas porque nós estávamos seguindo o
niana, na qual não ocorre absolutamente nenhuma cogitaçãode opiniões Seu desígnio. Deus está presente como o designador do modo como vivemos.
mais elevadassendo expressasno universo que nos rodeia. Porém, ainda há, Nós nos vemos, para citar uma frase famosa, como "um povo sob Deus'
em alguém como o próprio Newton, por exemplo,um forte sensode que o Ao tomar, desse modo, os EUA como um caso paradigmático dessa nova
universo manifesta a glória de Deus. Isso estaria evidente no seu desenho, ideia de ordem, sigo a ideia tremendamentefecunda de uma "religião civil"
na suabeleza,na suaregularidade,mastambémno fato de evidentemente norte-americana, de autoria de Robert Bellah. E claro que essaconcepção é
ter sido moldado para proporcionar o bem-estarde Suascriaturas, particu- compreensível e justificadamente contestada hoje em dia, porque algumas das
larmente de nós próprios, que, ainda por cima, somos as criaturas superiores. condições dessa religião estão sendo postas em dúvida agora, mas não há dú-
Agora, a presença de Deus não reside mais no sagrado,porque essacategoria vida de que Bellahcaptou algo essencialsobre a sociedadenorte-americana,
esvanece em um mundo desencantado. Porém, Ele pode ser concebido como tanto no seu início quanto por quasedois séculosdepois disso.
estando presente de modo não menos poderoso por meio do Seu desígnio. A ideia fundamental, de que a América do Norte teria a vocação de cum-
Essapresençade Deus no cosmoé contrabalançadapor outra ideia: Sua prir os propósitos de Deus, que só faz sentido a partir das passagensque
presença no regime político. Nesse ponto, sucedeu uma mudança análoga. Bellah cita, por exemplo, do discurso inaugural de Kennedy e ainda mais
O divino não estámais no rei que ocupa os dois planos. Ele pode, porém, es- do segundo discurso inaugural de Lincoln, e que pode parecer estranha e
tar presente na medida em que construímos uma sociedade que claramente ameaçadora a muitos descrentes na América do Norte hoje, essa ideia funda-
segue o projeto de Deus. Essanoção pode ser preenchida com uma ideia de mental deve ser entendida em relaçãocom essaconcepçãode uma ordem
ordem moral que é encarada como estabelecidapor Deus, no modo invo- constituída por indivíduos livres, detentores de direitos. É isso que foi in-
cado, por exemplo, pela Declaração de Independência norte-americana: os vocado na Declaração de Independência, que apelou "às Leis da Natureza e
sereshumanos foram criados iguais e dotados pelo seu criador com certos do Deus da Natureza". A justiça dessasleis, tanto para deístas quanto para
direitosinalienáveis. teístas,estavafundada no fato de seremparte do DesígnioProvidencial.
A ideia de ordem moral expressa nessa Declaração, e que desde então se O que o ativismo dos revolucionários norte-americanosacrescentoua isso
tornou dominante no nosso mundo, é o que venho chamando de a Ordem foi a visão da história como o palco em que esseDesígnio seria progressi-
Moral Moderna. Ela é bem diferente das ordens que a precederamporque vamente realizado e a visão de sua própria sociedade como o lugar em que
parte de indivíduos e não vê estes como inseridos a priori dentro de uma or- essarealização seria consumada -- aquilo a que Lincoln mais tarde se referiria
dem hierárquica, fora da qual não seriam agenteshumanos no sentido pleno. como "a última grande esperança na Terra". Foi essa noção de si mesmos
Seus membros não são agentes essencialmente radicados numa sociedade como cumpridores dos propósitos divinos que, somada à cultura bíblica da
que, por seu turno, reflete o cosmoe colecta com ele, mas antes indivíduos América do Norte protestante,facilitou a ana]ogiacom o antigo ]srael muito
erradicados que vêm a se associar uns aos outros. O desígnio que subjaz à recorrente na retórica oficial norte-americana dos tempos antigos.s'
associação é que cada um e cada uma, ao perseguir seus próprios propósitos
5+Ver Robert Bellah. Civil Religion in America, in: Beyolld Be/íef' Essays on Re/fria?z fn a Post-Tradítfo?ta/
Descrevi isso mais extensamenteacima no Capítulo l. Wor/d.New York: Harper & Row. 1970,capítulo 9.
526 Parte IV; Narrativas desectiiarização Capítulo 12. A Era da Mobilização 527

Hoje em dia, a confusão se origina do fato de haver tanto continuidade dominada pela elite pode assumir a forma de novas associaçõesvoluntá-
quanto descontinuidade. O que continua é a importância de alguma forma rias, bem diferentes das antigas igrejas. O protótipo delas são os metodistas
da moderna ideia de ordem moral. E isto que transmite a sensaçãode que wesleyanos, mas a verdadeira explosão desse tipo de igrejas livres acon-
os norte-americanos ainda operam pelos mesmos princípios que os Funda- teceu nos EUA no final do século XVlll e ela transformou a face da religião
dores. A fissura se origina no fato de que o que faz essaordem ser a correta, norte-americana.
para muitos embora de modo algum o sejapara todos, não é mais a Provi- Com os metodistas temos algo novo, nem igreja nem seita, mas a pro-
dência Divina; a ordem está fundada unicamente na natureza ou em alguma toforma do que agora chamamosuma "denominação". Uma "igreja" nes-
concepçãode civilização ou até em princípios supostamente incontestáveis se sentido troeltschiano pretende reunir dentro de si todos os membros da
a priori, muitas vezes inspirados em Kart. Assim, alguns norte-americanos sociedade; como no caso da Igreja Católica, ela vislumbra sua vocação em
querem resgatar a Constituição das mãos de Deus, ao passo que outros, com ser a igreja para toda e qualquer pessoa.Algumas das principais igrejas da
raízeshistóricas mais profundas, veem isso como um ato de violência contra Reforma têm a mesma aspiração e muitas vezes conseguem tomar com sua
ela. Daí decorre o Kz//t rka/7zpÇ
norte-americano contemporâneo. dissidência sociedadesinteiras, como, por exemplo, na Alemanha, na Escan-
dinávia e inicialmente na Inglaterra também.
Porém,o caminho trilhado pelos EUAaté a modernidade, emboraconsi- Porém, até mesmo o que chamamos de "seitas" nos termos de Troeltsch,
derado paradigmático por muitos norte-americanos,é de fato bastante ex- que se concentram em quem é "salvo", que é quem realmente mereceser
cepcional. Todas as sociedades ocidentais percorreram o caminho que leva membro, constituíram, em certo sentido, igrejas frustradas. Isto é, seja como
da forma do a/zcíe/z
régí17ze
para a Era da Mobilizaçãoe para além da nossa os presbiterianos na Inglaterra, eles aspiraram assumir a direção da igreja
presente situação complicada, que descreverei mais adiante. Porém, o per- nacional única; seja como alguns anabatistas,eles perderam a esperança em
curso foi muito mais intrincado e mais conflituoso na velha Europa. Esse relação à sociedademais ampla, e justamente por essarazão tentaram redu-
foi o caso particularmente nas sociedades católicas, como indicado acima, zir seu cantata com ela a um mínimo. Eles ainda tentaram circunscrever uma
nas quais o antigo modelo da presença durou muito mais tempo. É verdade zona, à qual confinaram a vida religiosa
que ele foi afetado pelo desencantamento e se tornou mais e mais um com- No seu início, o movimento metodista não aspiravaà eclesialidade,mas
promisso, no qual a ordem hierárquica foi, em certo sentido, tratada como simplesmente a ser uma corrente dentro da igreja nacional da Inglaterra. Eles
intocável e o rei como sagrado, mas no qual também começaram a imiscuir-se praticariam seu próprio tipo de espiritualidade, mas dentro de um corpo maior
elemen tos de justificação funcional, nos quais se argumentava que o governo que incluía outros. O status desejado pelos metodistas era, de certo modo, aná-
monárquico seria indispensável à ordem, por exemplo. Podemospensar nis- logo ao das ordens religiosas na Igreja Católica. Algo desse senso de diferença
so como o compromisso "barroco' legitima vai junto quando eles são forçados a sair e torna-se o atitude-padrão
A senda até aquilo que estamos vivendo agora parte dessas duas formas que distingue a denominação, dominante no cenário norte-americano.
da presença divina na sociedade rumo a algo diferente, que pretendo definir Denominaçõessão como grupos unidos por afinidade. Elas não veem
mais adiante. A senda que parte do "barroco" católico passou por uma revés suas diferenças em relação a(pelo menos algumas das) outras como questões
revolucionário catastrófico. Porém, a senda "protestante" foi mais suave, sen- do tipo vai-ou-racha, salvação-ou-condenação.O seu modo é melhor para
do, por isso, em alguns aspectos mais difícil de traçar. elas, pode até ser visto como o melhor fozztcourt, mas não as isola de outras
David Martin, em certo número de obrasinspiradas,s'desenvolveu um re- denominações reconhecidas. Elas existem, portanto, em um espaço de outras
lato interessante da senda "protestante", mais particularmente "anglófona' 'igrejas", de tal modo que num outro sentido, bem mais geral, todo o gru-
Isso sucede em sociedades em que as formas reinantes do imaginário social po dessasdenominaçõesperfazem "a igreja". A injunção a prestar culto na
são centradas mais e mais na ordem do benefício mútuo e a ordem "barroca" é igreja de sua escolhaé a injunção a pertencer à "igreja" nessesentido mais
vista como algo distante e um tanto abominável, em suma, "papista' amplo, sendo que os limites da escolha permitida definem suasfronteiras.
Ao manter-seessaatitude, pareceu cada vez mais evidente a essascul- A denominação claramente pertence à Era da Mobilização. Não se trata
turas que a adesãoreligiosa válida somente poderia ser voluntária. Força-la de um corpo divinamente estabelecido(embora em outro sentido, a "igreja
tinha cada vez menos legitimidade. E, assim, a alienação popular da religião mais ampla possa ser vista como tal), mas algo que nós temos de criar - não
simplesmente por um capricho nosso, mas para realizar o plano de Deus.
s' Por exemplo, Zanguesof Fere(Oxford: Blackwel1, 1990)e Á Geforal TheoWnf Secirlarizafíozl(Oxford: Nesseaspecto, ela se parece com a nova república como providencialmente
Blackwel1, 1978). concebidaem sua religião civil. Há uma afinidade entre os dois e uma for-
528 Parte IV Narrativas de sectltarização

falece a outra. Ou seja, a dimensão voluntarista do Grande Despertamento,


em meados do século XVHI, obviamente preparou o caminho para a ruptura
T CapÍttlto 12. A Era da Mobilização

dos "evangelicais" de reavivamento, difundidos na Grã-Bretanha e na Améri-


ca do Norte a partir do final do século XVIH.s7
No seu ponto alto, essesmodos
529

revolucionária de 1776;e, em troca, o éf/zosda "independência" autogoverna- de reavivamento se centravam em certas doutünas centrais da Reforma: nossa
da na nova república significou que o segundo Despertamento, no início do condição pecaminosa e a necessidade de conversão, de voltar-se para Deus em
séculoXIX, implicasse uma profusão de iniciativas denominacionais ainda fé, que nos abriga para a Sua graça. Muitas vezes a ênfase era dada nessa con-
maior do que antes.ss versão como um ato pessoal,encetado pela própria pessoa,mais do que visto
Agora está claro que esse tipo de grupo de afinidade espontaneamente como uma disposição inerente ao grupo; e muitas vezes ele era levado a efeito
criado oferece vantagens únicas quando migração, mudança social ou con- de modo dramático, sob a pressão de fortes emoções e em público.
flito de classetornam as igrejas mais antigas, mais inclusivas, de uma ou de Havia aí uma forte perspectiva de transformação, nos termos da discus-
outra maneira alheias e proibitivas para as não-elites.O metodismo certa- sãoque fiz anteriormente,definida, de um lado, por um profundo senso
mente não foi projetado para acomodar divisões de classe;o próprio Wesley de pecado e imperfeição potencialmente capaz de dominar a pessoa,e, de
era fiel às convicções mais inabaláveis dos formes
acerca da ordem social e outro lado, por um sentimento sobrepujantedo amor de Deus e de seu po'
até condenou a revolução norte-americana, na qual tantos de seus seguidos der de curar; numa palavra: da "maravilhosa graça". Como na primeira fase
transatlânticosparticiparam entusiasticamente.E, mais tarde, as principais da Reforma, o fruto que se esperava dessa nova potencialização era uma
conexões metodistas na Inglaterra tentaram abafar a militância operária con- vida ordeira. Ordem e desordem eram concebidasem termos muito com-
tra os empregadores (embora estivessem dispostos a mobilizar os dois lados preensíveis dentro da dificuldade por que passavam os estratos populares
da indústria contra os proprietários de terra farias). daquele tempo, muitas vezes lutando para pegar pé numa economia cada
Porém,não obstante qual tenha sido a ideia original dos fundadores, a vez mais guiada pelo mercado, onde a sobrevivência muitas vezes depen-
forma estava aí, pronta para dar vulto e expressão às aspirações religiosas dia da adaptação a novas condições, da migração, da adição de uma nova
e ideias luminosas de algum grupo, quer seja definido por classeou locali- disciplina de trabalho, à parte das formas sociais tradicionais. O perigo con-
dade (como as povoações mineiras no Norte da Inglaterra), ou por região sistiaem afundar-seem formas de comportamento ociosas,irresponsáveis,
(como Wales), ou por região de mais afinidade ideológica (por exemplo, indisciplinadas e esbanjadoras.E por trás dessasformas espreita a sedução
os cismasentre os metodistase batistasdo norte e do sul, nos EUA),ou dos modos tradicionais de recreaçãoe convivialidade que poderiam prender
até raça (mais uma vez o caso dos EUA). Enquanto isso, nas sociedades em você dentro dessasformas disfuncionais -- em primeira linha, a bebida e a
que o modelo da grande igreja única que abrange toda a sociedade, em taverna. Essaé a razão por que a temperança foi uma das principais metas
continuidade com a fundação divina original, dominou a imaginação (isto das culturas evangelicais,de um modo que soa totalmente excessivoa muitos
é, nas sociedades católicas, mas também em algumas sociedades luteranas ouvidos contemporâneos.Mas talvez fiquemos mais sóbrios (se for este o
e até, em menor grau, algumas sociedadescalvinistas IEscócia]),ficou ex- termo), setomarmos ciência de quanta maldição a bebida podia representar;
tremamente difícil encontrar uma solução criativa para a alienaçãoda não por exemplo, que nos EUA, na década de 1820,o consumo de bebida alcoólica
elite dentro do domínio da fé cristã (mas não impossível,como veremos percáfila era quatro vezes maior do que é hoje.s'
a partir de alguns exemplos mais adiante); onde a cultura voluntarista da E junto com a bebida, auxiliando e acumpliciadascom ela, havia outras
mobilização já fazia parte da autocompreensão religiosa, novas iniciativas atividades favorecidas: esportes cruéis, apostas, promiscuidade sexual. Essa
de fé podiam despon tar com mais facilidade. O imaginário denominacional compreensão de desordem mirava em certas formas antigas de convivialida-
tornou possível uma flexibilidade desconhecida na maioria das sociedades de masculina fora da família. A nova compreensão de ordem era centrada na
continentais.s' família e muitas vezesimplicava identificar o homem como a fonte da rup-
Certo número de diferentes iniciativas de fato teve lugar, mas a classe tura potencial e a mulher como a vítima e guardiã desseespaçodoméstico
mais impressionante era composta pelo que foi chamado vagamente de mo- ordeiro. Callum Brown chegou a falar. nesseponto, de uma "demonização'
das qualidades masculinas e de uma "feminização da piedade".;9 A ordem
53Ver Gordon Wood. TheRadíc /ís17z
oÍ the Al?ierlcülzEcoa/zzffozz.
New York: Vintage, 1993.
% Porém, mesmo assim, os muito pobres tendiam a ser menos tocados por essesmovimentos na Ingla- s7Eu me inspiremaqui, entre outros, nas valiosas discussõesem Hugh McLeod, Relegíolíalzdfhe People
telra do que os traba]]aadoresmais habilidosos. Ver Hugh McLeod. Seci{/arízatíozí
ílí Wes]'erlz
Eilrope, ]848- oÍ IMesferli Elrrope. p- 36:43; Jahn Wolffe, Godand Grcüfer BrífaÍlz, p. 20-30; e Davld Hemplon, Re/igiaPrnnd
]9]4. New York: St. Martin's Press, 2000, capítulo 3; ver também o seu livro Rellgotz and f;zeProf/e o$Wesferll Po/ífÍcaZCzzlfure,capítulo 2
Eilrope 1789-1Z989.Oxford: Oxford University Press, 1997, capítulo 4; e David Hempton. Re/{gíolt al?d Po/ífÍca/ u VerJoyce Appleby. l?z/!edflngf Remlulfon. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,2000,p. 206.
Clílfure í z Brffafn and Irela7zd.Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 29 e capítulo 6 s9Callum Brown, TheDeath ofChrisffalt Brífairl. Londres: Routledge, 2001
531
530 Parte !V: Narrativas de secularização Capíttlto 12. A Era da Mobilização

exigia que o elemento masculino fosse um homem de família e um bom pro- costalismo no Terceiro Mundo, não só por terem características próprias, não
vedor; e isso requeria que ele se tornasse educado,disciplinado e alguém igualadas por suas predecessoras,mas também porque estão acontecendo
que trabalhasse duro. Sobriedade, laboriosidade, disciplina eram as princi- em um contextosocialbem diferente e nossaexperiênciapassadadiz respei-
to unicamente ao Ocidente.
pais virtudes. Educação e auto ajuda eram qualidades altamente valorizadas.
Obtendo-as, o homem adquiria uma certa dignidade, a de um agente livre A segundareflexão nos leva de volta à discussãofeita na primeira seção
que se autogoverna. A meta poderia ser captada com dois termos: de um sobrea força de uma motivação religiosa independente. A história que agora
lado, a "respeitabilidade" que acompanhavauma vida ordeira foi bastante estou retomando pode ser sintetizada na linguagem da ciência social com a
enfatizada;mas, ao lado dela, deveríamossituar a ação livre, a dignidade seguinte afirmação: a função (latente) da fé nessescasostem sido a de incul-
do cidadão. O evangelicalismo foi basicamente uma força anui-hierárquica, car uma estrutura de caráter produtiva e adaptativa. Isso poderia explicar
parte do impulso para a democracia. por que a fé começaa declinar assim que a função é cumprida. E tudo isso
Essaconexãode salvaçãoe santidade com uma certa ordem moral em poderia significar água no moinho epifenomenalista e solidificar as duas te-
nossasvidas lembra-nos a primeira Reforma, da qual o evangelicalismo é, sesque mencionei acima, em suma, a tese de que a religião não mais possui
em certo sentido, uma reprise em circunstânciasdiferentes e com uma ênfase força independente na modernidade.
ainda mais central no compromisso pessoal.Mas podemos olhar na outra ]'orém, o exame desse caso do evangelicalismo-pentecostalismo mostra
direçãoe notar como essemovimento prossegueem nossosdias, não tanto o quanto isso seria equivocado.Se "função latente" quer dizer resultado de
em sua terra natal na Grã-Bretanha e nos EUA (embora ele ainda seja muito /acto,não necessariamenteresultado pretendido, então a alegaçãoacima está
forte nestes), mas anualmente na América Latina, Africa, Asma."E podemos correra. Porém, se estivermos procurando pela força de motivações diferen-
notar a mesma conexão entre aceitar a salvação e pâr um certo tipo de ordem tes, visando acessaro poder independente da religião na modernidade, o
na vida. Dessemodo, os homens na América Latina se tornam mais centra- evangelicalismo está muito longe de ser um exemplo de religião pegando ca-
dos na família, abandonando certos tipos de convivialidade masculina que rona na sela de alguma outra meta ou algum outro propósito. Tomemosum
enfatiza o machismo, tornando-se sóbrios e bons provedores. Na verdade, exemplo deste último casopara mostrar o contraste. Alguns da hastebolírXeoí-
podemos até mesmo ampliar a comparação de modo a incluir movimentos síe falta burguesia], na França, que eram voltairianos no final do século XVlll,
não cristãos, como o da Nação Islâmica, nos EUA.ói tornaram-se apoiadores da Igreja após a Restauraçãoe mais ainda após 1848.
Podemosver que essesmovimentos têm um efeito poderoso na história A respeito de muitos deles se disse que foram influenciados principalmente
secular", a saber,o de possibilitar que certas populações se tornem capazes pela reflexão de que a Igreja seria uma boa garantidora da ordem. Não estou
de funcionar como produtivas, agentes ordeiros em um ambiente novo, não arriscando um palpite sobre quanto de piedade genuína e quanto de interes-
se social embalou essamudança. Indubitavelmente havia algo deste último,
tradicional, seja na Manchester do século XIX, seja na SãoPaulo do século XX
e isso nos servirá de caso de contraste.
ou em Lagos do século XXI. E isso suscita duas reflexões. Em primeiro lugar,
essaestreita identificação de fé com uma certa moralidade ou ordem acabará Nesse caso francês, a alegação seria que piedade genuína não precisa ser
solapando a fé, como já argumentei que ela fez com as elites nos séculos Xvll forte, podendo, na verdade, chegar a estar totalmente ausente;o medo da
e XVlll e como parece ter feito, de qualquer modo, na Grã-Bretanha no século desordem traria o burguês de volta aos bancos da igreja, podendo até incul-
XX?Na verdade, parece que a fé, originalmente conectada com um sentimento car um senso de justiça a partir desse movimento. O caso evangelical mos-
tra precisamente o oposto. Podemos supor que, antes da sua conversão, ao
de sua própüa impotência incapaz de pâr ordem na vida, contrastando com a
eficiência da graça nesse tocante, perderá algo de sua relevância e poder de demorar-se no boneco,gastando seu pagamento com bebida, o trabalhador
convencimento se/quando a disciplina requerida passa a ser a segunda natu- desejava, com uma parte de si mesmo, poder tornar-se um bom provedor (o
reza da pessoae, em vez de sentir impotência, ela sente que está no controle desejo análogo ao do burguês parisiense ao querer uma classetrabalhadora
de sua própria vida. Porém, ainda que isso aparentemente tenha sido gera- dócil). Porém,essedesejonão foi efetivo em produzir a mudança.O que
mostrou sê-lo foi a conversãoreligiosa, que mostrou ser uma força motiva-
do pe[o destino duradouro das ondas [evangelicais] mais antigas, seríamos
muito levianos se predisséssemoso que ocorrerá às ondas anuaisdo pente-
dora incomparavelmente mais poderosa na sua vida. Qualquer teoria que
subordina isso a um motivo ulterior tem um pesado ânus da prova. E claro
que teorias oriundas da psicologia profunda conseguem fazer a mágica e al-
H Ver David Martin, ToFlgtzesof Feree P?nfecosfalism.' The Wor/d Thefr Ihrísh. Oxford: Blackwel1, 2002.
hlSociólogos observaram efeitos similares resultantes de fortes(re)conversões ao islamismo na Fiança gumas até foram lembradas; mas teorias que invocam a função social latente
contemporânea; ver Daniêle Hervieu-Léger. l,e Pé/erízzet /e C0710ertí.Paras: Flammarion, 1999, p. 142-143 não podem tirar essecasoa limpo.
533
Capíttito 12. A Era da Mobilização
532 Parte iV: Narrativas ãe secularização

tantismo compartilhado, que abarcava as diferenças da confissão efetiva."


Estivemos descrevendo duas maneiras pelas quais a fé religiosa pode Ele construiu sobre a base de uma autoidentificação prévia dos ingleses com
restabelecera si própria dentro do modelo da mobilização,apósa ruptura a causa protestante, num mundo em que as maiores ameaças à segurança
com o alzcíe/z
régíme.A primeira implica a presençade Deus no nível da
nacional partiam dos amplos poderes "papistas
sociedade como um todo, como o autor de um desígnio que essasociedade
Assim,por um lado, a identidade denominacional tende a separara reli-
busca realizar. O Desígnio de [)eus, por assim dizer, define a identidade
gião do Estado.Uma denominação não pode ser uma Igreja nacional nem os
política dessa sociedade. A segunda consiste nas igrejas "livres", configu-
seusmembros podem aceitare aderir ao que quer que pretenda sera igreja
radas como instrumentos de ajuda mútua, nos quais indivíduos são postos
nacional. O denominacionalismo implica que as igrejas são todas igualmente
em contadocom a Palavra de Deus e fortalecem-semutuamente na orde-
opções e prospera melhor em um regime de separaçãode igreja e Estado, e
nação de suas vidas segundo as diretrizes divinas. Elas convivem muito
issodelacfo,se não de.fure.Porém,em outro nível, a entidade política pode
bem juntas. Elas não só estão organizadas segundo princípios similares: ser identificada com a "igreja" mais ampla, abrangente,e issopode ser um
mobilizando para realizar a vontade de Deus; mas elastambém podem ser elemento crucial em seu patriotismo.
vistas como maneiras que se fortalecem mutuamente. Essefoi o caso nos Isso naturalmentenos proporcionauma situaçãomuito diferenteda
primórdios dos EUA.A república asseguraa liberdade das igrejas e as igre- 'durl<heimiana" que prevalece em alguns países católicos, onde o socialmente
jas dão sustentação ao éfbosdivino que a república requer.
sagrado é definido e ministrado pela Igreja. Em primeiro lugar, nesseambiente
Nesseponto reside o sentido por trás da injunção citada acima para protestante desencantado,não há mais o sagrado no sentido mais antigo, no
prestar culto na Igreja de sua escolha.Isso pressupõeque cada Igreja não qual certos lugares, tempos, pessoase alas eram distinguidos como tais dos
opera apenastendo em vista seuspróprios fins, em competição e até hos-
profanos. Em segundo lugar nenhuma igreja pode definir e celebrar com ex-
tilidade para com outras. Inevitavelmente também haverá muito disso. Po-
clusividade o elo entre a sociedadepolítica e a Providência [)ivina.
rém, a ideia é que também haverá convergência, sinergia no efeito ético E claro que estou falando aqui de um tipo ideal; um que, nessetocante, foi
final. De tal modo que, juntas, elas constituem um corpo maior. uma "igre- plenamente realizado nos EUA. A situação britânica é curvada pela existência
ja" - ou é o que são ao menos aquelas que se enquadram dentro de certos continuada de igrejas nacionais, que, em um dos casos(o da Igreja Anglica-
limites toleráveis.
na), continua a assumir um papel que quanto ao tipo e até em muitos dos
Em tempos passados, no cenário norte-americano, os católicos estavam seus detalhes rituais constitui um legado de seu passado católico medieval.
fora desseslimites, como estão para muitos ainda hoje. Porém, para outros, Porém,a satisfaçãodas massascom essecerimonialhá muito tempo já foi
os limites foram ampliados para incluir os judeus como parte da adesão desvinculada da identificação com essaigreja.
comum a um teísmojudeu-cristão. (E mais recentemente,elesforam nova- Denominarei essetipo de vínculo entre a religião e o Estado de "neo-
mente ampliados para incluir islamitas e outros, particularmente depois do durkheimiano", contrastando-o, de um lado, com o modo "paleodurkheimia-
11 de Setembro de 2001.) no" das sociedadescatólicas"barrocas" e, do outro, com formas mais recentes,
Assim sendo, uma das característicasdo denominacionalismo é que, jus- em que a dimensão espiritual da existênciaestá bem desconectadada dimen-
tamente porque a nossa própria Igreja não inclui todos os crentes, há um são política. A fase "paleo" corresponde a uma situação em que uma sensação
senso de pertencimento a um todo mais amplo, menos estruturado, que faz de dependência ântica do Estado em relação a Deus e tempos superiores ainda
isso. E isso pode ganhar expressãoao menos parcial no Estado. Isto é, os está atava,mesmo que possa ter sido enfraquecida pelo desencantamento e
membros de denominações que se reconhecem mutuamente podem formar pelo espírito instrumental; enquanto isso,nas sociedades"neo", Deus estápre-
um povo "sob Deus", com a sensaçãode estaremagindo de acordo com as sente porque a sociedade está organizada em torno do seu Desígnio. E nisso
demandas de Deus ao conferirem forma e manterem seu Estado, como no
que concordamos como a descrição comum que identifica a nossa sociedade, o
caso da "religião civil" norte-americana aludida acima. [)e fato, na medida que poderíamos chamar de sua "identidade política
em que o Desígnio divino inclui liberdade, isso pode ser interpretado como Se examinarmos agora essa trajetória "anglófona", poderemos ver que,
um chamamento à abertura para uma pluralidade de denominações. diferentemente da trajetória "barroca", na qual a Igreja quaseinevitavelmen-
Essesensode ter uma missãopolítica providencial foi muito forte en- te gerou forças contrárias, ela consegue manter um alto nível de fé e prática
tre os protestantes norte-americanos e permanece vivo até os dias de hoje.
No entanto, algo análogo também se desenvolveu na Grã-Bretanha. Linda zLinda Colley.Brftofzs.New Haver: YaleUniversity Press,1992).Cf. tambémWolffe,GadandGreater
Brífaílz; e David Hempton. Re/{gí07íalia Po/ftfclzlCu/fure ín Brffaízt aziaIre/alia. Cambridge: Cambridge
Colley alegou que uma espécie de nacionalismo britânico se desenvolveu
University Press,1996,capítulos 5 e 7.
no século XVlll, parte do qual se formou em torno do senso de um protes-
Capíftrio ]2. Á Era da Mobf/fzação 535
534 Parte IV! Narrativas de sectttarização

religiosas. O ressentimento em relação ao poder das elites e o estranhamento E por issoque, em tempos mais antigos, vemos as pessoasreagindo for-
temente em tais momentos de ameaça,valendo-se da violência expiatória
em relação ao seu estilo espiritual podem ganhar expressão em outro modo
de vida e culto cristãos. Os grupos populares podem encontrar o seu próprio contra "o inimigo de dentro", enfrentando a ameaçaà nossa segurançae
estilo espiritual e viver de acordo com ele, como os metodistas "entusiásti- desviando-a ardilosamente para os bodes expiatórios em prol da nossa in-
cos" fizeram na Inglaterra do século XVlll, os batistas na área rural dos EUA tegridade. Em períodos mais antigos do cristianismo latino, os judeus e as
e os evangelicais e pentecostais estão fazendo hoje na América Latina, Africa bruxas foram investidos desse papel nada invejável. A evidência de que
e Ária. O alheamento em relação a um Nordeste dominado por episcopais e ainda estamos tentados a recorrer a mecanismos similares em nossa era
presbiterianos requintados pode tomar a forma do evangelicalismo apaixo- 'iluminada" é inquietante. Porém, não seria o primeiro paradoxo desse tipo
nado do novo nascimento no Sul e no Oeste. na história, se uma doutrina do universalismo pacífico fosse invocada para
Ao mesmo tempo, a fé é sustentada pela identificação "neodurkheimiana' mobilizar a violência expiatória.«
com o Estado.Durante um longo período, muitos inglesesidentificavam a O ponto que quero enfatizar sobre o patriotismo britânico e, mais tarde,
cristianismo de certa variedade protestante com certos padrões morais, muitas o norte-americano, baseado como estava primeiramente no senso de estar
vezessintetizados na palavra "decência",'ae a Inglaterra era tida como a men- cumprindo o desígnio de Deus, é que essaidentidade nacional estavaba-
sageiramais proeminente dessavariedade no cenário mundial. Tratava-se do seada numa preeminência autoatribuída para realização de certa superio-
que poderíamos chamar de "síntese estabelecida".Para muitos, o patriotismo ridade civilizacional. A superioridade pode ter sido entendida, em última
análise, como a do "cristianismo" sobre as religiões infiéis, mas também
inglês foi construído em torno dessecomplexode credose normas. Muitos
dentro do cristianismo a Grã-Bretanha/Américado Norte ocupavao posto
norte-americanos protestantes e ultimamente também alguns católicos pen-
mais avançado.
saramque os EUA têm a missão providencial de disseminar a democracia
liberal entre o restante da humanidade. Esse senso de superioridade, originalmente religioso em essência, pode
Nessaforma neodurkheimiana, o pertencimento religioso é central para passar e está passando por uma "secularização", na medida em que o senso
a identidade política. Porém, a dimensão religiosa também se salienta no que de superioridade civilizacional é separado da Providência e atribuído à raça
podemos chamar de identidade "civilizacional", o sensoque as pessoastêm ou à ilustração, ou até a uma a]guma combinação das duas. ]'orém, o ponto
da ordem básica segundo a qual vivem, mesmo que imperfeitamente, como que interessa aqui na identificação desse senso de ordem é que ele prevê
pessoasboas e(usualmente) como pessoas superiores aos modos de vida das outro nicho, por assimdizer no qual Deus pode estarpresenteem nossas
pessoas de fora, sejam elas os "bárbaros" ou os "selvagens" ou (na linguagem vidas, ou em nosso imaginário social; não apenas como o autor do Desígnio
contemporânea mais polida) as pessoas "menos desenvolvidas' que define a nossa identidade política, mas também do Desígnio que define
a ordem civilizacional.
De fato, na maior parte do tempo, nós nos relacionamos com a ordem es-
tabelecida em nossa "civilização" da mesma maneira que as pessoas sempre Mas por que distingui-los quando eles tão obviamente andam de mãos
serelacionaram com seu sensode ordem mais fundamental; nós temos tanto dadas no caso paradigmático dos EUA? Porque eles nem sempre se encai-
uma sensaçãode segurança em crer que essaordem está realmente vigoran- xam dessa maneira, mas podem operar separadamente.E absolutamente
do em nosso mundo como também um senso para nossa própria superiori- crucial para muita apologética cristã desde a Revolução Francesaque a fé
dade e bondade que deriva da confiança de que estamosparticipando dela e cristã seja essencialpara a manutenção da ordem civilizacional, quer esta
sustentando-a. O que significa que podemos reagir com grande insegurança seja definida nos termosda Ordem Moral Moderna, quer nos termos de
quando vemos que ela pode ser rompida a partir de fora, como ocorreu no sua antiga complementariedadehierárquica. Esseé o verdadeiro artigo
World Trade Center; mas também que ficamos ainda mais abalados quando central do pensamento contrarrevolucionário, como ele flui da caneta, por
sentimos que ela pode ser solapada a partir de dentro ou que podemos estar exemplo, de Joseph de Maistre. Porém, pode-se ouvir algo similar hoje, em
traindo-a. Não é só nossa segurança que está ameaçada,mas também o sen- um contexto bem neodürkheimiano, dito por alguns segmentos da direita
religiosa dos EUA. A doutrina diz que nossa ordem não será estável a não
so que temos de nossa própria integridade e bondade. Ver isso tudo sendo
questionado é profundamente perturbador. ameaçando, no final das contas, ser que esteja baseadano reconhecimento explícito de que estamos seguin-
a nossa capacidade de agir.
do o plano de Deus. É o que há a dizer sobrea fé implicada.

HA ligaçãoentre cristianismo e decênciana Inglaterra foi percebidapor David Martin. Dilerlz/nas


o$ H Toda essa questão da violência na modernidade merece um tratamento mais extenso, especial
mente levando em conta a obra pioneira de René Girard.
Collfe} 7porary Re/{gí07z.Oxford: Blackwel1, 1978, p. 122
536 ParteIV=Narrativas desecularização Capífillo ]2. A Era da Mobílízízção 537

Porém,isso pode resultar em um imaginário social,a saber,que nossa Duas características afins são cruciais para essa autocompreensão. A pri-
ordem passou a ser estável porque seguimos o plano de Deus; ou, ao con- meira é que perceber quem nós realmente somos realmente (X) requer(eu)
trário, que nossa ordem está ameaçadaporque estamosnos desviando do mobilização. Temos de ser levados a agir em conjunto para erigir nosso Es-
plano. Essesenso da presença ou da ausênciaameaçadora de Deus em nos- tado: rebelar-nos contra os Y ou apelar para a Liga das Nações ou o que for.
so mundo como o designador/garantidor da ordem civilizacional pode ser E a segunda é que essamobilização é inseparável de uma (re)definição da
algo muito presente, mesmo onde não está associadocom o senso de que identidade: temos de definir a nós mesmospreponderantementee às vezes
nossa nação se considera escolhida por sua preeminência em concretizar a até primariamente como X, e não como um sem-número de outras coisasque
Suaordem. Ele pode estar relativamente desvinculado de nossa identida- também somos ou poderíamos ser (poloneses ou uniatas católicos ou apenas
de política. Essavisão pode estar refletindo minha própria identidade na- membros deste povoado ou apenas camponeses etc.).
cional, mas parece-me que a autoarrogação de tal posição de vanguarda é Essasnovas entidades - Estados de cidadãos ou outros produtos da mo-
mais provável (pelo menos, a longo prazo) entre os poderes hegemónicas. bilização -- estão ordenadas em torno de certos polos comuns de identidade,
É mais difícil de pensar que você está no posto mais avançado da história que denominaremos "identidades políticas". Naturalmente, não é necessário
humana sevocê vem da Noruega, da Bélgica(ou do Canadá).Porém,as que seja uma nação linguisticamente definida (embora muitas vezes tenha
pessoasnessasnaçõesmenores ainda podem ter o senso de Deus como a sido assim no Ocidente). Pode ser uma confissão religiosa; podem ser certos
basede sua própria ordem civilizacional. princípios de governo (a Françarevolucionária e os EUA);podem servíncu-
Porém,isso também pode funcionar no sentido oposto; Deus pode ser los históricos; e assimpor diante. Issonos permite ver o casodos EUAcomo
central para a nossa identidade política, sem que isso esteja vinculado com um exemplo de uma característicalargamente difundida do mundo moder-
qualquer preeminência na ordem mais ampla. Em consequência,no curso no, na Era da Mobilização. Identidades políticas também podem ser tecidas
da história moderna, alianças confessionais chegaram a ser tecidas em vir- em torno de definições religiosas ou confessionais, mesmo onde a referência
tude do senso de identidade de certos grupos étnicos, nacionais, de classe ao Desígnio divino, como vimos em relação ao caso dos EUA, esteja ausente
ou regionais. ou seja secundária. De nodo, a Grã-Bretanha e os EUA são nações poderosas,
É possível discernir nesseponto, uma das aplicaçõesde um padrão que independentes. O tipo confessional de identificação, todavia, é frequente no
é central para o que podemos chamar de Era da Mobilização. O imaginário caso de populações marginais ou oprimidas. As identidades católicas dos
social do cidadão moderno contrasta com várias formas pré-modernas pelo polonesese dos irlandesessão casosbem-conhecidosdesse tipo. Outro é o
fato de estas refletirem uma compreensão "radicada" da vida humana. Em antigo caso franco-canadense.
relação a um reino do ancíe/ régínre,já somos vistos, desde tempos imemo- O presentevínculo entre grupo e confissãonão é o do tipo ande?zrégíme
riais, em nossa definição como subalternos do rei, e, na verdade, situados de que vimos na França contrarrevolucionária, mesmo que seja a mesma Igreja
modo ainda mais preciso, como servos de determinado senhor, que obedece Católica que estáenvolvida. Trono e altar não podem ser aliados porque o
a um duque,que obedeceao rei; ou como cidadãode determinadacidade,. trono é alheio, não só quando é luterano, anglicano ou ortodoxo, mas até
que obedece a etc.; ou membros de determinado capítulo da catedral, que mesmo onde ele é católico (Viena). O ressentimento em relação às elites tor-
estásubordinado ao bispo, que se relaciona diretamente tanto com o papa na-semarginal à medida que essaselites perdem poder e privilégio. Porém, o
quanto com o rei; e assim por diante. Nossarelaçãocom o todo é mediada. senso de dominação e opressão nacionais, o senso de virtude no sofrimento e
O imaginário do cidadão moderno, em contrapartida, visualiza-nos reunidos na luta está profundamente entrelaçado com o credo e a fidelidade religiosas
para formar determinada entidade política, com a qual todos nos relaciona- - até ao ponto de serem cometidos excessosretóricos, tais como a descrição
mos da mesma maneira, como membros iguais. Essa entidade precisa ser da I'olânia como "Cristo crucificado entre as nações".O resultadodisso é
construída (ou precisou ser,casojá esteja aí e em funcionamento). Ainda que o que chamo de efeito "neodurkheimiano", em que os sensosde pertenci-
várias ideologias modernas, como o nacionalismo, possam nos convencer de mento ao grupo e o de pertencimento à confissãose fundiram e as questões
que, desde tempos imemoriais, sempre já fomos membros do povo X (mes- morais da história do grupo tendem a ser codificadas em categoriasreligio-
mo que nossos ancestrais não concretizaram isso plenamente e até foram sas.(A linguagemrivalizantedo povo oprimido semprefoi a da Revolução
forçados/induzidos a falar a língua de Y) e, como quer que seja,isso nos dá a Francesa. Isso aconteceu por momentos em cada uma das nações subalternas
vocação para construir nosso próprio Estado, o país X, ainda assim esse Esta- mencionadas aqui: a nação irlandesa unida, a rebelião de Papineau em 1837,
do precisa(precisou) ser construído. As pessoasprecisa(ra)m ser convencidas a legião de Dabrowski; porém, em cada um dos casos,a codificaçãocatólica
de que eram realmente X e não Y (ucranianos e não poloneses). acabou prevalecendo.)
538 Parte IV Narratioas de secularização 539
Capítulo 12. A Era da Mobilização

Minha categoria "neodurkheimiana" pode até ser expandida para incluir 'neodurkheimianas", de outro. Trata-se,repito, de tipos ideais; talvez jamais
a fundação da identidade política numa postura filosófica antirreligiosa, sejam completamente concretizados -- embora a monarquia francesas pré-
como vimos em relação à antiga identidade francesa "republicana". A antiga revolucionária e a república norte-americana do início do século XIX possam
guerre franco-française [guerra franco-francesas"foi travada, nessesentido, ser tomadas como paradigmas de cada tipo.
entre duas identidades neodurkheimianas. Estas,em seguida, contrastam As diferenças entre o primeiro (AR - arzcíen régme) e a segunda (M -
com outras espéciesde identidades políticas, fundadas, por exemplo, numa mobilização) pode sér explicitada na seguinte lista de contrastes:
suposta nação histórico-linguística, ou em certa ordem constitucional. (i) as formas ARse baseiamnuma ideia pré-moderna de ordem, funda-
Este último caso, francês, mostra que a mobilização da identidade neo- da no cosmo e/ou no tempo maior; enquanto isso,M estárelacionada
durkheimiana se estende bem além de nações estabelecidas ou até preten- com a moderna ideia moral de ordem, como um modo de coexistên-
sasnações, como a Polânia ou a Irlanda. Há também casosde mobilização cia entre iguais, baseado em princípios de benefício mútuo.
confessionalque almejam o impacto político, mesmo onde isso é puramente (ii) as formas AR são anteriores aos seres humanos reais que pertencem
defensivo, e não podem alimentar a esperançade lançar uma nacionalidade a elas e são elas que definem o sfafzíse o papel destes;elasjá estão
independente, como ocorreu com os católicos na Alemanha durante o KLíJ- aí "desde tempos imemoriais"; enquanto isso, M oferece um mode-
furka/7zpfena pilarização holandesa. lo que somoschamadosa realizar; é a atividade humana que torna
Ora, é evidente que essefenómeno, o da mobilização da identidade polí- essedesígnio efetivo no tempo secular. Esta é a conexão intrínseca
tica definida em termos religiosos, está tremendamente presente e tem (assim entre M e o que estive chamando de "mobilização"; em vez de serem
temo) um grande futuro em nosso mundo. Retomarei a issonuma seçãopos- obrigados a permanecer ou (após um hiato revolucionário desventu-
terior. Porém, de momento, gostariade ressaltarque onde esseefeito seinstala rado) a retornar aos seus lugares preexistentes, aspessoasdevem ser
um declínio potencial da fé e prática é retardado ou deixa de ocorrer. Isso fa- induzidas ou forçadas ou organizadas para assumir seus papéis na
cilmente dá ocasião a um mal-entendido na área da sociologia contemporânea nova estrutura; elas deverão ser recrutadaspara a criaçãode novas
com sua tendência mais "secular". Uma vez mais, como no casodo evangeli- estruturas.
calismo acima, podemos ficar tentados a dizer a respeito dessas situações, bem (iii) as formas AR são "orgânicas", no sentido de que a respectiva socie-
como nas das nações anglófonas tratadas anteriormente, que a religião desem- dade está articulada em "ordens" constituintes (nobreza,clero, bur-
penha uma "função integradora" ou, na linguagem de Bruce, a da "defesa cul- guesia, camponeses),instituições (assembleia do clero, parlamentos,
tural". É fádl escorregar daqui para a tese de que, nesse caso, a fé religiosa é a Estados) e sociedades menores (paróquias, comunas, províncias), de
variável dependente, sendo sua função integradora o falar explicativo. tal modo que uma pessoa só pertence ao todo mediante a pertença a
Penso,porém, que distorceria menos dizer que a linguagem religiosa é uma dessas partes constituintes; enquanto isso, as sociedades M são
aquela em que as pessoas consideram significativo codificar sua forte expe- do tipo "acessodireto"; o individual é um cidadão"sem mediação
riência moral e política, seja de opressãoou de construção exitosa do Estado, sem referência a essesdiferentes agrupamentos, que podem ser fei-
em torno de certos princípios morais. O ponto que se queria destacar ao citar tos e desfeitos a bel-prazer.
as diferentes dificuldades dos camponeses ou trabalhadores poloneses ou (iv) O mundo das formas AR geralmente é um mundo encantado; en-
irlandeses, de um lado, e seus equivalentes espanhóis ou franceses, de outro, quanto isso, o movimento rumo a M implica um desencantamento
é que os primeiros incentivaram e ofereceram pouca resistência à codificação cada vez maior.
em linguagem católica, apesar de a vida em um regime "barroco" gerar expe- Essestipos ideais de AR e "mobilização" ajudaram a aclarar as transições
riências fortemente dissuasivas a proceder dessaforma. que estivedescrevendo.No modo como os tenho utilizado aqui, eles seapli-
A menção da Irlanda e da Polânia nos leva de volta às tentativas da Igreja cam de modo bem central às sendas trilhadas rumo à modernidade e à secu-
católicade recuperar o terreno perdido no período revolucionário e às suas laridade na França e nos países anglo-saxânicos. Mais estritamente, dirigi o
consequências.I'oderíamos dizer que elas representaram um triunfo da mo- foco para certos estágios-chavena história dessassociedades,quando a insa-
bi[ização, em certo sentido, 27zaZgré
e//e [ma]grado e]a]. tisfação com as igrejas nacionais há muito estabelecidas tornou inevitável o
desenvolvimento de novas formas.
[4] Porém, antes de estender-me nesse ponto, pode ser útil reunir as dife- Essesrelatos que estive apresentando claramente têm suas limitações,
rentes facetas da minha distinção entre formas a/zcíenrégí/nee políticas "pa- como é o casoem particular do tipo ideal "neodurkheimiano", do qual fiz usa
leodurkheimianas",
de um lado,e a Erada Mobilizaçãocom suasformas abundante ao fazer osrelatos. Eles não sãosuficientes para entender todos os
540 Parte IV Narrativas de sectílarização

diferentes itinerários nacionais nem todos os estágiosdentro destes. Há, por


exemplo, um elo das sociedades luteranas, na Alemanha e na Escandinávia,
T Capítulo 12. A Era da Mobilização

de desestabilizaçãoe recomposição, constituindo um processo que pode ser


repetido muitas vezes.
541

que manteve, em alguns casos até os dias de hoje, igrejas estabelecidas de


cunho nacional, não afetadaspela dissidência em grande escala.Há as de- Uma prova plenamente convincente disso requereria um estudo com-
mais sociedadeslatinas, ltália, Espalha, cujos desenvolvimentos exibem al- pleto que já admiti estar além do meu alcance aqui. Penso,porém, que os
resultados das comparações mais estritas que fiz aqui são bem convincentes e
guma analogia com o caso francês, mas estão longe de serem idênticas a ele.
Pode-sedizer que o tipo ideal AR encontraaplicaçãoem toda parte na que a adição de outros itinerários variados só iria incrementar a confirmação
da minha tese básica.
Europa seregredirmos suficientemente. Por razõesculturais, é bem compre-
Permitam que eu faça mais um caueaf[alerta]. Pelo fato de eu estar lidando
ensível que as monarquias inglesa e francesa tenham noções similares da sa-
cralidade da realeza,dos dois corpos do rei e até do poder de curar o "mal do com tipos ideais, obviamente sucederá que, mesmo quando eles se aplicam
rei" pelo toque. E essas duas sociedades compreendem-se hoje grosso 7nodo
perfeitamente, uma profusão de formas que podemos observar durante os
últimos três séculos,de alguma maneira, não se encaixarabem nessasdis-
nos termos da era da mobilização. Porém, as sendas que trilharam do ponto
de partida medieval até o presenteforam muito diferentes. Certamente,no tinções.O ponto visado pela distinção é, em primeiro lugar. identificar o
movimento de longa duração, "la tendance lourde", que nos está levando
casoinglês, a monarquia "a/lcíenrégme" do séculoXVlll perdeu muitas das
característicassacralizantes do seu original medieval. Um estudo realmente de AR para M, mas, em segundo lugar, tornar-nos capazes de distinguir os
completo de todas as diversas sendas que atravessaram todo o cristianismo diferentestipos de matriz social,no interior da qual um sensocomum de
latino exigiria uma imensa ampliação do nosso aparato teórico.'s pertencimento à igreja cristã foi mantido, e vislumbrar o tipo bem diferente
Infelizmente isso iria além do meu escopoaqui(e certamentealém das de pertencimento que era sustentado em cada uma delas.
Porém, claramente simplifica-se demais quando se fala da Grã-Bretanha
minhas capacidades, pelo menos neste momento). Porém, as transições que
descrevi são suficientes para os meus limitados propósitos. Estessão, em anterior ao século XX como "neodurkheimiana" salas phrase usem ressalvam,
termos negativos, desencorajar a teoria unilinear da secularização, anterior- quando obviamente havia importantes linhas de deferência e hierarquia,
mente dominante, a qual vê a retração da fé como uma função permanente bem como uma reverência pela constituição antiga até bem recentemente
de certas tendências modernizadoras, como a diferenciação de classesda so- (talvez até agora?); onde ainda havia paróquias da Igreja da Inglaterra, onde
ciedade ou o movimento do campo para as cidades. O contraste entre o caso a comunidade impregnada de religião popular ainda existiaaté bem recen-
francês e o casoanglo-americano deveria bastar para contestar essavisão, já temente.Simetricamenteé simplificar demais quando se fala da Françado
século XIX como dando continuidade a formas AR,quando isso é verdadeiro
que desenvolvimentos similares levam, num dos casos,a uma debandada do
cristianismo e, no outro, ao desenvolvimento de vigorosas novas formas de apenasem parte, sendo que estavasurgindo uma nova cultura urbana e no-
piedade e vida eclesial. De fato, está claro que a mobilidade por si mesma não vasinstituições se desenvolvendo que pertenciam à Era da Mobilização.
aponta para uma ou outra direção. Como formulou o sociólogo da religião O ponto almejado pela distinção não é colocar sociedadesinteiras e/ou
francêsGabrielle Bus, quando o camponêsfrancêsdo final do séculoXIX fatiasinteirasde tempo dentro de uma ou de outra caixinha,masmostrar
chegava à Gare de Montparnasse, ele já estava perdido para a Igreja. Porém, como o peso dado às formas AR e às formas M em cada uma delas confere
desenho e curvatura diferentes a um movimento que, num nível muito geral,
a migração de camponesessimilares para a América do Norte muitas vezes
era comum a todas elas: o esvaziamento de formas AR em favor das formas
deu origem a uma forma nova e mais vigorosa de prática.
Em termos positivos, minha meta é sugerir, em lugar do suposto efeito M, seguido pelo solapamento justamente destasúltimas na segunda metade
doséculo xx.
uniforme e unilinear da modernidade sobrea fé e a prática religiosas,outro
modelo, no qual essasmudanças, na verdade, frequentemente desestabili- E aqui chego ao ponto que quero demonstrar em relação ao fato de a re-
zam formas mais antigas, mas o que decorre disso depende muito de quais ação católica do século XIX representar um triunfo da mobilização a despeito
alternativas estãodisponíveis ou podem ser inventadas a partir do repertório de si mesma.Começandopelo casofrancês,a tentativa original certamente
das populaçõesconcernentes.Em alguns casos,isso resulta em novas for- foi a de reconstituir a Igreja em torno da defesa da hierarquia, não só clerical
mas religiosas.O padrão da moderna vida religiosa sob a "secularização"é mas também leiga. O trauma do período revolucionário fez a Igreja retroce-
der à aliança entre trono e altar, a despeito das propostas mais criteriosas de
õsUm sumário muito bom dasdiversassendasfoi proporcionadopor David Martin in: O/l Sect{/arí-
pessoascomo Ozanam e Lammenais. Porém, em primeiro lugar a reconstru-
zatíotz; Tomarás a Reuísed Ge/zernl T/leory. Aldershot: Ashgate, 2005. ção,em dado momento, passou a exigir uma organização de amplo alcance,
envolvendo homens e mulheres leigos, assim como monges e monjas. E, em

l
542 Parte IV Narrativas de sectttarização 543
Capíttílo12.A Era daMobilização

segundo lugar as características da Igreja do século XIX que melhor se pres- contra a cólera (item (i) dos contrastes). E, na verdade, pensava-seque esse
tavam ao objetivo da restauração eram vulneráveis aos desenvolvimentos da leque de práticasexistia"depuis des tempoimmémoriaux [desde tempos
modernidade naquele século: cidades, indústria, comunicações,mobilidade. imemoriais l ."
Então, em terceiro lugar, a própria tentativa de defender essascaracterísticas Porém,além disso,até o nível e o tipo da devoçãolitúrgica era prescrito
implicou organização, recrutamento, em suma, mobilização, que por si só já para cada pessoa.Sacerdotesque queriam elevar essenível se deparavam
solapou essas formas. com uma barreira normativa, aquilo que era chamado pelos seusparoquia-
Juntando o segundo e o terceiro pontos, as característicasde que es- nos de "le respect humain [o respeito humanos". Nossos ouvidos neokan-
tou falando aqui estavammais em evidência nas paróquias rurais da Fran- tianos nos induzem a erro quanto ao significado dessaexpressão.Ela não
ça do século XIX. Exatamente ao contrário do modo de pertencimento a designa aquilo que cada um de nós deve fazer por razões de consciência
uma igreja metodista na América do Norte, por exemplo, que era compa- visando mostrar respeito aos seus semelhantes. Ela define, antes,o que cada
tível com uma mobilidade quase infinita, o locosprimário da vida católica um deve fazer para ganhar e preservar o respeito de seuscoparoquianos. Ao
do povo do campo era a paróquia (item ]iii] do contraste exposto acima). contrário do que é para Kant, trata-sede uma lei de conformidade, não de
A vida religiosa dessaparóquia colocou a liturgia e a prática católicasem autonomia. Em muitas paróquias, por exemplo, entendia-se que a norma era
contadodireto com a religiosidade popular, como descrevi acima, sendo que comungar uma vez por ano, usualmente no tempo da Páscoa.Isso era o es-
estaúltima operavaem grande medida em um mundo encantado(item sencial, o que hoje chamaríamos de "pagar nossas dívidas"; mas ir além disso
liv] acima). Além disso, cada paróquia possuía sua própria mescla desses era visto com desagrado. Quando, em meados daquele século, desenvolveu-
dois elementos: por exemplo, seus próprios santos,peregrinações, cultos aos se o movimento generalizado na Igreja em favor da comunhão frequente, os
santos como curadores e protetores e coisassimilares (item liiil novamente). sacerdotes que tentavam inculcar isso investiram contra as normas do "res-
Como formulou Boutry, pect humain". Com frequência os paroquianos não podiam ser levados a ce-
11convient de marquer combien "naturellement" cette "religion populai- der; eles não conseguiam ver isso como uma questão da decisãoindividual e
re" s'insere, s'integre, dana la vie religieuse paroissiale, requiert même aves sentiam que a ruptura com a prática usual era injustificada. A única maneira
insistance I'office et les bénédictions des prêtres. La prégnance du surna- de produzir uma mudança importante, como sucedia às vezes por ocasião de
turel, I'union intime d'un cure, d'une date,d'un terroir tela sont les traits alguma cura carismática (como a cura de Ars), era mediante uma mudança
communs à cet ensemble complexe de pratiquei cultuelles, qui ne sono pas na mentalidade coletiva. Como disse um observador a respeito de Ars: "Le
à ce tigre si éloignées de la pratique paroissiale des sacrements. De cet en- respecthumain était renversé. On avait hoste de ne pas pairele bien et de ne
semblede rites se dégageI'image d'une re/igíondu ferroícfondement des pas pratiquer sa religion"(A pressão pela conformidade começou a inverter-
mentalités religieuses de la chrétienneté rurale tout au long du siêcle." se. Sentia-severgonha de não fazer o bem e de não praticar a sua religiãoy
(Convém observar quão "naturalmente" essa "religiosidade popular" se Aqui havia uma matriz social muito importante, fundamentalmente do
insere e se integra na vida religiosa da paróquia, demandando com insis- tipo AR, que mantinha as pessoasunidas em seu pertencimentoà Igreja
tência as oraçõese as bênçãos dos padres. A impregnação com o sobrenatu- Católica.ó9Porém, vários desenvolvimentos daquele século ameaçavam so-
ral, a união íntima de um culto com uma data e um chão, sãoas caracterís- lapá-la; a vida religiosa e a vida política da França urbana e da elite francesa
ticas comuns desseconjunto complexo de práticas cultuais, que como tais avançaram por princípios bem diferentes. As pessoasestava divididas, havia
não estão tão distantes da prática paroquial oficial dos sacramentos. Desse opiniões divergentes, partidos formados, que se digladiavam. Os dois tipos
conjunto de ritos emerge a imagem de uma religiãodochão,que constitui o de ambiente não podiam ser mantidos isolados um do outro. As elites urba-
fundamento das mentalidades religiosas do cristianismo rural no decorrer nas se estabeleceram ou notáveis rurais mudaram seus pareceres;algumas
do século.) cidades desenvolveram indústrias; as pessoasviajavam. No final, a área rural
Essareligião "do chão" (dHferroír) era vivida em cada povoado como uma
norma coletiva. Ela não refletia simplesmente a síntesefinal das diferentes " .rd., ibid., P. 506.
formas e níveis individuais da devoção dos habitantes. Pelo contrário, os ri- " /d., fbíd., p. 344, 459-460. Saram Williams chegou a algo similar em Southwark, na virada do século,
a saber,um código de prática consensualmenteimposto, localmente referido como 'iopinião pública";
tuais coletivos eram importantes para cada pessoa,porque deles dependia RelígíotlsBelíd p. 37-38
i9Ela também manteve unida uma paróquia cismática de ex-jansenistas,que se recusaram a recon-
a prosperidade geral, o êxito das colheitas,a saúde dos animais,a proteção
verter-seindividualmente. Todoseles estavamde acordo que "il ne faut pas quitter la religion de nos
pores [não épreciso deixar areligião de nossospais]"; "le respecthumain [o respeito humanos" demanda
M Boutry, Prêtres ef Bnroísses, p. 487. isso. Boutry, Prêfres ef Pnroísses,p. 522.
545
544 Parte IVI Narratioas de secularização Capítulo 12. A Era da Mobilização

foi aberta não só pela ferrovia, mas também pelos governos anticlericais da Ter- própria cultura da festa,que mesclavaalgum ritual sagradocom muita co-
mida, bebida e dança bem terrenas, tendo consequências muitas vezes não
ceira República, que recrutaram os homens jovens para o exército e enviaram
professores aos povoados a fim de demover as pessoas do seu apego à Igreja.
mencionáveispara a moralidade sexualtanto de jovens quanto de adultos.
No final das contas, os republicanos foram bem-sucedidos. Eles dividiram Ele desejou purificar as festas,desvincular o seu significado propriamente
essascomunidades rurais e obtiveram a maioria nas eleiçõescruciais de 1877. religioso das celebraçõesantes turbulentas da comunidade e reduzir estas
Porém,o ponto central da argumentaçãode Boutry, seguindoo raciocínio tanto quanto possível. Estabelecemosconexãoaqui com o antigo vetar do
de Agulhon, é que isso não representa simplesmente uma regressão à mes- centenário processo da Reforma, visível, por exemplo, tanto no lado católico
ma forma de religião que existiu antes de 1860.Isso representa, antes, uma quanto no lado protestante na supressãodos "excessos"do carnaval, de que
mudança da forma forte da comunidade, que Boutry e Agulhon chamam de falei no capítulo 3; visível também nas tentativas de suprimir a brutalidade
e a bebedeira das feiras estatutárias e festas dos povoados no distrito de Lin-
mentalité", para uma nova compreensão de religião como algo sobre o que
todos nós necessitamoster uma "opinião". "La paroissejéc]atée]n'est plus colnshire do século XIX, descritas por Obelkevich.n
que le cadre collectif de dévotions individuelles" (a paróquia jfragmentada] Em segundo lugar, a própria tentativa do clero de renovar o seu povo e
nada mais é que a moldura coletiva de devoçõesindividuais). Uma forma do elevar o seu nível de prática e moralidade significava que ele estava constan-
aFzcie/i
régnzefora substituída por outra que pertence à Era da Mobilização." temente pressionando,repreendendo, exigindo que algum cabaré ou salão
Retrospectivamente, podemos ver que isso aconteceria de qualquer dançante fosse fechado, que fossem feitas doações em dinheiro para uma
modo. Porém, o páf/zosdessa passagem é que o próprio clero contribuiu para nova igreja. Inevitavelmente surgiam conflitos entre sacerdotese comuni-
isso. Ele fez isso em parte por meio de suas tentativas de mudar e reformar os dades.No início, essasrevoltas eram totalmente independentesde qualquer
elementos da religiosidade popular que não aprovavam. E claro que, nesse fundamentação filosófica. Porém, através delas podia penetrar um novo
tocante, eles estavam apenas obedecendo à prática centenária da Reforma. ponto de vista, denunciando o poder clerical e exaltando a independência
Seus antecessores do século XVll haviam feito a mesma coisa, especialmente moral do laicato. Maurice Agulhon formula assim:
se foram jansenistas. Quando muito, o clero do século XIX foi bem mais cau- Pour que I'influence de la lebrepenséepuisse jouer à plein, il fallait que celle de I'Eglise fut
préa[ab[ement ébran[ée par des raisons intçlnes. [.-] au premier rang de ces conditions, la
teloso. Eles viram como o excessode zelo reformador podia alienar popula- naissancede conflits entre peuple et clergé."
çõesinteiras do catolicismo e sentiram nas próprias costaso que isso poderia
representar no período revolucionário. Eles eram muito mais tolerantes em (Para que a influência do livre-pensar pudesse se tornar plenamente efetiva, foi necessário
relação à religiosidade popular do que seus predecessores; porém, não obs- a influência da [greja fosse previamente so]apada por razões internas..l;.] na primeira
fila dessascondiçõesesteveo surgimento de conflitos entre o povo e clero.)74
tante, eles não puderam abster-sede interferir.':
E um dos seusalvos mais importantes foi o "christianisme festif [cristia- E, é claro que, uma vez iniciada a divisão, a Igreja só poderia se defender
nismo festivos" de sua grei. Não foi só o fato de muitos festivais mirarem em mobilizando seuspróprios partidários. Dessemodo, a própria respostaque
torno de algum foco dúbio, como, por exemplo, uma peregrinação a algum ela deu à crise aumentou a ruptura e contribuiu para que avançasse a disso-
lugar de cura, em que o rito parecia ter pouco a ver com o cristianismo orto- lução do antigo consenso paroquial. A religião passou de merzfa/ítécomunitá-
doxo. Não foi só o fato de o Estado, valendo-se dos poderes da Concordata ria a postura partidária.'s
Napoleónica, desejar a redução do número de feriados em nome de uma O páfhos dessa ação autodestrutiva mostra retrospectivamente que a
maior produtividade (e, nesse tocante, seguir a senda trilhada séculos an- Igreja Católica estava engajada numa nzíssío/zímpossíb/eEmissãoimpossível]
tes por paísesprotestantes).O que com frequência preocupou o clero foi a Porém, ele não diz respeito só às contradições de Pio IX e à Igreja ultramon-
tanista do séculoXIX. De certo modo, ele manifesta as tensõesinerentes a
7' Id. ibid« p. 567. A guinada de "mentalité [mentalidadel" para "opinion [opiniãol"
facetada renovaçãode comunidadesnão elitistasno século XIX baseadanos princípios da cultura da
é apenas uma
todo o prometode reforma. O ponto forte da paróquiarural foi seu ritual
elite. Obelkevich (Rellgan alia Rilral Socíefy,p 91-102)observa algo similar em South Lindsey. A comuni- coletivo e sua forte noção consensual de "le respect humain". Porém, todo
dade aldeãigualitária que seautopolicia (por meio de charivarisou "rough music"), na qual aspessoas
não procuravam privacidade, mas a união com a multidão, foi lentamente dando lugar a uma sociedade
de indivíduos auto-disciplinados. 72Obelkevich, Re/ilgÍoiz and R!.rra/ Socfety, p. 83-84
71Boutry fala das "altitudes de réserve, de méfiance, de refus même latitudes de reserva,de descon- 73Maurice Agulhon. l,a Rl#zfb/íqtJe al{ uí//age. Paras: Le Seui1, 1979, p. 172.
fiança, de recusa mesmos" da parte do clero em vista de muitas das práticas da religião popular; Prêfrcs ef 74De Maurice Agulhon. The Rqifb/ic in tbe Village.'ThePeopleof f/u Var#onr fhe FrescaRmolutíon fa
Paroísses,
p 481. McLeod(Rellgion Rzdthc Peop/eaf INesterzz
Eiirope,p 64-65)cita a afirmação amargurada fbe Second Repnb/íc. Trad. Janet Lloyd. Cambridge: Cambridge University Press; e Paras: Editions de la
de outro cllré [cural francês em 1907:"Nem um único homem cumpre seus Deveres Pascais,mas é fato Maison des Sciences de I'Homme, 1982, p. 101
curioso que todos elesparticipam de procissões". 75/d., ibid., p. 644, ainda p. 578-595e 625-651
546 Parte iV; Narrativas de secularização CapÍtllto.12.A Era daMobilização 547

o impulso do movimento de reforma, desde a alta Idade Média, passando De qualquer modo, frente ao grau de solapamentosofrido pelasformas
pela Reforma e a Contrarreforma, assim como pela renovação evangelical e AR e ao grau de mobilização dos próprios republicanos, a Igreja Católica na
pela igreja pós-restauração, estava direcionado para dotar os cristãos de um Françanão teve escolha.Boutry talvez esteja certo; a virada crucial ocorre
forte comprometimento pessoale devocional com Deus e com a fé. Porém, em 1848,quando o sufrágio universal masculino foi introduzido para nunca
uma forte fé pessoal e um consensocomunitário onipotente não podem, mais ser rescindido (e, por longo tempo, tampouco ampliado; as mulheres
em última análise, subsistir juntos. Se o objetivo for encorajar os cristãos, não puderam votar até 1945-- e a querela entre a República e a Igreja fez
em suasvidas fortemente marcadas pela devoção, a adotar a comunhão parte da causadessademora). Os católicosnão puderam se manter à parte
frequente, isso significa que eles acabarãorompendo a força restritiva do da mobilização política.7ó
'respecthumain". Teoricamente,todos essesconflitos poderiam, no fundo, As necessidadesorganizacionais já haviam se tornado de amplo alcance:
ser resolvidos por meio da reversão do consenso local; mas, no longo prazo, levantar fundos, fundar e administrar escolas,hospitais, universidades; fun-
é impossível que isso possa sempre ser feito desse modo: não há como ter dar órgãos de apostolado leigo para conferir à Igreja uma presença onde ela
um JeanVianney em cada paróquia (e até ele levou décadaspara mudar o de outro modo estaria ausente - entre estudantes, profissionais, operários;
povoado de Ars). estesúltimos órgãosserviam também a outro propósito, que era o de isolar
A menos que se queira erigir um sistema totalitário; chegando a essepon- tanto quanto possível o fiel de influências de fora(percebidas como) de natu
to, ter-se-iamudado fundamentalmentea naturezado empreendimento. reza hostil: liberalismo, socialismo, protestantismo. Este último objetivo tam-
A Igreja ultramontana nem sempre percebeu a força desse último ponto bém exigia toda uma gama de organizações, como clubes esportivos católicos
e logo sentiu a tentação totalitária; mas ela também tem sido vítima dessa e outros grupos recreativos. I'or último, mas longe de ser menos importante,
tentação na medida em que foi sentida por outros, sendo curada de suas foram fundados também partidos políticos católicos.
ilusões em virtude disso. De qualquer modo, ela tem tido problemas ao ver É claro que a Igreja Católica sempre teve organizações leigas: sodalícios,
quão contraditório é, no fundo, a meta de manter uma igreja estreitamente guiadas etc. Porém, peculiar à situação nos séculos XIX e XX foi que elas ope-
unida por uma autoridade hierárquica forte, que, não obstante, ficará re- raram em sociedadescom um imaginário social cada vez mais moderno, no
pleta de praticantes imbuídos de sincera devoção. É claro que há pessoas qual associaçõesvoluntárias independentes e partidos políticos desempe-
cuja vida devocional é intensificada pelo senso de viverem sob esse tipo de nhavam um papel cada vez maior. Tornou-se impossível não se adaptar a
autoridade, mas para as massasque não reagem dessamaneira as opções essecontexto
são render-se ou ir embora ou levar uma vida semiclandestina. A faceta Essefato levou, em dado momento, a abandonos contextualmente de-
irreversível do Vaticano ll é que trouxe à tona essacontradição. terminados da aliança com tronos - especialmente onde estes não deixavam
Porém, retornando à França do século XTX,devemos reconhecer que a outra escolha,já que eles próprios atacavam a Igreja, como ocorreu na Ale-
reconstituição da paróquia e de sua religião do chão após a Revolução é, manha sob Bismarck;e também mais tarde levou a abandonoshesitantese
de certo modo, um fato notável. Ele mostra que essemodo de vida comu- localizados do alinhamento com os empregadores,fato que abriu caminho
nitária estava tão profundamente ancorado nos costumes das pessoas que para os primórdios da democracia cristã, especialmente na Bélgica.Essesfa-
podia ser restabelecidoapóso hiato dos anosde 1790.E isso é tanto mais tos mostraram que a alienação da classe trabalhadora estava longe de ser
notável pelo fato de que o Departamento de Ain, estudado por Boutry, era uma consequência inelutável da industrialização.n
enfaticamente favorável ao imperador e especialmente refratário no início Porém, as exigências para operar na Era da Mobilização inevitavelmente
da restauração.A vitória dos republicanos na décadade 1870pode servista também significam perda de controle clerical. Sindicatos e partidos políticos
como o retorno a uma posição original. Porém,estáclaro que algo mais deveriam obter algum espaço de manobra se quisessem ser efetivos. A ironia
importantee irreversívelaconteceuna segundavez: o solapamentodas se refletiu em um incidente durante o Ku/furkamfÚ o ataque de Bismarckà
formas ARe o movimento para dentro de uma Era da Mobilização. Igreja Católica alemã. Ele despertou um forte senso de união e solidariedade
Isso não quer dizer que essasparóquias coesaspassaramtodas por um entre os católicos alemães,em certo sentido fazendo o serviço da Igreja por
processo de abertura naquela época. Havia as regiões, por exemplo, no
Ocidente, em que a ofensiva republicana encontrou resistência.Mais tarde Id.,Ibid.,P.626.
examinaremos uma paróquia bretã, Limerzel, em que essesolapamento ou n Ver Carl Strikwerda, A ResurgentReligion, in: McLeod(Ed.), Europeu?t
Relfgíort,capítulo 2. Para
outros ínsig&fsinteressantes no catolicismo belga ver Vincent Viaene. Belgful} nd fheHoly SeejrornGreX-
essadissoluçãoda vida paroquial só aconteceudurante a revoluçãocultu- ory XV7 fo Pf1ls ]X IZ831-59; Caf/zo]íc Rez;íz;a], Socíefy a}7d Po]itícs ín ]9t/í Centzzry Ez{70pe. Leuven/Brussels/
ral que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Rome,2001,p. 157-215.
548 Parte IV: Narrativas de secularização 549
Capífir/o ]2. Á Era da Mobilização

ela. Enquanto o arcebispo de Colónia era arrastado para a prisão, massas escolhasindividuais, embora muitas vezes sejam praticadas em grupos, po-
de fiéis foram para as ruas e se enfileirarem ao longo delas, ajoelhando-se dem ser indefinidamente variadas e permitir que novas formas sejam criadas.
à sua passagem.Essa forte demonstraçãopolítica de lealdade à autorida- Um dos principais lugares dessasformas especiais,do lado protestante, natu-
de da igreja estabelecida tem, no entanto, necessariamenteum outro lado. ralmente é o reavivamento. Do lado católico, temos novenas, retiros, devoções
A resistênciapolítica continuada somentepoderia ser efetuadapor um par-
especiais, como a do Sagrado Coração, peregrinações, as estações do Oratório
tido político e, a longo prazo, isso foi conferindo importância cada vez maior
de SainUoseph; formas do ofício, para sacerdotes,paróquia e similares. Santa
à sua liderança leiga.
Teresade Lisieux foi uma importante pioneira neste último tipo de devoção.
No final das contas, havia fortes analogiasentre evangelicalismoe cato-
Essasformas especiaismuitas vezes eram específicasde um gênero: o
licismo pós-revolucionário reconstituído, a despeito de todas as diferenças.
Devemos mencionar, antes de tudo, formas novas ou renovadas de espiri- SagradoCoraçãopara as mulheres, enquanto os homens optariam em sua
tualidade com um forte apelo emocional: conversão a um Deus amoroso de totalidade por algo fora dessadimensão ou então fazer algo "ativo", como
administrar sindicatoscatólicos.
um lado, e, de outro, devoçõescomo as do SagradoCoração,mobilizadas
Uma coisa sobressaiuno lado católico que à primeira vista parece não ter
em torno da vida e do exemplo de Teresade Lisieux; seria equivocado sim-
plesmente focar, como talvez a nossa sensibilidade sociológica nos convida analogia em países protestantes. A nova construção de um movimento de
a fazer, nas características"funcionais" dessasformas de fé, ou seja, no fato
massaem torno do catolicismoultramontanistanão só reprimiu ou margi-
de preverem as pessoasdas habilidadese da disciplina necessáriaspara nalizou o antigo cristianismo festivo que fora tão importante nas "religions
du terroir [religiões do chãos"da comunidade paroquial. Ela também recriou
operar nas circunstâncias modificadas em que se encontram. Todos podem
estar compartilhando uma certa liturgia e um certo éfhos.Porém, várias pes suaspróprias versões.Já no nível paroquial, os padres tentaram não tan-
smassentirão necessidade de alguma forma especial, mais forte, mais foca- to suprimir as festas e peregrinaçõespopulares quanto assumir o controle
da, concentrada e/ou disciplinada de devoção/oração/meditação/dedicação. sobre elas, redirecioná-las, purifica-las, como descrevi acima. Uma tentativa
Pode ser que elas enfrentem uma crise ou um período difícil em suasvidas comum foi desviar o foco dos espaçoslocais tradicionais para centros de pe-
e necessitemconcentrar seusrecursosespirituais para dar conta dele. Pode regrinação regionais importantes. Segundo a formulação de Ralph Gibson,
o clero tentou dar ao localismo característico da religiosidade popular um di-
ser que elas sintam que suas vidas estão demasiado superficiais ou fora de
foco ou totalmente caóticas; elas necessitamum centro mais forte, um ponto recionamento mais universalista".'9 No decurso do século XIX, eles desenvol-
de concentração. Pode ser que elas simplesmente sintam necessidadede dar veram na Françaimportantes locais nacionais, ligados a recentesaparições
expressão,alguma vazão a fortes sentimentos de gratidão, de expressar seu da Virgem, como, por exemplo, em La Salette, Lurdes e I'aray le Modal. No
reconhecimento e júbilo pelas dádivas de Deus. final do século, aspessoasestavam indo para Lurdes todo ano àscentenas de
Tanto no lado protestante quanto no lado católico, essasformas de es- milhares, viajando em grupos organizados, geralmente de trem.
piritualidade foram combinadascom tentativasde inculcar o novo éthose a Isso constituiu, em certa medida, um triunfo da mobilizaçãoe aparece
nova disciplina necessáriospara funcionar na economiae na sociedademo- como o sucessodefinitivo da tentativa do clero de suplantar os cultos locais,
dificadas. A batalha contra a embriaguez também foi travada pelos padres zelosamentecontrolados pela comunidade paroquial, mediante espaçostrans-
em paróquias irlandesas, enquanto o não conformismo fazia campanha pela locais, abençoados pela hierarquia. Porém, assim como todas as demais formas
temperança.'8Em ambos os lados, as tentativas de fundar os órgãos neces- de mobilização católica, esta também foi ambígua. De fato, as aparições da Vir-
sários para a sobrevivência económica, quais sejam, sociedades de auxílio gem começaram no nível local; ela apareceu a camponeses, pastores. De início,
mútuo, cooperativas, muitas vezes estavam vinculadas às igrejas. a hierarquia ficou desconfiada;e, de qualquer modo, eles precisariamtestar
A várias formas bem-sucedidasde fé na Era da Mobilização combinam essasnovas alegações.Todos os grandes espaços translocais da peregrinação
essesdois elementos;não só o aspectoético/disciplinar compartilhado por mariana dos últimos dois séculos,de Guadalupe a Medjugorje, foram novos
todos (ou pela maioria), mas também uma série especial de devoções, ser- começosna religiosidade popular e prosperaram por terem dito algo para as
viços, modos de rezar etc. para aqueles que de tempos em tempos sentem a massasde crentes comuns. O clero consegue às vezesmatar essesmovimen-
necessidade de alguma forma especial de dedicação. Estas podem surgir de tos, mas ele não os cria.80

?BBoutry também fa]a das campanhas dos curas[curas] contra "les abus [os abusosj", principal-
mente la dance.le cabaretef le fraoaíJle díl?z#nche
ja dança, o cabaré e o trabalho no domingos; Prêfresef " Ralph Gibson. A So(fal HísraW af French Cacho/fcfsiri.Londres; Routledge, 1989, p:.144.
BnVer a interessante discussãoem Thomas Kselman. Mlírac/esalzdProphecíesílt Ninefeezzf/z
Cezltul'
Pnroísses,p. 579.
Frqlzce.New Brunswick, N.J.: Rutgers Uiaiversity Press,1983,capítulo 6
Capítulo 12. A Era da Mobilização 551
550 Parte IV: Narrativas de secularização

A noção de "festivo" a que aludo aqui deve ser entendida em seu sentido suficiente para que os evangelicais tivessem a sensaçãode que se tratava de
amplo. Ela inclui festase peregrinações.Ela implica, primeiramente, grandes naçõesbasicamentealinhadas com seus valores fundamentais.':
quantidades de pessoas reunindo-se fora da rotina cotidiana, quer esse"fora Outro tipo de relação bem diferente, dessa vez negativa, evidencia-se
seja geográfico, como no casoda peregrinação, quer resida no ritual da festa entre minorias como os poloneses e irlandeses citados acima. Também nes-
se casoa fé estáconectadacom a identidade política, agora em oposiçãoàs
que rompe a ordem de coisasdo dia a dia. Podemosreconhecer como outra
autoridades estabelecidase sonhando cada vez mais com um Estado inde-
espécie desse gênero os carnavais de antigamente, que ainda sobrevivem de
alguma forma no Brasil, por exemplo. Porém, em segundo lugar, essa assem- pendente. Um terceiro tipo de relação se evidencia entre minorias católicas
bleia é experimentada como meio de colocar seus participantes em contado ou ao menos entre igrejas sitiadas (como na França) no continente europeu;
com o sagrado ou ao menos com algum poder superior. Esse fato pode-se a resistênciafoi organizada seja na esperançade definir a identidade polí-
manifestar-se na forma de cura, como em Lurdes. Porém, mesmo quando tica nacional contra um rival (França) ou de assegurar um status aceitável
isso não ocorre, há a sensaçãode que se está fazendo uso de algo mais pro- para a minoria, como na Alemanha. Outra variante dessarelaçãopode ser
fundo ou mais elevado.E por isso que não é de se dilatar as coisaspara in- encontrada nos PaísesBaixos,tanto na Bélgica quanto na Holanda, onde teve
cluir o carnaval nessa categoria. Se seguirmos o relato de Turner delineado lugar a "pilarização" ("verzuiling", em holandês). Todas as famílias espirituais,
por mim no capítulo 3, estemundo "virado de cabeçapara baixo" nos conecta em certo sentido, comportam-se como minorias, reivindicando seu lugar reco-
outra vez com a dimensão da "communitas" de nossa sociedade,na qual, nhecido. Muitos dessesarranjos continentais resultaram em partidos políticos
para além das divisões hierárquicas da ordem estabelecida,encontramo-nos definidos por sua opçãoespiritual: partidos católicos, às vezesprotestantes ou
como sereshumanos iguais. liberais(isto é, anticonfessionais).
Levanto esseponto porque acredito que o festivo, nessesentido, é uma De modo geral, havia um forte sentimento de que essasigrejas católicas
forma importante de continuidade da vida religiosa e semirreligiosa em nosso sitiadase combativasofereciamo único baluarte possível da ordem civiliza-
próprio dia. Ele deve fazer parte de alguma descrição do lugar do espiritual cional. A Igreja na França com frequência fazia a alegação, acatada por muitos
em nossa sociedade.No início desta discussãosobre o festivo, eu disse que integrantes das classespossuidoras, de que o catolicismo seria a única defesa
essasformas católicas do século XIX parecem não ter qualquer analogia no lado contra as desordens destrutivas da Revolução, cujo retorno era uma ameaça
protestante. Porém, num segundo relance, isso pode ser contestado. A reunião constante. Porém, não só se pensava que apenas a Igreja poderia persuadir as
de reavivamento apresenta analogias óbvias. E se pensarmos na explosão do pessoasa obedecerem à autoridade, mas também que a própria base da mo-
pentecostalismo durante o último século, agora disseminado por muitas partes ralidade, da vida social familiar se desintegraria sem o trabalho constante e
do mundo, temos razões tanto maiores para ver o festivo como uma dimensão paciente do clero dedicado. Como formulou o próprio cura de Ars certa vez:
crucial da vida religiosa contemporânea. Laissezune partissevingt ans sanaprêtre, on y adoreradesbêtes[Deixai
Retomarei a isso no próximo capítulo. Porém, continuando com nossa uma paróquia vinte anos sem padre e ali se adorarão as bestasl"."
discussão das analogias entre a mobilização católica e a protestante, pode-
mos observar que, em ambos os lados, a espiritualidade e os modos de au- 8i O senso de superioridade civilizacional também deu suporte ao imperialismo e Ihe proporcionou
a boa consciência do "ónus do homem branco". Mais tarde, esse senso de assumir com justeza o ónus
todisciplina muitas vezes estavam, por sua vez, conectadas com identidades
de governar sobre os povos "retrógrados" ganhou outra base; ela se justificava por razões raciais ou com
políticas, ainda que de maneiras diferentes. No Reino Unido e nos EUA,essa base na cultura iluminista dos europeus
relaçãofoi vista como positiva e como firmemente vinculada com o senso Onde a flâmula da Inglaterra esvoaçadesfraldada
Afugentando todos os tiranos injustos,
de ordem civilizacional. Os evangelicais sentiam que estavam fomentando o Deusfez destemundo um mundo melhor
éthosde que sua sociedade necessitava para viver à altura de sua mais eleva- Para a breve estadia terrena do homem.
Isso foi formulado de modo mais prosaico pelo Secretário Colonial de Disraeli em 1878, que falou
da vocação e de seus mais elevados ideais. Foi isso que lhes deu a confiança do dever britânico de suprir "nossossujeitos amigos nativos [-.] com um sistemaem que o mais humilde
e o senso de missão para demandar que toda a sociedade vivesse à altura de possadesfrutar liberdade da opressãoe do erro em pé de igualdade com o maioral; onde a luz da religião
determinados padrões ditados por eles,como, por exemplo, a temperança e e da moralidade possa penetrar nas moradas mais escuras". E o papel dos evangelicais na difusão do
benigno governo britânico na Índia ena África (Livingston, Gordon) era conhecido e altamente apre
a observância do shabbath.Embora houvesse forte oposição a essesobjetivos dado pelos evangelicais na pátria. Ver Wolffe, Godalia GreaferBrífaín, p. 194, 221-222;também McLeod.
e uma sensaçãode que os puritanos queriam fazer todos engolirem restrições Seca/arízatíolz ízl Wesfern Eilrope, p. 237, 239-240; e Hempton, Re/ígíoz2 alzd Política/ Ct{/fure ín Great Brífaín
alia Ire/alta,capítulo 8
inaceitáveis,a congruência que havia entre o não conformismo e as identi- Boutry.'Prêtres
ef nnJoísses,
p. 344;ver ainda p. 380,onde elefala da autoatribuída"missionmorde.
dades políticas tanto da Grã-Bretanha quanto da América do Norte, defini- sociale, et pour tour dire civilisatrice de I'Eglise dais le monde [missão moral, social e, por a?slm dizer.
civilizatória da Igreja no mundos". Hilaire(Urze C#rétlenté,volume 1, p. 305) evoca a mesma ideia
das como originalmente estavam contra o catolicismo e o autoritarismo, era
552 Parte !V: Narrativas de secíílarização Capítttto 12. A Era da ?úobilimção 553

Nessecaso,havia uma forma fortemente clericalistada doutrina; mas à De fato, há estudiosos que falam de uma "Segunda Era Confessional"
parte dessa nuança, havia analogias com visões sustentadas do outro lado (sendo a primeira a do século XVI, naturalmente)," porque as igrejaslo-
do Canal pelos evangelicais e, na verdade, por muitos outros, no sentido graram organizar intensamente a vida dos seus membros e, em consequ
de que aquela moralidade básica não sobreviveria por muito tempo ao ência, tornaram-se o foco de uma lealdade muitas vezes intensa, um senti-
fim da religião. Os frequentadores de igrejas tinham em comum a visão, mento parecido com o nacionalismo.'sDe fato, fora do mundo anglo-saxão,
assim formulada por Jeffrey Cox, de que "a sociedade se desagregaria sem essaorganização muitas vezes tomou a forma de um gueto, que visava ga-
a moralidade, a moralidade seria impossível sem a religião e a religião rantir que as pessoasiriam à escola,jogariam futebol, fariam sua recreação
desapareceriasem as igrejas". Citando o Duque de Devonshire numa fala etc. exclusivamente entre seus correligionários. A Igreja Católica foi a maior
dirigida a apoiadores do Fundo da Igreja de Londres-Sul, arquiteta de tais guetos,fundando-os até mesmo no mundo anglo-saxão;
Podeisimaginar por um momento sequer como seriaa Inglaterra hoje sem aquelasigre- mas na Holanda, por exemplo, os protestantes fizeram a mesmacoisa.Na
jas e tudo o que aquelas igrejas significam?]-.] Certamente não seria seguro andar pelas realidade, pode-se até alegar que a "Era Confessional" se estende para além
ruas. Todo o respeito, toda a decência, todas as coisas que tendem a fazer da civilização das fronteiras das igrejas cristãs. E possível vislumbrar certas analogias com a
moderna o que ela é não existiriam. Podeisimaginar quanto teríamosque ter pago pela
nossapolícia, por manicómios, por penitenciárias?[.-] A despesateria aumentado cen- Democracia Sociale partidos comunistas tardios, com seusgrupos de mulhe-
tenas de vezes se não fosse o trabalho que a Igreja fez e ainda faz hoje.8' res e de jovens, com clubes esportivos, organizações culturais e similares. As
metas destes não deixavam de ter certa semelhança com as subjacentes aos
O duque talvez estivesse se referindo, em sua fala, principalmente ao
'guetos" católicos: penetrar mais profundamente nas vidas de seusseguido-
trabalho filantrópico das igrejas, mas isso obviamente fazia parte de um
res, vin.culá-los mais estreitamente uns aos outros e minimizar o contado com
argumento bem mais fundamental acercadas bases morais da ordem ci-
vilizacional. pessoas de fora.86
Assim, as poderosas formas de fé entreteceram quatro elementos nessa
Para o sentimento da maioria cristã desseperíodo, a questão não era
era: espiritualidade, disciplina, identidade política e uma imagem de ordem
a que levantei acima a respeito da religião: se os objetivos deveriam ser
restringidos a um cumprimento puramente humano ou deveriam abrir civilizacional. Essesquatro elementos estiveram presentes na religião elitista
dos dois séculos precedentes, mas passaram a ser um fenómeno de massa.
uma perspectiva transcendente para algo maior do que isso. Para a visão
Eles se reforçavam mutuamente, constituindo um todo.
dominante naquele tempo a primeira opção não existia. A não ser que
a pessoa buscasse alcançar algo além disso, Deus e a salvação mediante Porém, essasigrejas rigidamente organizadas, muitas vezes desconfiadas
de gente de fora, com seus códigos fortemente puritanos, seusvínculos ine-
JesusCristo, as condiçõespara o mais básicocumprimento humano se
desagregariam em imoralidade e desordem. Essavisão ainda é defendida rentes, quaisquer que sejam eles,com identidades políticas e suaspretensões
de constituírem o fundamento da ordem civilizacional, estavam perfeita-
em alguns círculos hoje, mas há um século ela era padrão e hegemónica
entre os crentes cristãos. mente configuradaspara uma queda repentina na próxima era que estava
começando a despontar em meados daquele século. E a essaera que agora
volto minha atenção.
Se tomarmos o meu tipo ideal de mobilização e tentarmos determinar
o período em que ele passou a ser cada vez mais dominante, podemos
fixar os limites da Era da Mobilização entre grossomodo1800a 1950(tal-
vez mais exatamente1960).Seinvestigarmos esseperíodo, poderemos
verificar que em toda parte houve formas religiosas sofrendo declínio
e perdas, mais exatamente as do tipo a/zcfenrégíme;e igualmente quase HVer C)laf Biaschke, Europebefmeelt1800ülzd1970.'Á SecolldCor/essíona/Áge, palestra para uma con
gerênciasobre "Narrativas Mestras", em abril de 2002;até agora inédita (pelo que sei)[Ndt: entrementes
em toda parte, novas formas sendo desenvolvidas que se enquadram publicada em O]af B]aschke(Ed.). Koitfrss]olzen frn Ko z©]kf. Deufsc;z]a]]d zwischen ]800 iíl d 1970; eílz zweíres
na era. Algumas destasrecrutaram e mobilizaram pessoasnuma escala kottÁessíone[[es
HS
Zeíta[fen Góttingen, 2002]
Ver Peter Raedts. The C/iliich üsNafíoiz Staff; Á Nexo Look af U/tlat? onta7íísf Cat/zo/icísr7(1850-]900),
impressionante, ultrapassando seus equivalentes do alzcíen régíme (por palestra para uma conferência sobre "Narrativas Mestras", em abril de 2002; até agora inédita (pelo que
exemplo, a Igreja irlandesa, que passou por um processo de reforma sei) [Ndtl entrementes publicada com o mesmo título in: Wim Jante (Ed.). Dlífch l<mlezuof C;zlirc/zHísfory
após a fome). Leiden:Brill,v.84,20041
% Ver O[af B[aschke, Ei/r0?2ebetwee z ]800 allcí ]Z970; também Hugh McLeod, Seci{/arízafíoll í l t.Vesf-
erJZEiírope,p. 208-209,224-225.Há também certas analogias com a rica vida social organizada em torno
K Jeffrey Cox. The E zglls;zChurchcs ín a Secular Society. New York: Oxford Uníversity Press, 1982, p. dasEscolas'Dominicaisna Inglaterra; ver David Hempton, Re/]lgío
t azzdPo/ítícalCu/tlz/eíll Brífrzí71
alzd
271; citação do Duque de Devonshire, p. 109-110 Ire/and, p.124-125.
Capítulo 13

A Erada Autenticidade

[5] [)enominemos essaera de Era da Autenticidade. Pelo visto, algo acon-


teceu nessemeio, talvez até menos de meio século que passou, que alterou
profundamente as condições de crença em nossas sociedades.
Acredito, ao lado de muitos outros, que a nossa civilização norte-atlân-
tica foi submetida a uma revolução cultural em décadasrecentes.Os anos
de 1960talvez representemo momento crítico, ao menos simbolicamente.
Trata-se,de um lado, de uma revolução individualizadora, o que pode soar
estranho, porque nossa Era Moderna já estava baseada em certo individua-
lismo. Porém, houve uma mudança para um novo eixo, sem que os demais
fossem abandonados. Assim como temos os individualismos moral/espiritual
e instrumental, dispomos agora também de um individualismo "expressivo
muito difundido. É claro que issonão é algo totalmente novo. O expressio-
nismo foi a invenção do período romântico no final do século XVllT.As elites
intelectuais e artísticas estiveram procurando pela maneira autêntica de vi-
ver ou expressar-se durante todo o século XIX. A novidade é que esse tipo de
auto-orientação parece ter-se tornado um fenómeno de massa.
Todapessoasente que alguma coisa mudou. Com frequência isso é ex-
perimentado como perda, rompimento. A maioria dos norte-americanos
acredita que as comunidades, as famílias, as relações de vizinhança e até o
regime político estão sofrendo erosão; eles sentem que as pessoasestão me-
nos dispostasa participar de fazer sua parte; e eles estãoconfiando menos
nos demais.i Os estudiosos não estão necessariamente de acordo com essa
avaliação,z mas a própria percepção disso é um fato importante sobre a socie-

l Ver Robert Wuthnow. l,oose CoJlllectíolzs. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1998, p. 1-2;
também Alan Wolfe. One Natioli, Á/fer Ar/. New York: Viking, 1998,capítulo 6; Gertrude Hiiilmelfarb. Onc
Natí07t, 7bo Cu/furas. New York: Knopf. 1999, p. 20ss.; Robert Pugnam. BozolilzgAlolze. New York: Simon
& Schuster. 2000.
Putnam, gozo/lJlg .A/one, sustenta que o declínio em termos de "capital social" é real; entretanto, isso é
contestadopor Wuthnow l.DoseCor tectí071s, que vê asformas mais antigas em declínio sendo.substituídas
por novos tipos de ligações "mais soltas". Cf. também Wolfe, One hratíoit, p 252-253;e John A..Hall e
CharlesLindholm. Is .A}7zeríca
BreakíllgApara?.Princeton: Princeton University Press,1999,p. 121-122
Capíttito 13. A Era da AtLteilticidade 557
556 Parte IV: Narríitiuas de secularização

dade de hoje. Não há dúvida de que há percepçõesanálogas difundidas em individual mais livres que elesfacilitaram. A "busca da felicidade" assumiu
outras sociedadesocidentais. um significado novo, mais imediato, com uma gama crescentede meios de
Muitas são as causasmencionadas para essasmudanças: a afluência e ex- fácil obtenção. E nesse espaço recentemente individualizado o consumidor
pansão contínua dos estilos de vida consumistas; mobilidade social e geográfi- foi cada vez mais encorajado a expressar seu gosto, prevendo-lhe espaço.de
ca; terceirização e enxugamento nas corporações;novos modelos de família, acordo com suaspróprias necessidadese afinidades, como só os ricos haviam
particularmente o crescimento de orçamentos domésticos com duas fontes sido capazes em eras passadas.
de renda, resultando em sobrecarga de trabalho e a exaustão; alastramento Uma importante facetadessa nova cultura do consumidor foi a criação
suburbano, sendo que as pessoas muitas vezes vivem, trabalham e fazem de um mercadoespecialpara a juventude, com uma enxurradade novos
compras em três áreas separadas; o surgimento da televisão, e outras.3 Po- bens, desde roupas até discos,destinado a uma faixa etária que se estende
dos adolescentesaos adultos jovens. A publicidade se preparou para vender
rém, qualquer que seja a lista correta dos falares precipitadores, o que me in-
essesbens em simbiose com a cultura da juventude cujo desenvolvimento
teressaneste ponto é a compreensão da vida humana, da atividade humana
ajudou a criar uma nova espéciede consciência do jovem como uma fase da
e do bem, que tanto encoraja essaindividualização (ao menos aparentemen-
vida, entre a infância e uma idade adulta imobilizada pela responsabilidade.
te) nova quanto provoca em nós um desconforto moral a seu respeito.
A mudança muitas vezes é entendida, particularmente por aquelesque Naturalmente que isso não era sem precedente. Muitas sociedades mais anti-
mais foram incomodados por ela, como um acesso de mero egoísmo ou uma gas demarcaram uma fase como essano ciclo vital, com seusgrupos e rituais
recaída no hedonismo. Em outras palavras, duas coisasque eram identifica- específicos;e a juventude da classealta desfrutou seusdias de estudante
das claramente como vícios numa ética tradicional do serviço e da autodisci- e (às vezes) suasfraternidades. De fato, com a expansãoda vida urbana e
a consolidaçãodas culturas nacionais,a juventude das classesalta e média
plina comunitários sãovisados como os motores da mudança. Penso, porém,
começaram a tomar consciência de si mesmas como uma realidade social por
que isso falha num ponto importante. O egoísmo e a mera busca de prazer volta dofinaldoséculo XIX.
(o que quer que eles representemexatamente)podem ter uma importância
maior ou menor na motivação de indivíduos diferentes, mas uma mudança
A juventude até se torna um ponto de referênciapolítico ou uma base
para a mobi]ização, como se observa na Jugelzdbewegzíng
[movimento jovem]
de larga escalana compreensão geral do bem requer alguma nova compre-
alemã e, mais tarde, na invocação fascista da "Giovinezza" em sua famosa
ensão do bem. É irrelevante se em determinado caso individual isso assume
marchinha. Porém, essa autodemarcação da juventude representou uma
uma função mais de racionalização ou mais de ideal estimulador; o próprio
ruptura com a cultura da classetrabalhadora do século XIX e do início do sé-
ideal se torna um fator crucial de facilitação.
culo XX, época em que as necessidades da vida pareceram excluir essetempo
Assim, uma das mais óbvias manifestações da individualização em ques-
posterior à infância e anterior ao início do negóciosério de ganhar salário.
tão aqui foi a revolução do consumidor. A afluência e a difusão pós-guerra
A presente cultura jovem é definida tanto pela maneira como a publi-
daquilo que muitos anteriormente consideravamluxo foi acompanhadade
cidade se lança sobre ela quanto, em grande medida, autonomamente, em
uma nova concentraçãono espaçoprivado e dos meios para preenchê-lo,
termos expressionistas.Os estilos de vestir os gêneros musicais que ouvem,
fato que começou a afrouxar as relaçõesantes muito estreitasdas comuni-
dão expressãoà pessoalidade,às afinidades de quem escolhe, dentro de um
dades da classe trabalhadora' ou dos camponesess,e até das famílias esten-
amplo espaçode moda em que a escolha que se faz pode alinhar a pessoa
didas. Modos mais antigos de ajuda mútua desapareceram, talvez em parte
com milhares, até mesmo milhões de outras.
por causa do recuo das necessidades urgentes. As pessoas se concentraram Quero voltar a falar desse espaçode moda daqui a pouco, mas, se nos
mais nas suas próprias vidas e na de seus núcleos familiares. Elas se muda- movemos dessesfatos exteriores sobre o consumismo pós-guerra para a au-
ram para novas cidades ou subúrbios, viveram mais às suaspróprias custas, tocompreensão que o acompanha, vemos uma disseminação constante do
tentaram fazer a vida a partir da gama cada vez maior de novos bens e ser- que denominei a cultura da "autenticidade".óRefiro-me à compreensãoda
viços em oferta, desde lavadoras até pacotes de férias, e dos estilos de vida vida que emergecom o expressionismoromântico do final do século XVlll,
dizendo que cada un'duma de nós possui sua própria maneira de realizar
Enquanto os críticos podem ter razão no tocante a associaçõesem geral, Putnaln parece ter copado com nossahumanidade, e que é importante encontrar a si próprio e viver a partir
algo importante na esferada participação política. Os novos /obbíese as organizaçõesmonotemáticas
de si mesmo, em contraposição a render-nos ao conformismo com um mode-
operam de modo bem diferente das antigas associaçõesconstituídas por membros
3XzerPutnam, gozo/íllg A/olhe, seção 111;Wuthnow. l,ouse Collnectf071s,capítulo 4
4Cf. Richard Hoggart. The UsesofLffeia(y. Londres: Chatto & Windus, 1957.
Ver The Malaíse o$ À4oderltfty. Toronto: Anansi, 1991
5 Cf. Yves Lambert. DoeuC/lallge elzB/etag7ze.Paras: Cera, 1985.
558 Parte !V; Narrativas de secularização Capítulo 13. A Era da Attteltticidade 559

lo imposto a nós de fora pela sociedade ou pela geração mais velha ou pela sentido (talvez não o sentido que ele queria), seu desejo foi atendido em
autoridade religiosa ou política. profusão na década seguinte.9
Essefoi o ponto de vista de muito intelectual e artista durante o século As revoltasdas pessoasjovens nos "anos sessenta"(que de fato se es-
XIX e o início do século XX. Pode-se traçar o fortalecimento e até a radicali- tenderam para dentro dos anos setenta, mas eu recorro ao que se tornou
zação desseéfhosentre algumas elites culturais no decorrer de todo essepe- o termo-padrão), na verdade, foram dirigidas contra um "sistema" que su-
ríodo, um senso crescente do direito e até do dever de resistir ao "burguês' focava a criatividade, a individualidade e a imaginação. Elas se rebelaram
ou aos códigos e padrões estabelecidos,de declarar-se abertamente a favor contra um sistema"mecânico" em nome de vínculos mais "orgânicos"; con-
da arte e do modo de vida que se senteminspiradas a criar e viver. A defini- tra o instrumental e a favor de vidas decotadas a coisasde valor intrínseco;
çãodo seupróprio éf/zospelo entorno residencialde Bloomsburyconstituiu contra o privilégio e por igualdade; contra a repressãodo corpo pela razão
um importante passonesserumo na Inglaterra do início do séculoXX,e o e a favor da plenitude da sensualidade. Porém, essas coisas não eram vistas
senso da mudança epocal está refletido na famosa frase de Virginia Woolf: simplesmente como uma lista de metas e demandas isoladas. Seguindo eixos
Em ou por volta de dezembro de 1910,a natureza humana mudou".' Um de crítica já lançados no período romântico, compreenderam que divisões
momento mais ou menos paralelo se deu com o "vir à tona" de André Gide internas, como razão contra sentimento, e divisões sociais, como entre estu-
como homossexual nos anos de 1920,um movimento em que desejo, mora- dantes e operários, igualmente entre esferas da vida, como entre trabalho e
lidade e um sensode integridade se juntaram. E não foi só porque Gide não lazer estavamintrinsecamente ligadas uma à outra e eram inseparáveisde
sentiu mais a necessidade de manter uma falsa aparência; é que, depois de modos de dominação e opressão (a razão está acima do sentimento, os que
uma longa batalha, ele considera equivocada a aparência que está infligin- pensam.dominam os que trabalham com suas próprias mãos, a obra do tra-
do a si mesmo e a outros que laboram sob dissimulações similares.' balho "sério" marginaliza o lazer). Uma revolução integral desfaria de uma
Porém,foi só na era após a Segunda Guerra Mundial que essaética da só vez todas essasdivisões/opressões.Essefoi claramente o ponto de vista
autenticidade começa a conferir forma à aparência da sociedade em geral. que ganhou expressãono movimento estudantil de maio de 1968em Paria.
Expressõescomo "faz as coisas do teu jeito" tornaram-se correntes; um co- A ideia era que uma sociedadeigualitária emergiria da derrubada simultâ-
mercial de cerveja do início da décadade 1970nos estimulava a "ser nós nea das três barreiras recém-mencionadas (/e "decioisolz?zelnenf").
E embora a
teoria não tivesse tido exatamente a mesma articulação em toda parte, está
mesmosno mundo de hoje". Um expressionismosimplificado se infiltrava
em toda parte. Multiplicavam-se as terapias que prometiam ajuda-lo a en- claro que o evento de maio teve uma imensa ressonância em todo o mundo
contrar a si mesmo, realizar a si mesmo, liberar o seu próprio eu e assim e que refletiu, por seu turno, alguns dos temas do movimento anterior nos
por diante. EUA,que começou em Berkeley no ano de 1964
A ética contemporânea da autenticidade, no entanto, tem uma longa Esseponto de vista remonta ao período romântico; ele é articulado, entre
história; e se a examinarmos, poderemos ver que ela se insere numa crítica outros lugares, nas Cartassobrea ed rcaçãoestéffcízdo homem,de Schiller.:o Ele foi
mais ampla ao eu protegido [btz#bredsela, discip]inado, concernente sobre- transportado até os anos de 1960em parte pela corrente contínua de contracul-
tudo ao controle racional instrumental. Se pensarmos os anos de 1960coma turas enter-relacionadas e em parte expressamente pela influência de escritores
nosso momento crítico, perceberemos uma crítica muito difundida à nossa como Marcuse. Assim como a ética da autenticidade que está radicada nele, ele
sociedadeno período imediatamente anterior a ele entre as lideranças in- semove nesseperíodo para fora do entorno elitista para tornar-se uma opção
telectuais.A sociedade dos anos de 1950era fustigada como conformista, bem mais amplamente acessível,uma postura e uma sensibilidade reconhecí-
veis pela sociedadecomo um todo (embora muito desaprovada e imprecada).
cerceadora da individualidade e da criatividade, demasiado preocupada
com produção e resultados concretos, repressorado sentimento e da es- No entanto, é claro que não podemos ler a cultura das décadassubse-
quentes simplesmente pela lente das aspirações dos anos sessenta.Temos de
pontaneidade, exaltando o aspecto mecânicoem detrimento do orgânico.
Escritores como Theodor Roszak e Herbert Marcuse acabaram sendo profe-
decompor em favoresnão só as reaçõesdaqueles que se opuseram e ainda
tas da revolução vindoura. Como Paul Tillich disse para uma classede gra- 9Ver David Brooks. Bobosfn Bnradíse.
New York: Simon & Schuster, 2000,p. 117-1124;
Alan Ehrenhalt.
duandos em 1957:"Esperamosque haja mais não conformistas entre vós, The post Cíiy; The Forgotfel! Wrtues o$ C0}71?nnlíly ín Altzeríca. New Yark: Basic Books, 1994, p. 60-64; a cita-

por vossa causa, por causa da nação e por causa da humanidade". Em certo çãode Tillich constana página 61
a E Schi[[er. Leffers on fhe Aesthefíc Educatíolz of À4an. Ed. e trad. [ing]esa] por E]izabeth Wilkinson
e L. A. Willoughby. Oxford: Clarendon Press, 1967 [ed. porá.: A educação estéflca do &olnem }nllna série de
' Áp11dSamuelHynes. 7'» EdwardülzTlirll afÀ4índ.Princeton: Princeton University Press,1968,p. 325. cartas.Trad. Márcio Suzuki e Roberto Schwartz. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 20021;ver especialmente
8 Michel Winock. l.e Sfêc/e des ltzfe//actue/s. Paris: Seuil, 1997, capítulo 17. a carta VI
560 Parte IV= Narrat{ as de secalarização CapífLllo 13. Á Era da Állfentícídade 561

seopõem a toda essavisão, mas também as contradições e os dilemas ge- De fato essetipo de subcultura capitalista, que se encontra preponderan-
rados por essasmesmasaspirações.Talvez todos reconheçam a natureza temente no mundo da T]]= tecno]ogia de informação], não é aceito de modo
utópica dos ideais de maio de 1968.:'Em certo sentido, isso já foi assim unânime entre os ricos e poderosos. Ainda persiste uma cultura das grandes
naquele tempo; faltava completamente aos "de 1968"a determinação po- corporações verticais; e há uma tensão entre ambas.
lítica inabalável de Lênin e dos bolcheviques; na verdade, o movimento Isso mostra, no entanto, que fragmentos do ideal, quando seletivamente
emergiu em parte da crítica ao Partido Comunista francês. Nesse tocante, acionados, permanecem poderosos; e até mesmo os segmentos abandona-
as suas mãos estavam limpas. Porém, a utopia tem seus custos. Na medi- dos ainda podem mexer com a nossa consciência.O ideal, embora distor-
da em que as metas da autoexpressão integral, da liberação sensual, das cido, continua suficientemente poderoso numa sociedadecomo a dos EUA
relaçõesigualitárias e do vínculo social não podem ser facilmente realiza- para despertar forte resistênciaem certos quadrantes e ser objeto do que
das concomitantemente - e, ao que parece, só com dificuldade podem ser tem sido chamado de "guerras culturais". Este termo pode em certo senti-
reunidas, e isto só por algum tempo de preferência em pequenascomuni- do até ser um exagero,porque há alguma evidência de que o número de
dades --, a tentativa de realiza-las implicará sacrificar alguns elementos do combatentes gabaritados, completamente perfilados em cada lado, pode
pacote destinado às outras. ser relativamente pequeno; de fato, a grande maioria dos norte-americanos
E isso obviamente é o que vemos acontecer como decorrência. David fica no meio-termo. Porém, a dinâmica do sistema, a interação entre organi-
Brooks expõe a síntese entre "bourgeoislburguêsl" e "bohemian jboêmiol" zaçõesmonolíticas, os meios de comunicação e o sistema partidário norte-
que ele identifica na classe alta contemporânea dos EUA. Esses"Bobos' americano,bem como talvez a obsessãonorte-americana pelos "direitos",
como ele os denomina, fizeram a pazes com o capitalismo e a produtivi- mantêm a polarização em ponto de ebulição e impedem um tratamento
dade, mas retêm seu senso prioritário para a importância do desenvolvi- equilibrado e mais contido das questões.':
mento pessoal e da autoexpressão. Continuam abraçando sinceramente O fato de o ideal somente poder ser realizado seletivamente também mo-
o sexoe a sensualidadecomo um bem em si mesmo, mas os buscam com difica o significado daquelas partes que acionamos. A autoexpressão ganha
um espécie de preocupação séria com o autoaprimoramento, que está a peso e significância quando a vemos não só como compatível com, mas in-
anos-luz de distância da espontaneidade dionisíaca dos anos de 1960.Eles clusive como o caminho no rumo de uma verdadeira comunidade de iguais.
desenvolveram o que o autor chama de "egoísmo superior' Mas ela tem muito a perder nesse aspecto quando passa a dizer respeito so-
Cu[tivo de si mesmoé o imperativo. ]...] Não setrata, portanto, de um mente a nós mesmos.Daí o convite à ironia. ao qual atende, por exemplo,
egoísmo crassoe vulgar que gira em torno do autointeresse estreito ou da David Brooks na citação acima a respeito do "egoísmo superior" (e, na ver-
acumulação descuidada. Trata-se de um egoísmo superior. Trata-se de as- dade, em todo o seu livro). A seletividade não só reclama a autoria da perda
segurar que você tire o máximo de si mesmo, o que significa empenhar-se das porções deixadaspara trás, mas também na potencial trivialização ou
em um trabalho espiritualmente satisfatório, socialmente construtivo, di- banalização do que resta. Ela também comporta o perigo de que, atendo-nos
versificado em termos de experiência,emocionalmente enriquecedor, qpe às nossas metas agora reduzidas, estaremos escondendo de nós mesmos os
eleva a autoestima, perpetuamente desafiador e eternamente edificante. dilemas aqui implicados, a saber,de que, quer queiramos ou não, estamos
Entre as coisas que se perderam do pacote original figura, por u m lado, impedindo outras metasválidas e reduzindo aquelasque esposamose pro-
a igualdade social; quando se encontravam na ponta de cima, os Bobosse clamámos.O fragmento reduzido e simplificado torna-se o limite do nosso
reconciliaram com a revolução de Reagan e Thatcher com o adelgaça- mundo moral, a base de um chavão que a tudo abrange.
mento do Estado de bem-estar e com a crescentedesigualdade de renda. Um bom exemplo disso é a "liberdade de escolha", isto é, a pura liberdade
E, por outro lado, seu estilo de vida altamente móvel ajudou a erodir a de escolha como valor primário, sem relação com alguma escolha concre-
comunidade.Porém,muitos dessesque deram a volta por cima sentem ta entre duas coisasnem com o âmbito da escolha.No entanto, temos de
mais do que apenas um desconforto residual a esserespeito. Eles gostam admitir que regularmente se apela para isso em nossa sociedade como um
de acreditar que estão contribuindo para o bem-estar de todos; e anseiam argumento imbatível em questões importantes. Ocorre-me um bom número
por relaçõescomunitárias mais significativas.:: de razões contra a ideia de proibir abortos por lei, ao menos, digamos, nos
François Ricard proporcionou uma excelente descrição da sensaçãode ingressar em uma nova era
com possibilidades sem precedentes; v. o seu penetrante ensaio sobre as pessoasnascidas no início da 3 Cf. uma boa abordagemdessesmecanismospolarizadoresem JamesDavison Hunter. Clí/l le
explosão da natalidade: l,a Géllératí07tLyrfque. Montreal: Boreal, 1992 Nzrs. New York: BasicBooks,1991,e B(furet/zeShootízzg
Begí7zs.
New York: The Free Press,1994.Alan
t2Brooks,Bobosíll Earadíse,
capítulos 3, 5, 6; a citaçãoé da página 134. Wolfe. OlheNafíolt, tenta minimizar as divisões.
Capítulo 13. A Era da Auteitticidade 563
562 Parte IV! Narrativas de secularização

A maioria de nós, na América do Norte, crê em algumas poucas proposições simples


primeiros três meses;issoinclui o fato de que, na nossaatual sociedade,o que parecem tão claras e evidentes por si mesmas que dificilmente precisam ser ditas.
ânus de carregar e manter a criança recai quase totalmente sobre a mulher A liberdade de escolha é uma coisaboa na vida e quanto mais temos dela tanto mais
grávida, ou a grande probabilidade de que essalei seria amplamente dri- felizes somos. A autoridade é essencialmente suspeita; ninguém deveria ter o direi-
to de dizer para os outros o que estesdevem pensar ou como devem se comportar
blada e as operações realizadas em condições muito mais perigosas. Porém, Pecadonão é p.qssoal,é social; sereshumanos individuais são criaturas da sociedade
ser a favor da liberdade de escolha como tal nada tem a ver com isso -- a não em que vivem."
ser que se legitimassea escolha feita por futuros pais de abortar seletiva-
Qualquer pessoareconheceráaqui ideias muito difundidas, que muitas
mente fetos femininos para reduzir eventuaiscustoscom o dote. Essetipo
vezes são usadas como trunfos em argumentos, ou concepções emoldura-
de alegaçãotrivializa a questão.Ela seaproveitade conotaçõesfavoráveis
doras, mesmo que muitas vezes sejam contestadas. O argumento principal
de um termo, ao qual também se apela em outros contextos, como, por
de Ehrenhalt é muito convincente nesseponto. E absurdo adorar qualquer
exemplo, ao anunciar onde é apropriado recorrer ao sentimento de que não
dessastrês proposições como verdades universais. E claro que, para se ter
há barreiras aos meus desejos, a sensação de criança na loja de doces, ou
qualquer tipo de sociedade em que é possível viver alguma liberdade de
seja, de pairar junto a um campo ilimitado de ações prazerosas. Trata-se de
escolhaterá de ser restringida, alguma autoridade terá de ser respeitada e
uma palavra que esconde quase tudo que há de importante: as alternativas
alguma responsabilidade individual terá de ser assumida. A questão cen-
sacrificadasnuma situação dilemática e o real peso moral da situação.
tral deveria ser sempre: que escolhas,que autoridades e que responsabili-
E, no entanto, vemos esse tipo de palavras vindo à tona reiterada-
dades?E: a que preço? Em outras palavras, recair em chavõescomo esses
mente, chavões como "liberdade", "direitos", "respeito", "não discrimina-
oculta de nós os dilemas por entre os quais temos de navegar quando fa-
ção", e assim por diante. E claro que nenhum dessestermos é tão vazia zemos nossasescolhas.Entendido de maneira apropriada, o que aconteceu
quanto o termo "liberdade de escolha", mas eles também muitas vezes são na segunda metade do século XX na América do Norte foi que algumas
empregados como universais para neutralizar qualquer argumento, sem escolhas foram liberadas e algumas autoridades derrubadas, o que resultou
qualquer consideração do onde nem do como de sua aplicação ao caso em em alguns ganhos e custou algumas perdas. E a maioria das pessoasque
pauta. Isso tem algo a ver com a dinâmica do nosso processo político em colaboraram para que esseschavões circulassem livremente tinham certo
muitas democraciasocidentais (não estou tomando posição de uma forma grau de consciênciadisso,porque elas podiam, em outro contexto, também
ou outra sobre se isso é melhor em algum outro lugar), com a maneira lamentar a perda de comunidades estáveis, confiáveis e seguras. Vimos aci-
como grupos de interesse, a mídia, os partidos políticos geram e nutrem ma como a maioria dos norte-americanos acredita que a comunidade foi
uma cultura política nivelada por baixo. Hunter expõe o fato doloroso de minada e que as pessoassão menos dignas de confiança hoje.
que estudos sobre o "perfil" do debate sobre o aborto mostraram que a De certo modo, os custospodem ser encobertos pelo fato de ficarmos
melhor maneira encontrada por eles para defender sua causa foi em ter- especialmenteindignados, ainda hoje, com algumas restriçõese opressões
mos de "direitos" e "liberdade de escolha".:' Essestermos privilegiados dos anos de 1950:as mulheres confinadas ao lar, as crianças forçadas a se
adquiriram uma força procustiana. Superficialidade e predominância são amoldar na escola.Nosso sentimento é que coisascomo essasjamais deve-
dois lados da mesma moeda.
riam acontecerde novo, ao passo que os custosdisso, como o desliamento
Porém,justamente por essarazão, pode-se perguntar o quanto eles re- das conexões sociais no gueto ou a maneira como tantos de nós "pulam de
fletem uma deliberação oriunda da vida real dos sereshumanos na socie- canal em canal" pela vida, são assumidosou como suportáveis ou talvez
dade. Hunter revela o quanto é complexo e nuançado o pensamento de como simplesmente "sistêmicos", e, portanto, a serem desconsiderados
pessoasque podem ser perfiladas de um lado ou de outro por meio de uma Porém,o que vem à tona atravésde toda essaconfusão e essasevasivas
questão simplificadora, como, por exemplo, "você é a favor da vida ou a é que houve aí uma real mudança de valores. Vemos isso no fato de que al-
favor da liberdade de escolha?".:s gumas coisasque foram suportadas por séculos são agora declaradas insu-
Encontramos outra reflexão interessante sobre isso no estudo fascinante portáveis, como, por exemplo, asrestrições às opções de vida das mulheres.
de Alan Ehrenhalt sobre a cidade de Chicago dos anos de 1950e sobre o que E assim há dois pontos a serem considerados a respeito da nossa situação
setornou a vida na América do Norte desdeentão.:' O livro começaassim: Por um lado, é preciso dar-se conta da nivelação e trivialização de muitos
dos termos-chaves do discurso público; por outro, é preciso ver que nossas
n }iunter. Bejore the S/zoafflzg Begflzs, p. 118
'5/d., ibid., parte lll.
tõEhrenhalt, 77zel.osf Czl'. i7Jd, íbjd.,P. 2.
Capítulo 13. A Era da Autenticidade 565
564 ParteIV: Narrativas de secularização

o povo soberano. Contudo, o espaço da moda a que sealudiu anteriormente


ponderações anuais,apesar de distorcidas e em parte cativas de tais ilusões,
ainda assimsão sempre mais ricas e mais profundas do que estas permitem. é exemplo de uma quarta estrutura de simultaneidade. Ele é diferente da
Levantei esseponto porque penso que precisamos permitir uma dupla esfera pública e do povo soberano porque estes são lugares de açãa em co-
avaliaçãosimilar de uma virada como a que inaugurou a Era da Autenti- mum. Nesse tocante, ele é similar à economia, na qual ocorre a concatenação
cidade. Aqueles que não nutrem nenhuma simpatia por essavirada ficam de um grande número de açõesindividuais. Porém, ele também é diferente
tentados a vê-la simplesmente à luz de suas ilusões; a ver, por exemplo, a desta porque no espaço da moda nossas ações se relacionam de um modo
autenticidade ou a afirmação da sensualidade simplesmente como egoísmo bem particular. Eu uso meu próprio tipo de chapéu, mas ao fazer isso es-
e busca de prazer; ou a ver a aspiração pela autoexpressãoexclusivamente à tou exibindo meu estilo para todos vocês e, dessemodo, estou respondendo
luz da liberdade de opção de consumo. Em contrapartida, os patrocinadores à autoexibição de vocês, do mesmo modo que vocês responderão à minha.
da virada ficam tentados a afirmar os valores do novo ideal como se fossem O espaçoda moda é um daque]es em que mantemos juntos uma linguagem
isentos de problemas, sem custos e jamais pudessem ser trivializados. Ambos de sinais e significados que está em constante mudança, mas que a qualquer
veem a virada como um movimento em um jogo estável e perene. Paraos momento constitui o pano de fundo necessáriopara dar aos nossosgestos
críticos, ele implica abraçar vícios que eram e são as principais ameaças à vir- o sentido que possuem. Se meu chapéu é capaz de expressar meu tipo par-
tude; para os apoiadores revertemos formas antigas que eram e são modos ticular de vaidade, ainda que numa autoexibição atenuada, isso se dá em
de opressão. virtude da maneira como a linguagem comum do estilo evoluiu entre nós a
Eu gostaria de apresentar uma visão diferente da virada. Quando passa- esseponto. Meu gesto pode mudar isso e então o movimento estilísticode
resposta da parte de vocês derivará seu significado do novo contorno que a
mos por alguma transformação desse tipo, o balizamento moral muda. Não
quero dizer que não possamosfazer uma ampla avaliaçãoponderada de linguagem assume.
ganhos e perdas na transição. (Acredito que esta teve um balanço positivo, A estrutura geral que quero deduzir desseexemplo do espaçoda moda
mesmo que tenha implicado custos apreciáveis.)O que quero dizer, porém, é é a da presença mútua horizontal e simultânea, que não é a da ação comum,
que asopções disponíveis mudaram. Isso significa, em primeiro lugar que al- masa da exibição mútua. E importante para cada um de nós que os outros
gumas opções disponíveis em tempos passadosnão são mais possíveis hoje, estejam presentes quando atuamos, como testemunhas do que fazemos e,
como um retorno generalizado ao ideal dos papéis sexuaisclaros e delimita- portanto, como codeterminantes do significado da nossa ação.
dos na família. E, em segundo lugar, significa que há opções hoje, dentro do Espaços desse tipo estão se tornando cada vez mais importantes na mo-
novo contexto, e que algumas delas são melhores do que asoutras. Isto é algo derna sociedade urbana, nas quais um grande número de pessoasesbarram
umas nas outras sem se conhecerem, sem lidarem umas com as outras e, no
que tende a ser ocultado pelo constantebater na tecla das formas mais de-
gradadas por parte dos críticos. Essescríticos se tornam aliados involuntários entanto, afetando-se mutuamente, conferindo forma ao contexto inescapá-
das formas trivializadas porque ataçamo novo contexto como um todo como vel das vidas de cada uma. Em contraposiçãoà corrida diária para o traba-
se este fosse definido por aquelas formas. O fato de um dos lados do debate lho no Metro, durante a qual os outros pode ser rebaixadosà condição de
obstáculosno meu caminho, a vida na cidade desenvolveu outros caminhos
sobre o aborto chamar a si próprio de "pró-escolha" tem algo a ver com a di-
nâmica desse combate com o seu polo oposto. Ataques com força total contra de estar-com, como, por exemplo, quando cada um de nós faz o seu passeio
a autenticidade ajudam a piorar nossasvidas, já que não sãocapazesde fazer dominical pelo parque ou quando nos misturamos no festival de verão da
o relógio andar para trás e retornar a tempos mais antigos. nossarua ou no estádio antes do jogo da final.
Nesses casos, cada indivíduo ou pequeno grupo age por si mesmo, mas
Quais sãoasconsequênciasda virada para o nossoimaginário social?Uma conscientede que sua exibição diz algo para os demais, receberáuma respos-
facetaimportante delas remonta à nossa discussãoanterior sobre a cultura ta da parte deles, ajudará a construir um modo ou tom comum que matizará
)ovem. Ela também constitui um importante /Deusda possível trivialização. asaçõesde cada um.
Em outra passagem'; discorre sobre as formas tipicamente modernas, "ho- Aqui um grande número de manadas urbanas paira na fronteira entre
rizontais" do imaginário social, nas quais as pessoaspercebem a si mesmas e a solipsismo e comunicação.Meus comentários em voz alta e meus gestos
um grande número de outras como existindo e aquando simultaneamente. Três sãoabertamentedirigidos só aos meus companheiros mais próximos, meu
dessasformas, amplamente reconhecidas, são: a economia, a esfera pública e grupo familiar está caminhando sossegadamente, concentrado em sua saída
dominical, mas o tempo todo estamos conscientes desse espaço comum que
i8 Ver À'foderlt Soca/ lltzagfnarfes. Durham: Duke University Press, 2004. estamos construindo, no qual as mensagens que o cruzam assumem seus sig-
Capítltto 13. A Era da Alttenticidade 567
566 Parte IV Narrativas de secularização

Ora, a cultura de consumo, o expressivismo e os espaçosde exibição mú-


nificados. Essazona estranha situada entre a solidão e a comunicação causou
tua se conectamem nosso mundo para produzir o seu tipo bem próprio de
forte impressão sobre muitos dos observadores mais antigos desse fenóme- sinergia. Mercadoriasse tornam veículos da expressãoindividual e até da
no, quando ele surgiu no século XIX. Podemos trazer à memória alguns dos autodefinição da identidade. Porém, embora isso possa ser ideologicamente
(iras de Manei ou a fascinação de Baudelaire com a cena urbana, expressa
apresentado,não chegaa constituir uma declaraçãode real autonomia in-
nos papéis do passeador Uáneur] e do dândi, unindo observaçãoe exibição- dividual. A linguagem da autodefinição é definida nos espaçosda exibição
E claro que esses espaços urbanos do século XIX são tÓPicos, isto é, todos mútua, que agora se tornaram metatópicos; eles nos põem em relaçãocom
os participantes estavam no mesmo lugar no campo de visão uns aos outros. centros prestigiados de criação estilística, comumente situados em nações e
Porém, a comunicação do século XX produziu variantes metatópicas, como, ambientes ricos e poderosos. E essalinguagem é objeto de constantes tenta-
por exemplo,quando assistimosàs Olimpíadas.ou ao funeral da Princesa tivas de manipulação por parte de grandes corporações.
Diana na televisão, conscientes de que milhões de outras pessoasnos acom-
O fato de eu comprar calçados de corrida Nike talvez diga algo sobre como
panham nisso. O significado da nossa participação no evento é moldado por eu quero ser/apareceristo é, o tipo de agente capacitado que pode ter como
toda a vasta e dispersa audiência com a qual o compartilhamos. lema o "então faça-ol". E ao fazê-lo, identifico a mim mesmo com aqueleshe-
Justamenteporque essesespaçospairam entre solidão e estar-juntos,eles róis do exporte e dos grandes campeonatos que eles disputam. Ao fazê-lo, jun-
podem àsvezes descambarpara a ação comum; e, na verdade,pode ser difídl to-me a milhões de outros que assim expressam a sua "individualidade". Além
apontar exatamente o momento em que isso acontece.Qua.ndo nos levantamos disso,eu expressoisso,conectando-mea algum mundo superior,o lugar do
todos de uma só vez para aclamaro gol decisivo do terceiro tempo, indubita- astros e dos heróis, que em grande medida é um construto da fantasia
velmente nos tornamos um agente comum; e podemos tentar prolongar isso A moderna sociedadede consumo é inseparável da construção de es-
quando deixamos o estádio marchando e cantando ou até extravasando juntos paços de exibição: espaços tópicos, palácios do consumo, similares às arca-
e provocando várias formas de confusão. A multidão animada de um festival de das parisiensesdo séculoXIX de que tratou Walter Benjamin e os centros
rock sefunde de modo similar. Há uma excitaçãoexacerbadanessesmomentos comerciais gigantescos dos nossos dias; e também espaços metatópicos que
de fusão, reminiscências do carnaval ou de algum dos grandes rituais coleüvos nos ligam por meio de mercadorias a uma existência superior imaginária em
de tempos passados.Durkheim atribuiu um lugar importante a essesperíodos algum outro lugar.
de efervescênciacoletiva como momentos fundantes da sociedadee do sagra- Porém, toda esse conformismo e essa alienação podem não obstante ser
do.i9 Em todo caso, esses momentos parecem responder a alguma necessidade percebidos como liberdade de escolha e autodeterminação, não só porque
importante sentida pela "multidão solitária" dos dias de hoje. os espaçosde consumo com sua múltiplas opções exaltam a liberdade de es-
Acabei de falar aqui da "ação comum", mas esta não é sempre a categoria colha, mas também porque, ao abraçar algum estilo dentre elas, posso sentir
correta. Talvez seja o termo carreto para quando a turba arrebenta os carros a mim mesmo como que rompendo com algum espaço mais confinante da
de polícia ou joga pedras em soldados. Porém, no concerto de rock, no fune- família ou da tradição.z'
ral da princesao que se compartilha é outra coisa.Não é tanto uma açãq,ê E claro que isso funciona sem dizer que uma busca mais genuína por
mais uma emoção, um poderoso sentimento comum. O que acontece é que autenticidade só começaonde a pessoa é capaz de romper com a linguagem
todos nós estamosnos emocionando juntos, comovendo-noscomo uma só logocêntricazz gerada pelas corporações transnacionais. Essalinguagem ocupa
pessoa,sentindo-nos fundidos em nosso contadocom algo maior. profunda- um lugar amplo nos espaçosmetatópicos de exibição,mas não é tudo que
mente comovente ou admirável, cujo poder de comover-nos foi imensamen-
te aumentado pela fusão. z] Na sua fascinante análise da cidade contemporânea de Johannesburg, Aesthetics of Superfluity
Issonos traz de volta à categoriado "festivo", ao qual aludi anteriormen- (Public Cl{/fure,v. 16, n. 3, 2004, Duke University Press,p. 373-405),Achille Mbembe descreve ambien-
tes comerciais inteiros nos novos bairros luxuosos no extremo norte da área urbana, Melrose Arch e
te: momentos de fusão numa ação/sensaçãocomum, que nos arranca do co- MontecasinoEsíc]. Eles compõem os ideais vindos de outro lugar com os quais os compradores são
tidiano bem como parece nos colocar em contado com algo excepcional, além postos em contado.Com engenhosasimitações, até mesmo incluindo um cuidadoso tratamento da pedra
para parecer que esteve exposta às intempéries durante séculos, eles nos transportam para a Toscana.
de nós mesmos, razão pela qual houve quem visse essescomo pertencentes Constituem, por um lado, um centro de estilo primeiro-mundista, mas denotam também,com suas
àsnovas formas de religião em nosso mundo." Pensoque há algo nessaideia raízes medievais, a comunidade integrada que o moderno capitalismo consumista está dissolvendo. Ali
os compradores podem quadrar o círculo emocionalmente e desfrutar tanto da excitação das escolhas
e gostaria de examina-la mais adiante. expandidas quanto da comunidade nostalgicamente desejada com um longo passado de significados
Ás profundos (p. 393ss.)
n ÉmiJe Durkheim. Lcs ForFnc's
élémenraíresde /a Vie re118íc
{se.5. ed. Paria: PUb 1968 [ed. porá Tentativade trocadilho.A referênciaoblíqua, nessecaso,é ao livro pioneiro de Naomi Klein. No
jorrnas elemenfarcs da vida religiosa. 3. ed. São Pau]o; Marfins Fontes, 2003] l,ogo;ZakíngAím at f/zeBralzdBl{//íes.Toronto: Vintage Canada, 2000.
' n Ver Daniêle Hervieu-Léger. L# Relígíolztour A4éznofre.
Paras:Cera,1993,capítulo 3, esp p- 82ss
Capítttto 13. A Era da Atlteltticidade 569
568 Parte !V Narrativas de secltlarização

há neles. Astros admirados, heróis, bordões políticos e modos de exibição inculcada nas pessoasmediante forte disciplina; assim, embora a meta fosse a
também circulam. Eles podem sofrer suas próprias distorções (pense-senas liberdade individual, nenhuma incompatibilidade era percebida entre estae a
necessidade das fortes virtudes do caráter, comumente incutidas. Pelo contrá-
camisetasdo Che Guevara), mas podem igualmente nos conectar com movi-
mentos transnacionais em torno de questões genuínas. rio, parecia evidente que, sem estas,o regime do respeito mútuo não consegui-
ria sobreviver. Levou um bom tempo até que John Stuart MiH pede enunciar o
De que outro modo o avanço do individualismo expressivo pode alterar
nossoimaginário social? Nesse ponto, uma vez mais só posso fazer o esboço que passou a ser conhecido como o "princípio do dano", a saber, que ninguém
tem o direito de interferir na minha vida para o meu próprio bem, mas somen-
de um tipo ideal, porque estamos lidando com um processo gradual, no qual
o novo coexiste com o velho. te para prevenir dano a outros. No seu tempo, isso estava longe de ser univer-
Nossasautocompreensões como povos soberanosnão deram lugar a esse salmente aceito; parecia mais o caminho que leva ao libertinismo.
novo individualismo. Mas talvez tenha havido uma mudançade ênfase. Hoje, porém, o princípio do dano é amplamente endossado e parece ser a
A identidade humana é uma coisa complexa, constituída por muitos pontos fórmula demandadapelo individualismo expressivopredominante. (Talvez
não seja por acasoque os argumentos de Mill também se inspiraram em fon-
de referência. Continua parecendo importante para muitos de nós o fato de
sermos canadenses,norte-americanos, bretões ou franceses.Basta assisti- tes expressionistas, na pessoa de Humboldt.)
De fato, a "busca da felicidade (individual)" assumeum novo significa-
mosquando as Olimpíadas estão em andamento. Porém, o peso, a importân-
do no período pós-guerra. É claro que ela é parte integrante do liberalismo
cia disso para o nosso senso de identidade como um todo pode variar. desde a Revolução norte-americana, que a sacralizou como um dos direitos
O que se poderia argumentaré que, para muitaspessoasjovens hoje, de uma trindade de direitos fundamentais.Porém,no primeiro séculoda
certos estilos de que gostam e que exibem no seu círculo mais imediato, mas
República norte-americanaela estáinscrita dentro de certos limites dados
que são definidos pela mídia em conexão com astros admirados - ou até pro- como assegurados.Em primeiro lugar, havia a ética cidadã, centrada no bem
dutos --, ocupam um lugar bem mais considerávelna consciênciaque têm do autogoverno, à qual os norte-americanos pensavam estar corresponden-
de si mesmas e que isso tendeu a substituir em importância o sentimento de
do com suasvidas.'Porém, para além disso, havia ainda certasdemandas
pertencer a organismos coletivos de grande escala,como nações, para não básicasda moral sexual, do que mais tarde seria chamado de "valores da
falar de igrejas, partidos políticos, organizações de interesse e similares. família"; havia também os valores do trabalho árduo e da produtividade,
Sealguma coisasaiu fortalecida, então foi a moderna ordem moral do be-
nefício mútuo. Ou talvez, formulando melhor, ela assumiu uma forma um que proporcionavam a moldura para a busca do bem individual. Mover-se à
parte dessesvalores não era tanto buscar a felicidade pessoal,quanto avan-
tanto diferente. Certamente está claro que os ideais da equidade, do respeita
çar rumo à perdição. Por essarazão, eles não pareciam contrariar em nada
mútuo pela liberdade de cada um estão mais fortes entre aspessoasjovens da os direitos fundamentais sacralizados pela Declaração da Independência no
que jamais estiveram antes. De fato, precisamente o relativismo brando que empenho da sociedade em inculcar e, em certos casos(por exemplo, no da
parece acompanhar a ética da autenticidade deixemos cada pessoa cuidar de moral sexual),até em impor essasnormas. As sociedadeseuropeiastalvez
suas próprias coisas e não devemos criticar os "valores" uns dos ou tios -- é pre: fossem menos ousadasdo que as norte-americanas no que se refere a impor
conizado a partir de uma base ética firme e, na verdade, demandado por ela. vários modos de conformidade social, mas o seu código, de qualquer modo,
Não devemos criticar os valores dos outros porque eles têm o direito de viver era bem mais restritivo.
suaspróprias vidas, assimcomo tu vives a tua. O pecado não tolerado é a into- Em alguns casos,a erosãodessaslimitações impostasà realizaçãoindivi-
lerância. Essaexigência emerge claramente da ética da liberdade e do benefício dual foi gradual, experimentando oscilaçõespara frente e para trás, mas com
mútuo, embora se possa facilmente tecer críticas a essaaplicação dela.a uma tendênciageral inconfundível no longo prazo. Michael Sandelapon-
A questão tomou um novo rumo, evidente no "relativismo", diante do tou como a preocupação com a ética cidadã foi muito mais proeminente no
fato de que essaexigênciasomente se mantém em pé onde costuma estar primeiro século da história norte-americana. Brandeis pede discutir o caso
cercada e ser contida por outras. Para Locke, a Lei da Natureza precisava ser antitruste no início do séculoXX em parte arrazoando que grandesconglo-
merados "erodem as capacidades morais e cívicas que equipam trabalhado-
:' Jean-Louis Schlegel argumenta que os velares que emergem constantemente dos estudos sobre res para pensar como cidadãos".m Porém, à medida que o século XX avança,
pessoasjovens são: "droits de I'homme, tolérance, respect des convictions d'autrui,l libertés, amitié, tais consideraçõesvão sendo relegados cada Vez mais ao segundo plano. As
amour. sohdarité, fraternité, justice, respect de la nature, intervention humanitaire [direitos humanos.
tolerância, respeito pelas convicções do outro, liberdades, amizade, amor solidariedade, fraternidade. cortesse preocupam mais em defender a "privacidade" do indivíduo.
justiça. respeita pela natureza, intervenção humanitárias" (Espríll n. 233,junho de 1997,.p:29) . Sylvette
Denêfle concorda no que se refere à sua amostra de descrentes franceses: Social(ZgÍede /a Séctí/arísati072
Paras: llHarmattan, 1997, capítulo 6. A tolerância é, para eles, a virtude-chave(p 166ss.). H Michael Sandel. Del?iK/Rcy'sDisconfmf. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1996, p- 2H9-210
570 Parte IV Narrativas de seca,{!arização 571
CapítLito 13. A Erü da Autenticidade

Porém, foi realmente no período após a Segunda Guerra Mundial que mais Deixo de lado aqui os prós e contras para concentrar-me no que é relevan-
claramente foram postos de lado os limites à busca da felicidade individual, te aos nossospropósitos, que poderíamos descrever como o lugar imaginado
particularmente em questões sexuais, mas igualmente em outros domínios. As do sagrado no sentido mais amplo possível. Extraindo um tipo ideal desse
decisõesda Suprema Corte dos EUA invocando a privacidade e, dessa forma, novo imaginário social do individualismo expressivo, poderíamos dizer que
restringindo o alcanceda lei criminal, proveem um exemploclaro. Algo similar ele era quase não durkheimiano.
aconteceucom as revisões do Código Criminal canadensesob Trudeau, cujo Soba dispensaçãopaleodurj<heimianaa minha conexãocom o sagrado
princípio se expressaem que "não é da conta do Estadoo que acontecenas implicava o meu pertencimento à Igreja, que em princípio era coextensiva
camas desta nação". Michel Winock aponta a mudança de "mentalités" na com a sociedade,embora de fato talvez ainda se tolerassealguns que esta-
França durante a década de 1970: "La levée des censures, la 'libéralisation des vam de fora e que ainda eram hereges não submetidos à disciplina. A dispen-
mceurs', [...] entra dana la loi]suspensão da censura, a 'liberalização dos costu- saçãoneodurkheimiana me viu ingressar na denominação da minha escolha,
mes', (. . .) ingressa na leia", com a legalização do aborto, a reforma do divórcio, o que, por sua vez, me conectou a uma "igreja" mais ampla e mais elusiva, e,
a autorizaçãode filmes pornográficos e assimpor diante.u Essaevolução teve o que é ainda mais importante, a uma entidade política com um papel provi-
lugar virtualmente em todas as sociedades atlânticas. dencial a representar. Em ambos os casos,havia um elo entre aderir a Deus e
O cerne dessarevolução reside nos costumessexuais.Ela se constituiu pertencer ao Estado -- por isso escolhi o epíteto "durl<heimiano
numa construção de longo prazo, como indica o parágrafo anterior, mas o O modo neodurkheimiano implica um passo importante na direção do
seu desenvolvimento teve lugar primeiro entre aselites culturais. Na década indivíduo e do direito de escolher.Adere-sea uma denominaçãoporque
de 1960ela se generalizou entre todas as classes.Obviamente, foi uma mu- parecedireito. E, na verdade,agoraaté pareceque não há outra maneira
dança profunda. A relativização da castidade e da monogamia, a afirmação de estar na "igreja", exceto por meio de tal escolha. Enquanto sob as regras
da homossexualidade como opção legítima, todas essascoisas tiveram um paleodurkheimianas se podia -- e de fato se fez -- demandar que as pessoas
impacto tremendo nas igrejas, cuja postura nos séculos recentes havia posto fossem forçadas a se integrar a se vincular legalmente com Deus contra a sua
tanta ênfasenessasquestões e cuja piedade muitas vezesfoi identificada com vontade, isso agora não faz mais nenhum sentido. A coerção passou a ser nâo
um código sexual muito rigoroso. Retomarei a issologo mais. só errada, mas absurda e, portanto, obscena. Identificamos um importante
De fato, a necessidadede treinar o caráter foi sendo relegada cada vez divisor de águasno desenvolvimentodessaconsciênciana reaçãoda culta
mais ao segundo plano, ainda que a moral do respeito mútuo estivesse con- Europa à Revogaçãodo Edito de Nantes. Até mesmo o papa reconheceu que
tida no próprio ideal da autorrealização autêntica; que é como indubitavel- foi um erro.
mente muitas pessoasjovens o experimentam hoje, esquecidosdo quanto, Porém, a visão expressionista levou isso a um estágio mais avançado. A vida
no século XX, as terríveis aberrações do fascismo e do nacionalismo extremo
ou prática religiosa,da qual me torno parte, deve ser não só da minha escolha,
beberam da mesma fonte expressionista. mas também deve falar a mim, deve fazer sentido em termos do meu desen-
Tudo isso talvez refeitao quanto essesprincípios derivados do respeito volvimento espiritual como eu o concebo. Isso nos leva adiante. Entendia-se
mútuo pelos direitos se embutiram em nossasculturas atlânticas, formando que a escolha da denominação deveria ter lugar no interior de um quadro fixo,
o pano de fundo sobre o qual muitos dos nossosprocedimentos políticos e le- isto é, o do Credo apostólico, o da fé da "igreja" mais ampla. Dentro dessamol-
gais de reparaçãolegal e não discriminação parecem totalmente legitimados, dura de fé, eu escolhoa igreja em que me sinto mais confortável. Porém,se
mesmo que discutamos com veemência os detalhes da sua aplicação. Porém, agora o foco passa a recair sobre o meu próprio caminho espiritual, ou seja,
issotambém reflete o modo como a consciência dos direitos assumiu um vín-
sobreque percepçõescapto nas linguagens sutis que considero significativas,
culo mais frouxo com o sentimento de pertença a uma comunidade política então fica muito difícil manter essaou qualquer outra moldura.
particular o que tem aspectostanto positivos quanto negativos.:' Isso, contudo, significa que estar situado dentro da "igreja" mais ampla
pode não ser tão relevante para mim, o mesmo podendo ocorrer com o estar
5 Michel Winock. Le síêc/e des íltl'e//actue/s. Paria: Seuil, 1997, p. 582.
n Pode-seargumentar que essamudança de identidade ajuda a explicar a taxa decrescentede
situado na "naçãosob Deus" ou em qualquer outro organismo político com
participaçãoem votações,não só nos EUA, masem quase toda parte do mundo atlântico. Essedeclí-
nio é maisforte entre os grupos jovens (ver Pugnam,'Bow/ingAlo?ie.capítulo 14).É provável que esse na França)quebra o elo que conectavamuitas pessoascom o sistema político. O vínculo que elas tinham
desencantamentonão seja simplesmentedireto, isto é, indivíduos independentesperdendo interesse cam o todo eravia identidade de classee uma deterá\inada compreensãode luta de classes.Um m.undo
pela política, mas também indireto: as pessoas se afastaram dos movimentos e da organizações que em que cada vez menos pessoasestãovinculadas por sua identificação com o "Movimento Trabalhista"
costumavam vincula-las com a política. Por exemplo, o declínio da consciência de classe e, em consequên- ou caIU o PCF [= Partido Comunista Francês] provavelmente também é um mundo em que se eleva a
cia, dos movimentos de classe, como os sindicatos, em certos países(por exemplo, no Reino Unido, nível da abstenção
572 Parte I'ü Narrativas de seca!arização Capítulo 13. A Era da Atiteitticidade 573

um papelprovidencial.Na nova dispensação


expressionista,
não há uma Bálcãs,não mudou muita coisa desde as guerras que irromperam em 1911.E não
inserçãonecessáriado nosso vínculo com o sagradoem qualquer moldura deveríamos ser demasiado confiantes, acreditando que no âmago das socieda-
particular mais ampla, sejanuma "igreja" ou num Estado. des norte-atlânticas essamudança seja irreversível.
Essaé a razão pela qual os desdobramentos em décadas recentes na Fran- Os termos "paleodurkheimiano", "neodurkheimiano" e "pós-durkhei-
ça foram tão desestabilizantespara os dois lados da velha "guerre franco- miano" descrevem tipos ideais. Não afirmo que algum deles proporcione a
française [guerra franco-francesas".Não foi só a Igreja que constatou uma descrição total, mas que a nossa história se moveu através dessas dispensa-
forte queda nas adesões, mas as pessoas jovens também começaram a aban- çõese que a última veio para matizar cada vez mais a nossa era.
donar ascosmovisõesrivais dos jacobinos e/ou comunistas. Ao lidar de modo Que a nova dispensaçãonão dá conta de toda a história fica bem evi-
apropriado com a dinâmica do clericalismo barroco, paleodurl<heimiano, o denciado a partir dos conflitos na sociedade contemporânea. Em certo sen-
conflito deu origem a uma espéciede humanismo que, a seu modo, aspi- tido, o que deu impulsoà Maioria Moral e motivou a Direita Cristãnos
rou a se tornar uma espéciede "igreja" nacional, a saber,a da República e EUA é, em parte, a aspiração de restabelecer alguma coisa da compreensão
seusprincípios, uma moldura, dentro da qual as pessoaspoderiam manter neodurkheimiana esfaceladacom que se costumava definir a nação, em
suasdiferentes visões metafísicas e (casoinsistissem) religiosas.A República que ser norte-americano seria uma vez mais ter conexão com o teísmo, com
atuou como uma espécie de dispensação neodurkheimiana contra o paleo- ser 'uma nação sob Deus" ou, ao menos, com a ética que estavaestreme
durkheimianismo dos monarquistas clericais. Essatradição até mesmo assu- ada com isso tudo. De modo similar grande parte da liderança da Igreja
miu o termo "sagrado" para si mesma. (Pense-seem "l'union sacrée jaliança Católica, encabeçadapelo Vaticano, tenta resistir ao desafio lançado à auto-
sagradas", em "la main sacrilêge ja mão sacrílegas" que assassinou Marat etc. ridade monolítica, que estáimplícito na nova compreensãoexpressionista
Esseemprego do termo obviamente facilitou o uso teórico que Durkheim fez de espiritualidade.E a Igreja Católicanos EUAfrequentementese alinha
dele para abarcar tanto o regime antigo quanto a república.) Não é de se sur- com a Direita Cristã nas tentativas de restabelecer versões mais antigas do
preender que tanto o catolicismo quanto essavariedade de republicanismo consenso moral de que gozavam, em sua época, as bases religiosas neo-
sofreu dejecçõesna nova dispensação pós-durkheimiana do individualismo durkheimianas.:9 Todos essesgrupos ainda seatêm com força à ideia de que
expressivo." existeum vínculo entre fé cristã e ordem civilizacional.
Isso muda completamente as maneiras pelas quais os ideais da ordem Porém, a própria natureza controvertida dessas tentativas mostra o
costumavam ser entrelaçados com a polêmica entre crença e descrença. O quanto já nos distanciamos da antiga dispensação.Essadigressãopercor-
que mudou para que isso ocorresse bem menos não foi só o fato de termos reu um longo caminho para expor as condições da crença em nossos dias
chegado a um consensoamplo sobre o nosso ideal de ordem moral, mas No entanto, ela também sublinha um ponto que mencionei anteriormen-
também o fato de, em nossa dispensaçãopós-durkheimiana, o "sagrado", te. Os termos "neodurkheimiano" e "pós-durkheimiano", empregados
seja religioso ou "lasque jleigol", ter-se desatrelado de nossa lealdade política. por mim, designam tipos ideais. Não afirmo que o nosso tempo presente
Foi a rivalidade entre duas lealdadesdessetipo que animou a "guerre fran- seja inequivocamente pós-durkheimiano, como se dissesseque a França
co-française". Igualmente, foi essa dispensação mais antiga que conseguiu medieval foi inquestionavelmente paleodurkheimiana e que os EUA do
mandar pessoas em massa para as trincheiras para lutar por seus países em século XIX foram neodurkheimianos. Antes, uma batalha estásendo tra-
1914e mantê-los lá por mais de quatro anos, com poucas deserçõese raros vada entre essasduas dispensações.Contudo, é justamente isto, a dispo-
casos de motim.28 nibilidade de uma dispensaçãopós-durkheimiana, que nos desestabiliza
Falo disso no tempo pretérito porque, em muitos dessesmesmos países, e provoca o conflito.
que foram os mais beligerantes naquela guerra, a nova dispensaçãoprova-
velmente teria impossibilitado esse tipo de coisa. Porém, também está claro 290 excelentelivro PublicReJigía
is í z tãefoder?l Wor/d(Chicago:University of ChicagoPress,1994),
de José Casanova, mostra o quanto nossa condição religiosa é diversa. Se algum dia viéssemosa viver
que a áreageográficapara a qual isso se aplica é limitada. Mais abaixo,nos numa condição totalmente definida pela compreensão pós-durkheimiana, provavelmente não haveria
mais nenhum espaço para a religião na esfera pública. A vida espiritual seria inteiramente privatizada,
27Penso que a minha análise aqui se aproxima da de Marcel Gauchet, na qual ele fala da época anual atendo-se às normas de certo liberalismo procedural muito difundido nos dias de hoje. Porém. o que
na França como "une troisiêlne époque de la lalcité [uma terceira época da laicidadej" (La Religfolt dons/a Casanovaapura de fato é uma "desprivatização"da religião, isto é, uma tentativa feita por igrejase.or-
l)á17Tocratie.
Paras:Gallimard, 1998, p. 74). Cf. também sua obra La Colldifíon Hfsforique. Paria: Stock, 2003, ganismos religiosos de voltar a intervir na vida política de suas sociedades. Exemplos são a Direita Cristã
capítulo 12. Esteúltimo livro situa o desenvolvimentono contextode uma teoria profunda e esclarece- e as cartas pastorais dos bispos católicos nos EUA, que acabei de mencionar. É Improvável (e tan\bém
dora da história humana. indesejável) que essetipo de coisaalgum dia venha a cessar.Porém, a situaçãoem que essasintervenções
n FrançoisFurei(Le Ihsséd'u?zelllüsían. Paria:Gallimard, 1996)indica o quanto essalealdade e o têm lugar é definida pelo fim de uma dispensaçãodurkheimiana uniforme e a crescenteaceitaçãode
sensode pertencimento que a sustentou foram notáveis. uma compreensão pós-durkheimiana por parte de muitas pessoas.
Parte IV: Narrativas de seclilarização Capítulo .i3. A Era da Autenticidade 575
574

No entanto, antes de examinar a ligação controvertida entre crença e or- Daí que, na dispensaçãopaleodurkheimiana original, as pessoaspodiam
dem civilizacional, gostaria de salientar o quanto a mudança sobrea qual ve- facilmente sentir que tinham de obedecer à ordem de abandonar seuspróprio
nho falando se coaduna com a lógica da moderna sujeitificação e com o que instintos religiosos, porque estes, divergindo da ortodoxia, eram necessaria-
podemos chamar de o "eu protegido jbu#eredseH". Já vimos, no século XVlll, mente heréticos ou ao menos inferiores, e aqueles que habitavam um mundo
em relaçãoa um dos importantes "pontos de ramificação" mencionadosna neodurkheimiano sentiam que suasescolhastinham de andar conformes com
Parte precedente, que uma das reaçõesà religião fria, comedida da identida- uma moldura universal da "igreja" ou de uma nação favorita, de modo que
de protegida foi acentuar o sentimento, a emoção,a fé viva que nos move. até unitaristas e sociedadeséticasse apresentavam como denominações com
Essefoi o caso,por exemplo, no pietismo e no metodismo, para os quais uma cultos e sermõesdominicais; enquanto isso, na era pós-durkheimiana, muitas
poderosa resposta emocional à ação salvadora de Deus era mais importante pessoasnão têm nenhuma compreensãopara com a exigênciade conformida-
do que a correçãoteológica. de. No mundo neodurkheimiano, aderir a uma igreja em que você não crê não
É claro que essesmovimentos desejavam permanecer dentro da ortodo parece só errado, mas também absurdo, contraditório; exatamente o mesmo
xia, mas não duraria muito até que a ênfase se voltaria mais e mais na direção ocorre também na era pós-durkheimiana com a ideia de aderir a uma espiri-
da força e da genuinidade dos sentimentos, do que para a natureza do seu tualidade que não seapresentacomo o seu caminho, como aquele que move e
objeto. Mais tarde naquele século os leitores do EmzHío
se admirariam dos inspira você. Paramuitas pessoashoje, deixar de lado o seu próprio caminho a
sentimentos profundamente autênticos dos personagens. fim de andar em conformidade com alguma autoridade externa simplesmen-
Há uma certalógica nisso.Onde anteshavia fé ardenteem quantidade e te não parece compreensível como forma de vida espiritual." A palavra de
as questões de vida e morte eram doutrinais, agora se alastra a sensação de ordem é, nas palavras de um orador do festival da Nova Era: 'Aceita somente
que o ponto alto da religião foi perdido justamente no distanciamento frio da aquilo que soa verdadeiro ao teu próprio Eu interior".s:
ortodoxia intelectual impecável.A única maneira de conectar-secom [)eus É claro que embutida nessacompreensão do lugar e da natureza da espi-
é através da paixão. Para quem sente isso, a intensidade da paixão se torna ritualidade está o pluralismo, não só o pluralismo dentro de uma certa mol-
uma virtude maior, capaz de compensar alguma imprecisão na formulação dura doutrinal, maso pluralismo ilimitado. Ou, melhor,os limites sãode
teológica. Numa era dominada pela razão desengajada,essavirtude começa outra ordem; eles são de certa maneira políticos e decorrem da ordem moral
a parecer cada vez mais crucial. da liberdade e do benefício mútuo. Meu caminho espiritual deve respeitar
Durante o período romântico, a mesmaquestãoapareceum tanto supe- o dos outros; ele deve obedecerao princípio do dano. Com essarestrição,o
rada. Agora parece a muitos que a razão dessecadanão é capaz de chegar às caminho da pessoa pode figurar entre aqueles que requerem alguma comu-
verdades últimas de modo algum. O que se precisaé uma linguagem mais nidade para serem vividos, inclusive comunidades nacionais ou pretensas
sutil capazde tornar manifesto o sublime ou o divino. Porém,para ser eficaz igrejas estatais,mas pode também estender-se àquelas que requerem apenas
essalinguagem requer a ressonânciano escritor ou leitor. O principal não grupos com a mais tênue afinidade ou um mero organismo de serviço, como
é assentir com alguma fórmula externa; o importante é ser capaz de gerar uma fonte de informações e de literatura.
a percepção que move para dentro de uma realidade mais elevada. O írzsí- C)princípio a priori de que uma respostaválida à questãoreligiosa deve
ghf pessoal profundamente sentido torna-se agora o nosso recurso espiritual preencher ou as condições paleodurkheimianas ou as neodurkheimianas (a
mais precioso. Para Schleiermacher. o aspecto crucial a explorar é o poderoso igreja ou a "igreja" e/ou sociedade) foi abandonado na nova dispensação. O es-
sentimento de dependência de algo superior. Entregar o comando e dar voz piritual como tal não está mais intrinsecamente relacionado com a sociedade.
a isso em nós mesmos é mais crucial do que obter a fórmula correra.
Creio que a presente visão expressiva advém do fato de aquela mudan- :' No primeiro capítulo do seu interessantíssimo livro L'Hor?Fine-Díel{o11Jesons de la z;fe(Paria: Grasset,
1996),Luc Ferry comentaessefenómenosob o título "le refus de I'Autarité [a rejeiçãoda autoridades"
ça ter penetrado, de alguma forma genérica,profundamente em nossacul- Concordo com muita coisa do que ele diz, mas acho que ele intelectualiza demais essa reação ao relacio-
tura. Em uma era que parece dominada pelos "desprezadorescultos da re- na-la diretamente com Descarnes,em vez de considerar suas raízesexpressionistas.
n Sir GeorgeTrevelyan,numa palestraproferida no Festivalem prol da Mente, do Corpo e do Espí-
ligião", na formulação de Schleiermacher,o que vale realmente é o ílzsíght/
rito, apud Paul Heelas. TheNew .AgeA4oz;el?ze}2t.
Oxford: Blackwel1, 1996,p. 21. Pode-sedizer que essa pa-
sentimento espiritual. Este inevitavelmente recorrerá a uma linguagem que lavra de ordem representa apenasuma visão da Nova Era. Mas, nesse tocante,os vários movimentos da
repercute muito bem a pessoa que o possui. Assim, a exigência parece ser Nova Era evidenciamatitudes adoradasde modo bem mais amplo do que Heelassustentano capítulo
6. Em 1978, por exemplo, uma pesquisade opinião do Gallup descobriu que 80% dos norte-americanos
esta: deixem cada pessoa seguir seu próprio caminho de inspiração espiri- concordam em que "um indivíduo deveria chegar às suas próprias crenças religiosas, independente-
tual. Não se deixem desviar dele pela alegação de que não se coaduna com mente de quaisquer igrejas ou sinagogas" (Heelas,p. 164); também citado em Robert Bellah et al. H#bifs
alguma ortodoxia. oft&eHcarf.Berkeley:University of California Press,1985,p. 228
576 Capítulo 13. A Era da Attteltticidade 577
Parte IVI Narrativas de secularização

E o bastante sobre a lógica da resposta expressionista à identidade prote- qui est à cole de moi, il réussit aussibien que moi, peut-être mêmemieux, et
gida. Porém, é claro que isso não precisava ter-se efetivado da maneira que o il n'y va pas"" (Por que eu iria à missa, dizem eles para si mesmos, se o meu
fez. Ao menos em certas sociedades, o principal catalizador a produzir esse vizinho ao lado está tão bem quanto eu, talvez até melhor e não vai).
efeito em décadas recentes parece ter sido a nova cultura de consumo indi- Em outras palavras, na forma AR que sobreviveu por longo tempo na pa-
vidual liberada pela riqueza material do pós-guerra. Isso parece ter exercido róquia bretã, a visão antiga aglutinou um composto de preocupações,relativas
um tremendo apelo sobre populações que desde tempos imemoráveis vi- tanto a estemundo quanto ao outro mundo, que agora sesubdividem de modo
viam nas garras do que parecia ser uma necessidadeimutável, em que o ho- bem decisivo. Ele não pôde ser reconstituído e a crença somente sobreviveu
rizonte mais otimista se resumia a manter uma nível de modesta suficiência entre aquelesque se apegam a ela evoluindo, como descreve Lambert.n Algo
e a evitar qualquer desastre. Yves Lambert mostrou como essanova cultura análogo aconteceuem Québec na década de 1960,embora se tratassede uma
afrouxou de repente os estreitos laços da vida comunitária de uma paróquia sodedade muito mais urbanizada. Nesse caso,o efeito foi retardado pelo vínculo
bretã e fez as pessoas se voltarem de sua densa vida comunitária e ritual para neodurkheimiano entre identidade nacional e catolicismo, mas quando essenó
uma vigorosa busca de prosperidade pessoal. Nas palavras de um de seus foi desatado, a detecção aconteceu com uma rapidez desconcertante. O desen-
informantes: "On n'a plus le temps de se soucier de ça [la religion], il y a trop volvimento talvez tenha alguma afinidade com o que estáacontecendo na Irlan-
de travail. ll faut de I'argent, du confort, tout ça, tout le monde est lance là- da contemporânea ou o que está começando a vir à tona na Folânia.
dedans, et le reste,pffftl;' (Não sobra tempo para se preocupar com religião; A passagemcorrespondente em outras sociedades, a saber,protestantes,
há muito trabalho a fazer.Há precisãode dinheiro, de conforto,tudo isso; especialmente anglófonas, sucedeu de modo mais gradual e menos dramá-
todo mundo agora se jogou nisso;o resto,pffftl)" tico, talvez porque a nova cultura de consumo se desenvolveu mais lenta-
Trata-sede movimentos conexos. A nova prosperidade veio acompanha- mente e num período mais longo de tempo. Porém, tanto na Grã-Bretanha
da de melhores meios de comunicação e isso abriu horizontes; mas então a quanto na América do Norte, a revolução expressionista da década de 1960
nova busca da felicidade impulsionou as pessoas com tanta força que elas co- parece ter acelerado as coisas.
meçaram a desertar a antiga vida ritual construída em torno da comunidade Como entender o impacto de toda essamudança sobreo lugar da reli-
e de seus esforçoscomuns para sobreviver no mundo físico e espiritual. Em gião no espaçopúblico? Ele talvez possa ser visualizado da seguinte maneira.
seguida, essamesma vida ritual começou a encolher e em parte desaparecer A invenção do humanismo exclusivista no século XVlll criou uma nova situação
restando cada vez menos para segurar aqueles que porventura quisessem de pluralismo, a cultura se fendeu entre religião e irreligião (fase1).As reações
permanecer dentro dela.33 não só a essehumanismo, mas à matriz (identidade protegida, ordem moral) da
É quase como se essa"conversão" fosse a resposta a uma forma de magia qual elebrotou, multiplicaramas opçõesem todas as direções(fase2). Porém,
essepluralismo operou e gerou suasnovas opçõespor um longo tempo dentro
mais forte do que haviam sido as conversõesmais antigas.Não é assim que a
de certos grupos de elite, intelectuais e artistas.
religião dos aldeõesde Limerzel estivesseexclusivamentevoltada para a so-
brevivência económica e a prevenção de desastres, mas a sua crença entrela- Já bem cedo, especialmente em países católicos, surgiram movimentos
çou de tal maneiraa preocupaçãocom a salvaçãocom a preocupaçãocom o políticos de humanismo militante, que tentaram levar a descrençaàsmassas,
mas tiveram êxito apenas modesto; e a alienação religiosa também separou
bem-estarque a perspectiva de uma nova via individual até a prosperidade,
da Igreja alguns estratos do povo comum sem necessariamente oferecer uma
comprovada e impressionante, modificou completamente a sua visão anterior.
Outro informante disse: "Pourquoi j'orais à ]a messe, qu'ils se disent, le voisin alternativa. Em contrapartida, um grande número de pessoasera mantido
fora dessacultura pluralista, fragmentada; ou, quando se encontravamem
saYves Lambert. DoeuChalígeelt BrefagJle.Paris: Cera,1985,p. 373. Daniêle Hervieu-Léger apresenta suas fímbrias, eram mantidas rigorosamente dentro da opção crente, pelos
um argumento similar ao meu aqui. Ela fala de um recuo, no mundo contemporâneo, do medo da escas- diferentes modos da dispensação durkheimiana, sendo que cada opção reli-
sez:"Que se passe-t-ilpour la religion dons une sociétéoü I'on a I'assurancede manter à safaim, qual
giosa estava intimamente ligada à sua respectiva inserção na sociedade. Ela
qu'il arrive?lO que restapara a religião numa sociedadeem que há garantiade comerà vontade onde
quer que se chegue?l", in: C/zrétíelzs,
foumez !a pago.Paras:Bayard, 2002,p. 97 podia ser do tipo paleo, que, embora tenha começado a decair rapidamente
saSociólogosda religião já perceberam que o alto grau de prática religiosa em certas regiões da Fran- no plano da sociedadecomo um todo, ainda podia ser muito ativo em áreas
ça estava ligado ao fato de se viver dentro da paróquia. A migração para as cidades geralmente teve um
efeito devastador. Nos termos de Gabriel Le Bus: "Jesuis convaincu que sur cenaruraux qui s'établissent rurais no plano da comunidade local, como na Limerzel de Lambert. Ou po-
à Paria,il y en a à peu prós 90 qui, au sorrir de la gare Montparnasse,cessentd'être des pratiquants.
testou convencido de que de cem interioranos que se estabelecemem Paras,cerca de 90 deixam de ser
praticantes assim que saemda estaçãoferroviária de Montparnasse.]"(Aplíd Daniêle Hervieu-Léger. Uers s't lbide?n
líli }zollocaChrísfíatzisine?.
Paras:Seuil, 1986,p. 37) a5Lambert, Doeu C/muge ell Brefagne, p. 385ss
578 Parte IV Narratioas de secularização T CapÍttllo 13. A Era da Atitetlticidade 579

dia ser do tipo neo, como no sentimento triunfalista da providência nacional ralizada contra a moral evangelical,como responsável por dessecare reprimir
ou em grupos oprimidos defendendo sua identidade ameaçadacontra o po- a liberdade e o autodesenvolvimento, uniformizar-nos, negar a beleza e coisas
der de outra linha religiosa (incluindo o ateísmo, no caso recente da Polónia) ou desse tipo Escritores como Shaw ]bsen e Nietzsche articularem esse ponto de
em grupos de imigrantes. Ou o senso da necessáriainserção na comunidade de vista com muita força; e algo disso está expresso na famosa frase "autoafirma-
fé poderia ser sustentadapela crençanão questionadade que o cristianismo, çãopagã é melhor do autonegaçãocristã", de J. S.Nlill.3zArnold, por seu turno,
qualquer que fossesua forma local dominante, seria a matriz indispensável da lamentou a falta de uma cultura mais reHnada por parte da classemédia não
ordem civilizacional. conformista.E a cultura de Bloomsbury pode ser vista em parte como reaçãoa
Minha hipótese é que a passagem gradativa de nossoimaginário social para toda essaatmosfera religiosa.
uma era pós-durkheimiana no pós-guerra desestabilizou e minou as várias dis- Porém, tudo issofoi intensificado pela revolução cultural dos anos de 1960,
pensaçõesdurkheimianas. Isso teve o efeito ou de liberar gradualmente as pes- não só pelo fato de mais pessoasterem passadoa uma postura de oposiçãoa
soas para serem recrutadas dentro dessa cultura fragmentada ou, no caso em muitos aspectos da ética religiosa, mas também porque os novos costumes se-
que a nova cultura de consumo praticamente tomou o lugar da visão antiga, de xuais divergiram ainda mais fortemente dela. Havia uma interconexão tripartite
expelir as pessoasexplosivamentepara dentro dessemundo fragmentado. Por- que, no passado, parece a muitos absolutamente inquestionável: entre a fé cristã
que, enquanto nos mantemos conscientes dos atrativos da nova cultura, jamais e uma ética de disciplina e autocontrole, até de abnegação,de um lado; e entre
devemos subestimar as maneiras pelas quais alguém pode também ser forçado essaética e a ordem civilizacional, de outro. Porém, como descrevi acima, esta
a se render a eles: a comunidade interiorana se desintegra, a fábrica local para, segunda conexão começou a parecer cada vez menos crível para cada vez mais
empregos desaparecem no "eruugamento", o imenso peso da aprovação ou do pessoas.Começou a parecer que a busca da felicidade não só não necessitavade
opróbrio social começa a manifestar-se em prol do novo individuaHsmo. uma ética sexual restritiva nem de uma disciplina, cuja gratificação era protelada,
Assim, a revolução expressionista minou algumas das grandes formas reli-
mas também realmente demandava a transgressão dessaética em nome da au-
giosasda Era da Mobilização: das igrejas cuja exigênciade lealdadeadvém em torrealização. E claro que as pessoasque mais fortemente tiveram essasensação
parte de sua ligação com a identidade política. Até mesmo onde essaidentidade foram predsamente aquelas,para as quais muita coisa dessadisdplina se tor-
permanece forte, a ligação com o espiritual foi rompida para aqueles que se en- nou uma segunda natureza, não necessitando um suporte ético/espiritual forte
contram na nova dispensação pós-durkheimiana. para manterem a si mesmas. Parasurpresa de muitos sociólogos weberianos da
minha geração,os filhos dos anos de 1960e 1970conseguiram ahouxar muito
Porém,não é só isso.A revolução expressivatambém minou o vínculo entre
a disciplina tradicional em suasvidas, ao passoque a mantinham em sua vida
fé cristã e ordem civilizacional. Uma das principais características de muitas das
de trabalho. Não é necessariamentefácil conseguir isso; algumas pessoasnão
formas religiosas da Era da Mobilização descritas anteriormente era o seu forte
logram fazê-lo. Ademais, há ambientes inteiros em que a disciplina ainda é algo
senso para uma vida ordeira e suas tentativas de ajudar/persuadir/pressionar
tão novo e tão distante do seu modo de vida que essetipo de escolhacriteriosa
seus membros a realiza-la. Como indiquei acima, talvez tenha sido inevitável
ainda não é possível. [)avid Martin formu]ou isso assim, ao descrever o avanço
que, à medida que a nova disciplina foi internalizada, a função disciplinado-
do pentecostalismo em todo o hemisfério sul:
ra tenha se tornado menos valorizada, que algumasdas medidas rígidas antes
consideradas essenciais, como a temperança absoluta ou a total observância do No mundo desenvolvido, as permissõese liberaçõespodem ser buscadaspor um núme-
ro bem grande de pessoas,enqualatoignoram a disciplina imposta pela economia, pelo
sábado, pareceriam aborrecedoras aos descendentes daqueles que as haviam menospor um períodobem extensode licença,mas no mundo em desenvolvimentoa
estabelecido.Sempre houve certa resistência aos evangelicais baseada nas ale- disciplina imposta pela economia não pode se evitada. Embora no mundo desenvolvido
gaçõesde que eles seriam puritanos, desdenhariam os esporões,semeadores de você possaaceitar a disciplina para o seu mundo laboral e ignora-la no restante,a disci-
divisão. Caracteres fictícios, como Melquisedeque Uivador e Jabez Foguetório, plina proposta pelo mundo em desenvolvimentodeve move;nar sua vida inteira ou você
fica caído à beira do caminho -- ou cai no crime.S8
de Dickens, assim como Bulstrode, de George Eliot, expressamalgo dessa hosti-
lidade, e algumas vezes havia críticas aos metodistas, por causa de sua insistên-
s7J. S. Mill, On l.íberlyled. pare.: Sobrea liberdade.Trad. Pedra Madeira. Lisboa: Edições 70, 20061;
cia na temperança e no banimento dos esportes dos povoados, por provocarem ver Hugh McLeod, Relfgíolt alia the Peopleo$WesfemEurope,p. 114; Jeffrey Cox, TheEngrisACh achesílz n
rupturas na cultura convivial da comunidade e colocarem as pessoasumas con- Seca/ar Socíefy, p. 275
tra as outras.x Por volta do final do século XIX teve início uma reação mais gene- a8David Martin. Pellfecosfa/íslt7.
Oxford: Blackwel1,2002,p. 14-15.Gertrude Himmelfarb, 0}7eNa-
ffolz, 'RooCz{/furos,apresenta um argumento similar. 'Â.o desacreditar a ética puritana, a contracultura
solapou aquelas virtudes que melhor teriam servido aos pobres. A classebaixa, portanto, é vítima não
%David Hempton. Re/ígíozlalia Po/ética/
Cu/fureíll Brífaít alia /re/a}2d.
Cambridge: Cambridge Uni- só de sua própria 'cultura de pobreza', mas também vítima da cultura da classealta em torno dela
versity Press, 1996, p. 18 e 132-133. O tipo de delinquência casual que um adolescente branco suburbano consegueabsorver com relativa im-
580 Parte I'V! Narratioas de sectltarização
Capítulo 13. A Era da Autenticidade 581

Essaproeza da assunçãoseletiva da disciplina, que pressupõe uma in- lares sendo propostas no lado católico. Essemodo de definir as questões não
teriorização de longo prazo, muitas vezesmultigeracional, é uma condição eradestituída de base no passado; pois asmulheres temiam asconsequências
crucialmente facilitadora da nova postura, embora a revolução expressiva para si mesmas e suas crianças da irresponsabilidade e até da violência mas-
suprissea razão para transgredir as velhas fronteiras. Em outros tempos e culinas. E não é destituído de base em muitos ambientes da época presente,
lugares, essa transgressão por princípio pareceria insana, quase suicida. especialmente no hemisfério sul, como apontou [)avid Martin.u
Agora, onde a ligação entre disciplina e ordem civilizacional foi rompido, Estabelecemos contadoaqui com um profundo desenvolvimento,evi-
mas a ligação entre fé cristã e disciplina permaneceu incontestada, o expres- dente através de todas as fronteiras confessionaisnos últimos dois ou três
sivismo e a revolução sexual conjugada alienou muitas pessoasdas igrejas. séculos,que foi chamado de a "feminização" do cristianismo, sobre a qual
E isso em dois pontos. Primeiro, aquelesque acompanharamas mudanças Callum Brown falou no seu interessantelivro, recentementepublicado."
correntes encontraram-se em profundo desacordo com a ética sexual que as Essedesenvolvimento obviamente tem algo a ver com a estreita simbiose
igrejas vinham propondo. Porém, em segundo, eles se sentem ofendidos no estabelecidaentre a fé cristã e a ética dos "valores da família" e do traba-
seu sentimento de seguirem o seu próprio caminho por aquilo que experi- lho disciplinado, a qual desvalorizou, quando não foi diretamente contra,
mentam como abordagem "autoritária" das igrejas, o que os leva a deixar de os modos de vida militares e combativos, assim como contra as formas de
lado a lei e não esperar por uma resposta. sociabilidade masculina: beber,jogar, exporte, que os afastavadas arenas
As igrejas têm dificuldade em falar com pessoascom essamentalidade. tanto do trabalho quanto do lar. Isso não foi uma questão unicamente para
Falar com elas não quer dizer simplesmente concordar com o que elas dizem. as igrejas; podemos vislumbrar o conflito -- e a ambivalência - refletido na
Temhavido muito exagero,muita ilusão utópica e reaçãoa velhos tabus na sociedade?toda com o desenvolvimento do ideal da sociedade "polida", ba-
revolução sexual,para que isso faça sentido. E, na verdade, de quarenta anos seada no comércio no século XVIII. Até mesmo algumas das figuras intelec-
para cá isso tem ficado cada vez mais evidente para grandes contingentes de tuais que definiram e deram as boas-vindasa essenovo desenvolvimento,
pessoasjovens. (O que não quer dizer que as igrejas não tenham também como Adam Smith ou Adam Ferguson, expressaram suas apreensõesa res-
algo a aprender com toda essatransição.);9 peito dele. Ele poderia levar a uma atrofia das virtudes marciais necessá-
Porém, exatamente como ocorre em face de qualquer agente responsável, rias ao cidadão que seautogoverna. Outros temeram uma "efeminação" do
também aqui aqueles que alegam possuir alguma sabedoria têm a obriga- masculino.'z A feminização da cultura transcorreu paralelamente à femini-
ção de explica-la de modo persuasivo, partindo de onde seu interlocutor se zação da fé.
encontra. A adesão a um código rígido, assim como o sentimento de ser um No contexto cristão, isso se refletiu e mais tarde se estabeleceunuma
grupo combativo de crentes,desenvolvido por meio das posturas defensivas queda da prática masculina relativamente à feminina. "Les hommes s'en
dos últimos dois séculos, torna quase impossível encontrar a fala carreta. vont [Os homens estão indo embora]" soa o ]amento unânime dos pa-
A ruptura foi muito profunda. Como Callum Brown mostrou para o caso dres do Departamentode Ain no séculoXIX,particularmente na segunda
evangelical, a postura ética erapregada com base na ideia de que as mulheres metade.4sEssaausênciamuitas vezes reflete um sentimento de orgulho e
queriam uma vida familiar estável, a qual era constantemente posta em pe- dignidade masculinos,que é visto como incompatível com uma devoção
rigo pela tentação masculina de beber jogar e ser infiel. E vemos ideias simi- tão descontrolada; há algo de "mulherio" nessa espécie de dedicação. Esse
sentimento estava ligado a e era nutrido por uma certa desconfiançaem
punidade pode ser literalmente fatal a um adolescente negro citadino" (p 26) O absurdo naturalmente relação ao poder clerical: o padre (cujo hábito se assemelhava ao de uma
é a atribuição da responsabilidade causal pela pobreza exclusivamente à cultura "permissiva", quando
políticas flagrantemente injustas de distribuição de renda negligenciada ou em retrocesso contribuíram
mulher) talvez tivessedemasiadopoder sobre viúvas e filhas; mas, em con-
tão pesadamentepara a má situação dos pobres norte-americanos trapartida, isso não era nada ruim, porque ele ensinava a elas castidade e
s9E claro que a revolução sexual poderia por si só ser tomada como eixo de uma narrativa mestra
ou relato de subtração,tendo sido frequentementeinterpretadadessemodo nos anosde 1960(ver por
fidelidade, e proporcionava segurança ao chefe masculino da casa.Ao mes-
exemplo, Reich, TheGree7zíng o$Arna'íca).Paralelamente a versõescomo esta:a ciência mostra que a reli- mo tempo, porém, embora fossebom para mulheres, essetipo de aceitação
gião está errada e, uma vez que as pessoasremovem os obstáculosque as impedem de ver isso, elesnão da liderança clerical era incompatível com a independência, que era parte
podem mais voltar atrás; ou esta: o que as pessoasquerem, no final das contas, é autonomia e, uma vez
que elas identificam asfalsasrazõessubjacentesà autoridade, elasnão podemmais voltar atrás; existe
'toMartin, Pelztecosta/ísm, p. 98-106
uma versãopossível: as pessoasdesejam satisfaçãosexual sem controle e,quando virem que isso lhes foi
negado com base em restrições injustificadas, não haverá mais volta. Certamente, é assim que as coisas 41Ver Callum Brown. The Deaf/zof CÀrístía/zBrílaf?t.Londres: Routledge, 2001,especialmente os ca
pítulos4 e 5.
foram percebidas por muitas pessoasjovens, digamos, em Berkeley ou no Bairro Latino, em 1968. Mas
essavisão não serviu muito bem. De fato, a maioria das pessoasrapidamente se deu conta que ascoisas 4z Discuti esse ponto mais extensamente em outra parte, em meu livro À4oder/z Sacia/ .rmagz}7aríes.
Durham: Duke University Press,2004.
sãobem mais complicadas.
43Philippe Boutry. Prêfres et Parofssesalz paus du ctlré d'Ars. Paris: Cera.1986, p. 578.
Capítltlo :t3. A Era da Atitenticidctde 583
582 Parte IV: Narrativas de secularização

crucial da dignidade masculina. Obviamente essaatitude podia propiciar Hoje, porém, já ultrapassamosclaramente esseslimites. As pessoasnão
um ponto de acessoao anticlericalismo filosófico dos republicanos.a só experimentam largamente antes de se estabelecerem como casal estável,
como também formam casais sem se casar; adicionalmente, elas estabelecem,
Porém, a presente revolução sexual no Ocidente pâs em questão todo o qua-
dro do masculino e feminino, sobreo qual repousavaessacompreensãode or- em seguida rompem, depois restabelecem essasrelações. Ora, nossosances-
dem civilizacional. Ela trouxe consigo uma gama de posições feministas e, para trais camponeses também se envolviam numa espécie de "monogamia em
muitas delas, as mulheres deveriam reivindicar para si mesmas o mesmo direito série", mas, em seu caso, as uniões anteriores eram sempre rompidas pela
de exploração sexual e satisfação desimpedida que anteriormente era tida como morte, enquanto, no nosso caso, é o divórcio (ou no caso dos parceiros não
central pma o desejo masculino. Isso cortou pela raiz a base conceitual da ética até casadosa mera mudança de casa)que acaba com elas."
ali dominante. Dito numa frase regada de um relatório da Igreja da Escóciasobre Há aqui algumacoisa muito profundamente em desacordocom todas as
a questão, publicado em 1970:"0 problema real aqui é a garota promíscua".a formas de ética sexual -- seja da tradição popular ou da doutrina cristã - que
É claro que nem todos concordam com essaforma de descrevero desejo fe- viam a estabilidade do matrimónio como essencialpara a ordem social.Porém,
minino. Porém,isso revela uma nova incerteza quanto àsformas de identidade issonão é tudo. Os cristãosviram a sua fé como essencialpara a ordem civiliza-
das mulheres -- equiparada a uma incerteza correspondente entre os homens cional, mas essanão foi a única fonte da ética sexual que dominou o moderno
Não é possível discorrer sobre a questãoda ética sexualsem se envolver com cristianismo ocidental. Houve também fortes imagens de espiritualidade, que
essasquestões. sacralizavam imagens particulares de pureza sexual. Podemos constatar o
seu desenvolvimento no início do período moderno. John Bossyargumen-
ló] Assim, as gerações que se formaram na revolução cultural dos anos sessen- tou que, na compreensão medieval dos sete pecados capitais, os pecados do
ta do século passado estão, em alguns aspectos, profundamente alienadas de espírito (orgulho, inveja, ira) eram consideradosmais graves do que os da
qualquer modelo tradidonal forte da fé cristã no Ocidente. Já constatamos como carne (glutonaria, luxúria, indolência; a avareza poderia figurar em qualquer
elas são refratárias à disciplina sexual que faz parte da boa vida cristã, como a en- das duas colunas). Porém, durante a Reforma católica, a ênfase recaiu mais e
tendiam, por exemplo, no século XIX, os reavivamentos evangelicais nos países mais na concupiscência como o obstáculo crucial à santidade.w
de fala inglesa. De fato, a guinada contemporânea vai além de apenas repudiar Antigo talvez fosseencarara ética sexual pelo prisma da impureza e
essespadrões muito elevados. Até as limitações que geralmente eram aceitas pe- da pureza. "[)isso advém a interdição do casamentodurante a primave-
las comunidades camponesastradicionais, que as minorias clericais sempre con- ra e em outras estações,a doutrina de que o ato sexual entre os cônjuges
sideraram terrivelmente permissivas e que estavam sempre tentando melhorar, sempre constituiria pecado venial, a purificação da mulher após o parto,
até essasforam postas de lado por um grande contingente de pessoasem nossa a preocupaçãopeculiar com a sexualidadedos padres."" A era moderna
sociedade hoje. Por exemp]o, o c]ero costumava desaprovar o sexo pré-marital parece ter espiritualizada a noção subjacente de pureza, transformando-a
e ficava consternado quando os pares vinham buscar o matdmõnio já esperan- na principal via de acesso(ou seu oposto: o principal obstáculo)à nossa
do uma criança.Porém, embora considerassembem normal testaras coisas.de aproximação a Deus.
antemão, particularmente para estar certo de que os casaispoderiam mesmo Podemos pensar a Reforma católica e em particular na França, nos termos
ter filhos, essasmesmas comunidades camponesasassumiam como obrigatório usados por mim neste estudo, como uma tentativa de inculcar uma devoção
confirmar a união com uma cerimónia. Aqueles que tentavam andar fora desses profunda e pessoala Deus (mediante Crista ou Mana) em cada pessoa(po-
limites eram obrigados a andar na linha por meio de forte pressãosocial,chari- tencialmente); além disso, como uma tentativa que seria posta em prática
varis ou "rough music"'.a principalmente pela atuaçãodo clero, que pregaria, persuadida, induzida,
voltaria sua atençãopara essaorientação nova e mais elevada e a retiraria das
u Id., ibid., parte 111,
capítulos l e 4. Também há discussõesinteressantesdesse gênero detalhadas na formas tradicionais, comunitárias, pré-axiais do sagrado. Se colocarmos isso
prática in: Hugh McLeod. Seca/arlzatíonand the PeopleofWesfenrEifrope.Oxford: C)xford University Press,
como a meta, podemos imaginar várias maneiras de como se poderia tentar
1997,p. 128; in: Leonore Davidoff e Catherine HaU..Ea17zíly Fortuitas.Londres: Roudedge, 1987, capítulo
2; e in: Thomas Kselman. The Varieties of Religious Experiente in Urban France,in: Hugh McLeod(Ed.) realiza-la. Poder-se-ia pâr forte ênfase em certos exemplos de santidade, na
Europc'airRe]fgo/i ín rheAge ofGrc'at Cifies, ]830-]930. Londres: Roulledge, 1995,capítulo 6 esperançade despertar o desejode segui-los.Ou então o principal impulso
'; .4plídBrown, Deathof Chrisfialt Brífaín, p' 180
NdoT: trata-se de uma "cacofonia rude", algazarra com instrumentos musicais,incluindo "panela-
Grace Davie. Re/lgíozt ílz Moderlz Etlrope. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 63-64
ços", com ou sem ritual mais elaborado, visando em geral dirigir zombarias eprotestos contra indivíduos
'BJohn Bossy. C/zrisffanf]y ín f/ie West, ]400-Z700. Oxford: Oxford University Press, 1985, p. 35; Ralph
que desrespeitam certas normas da comunidade, especialmentena área sexual ou conjugal. Cf. ilustra-
Gibson. A Social Hísfory ofFrenc/z Cafho]ícisr?r ]789-]9]4. Londres: Routledge, 1989, p. 24
çãoem http:/7en.wikipedia.org/wiki/Rough.music.
+9Bossy, Cbdsffa71iy ílí f/ze West, p. 37.
%Ver Yves-Made Hilaire, UrzeC/trél'íelttéal{ X/Xe Sfêc/e?.
Lille: PUL 1977,volume 1, p. 74-80.
584 Parte IV; Narrativas de secularização Capítulo 13. A Era da Autenticidade 585

poderia consistir em levar as pessoaspelo medo a se conformarem mínima pecados capitais ou ao menos fazer tudo o que for necessário para conseguir
mente. E claro que as duas maneiras foram tentadas, mas o peso acachapante a remissão desses pecados.
recaiu sobre a via negativa. Isso, na verdade, fazia parte de todo o processo O que emerge disso tudo é o que podemos chamar de "moralismo", isto é,
de reforma desde a Idade Média alta. Jean Delumeau falou de "la pastorale a importância crucial dada a certo código em nossas vidas espirituais. Todos
de la peur ja pastoral do medos".se nós deveríamos nos aproximar mais de Deus, mas um estágio crucial nesse
Talvez devêssemosencarar isso como algo dado, particularmente na caminho até ele é a conformidade mínima com o código. Sem isso, você não
medida em que a tradição recua a um tempo muito anterior ao período se encontra nem no ponto de partida, por assim dizer, dessajornada crucial.
moderno. Mas talvez também possamos vê-lo como inseparável da própria Você ainda não está nem participando do jogo. Talvez esta não seja uma vi-
empresareformista. Se a meta não for simplesmente fazer com que certas são fácil de coadunar com uma leitura do Novo Testamento,mas não obs-
formas de espiritualidade continuem a brilhar e atrair o maior número pos- tante ela alcançou uma espéciede hegemonia em vastas extensõesda Igreja
sível de pessoas para eles; se a meta for realmente renovar cada pessoa (ou cristã na Era Moderna
cada pessoaque não estiver correndo para a condenação),então talvez o Essavisão acabacolocando toda a ênfase sobre o que nós deveríamos
único jeito do qual se possa esperar que produza essetipo de movimento fazer e/ou sobre o que deveríamos crer em detrimento do crescimento espi-
de massa seja o de apostar pesadamente na ameaça e no medo. Esse com ritual. A Irmã Elisabeth Germain, analisando um catecismo representativo
certeza foi o padrão que já bem cedo foi estabelecido no processo de refor- amplamente usado no século XIX, conclui que
ma, na missão predicatória dos frei itinerantes do séculoXIII. a moral assumiu a primazia sobre todas as demais coisas e a religião tornou-se sua serva
A ironia foi que, onde a liderança clerical realmente logrou transformar A fé e os sacramentosnão são mais entendidos como a base da vida moral, mas como
a comunidade, a razão foi a santidade pessoalde quem estava no cargo e deveres a serem cumpridos, como verdade! que devemos crer e como meios que nos
não pela exposição que fazia dos horrores do inferno. Na seção anterior, auxiliam a cumprir essasobrigaçõesmorais."

mencionei o caso do cura de Ars. Mas, como eu disse ali, não se pode es- Ora, pode-se ter uma reforma promovida pelo clero, potencializada pelo
perar que haja um Jean Vianney em cada paróquia. Se a meta for comover medo da condenação,do que resulta o moralismo, sendo que o código, em
toda e qualquer pessoa,até mesmo por meio de agentes espiritualmente torno do qual isso se cristaliza, pode não obstante assumir diferentes for-
inexpressivos,então o medo é a melhor aposta. mas. As questões centrais poderiam ser as da caridade uersils agressão, ira,
Cito um pregadormissionário do tempo da Restauraçãona França: vingança; ou um vetar central pode ser essaquestão da pureza sexual. Uma
Logo soará a hora de vossa morte; continuem a tecer asvossasdesordens;afundam-vos vez mais, ambas estão presentes, mas com uma ênfase surpreendentemente
cada vez mais na lama das vossasvergonhosas paixões; insultamcom a impiedade do forte na questão sexual.Vimos anteriormente que, em certo sentido, a ênfase
vosso coração a Ele que julga até mesmo o justo. Logo caireis sob os golpes impiedosos
da morte e asvossasiniquidades serão mensuradaspelos terríveis tormentos que nessa foi deslocada nessadireção com a reforma católica. Não é que os pecadosde
hora vos serão infligidos." agressão,violência e injustiça tenham sido negligenciados.Pelo contrário.
O que ocorre é simplesmente que o código, a definição do que seria o ponto
uma vez que se toma essecaminho, alguma outra coisa decorre dele.
de partida, era extremamente rígido em assuntos sexuais. Havia pecados ca-
A ameaça precisa estar associada a falhas definidas muito claramente. Faça
pitais também em outras dimensões, como, por exemplo, homicídio, e havia
isto, senão (a condenação será a consequência). Esse"isto" deve ser clara-
muitos no domínio das normas da Igreja (faltar à missa, por exemplo); mas,
mente definível. E claro que houve períodos, particularmente no contexto teo-
você poderia ir bem longe na atitude injusta e dura na sua maneira de lidar
lógico calvinista, em que, em última análise, permanecia incerto se alguém
com subordinados e outras pessoas, sem incorrer na exclusão automática que
realmente havia sido escolhido por Deus. Porém, como ressaltou Weber, é
decorria da licenciosidade sexual. O desvio sexual e não escutar a Igreja pa-
uma dificuldade com a qual não se pode conviver e muito cedo certos sinais
reciam ser os principais domínios em que espreitavam os responsáveispela
de eleição acabaram se cristalizando, não importando a falta de garantia teoló-
exclusão automática. Por essa razão, dava-se saliência extraordinária à pure-
gica.No contexto da reforma católica, os padrões relevantesnão são os sinais
za sexual a par com a obediência.
de eleição, mas a conformidade mínima com as exigências de Deus: evitar os
Daí o alarde tremendamentedesproporcional (assim nos parece)que o
clero fez na França do século XIX a respeito de banir a dança, depurar os res-
H Jean Delulneau. Le Péc/lé et .la Petír. Paras: Fayard, 1983 [ed. porá.: O pegada e o lrieda; a culpabl'/]zação
}zoOcídellte(sécll]os13-]8). Trad. Alvará Lorencini. Bauru: EDUSC, 2003, 2v.]; também Gibson, A Soca/
HÍsfory, P. 241ss. :E. Germain. Pnr/erdt{sa/uf?.Paras:Beauchesne,1967,p. 295; citado e acompanhado de uma discus
5: .AptzdGibson, Á Soca/ .fj'isto/', p. 246. são muito interessante em Gibson, A Socfa/ Hlsfory, p. 244.
586 Pa?"te
IV Narrativas de secularização

rivais populares e coisas do gênero. (Naturalmente há analogias entre evan-


gelicais em países protestantes.) Recusava-se a comunhão ou a absolvição a
T Caoítuto 13. A Era da Atltenticidade

a comunhão e irados com a bisbilhotice


em número cada vez maior".s3
do clero, eles abandonaram a Igreja
587

pessoasjovens, a não ser que renunciassema tudo de uma vez. Em certos


momentos, a preocupação com essaquestão se mostrou obsessiva. A fim de entender melhor a disparidade em questãoaqui, pode ser útil
Não posso fingir ser capaz de explicar isso, mas talvez um par de consi- rever algumas das característicasda revolução sexual, às quais até o momen-
derações possam situar a questão em seu contexto. A primeira é a pacificação to apenasrecorri de modo global. Ela também tem uma história prévia, da
da sociedademoderna, discutida por mim em capítulos anteriores;o fato é qual já evoquei alguma coisa. Podemos até estender essahistória por séculos
que o nível da violência doméstica cotidiana, causadapor bandoleiros, rixas e tomar como ponto de partida certos ensinamentos católicos medievais que
familiares, rebeliões, rivalidades entre clãs e similares sofreu um declínio en- olhavam de soslaio para o prazer sexual, até entre pares casadosno processo
tre os séculosXV e XVI. A medida que violência e ira se tornaram realidades de procriação. Em contraposição a isso, os pensadores da Reforma reabilita-
menos determinantes da vida, a atenção pôde ser deslocada para a pureza. ram o amor marital como um bem em si mesmo. O "conforto mútuo" propor-
A segunda consideraçãoé a observaçãoóbvia de que a abstinência sexual cionado pelo casamentoincluía o intercurso sexual, ao qual essaexpressão
constituía um fato central da vida para um clero celibatário. Por isso, talvez conferia uma avaliação positiva. Porém, o objetivo primeiro do sexo ainda
não haja nenhuma surpresa no fato de darem tanta importância a ele. era a procriação. Alas "não naturais" eram aqueles que irrompiam sem qual-
De qualquer modo, essacombinação de reforma clerical a partir de cima, quer propósito procriador. Por essasrazõese porque podiam dissuadir-nos
moralismo e repressão da vida sexual estava claramente fadada a entrar em de centrar nossasvidas em Deus, o lado sensual ou erótico era considerado
conflito com a modernidade em desenvolvimento,que foi descrita nestas perigoso e questionável.s'
páginas. Em dado momento, a ênfase na responsabilidadee liberdade in- Uma visão análogaganhou muita força na eravitoriana, tanto na Inglaterra
dividuais se atravessou no caminho das exigênciasdo controle clerical. E as quanto na América do Norte. O sexo destinava-se a unir o casal.Sexo é saudável
reaçõespós-românticascontra o disciplinamento da modernidade. as ten- e por isso o prazer está assodado a ele, mas o prazer não deveria ser seu principal
tativas de reabilitar o corpo e a vida para as sensações,passariam, em dado objetivo.ssDe qualquer modo, essa compreensão se encontrava inserida numa
momento, a ser o combustível da reação contra a repressão sexual. moldura muito diferente. Elanaturalmente ainda era consideradauma doutrina
Essastensõesjá eram evidentesantes da metade do século XX.Men- cristã.Porém, ela era justificada também e principalmente nos termos da ciência.
cionei anteriormente o declínio na prática devocional masculina em rela- Os especialistasmédicos e suasideias de saúde eram tão ou mais importantes do
çãoà feminina a partir do final do séculoXVIII.Uma explicaçãocomum que os teólogos com suasnoções sobre a vontade de Deus.
que mencioneinaquela oportunidade evocavaimagens do orgulho e da Podemos observar aqui um desenvolvimento decorrente da virada cru-
dignidade masculinas. Porém, podemos também chegar ao mesmo fenó- cial ocorridanos séculosXVll e XVITT e descritapor mim anteriormente:a
meno vindos de outra direção, sublinhando que essecódigo sexual rígido equipaçãoda vontadede Deus para nós com a concepçãoreinantede flo-
atacavafrontalmente celaspráticas masculinas,particularmente o estilo çle rescimentohumano, naquele casodefinido pela Ordem Moral Moderna.
vida rufianesco dos homensjovens. E, indo mais a fundo, pareceque a Deus projeta a Natureza e faz isso tendo em mente o nossobem. I'or isso, a
combinação de repressão sexual e controle clerical, como era percebido na sua vontade pode ser lida a partir desse projeto. Colocandoa nós mesmos
prática da confissão,afastava os homens. O controle clerical afrontava o em sintonia com o seu funcionamento benigno, obedecemos à Sua vontade
seusentimento de independência, e isso tornou-se duplamente intolerável Locke argumenta dessa maneira em seu livro Tufados sobreo goz;er/TO cíufZ
quando essecontrole assumiu a forma de escancarara faceta mais reserva- O avanço da ciência abre o caminho para a naturalização, a medicalização
da e íntima de suas vidas. Daí a imensa resistência à confissão em pratica- da ética sexual, sem que haja qualquer sentimento de que isso estivessede
mente qualquer período e a busca por confessar, caso necessário, não ao seu alguma forma afastando a fé.
próprio cura, mas a um sacerdotevisitante em missão que não o conhecia Porém,as concepçõesque formam o pano de fundo sãobem diferentes.
pessoalmente.Como formulou Delumeau, "la raison principale des silen- Para os puritanos, o ordenamento correio de nossas vidas sexuais somente
ces volontaires au confessionnal fut la honte d'avouer des péchés d'ordre
sexuel [a razão principa] dos silêncios vo]untários no confessionário foi a s] Gibson, A SocialHísfary, p. 188; Delumeau, l,e Péchéet la Pelar,capítulo 17, p 517-519,525 [ed
porá.: O pecadoe o }7zedo;a ctzZpabílízação
}lo Ocíde7?fe(sécu/os13-.28).Trad. Álvaro Lorencini. Bauru
vergonha de revelar os pecados de ordem sexualJ". Ocasionalmente, essa EDUSC,2003,2v.]
tensão fez homens se afastarem do confessionário; Gibson descreve a se- s'John D'Emilio e Esther B. Freedman. Infflnate À nffers. New York: Harper & Row, 1988,p- 4; e Ste
ven Seidman. R0/71alzl'íc
Lolzgz?lgs.
New York e London: Routledge, 1991,p. 23-24
quela disso no século XIX nos seguintes termos: "impossibilitados de tomar s5Seidman, Rolnalífíc l.oltgzll8s, p. 26-27.
588 Parte IV Nalrntioas de secularização Capítulo 13. A Era da Autenticidade 589

sedará com a graça e a santificação. Não é algo que possaser alcançado pela o componente cognitivo da prática da virtude.s' Isso se torna possível com a
pessoa comum, não desviante ou não depravada. (De modo paralelo, pode- nossa ciência moderna, construída como conhecimento de um domínio ob-
se dizer que a ética antiga baseadana natureza era concebida de modo a jetificado, como é o casode nossa medicina ocidental contemporânea. Ainda
propor uma perfeição que não poderia ser alcançadapela vasta maioria dos mais evidente é o fato de que, na cultura moderna, esserecurso ao conheci-
sereshumanos comuns; é por isso que classesinteiras de pessoas:não hele- mento objetificado começaa suplantar a ética. Do ponto de vista utilitarista,
nos, escravos, trabalhadores, mulheres, não eram realmente candidatas à vir- por exemplo, o conhecimento/a perícia necessáriapara fazer o cálculo que
tude.) Contrastando com isso, a visão medicalizada nos oferece um quadro revelará a ação carreta seencontra bastante desconectado/ada motivação da
de saúde que deve poder ser alcançado pela média das pessoas, exceto por própria pessoa em relação ao bem. Esseé o tipo de conhecimento que pode
algum terrível defeito natural ou por algum exercíciodepravado. O ponto permitir que a má pessoa cause dano, da mesma forma que permite ao agen-
em que, digamos, as exigências do bem e nossasvidas sexuaisse encontram te bem-intencionado fazer o bem. Esseé precisamente o tipo de conhecimen-
deveria estar bem aqui na vida cotidiana e não no final de uma transforma- to que Aristóteles colzfrasfol{com a sabedoria prática (#ónesís).Analogamente,
ção que nos leva para além do florescimento ordinário. para muitos neokantianos contemporâneos,pode parecer que o que você
Assim, o século XIX medicalizador necessitava explicar por que a satisfação precisaé a perspicáciapara acompanhar a lógica de um argumento, que é
sexual normal não era assim tão difundida, embora essanecessidade poderia outra capacidade que parece ser dissociável da noção moral
muito bem estar oculta atrás da grande dose de reticência e acobertamento Nem é preciso dizer que essaênfase na perícia objetificada em detrimen
que envolvia a vida dos respeitáveis.Porém,quando se encaravaa questão to da noção moral é a licença para novas e mais poderosasformas de pa-
grande peso era atribuído ao exercício depravado (evidente nos imigrantes, ternalismo em nosso mundo. Quem ousa discutir com a "ciência", seja ela
nos nativos da colónias, na classetrabalhadora etc.) e, também, à medida que transmitida por médicos, psiquiatras, ou por economistas visitantes do Fun-
se avançava século adentro, de modo mais ominoso a supostas diferenças de do Monetário Internacional que Ihe dizem para reduzir a assistênciaà saúde
raça. Haveria certos "tipos degenerados" e certas raças inferiores. a fim de atingir o "equilíbrio" fiscal?
Ainda estamos convivendo com as consequências dessa omissão da vir- Mas, então, retornando à nossa história, pelas mãos de certos escritores
tude, da saúde e até da santidade, contrapondo-se conjuntamente ao vício, à da virada do século, a "ciência" mesma começou a romper a aliança com a
enfermidade e ao pecado. Por um lado, isso pode gerar a aura moral negativa religião. Para pensadores como Freud, Havelock Ellas,Edward Carpenter, a
que envolve a enfermidade, ou seja,a noçãode que aquelesque sofrem de satisfaçãosexualera ou boa em si mesma ou, no mínimo, vista como uma
câncer devem de alguma forma levar a culpa por isso, contra o que Susan força virtualmente irrefreável. Isso serviu de alimento para uma contracul-
Santas protestou com tanta veemência.K Os saudáveis sentiam uma bonda- tura, na qual algumas correntes encararam a sexualidade como uma forma
de moralmente matizada, e os enfermos, um mal-estar maculado pelo vício. de libertação dionisíaca da disciplina e da repressão. Por volta do início do
Estamosjá muito distantes da percepção cristã mais antiga da doença como século XX, tudo isso se associou a novas condições sociais, principalmente
/Deusde sofrimento que traz Cristo e, portanto, o restantede nós,para perto nas cidades, em que as pessoas jovens podiam sair em pares sem supervisão.
de quem sofre. A década de 1920tomou ciência de uma nova espéciede liberdade, desfru-
Além disso, há uma diferença crucial entre saúde como concebidapela tada pelas pessoasjovens, particularmente pelas mulheres, que assumiu a
medicina moderna e as noções mais antigas (e acho que mais profundas) de forma de sensualidade desconectada de casamento ou procriação.
virtude. No casoda saúde,o que se requer para a plenitude da excelênciaé Tudo isso implicou: (a) uma suspensãohesitante do antiquíssimo avilta-
repartido em dois aspectos.Há um componente cognitivo e um componente mento da sensualidade (ao menos nos círculos de gente branca de classemé-
prático. Eles podem, porém, residir em pessoasbem diferentes. O especialis- dia) e (b) uma afirmação hesitante do desejo das mulheres (frequentemente
ta pode estarlevando a mais "malsã" das vidas semdeixar de se.respecialista, negado no auge do período vitoriano) e do seu direito de igualmente buscar
ao passo que o paciente consciencioso, que está(assim esperamos)cheio de o prazer. Isso naturalmente continuava sendo perigoso, porque as mulheres
saúde, entende muito pouco das razões pelas quais o seu regime é uma coisa ainda tinham de carregar o peso maior de quaisquer consequênciasnegati-
boa. Encontramo-nos em um universo diferente daquele, digamos, da ética vasda gravidez.
aristotélica, na qual um conceito como a "frenesis" não nos permite separar Se avançarmos rapidamente para os anos sessenta do século passado,
naturalmente deveremoslevar em conta novos fatores sociais:as mulheres
H Sugar Sontag, lrlness asÀfelapbon New York: Picador. 2001led. pare.: Doença como17rerííáol'a/
.'UDS
esuasrnefáÁoras.
Trad. por Paulo Henriques Britto e Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia. das Letras, 20071 57Efíca, livro 6
590 Parte iV: Narrativas de secularização 591
CapítLLto
.13.A EradaAutenticidade

como força de trabalho, a revolução contraceptiva e outros. Porém, exata- relaçõesamorosasde longa duração entre parceiros iguais, que em muitos
mente como fiz anteriormente, o meu interesse aqui é articular as mudanças casostambém quererão se tornar pais e mães e criar suas crianças com amor e
éticas desse período, mais do que enumerar as causas facihtadoras. Quais em segurança. Essasformas, no entanto, não podem simplesmente ser idên-
foram as tendências principais dessa revolução? ticas aos códigos do passado, na medida em que estes estavam associados,
Na verdade, havia uma que era caracterizada por um hedonismo supos- por exemplo, com o aviltamento da sexualidade, o horror ao dionisíaco, os
tamente sofisticado, aqueceassociadocom a revista P/ayboy.]'orém, os traços papéis fixos de gênero ou a recusa a discutir questões de identidade. O trági-
principais associadoscom os movimentos estudantis e jovens foram quatro: co é que os códigos que asigrejas querem urgir àspessoasainda padecem(ao
(1) a continuidade e radicalização do ponto (a) acima, a reabilitação da sen- menos assimparece) de um ou mais, às vezes até de todos essesdefeitos.
sualidade como um bem em si mesmo; (2) a radicalização de (b): afirmação A inépcia se torna ainda mais irremediável pela infeliz fusão da ética se-
da igualdade dos sexose, em particular, a articulaçãode um novo ideal, em xual cristã com certosmodelos da ética "natural", inclusive em termos médi-
que homens e mulheres se associavam como parceiros, libertos dos seus pa- cos. Isso não só torna difícil de redefini-la, mas também encobre a visão para
péis de gênero;s' (3) um senso difundido para o sexo dionisíaco, até mesmo o quanto essaomissão é contingente e questionável, quão pouco ela pode ser
transgressivo", como sexo liberador; e (4) uma nova concepçãoda sexuali- justificada como intrínseca e essencialmente cristã. Uma vez mais, a identi-
dade pessoal como parte essencial da identidade pessoal, a qual não só em- ficação da vontade de Deus com alguns supostos bens humanos, própria do
prestou um significado adicional à liberação sexual,mas também tornou-se a século XVlll, opera como um grande mecanismo de secularização (engen-
base para a liberação homossexual e a emancipação de toda uma miríade de drando secularidade2).
formas de vida sexual antes condenadas.s9
O efeito repelente dessavisão fusionada chegou claramente ao seu má-
Tudo issomostra que a revolução sexualfoi parte integral dos anos ses- ximo na Era da Autenticidade com uma cultura popular muito difundida,
senta, como os defini anteriormente; isto é, que ela foi movida pelo mesmo na qual autorrealização individual e satisfação sexual estão entrelaçadas.
complexo de ideias morais, em que descobrir a própria identidade autêntica A ironia dissoé que essaalienaçãotem lugar justamentequandotantas
e exigir que ela seja reconhecida(traço 4) estavaligado com os objetivos da características do complexo clerical da reforma foram postos em questão
igualdade (traço2) e da reabilitaçãodo corpo e da sensualidade,a superação no Vaticanoll. Inquestionavelmente
o clericalismo,o moralismoe a pri-
das divisões entre mente e corpo, razão e sentimento (traços l e 3). Não po- mazia do medo foram amplamente repudiados. Outros elementos desse
demos simplesmente tratar isso como uma eclosãode hedonismo, como se complexo foram discutidos com menos clareza. Não está claro se todas as
sua definição total coubesseno discurso de Hefner e da P/ayboy. consequências negativas do próprio impulso reformador com sua constan-
Porém,exatamentecomo ocorreu acima, o fato de haver aí um ideal in- te tentativa de expurgar a religiosidade popular de seus elementos "não
terconectadonão teve nenhum efeito garantidor de sua realização.As duras cristãos" foram propriamente entendidas. Certas tentativas de reforma na
descontinuidadese os graves dilemas que acossama vida sexualhumana e América Latina, empreendidas após o Vaticano ll e no seu espírito, como
que grande parte da ética tende a ignorar ou minimizar devem sefazer ouvir: aquelasenvolvendo a "teologia da libertação", parecem ter repetido o ve-
a impossibilidade de integrar o dionisíaco num modo de vida continuada, a di: lho padrão da "descristianizaçãoclerical", depreciando e banindo cultos
ficuldade de confinar o sensual dentro de uma relaçãocontinuada realmente
populares e alienando muitos dos crentes, alguns dos quais ironicamen-
íntima, a impossibilidade de evitar de todo os papéis sexuaise os grandes te -- voltaram-se para igrejas protestantes da região, que conferiam mais
obstáculospara redefini-los, pelo menos no curto prazo- Sem mencionar que espaçoao miraculoso e ao festivo do que os "libertadores" progressistas.':
a celebração da liberação sexual consegue gerar novas maneiras, pelas quais Uma reviravolta estranhados eventos,que surpreenderia Calvino, casoele
homens poderiam objetificar e explorar mulheres." Um grande número de retornassel Quanto à questão da moral sexual, as tentativas de revê-la em
pessoas descobriu que, junto com a liberação, havia perigos em descartar os conexãocom a questãodo controle de natalidade foram abandonadasnum
códigos dos seus pais. ataquede nervosclericaisem torno da "autoridade" da Igreja.
De qualquer modo, com ocorreu na discussãoanterior, uma vez mais te-
De fato, a presente posição do Vaticano parece querer manter o moralismo
mos de reconhecer que a paisagem moral se modificou. Pessoasque passa-
mais rígido no campo sexual, não relaxando nada das regras, com o resultado
ram pela sublevaçãodevem agora encontrar formas que possam permitir
de que às pessoascom vidas sexuais"irregulares" serão (supostamente)nega-
s Beth Bailey. Sexílí f/zeHeart/ai7d.Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1999,capítulo 8.
dos automaticamente os sacramentos,ao passo que mafiosos ainda não sen-
59Seidman, R0}7ra/tl'ícLongzligs, capítulo 5.
n D'Emilio e Freedman, /}zfí}77afeÀ4/zfters, p. 312ss.; Seidman, R0/7«zazltíc
Longa/7gs, capítulo 5. David Martin, Pelltecosfa/fsm,
p. 21
592 Parte !V; Narrativas de seca{arização

tenciados, para não falar em latifundiários impenitentes no Terceiro Mundo


e aristocratasromanos com suficiente influência para arranjar uma "anula-
ção", não têm impedimento algum.
Porém, embora as mudanças de rumo assumidas no Vaticano ll tenham
sido incompletase sejam seguidascom hesitação,ele relativizou claramen-
te o velho complexo clerical reformista. Ele abriu um campo em que você Capítulo 14
não precisaser profundamenteversadona históriada Igreja para ver que
a feição espiritual dominante nos séculosrecentesnão é normativa. O que
não quer dizer que toda essaespiritualidade, aspirando à plena devoção a
Deus e repleta de abnegação e uma forte imagem de pureza sexual, tenha Religião hoje
sido, por sua vez, condenada. Isso seria um modo reformista clerical de li-
dar com o complexo clerical reformistasEstáclaro que houve e há hoje vo-
caçõescelibatárias extremamente fecundas em termos espirituais e muitas
delas estão centralmente ligadas a aspirações de abstinência sexual e pureza. [7] Assim, as formas religiosas dominantes da Era da Mobilização foram
Somente se repetiria o erro dos reformadores protestantes ao mudar de posi- desestabilizadas pela revolução cultural corrente, exatamente assim como
ção e deprecie-las. A característica fatal do clericalismo reformista, que ergue aquelasdo atlcíelzrégzmeo foram pelo início da Era da Mobilização. As for-
barreira tão grande entre a Igreja e a sociedade contemporânea, não é a sua mas dos dois últimos séculossofreram um duplo revés: de um lado, um
espiritualidade animadora; se há alguma coisa de que o nosso mundo está solapamento das igrejas conectadascom fortes identidades nacionais ou
inundado então são as imagens exaltadas da satisfação sexual e por isso ele minoritárias e, por outro lado, um estranhamento em relaçãoa muitos as-
tem necessidadede ouvir a respeito de caminhos de renúncia. O escorregão pectos da ética e do estilo de autoridade dessasmesmas igrejas.
foi tornar essaabordagem da sexualidade obrigatória para todos e cada um, Podemos até falar de um triplo revés, se pensarmos no modo como a in-
mediante um código moralista que fez de certo tipo de pureza a condição serção neodurkheimiana da religião em um Estado e seu papel de suporte
básica para relacionar-se com Deus através dos sacramentos. O que une os fa- principal da moral civilizacional, especialmentequanto a sua ética sexual,
interferem na família
zedores de regras do Vaticano e as ideologias secularistas na incapacidade de
enxergar é que há mais maneiras de um cristão católico do que ambos jamais O caso mais conhecido dessa dupla inserção talvez sejam os EUA,
imaginaram. E, no entanto, não deveria ser tão difícil de captar isso.Até mes- particularmenteno período imediatamente posterior à guerra, por-
mo durante aquelesséculosem que a visão clerical reformista dominou as que essefoi um tempo em que o patriotismo, a religião e o sensopara
diretrizes pastorais, sempre estiveram presentes também outros caminhos, os valores familiares dos norte-americanos pareciam estar marchan-
representadas às vezes pelas figuras mais proeminentes, incluindo (para per- do em perfeita ordem unida. Em contrapartida,as novas oportuni-
manecer na reforma católica francesa) São Francisco de Sales e Fénelon, para dades que se ofereciam a um amplo segmento da população de viver
não falar de Pascal,que apesar de dar consolo aos que barganhavam com o em plenitude a vida da família nuclear nos subúrbios em crescimen-
medo, ofereceu uma visão incomparavelmente mais profunda. to eram vistas como realizaçãodo sonho norte-americano.O que a
Porém, enquanto essa imagem monolítica dominar o cenário, a mensa- América do Norte estava fazendo era franquear esse tipo de opor-
gem cristã como veiculada pela Igreja Católica não será facilmente escutada tunidade, no qual, em dado momento, todos poderiam prosperar.
em vastas regiões da Era da Autenticidade. Mas estastampouco serão muito O fato de a vida no subúrbio ter parecido a tantas pessoascomo o auge
receptivas a um secularismo estreito. da prosperidade faz sentido se nos perguntarmos de onde elas vieram
Algumas, especialmente imigrantes recentes, têm um passado de den-
sa inserção em famílias estendidas e redes de parentesco, em relação às
quais o novo estilo se assemelhavaa uma libertação, e ainda alinhava as
suas vidas com um modelo consagrado pela sociedade norte-americana
estabelecida.Para outras, essavida havia sido retardada pela pobreza e
pelos perigos que rondam a pobreza: desemprego, falta de disciplina, be-
bida. Elas agora ao menos haviam ganho respeitabilidade.Além disso,
Capítttto14.Religiãohoje 595
594 Parte IV: Narratipns de secularização

da Era da Mobilização. Isso nos propicia o lado negativo, aquilo que nossa
essaspessoas estavam emergindo de uma depressão catastrófica e de uma
guerra mundial, e parecia que finalmente campos verdejantes se abriam presente situação não é. Porém, deveríamos também preencher mais o lado
diante delas. da caracterizaçãopositiva. Como é a vida espiritual que emerge da revolução
Essetipo de prosperidade era tão central para o modo de vida norte- expressiva com sua ética sexual modificada?
americano quanto a religião. Esta podia ser vista como seguidora do desígnio Muitas pessoasjovens têm seguido como que os seuspróprios instintos
de Deus, e a América do Norte como nação foi especialmente fundada para espirituais, mas elas estão à procura do quê? Muitas estão"à procura de uma
realizar essedesígnio. Os três lados desse triângulo se sustentavam reciproca- experiênciamais direta com o sagrado,por uma maior imediatez, esponta-
mente: a família era a matriz, na qual os jovens eram criados para serem bons neidade e profundidade espiritual", nas palavras de um astuto observador
cidadãos e adoradores crentes; a religião era a fonte dos valores que animavam do cenário norte-americano.SIsso muitas vezes brota de uma profunda insa-
tanto a família quanto a sociedade; e o Estado era a realização e o baluarte dos tisfaçãocom uma vida encerrada inteiramente na ordem imanente. A sensa-
valores, central tanto para a família quanto para as igrejas. E isso era ainda mais ção é que essavida é vazia, rasa, destituída de um propósito mais elevado
fortemente sublinhado pelo fato de que a liberdade norte-americana precisava Naturalmente isso tem se constituído numa resposta muito difundida
defender-sedo "ComunismoAteu". Não é para menosque os residentesno ao mundo criado pela modernidade ocidental durante pelo menos os dois
novo subúrbio de Chicago, Elmhurst, coroaram suasrealizaçõesna edificação últimos séculos. Podemos emprestar como sloga7ipara ela o título de uma
da comunidade com a construção de uma nova igreja, a Igreja Presbiteriana canção de autoria da cantora norte-americana Peggy Lee, /s fhat a/i fhereís?
de Elmhurst. Isso era encarado como parte central do que estava implicado [lsso é tudo que há?/. A vida deve ser mais do que nos dão as nossas definições
na cons.truçãode sua nova vida. correntes de sucessosocial e individual. Isso sempre constituiu um fator em
É claro que esseentrelaçamento íntimo de religião, estilo de vida e patrio- retornou anteriores à religião, como nas conversões ao catolicismo ocorridas
tismo foi visto com suspeição por muitos observadores.Will Herberg, em seu na França dos séculosXIX e XX que mencionei anteriormente. Ali, porém,
livro Profesfarzf, Cacho/íc, alia .rezo[Profesfante, café/íco e j deu.Í, considera que issoestava entrelaçado com uma identidade neodurkheimiana e, mais ainda,
essasnovas igrejas têm mais a ver com identidade socialdo que com Deus. E, com um prometopara restaurar a ordem civilizacional. Quando estescaem
ao fundarem uma nova igreja presbiteriana, os novos residentes estavam se por terra, a busca ocorre em razão de si mesma. Torna-se uma busca pessoal
distanciando da igreja dessa denominação que já existia naquela área e que e pode facilmente ser codificada na linguagem da autenticidade: eu estou
adorava um tom muito mais colérico e incisivo. De fato, a identidade presbi- tentando encontrar o meu próprio caminho ou encontrar a mim mesmo.
teriana não foi escolhida por sua teologia, mas porque ocupava uma posição Além disso, nessecaso, os que buscam são os herdeiros da revolução ex-
intermediária no espectro social das denominações; não tão tacanha como os pressiva com suas raízesnas reaçõesdo período romântico contra o eu disci-
episcopais nem tão sem dignidade e popular como os batistas.: plinado e instrumental associadoà ordem moral moderna. Isso não sósignifica
Esseestreito entrelaçamento de família, religião e Estado é tanto mais notá- que eles juntam suas vozes à resposta de "Peggy Lee", mas também que estão
vel pelo fato de - o que ninguém sabia naquele tempo - estar prestesa sofrer buscando uma espéciede unidade e inteireza do eu, reclamando um lugar
golpes simultâneos em cada uma de suaspartes constituintes. De fato, histo- para o sentimento frente à preeminência unilateral da razão e reclamando o
riadores que não Ihe eram simpáticos referiram-se a ele como "a derradeira corpo e seus prazeres do lugar inferior e muitas vezes dominado pela culpa
orgia de domesticidade da moderna família nuclear".' A excelênciaimpoluta a que foi relegadona identidade disciplinada e instrumental.' A ênfaseestá
do Way of Leme norte-americano passou a ser questionado na luta contra Jim na unidade, na integridade, no holismo, na individualidade; sua linguagem
Crow e no sofrimento por causade Guerra do Vietnã; a imagem positiva da muitas vezes invoca "harmonia, equiHbrio, fluxo, integrações, estar de acordo
família nuclear foi questionada pelo feminismo, pela nova cultura expressiva consigo mesmo, centrado".s
e pela revolução sexual dos anos sessenta; e a amena religião norte-americana Por causa disso a busca pela inteireza espiritual muitas vezes está estrei-
da conformidade foi redondamente repudiada naqueladécada turbulenta. tamente relacionada com a busca por saúde. Pareceque temos algo similar à
medicalização do pecado e do vício no século XIX, que descrevi em capítulo
Agora, nesses últimos capítulos, estive descrevendo a transição crucial
como uma retirada ou um colapso das formas religiosas anteriores, aquelas 3 Jd., ibid., p. 86.
4 /d., fbíd., p. 21-24
5Paul Heelas, Linda Woodhead ef a/. 7'heSpirítua/ Rmo/utíolt. Oxford: Blackwel1,2004, P. 26. Esse
l Alan Ehrenhalt.Thel,ost Cífy. New York: BasicBoob,1955,p. 220-228.Cf. tambémRobert Wuth.
estudo é situado numa comunidade na Inglaterra. Está claro que os temas aqui são muito similares aos
now.AÍfer Heaoen.
Berkeley:University of California Press,1998,capítulo 2
aludidos nos EUA ou, na verdade, em qualquer lugar do mundo atlântico atual
.Aptzd Wade Clark Roof. Sp ritual À4arketp/ace. Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 222.
596 Parte IV Narratioas de sectllarização 597
Capítulo 14. Religião hoje

anterior. O elo que se cria aqui é entre a saúde espiritual e a saúde física, co comum que critiquei no capítulo anterior: a propensão muito difundida a
mas sua base é completamente diferente. A corrente principal da medicina identicar os principais fenómenos da Era da Autenticidade com suas formas
objetifica o corpo e seusprocessose o que chamei de medicalizaçãoesten- mais simples e superficiais. Esseefeito superficializante decorre da polêmica que
de essa objetificação ao vício. Porém, os elos contemporâneos entre saúde e contrapõe críticos da autenticidade, de um lado, a adeptos dessasformas trivia-
espiritualidade costumam tomar como ponto de partida tipos alternativos lizadas,do outro -- à semelhançados que promoveram o discurso da "liber-
de medicina. Longe de considerar o corpo como um mero objeto da ciência dade de escolha" na discussão anterior. Eles involuntariamente conspiram
natural, eles o veem como o lugar da correntes e dos fluxos espirituais. Recu- para oferecer uma visão simplificada e distorcida do que estáacontecendo
perar a saúde requer que a pessoa se acerte com estes e isso só se consegue se na nossa civilização.
a pessoa se abrir para eles, o que é a postura oposta à objetificação. Nesse caso em particular os novos tipos de busca espiritual, que incluem
Roof destacaas novas abordagensda questãoda dieta e do controle da - sem se limitarem a - aquelasque, muitas vezes, são agregadassob o termo
obesidade na cultura espiritual contemporânea. Na compreensão mais anti- "New Áge = Nova Era", frequentemente são taxadas de serem meras extensões
ga "do pecado mortal", a obesidade vinha da glutonaria, uma tentação que do movimento do potencial humano e, em consequência, totalmente focados no
deve ser rigorosamente controlada. A medicalização ressituou essatentação imanente, e/ou de serem uma variedade de convites à autoabsorção, sem qual-
como uma espéciede anormalidade, o tipo de coisa que surge junto com quer preocupação com qualquer coisa além do próprio agente, seja a sociedade
formas desviantes de desenvolvimento. O olhar da compreensão contempo- circundante, seja o transcendente. É claro que, nesse plano genérico, um grande
rânea muitas vezes irá além da ânsia e sefixará nas necessidadesespirituais número de fenómenos se enquadram nessas especificações. Porém, a ideia de
mais profundas não satisfeitas que desencadeiama ansiedadepor comer.' que todos eles se enquadram, de que essetipo de questãopor sua própria na-
E, o que é crucial, essa é uma cultura instruída pela ética da autenticidade. Eu tureza deve gravitar rumo à auto-ocupação imanente é uma ilusão que decorre
tenho de descobrir minha própria rota para a inteireza e a profundidade espiri- do debate muitas vezesrancoroso entre aqueles que se sentem ofendidos em
tual. O enfoque é no indivíduo e em sua experiência. A espiritualidade deve falar seu senso de autoridade religiosa por esse tipo de busca, de um lado, e os pro-
para essaexperiência. O,modo básico da vida espiritual é, portanto, a investiga- ponentes da maioria das formas centradas no eu e no imanente, de outro, sendo
ção,como afirma Roof.' E uma investigação que não pode fazer exclusõesa prforí que cada um se apraz em referir-se ao outro como seu maior rival. "Olha o que
nem ter pontos de partida inescapáveis que possam predispor essaexperiência. acontece quando você abandona a autoridade apropüada" (isto é, a Bíblia ou o
Essetipo de busca muitas vezes é chamado de "espiritualidade" pelos que papa ou a tradição, dependendo do ponto de vista), diz o primeiro; "você não
a praticam e é o oposto de "religião". Essecontraste se reflete na rejeição da vê que somente nós oferecemos uma alternativa ao autoritarismo bronco", diz o
religião institucional ", isto é, as pretensões de autoridade levantadas pelas segundo. Cada um deles se conforta em sua posição com o pensamento de que
igrejas, que veem como seu mandato predispor a busca ou mantê-la dentro a única alternativa a ele própüo é completamente repulsiva.
de certoslimites bem definidos e sobretudoditar um certo códigode com- Porém, isso não faz jus a boa parte da realidade espiritual da nossa era. Pin-
portamento. Roof cita uma das pessoasque ele entrevistou: tar essaforma contemporâneade busca espiritual como um movimento rumo
Bem, eu sinto que religião é doutrina e tradição, genuflexão, e você tem de fazer as coisas à imanência confunde-a com uma tendência que circulou por um tempo bem
dessamaneira. Espiritualidade é um sentimento interior um reconhecimento de que está maior durante a maior parte da Era Moderna. Uma figura como Norman Vin-
bem, como.quer que você a perceba em seu mundo, em sua mente, e como quer que ela se cent Pede,no período pós-guerra, com o seu "poder do pensamento positivo",
sinta. (.-) Não existem esses parâmetros sobre ela. De que você tenha de crer'dessa modo e
unicamente dessemodo. Penso que espiritualidade é aquilo que entra em você, eleva você representa essetipo de movimento; linguagem e imagens religiosas são usadas
e move você para ser.uma pessoa melhor uma pessoa mais aberta. Não acho que a religião num projeto que promete florescimento humano mais pleno. Podemosconce-
façaisso:A religião diz a você o que fazer e $uándo fazer,quando ajoelhar quando põr-se ber seu oferecimentocomo parte do "movimento do potencial humano" az;anf
empé,essetipodecoisa.Regrasdemontão.' ' ' '
la ietfre. Porém, um grande número dos que saem à busca hoje estão à procura
Essascaracterísticas da "espiritualidade", seu subjetivisiüo, seu enfoque de algo além disso, como argumenta persuasivamente Roof, entre outros. Com
no eu e em sua inteireza, sua ênfase no sentimento, levaram muitos a ver as muita frequência,após terem selimitado ao autodesenvolvimento, elessentem
novas formas da procura espiritual que surgem em nossa sociedade como que isso é inadequado; por si só, isso já desperta a resposta de "Peggy Lee", fa
intrinsecamentetriviais ou privatizadas. Acredito que isso faz parte do equívo- zendo com que eles queiram seguir adiante.ç

6 Rooí, Spiritua! Marketplace, p. 92, 106. 9/d., fbíd., p. 9 e 40: "Num sentido muito real, a autossatisfação se tornou uma armadilha: com tanta
7Id., ibid., capítulos l e 2. ênfaseno self - com suas imagens infladas no sentido de ser especial, único e só potencialmente realiza-
' /d, ibid., P. 137. do -, manter o segue tornou um "fardo', uma crise psicológica causada pelas próprias desilusões
'Y'
598 Parte IV: Narrativas de secularização Capítulo 14. Religião hoje 599

Uma vez mais, até um observador arguto como Paul Heelas, em um livro tal entre essabuscapor integridade e o transcendente:os autores citam um
recente muito interessante:', parece subdimensionar um pouco a realidade ministro religioso que disse à sua congregaçãoque "inteireza" deveria repre-
que estáestudando. O tipo de busca a que estou me referindo aqui, que é sentar para ela menos do que "santidade".'s Porém, isso é o que se pode espe-
central para aquilo que os autores chamam de "espiritualidade" e que con- rar de um observador hostil, para o qual a autoridade religiosa torna essetipo
trapõem a "religião", na verdade é definido por uma espécie de exploração de busca inútil e perigoso. Não há razão para entrar nesse tipo de miopia
autónoma, oposta a um mero ato de render-se à autoridade; e as pessoas que Insisto nesseponto porque, de certo modo, todo este livro é uma tentati-
se engajam nesse tipo de caminho espiritual são, na verdade, dissuadidos va de estudar o destino da crença religiosa em sentido forte no Ocidente mo-
pelo moralismo e pelo fetichismo do código que elas encontram nas igrejas. derno. Defino essesentido forte, repito, mediante um critério duplo: a crença
Porém, esses modos de colocar a questão crucial não são necessariamente na realidade transcendente, de um lado, e a aspiração a ela associadade uma
paralelos a outros que os autores também apresentam como mais ou menos transformação que vai além do florescimento humano ordinário, do outro.
equivalentes: por exemplo, aquele que fica entre "acautelar-se e conformar-se Cometeria um equívoco muito sério acercado destino da religião assim defi-
com uma fonte de significado que, em última análise,transcende a vida des- nida alguém que aceitassea visão superficial que estive combatendo aqui
te mundo" e se contrapõe a "procurar, experimentar e expressaruma fonte Em nosso tempo, há inquestionavelmente uma tensão,que é o lugar da
de significado que reside dentro do próprio processo da vida".': Muitos dos batalha entre asconstruções neodurkheimiana e pós-durkheimiana da nossa
jovens visitantes de Taizéacabarãooptando pela primeira alternativa aqui, condição, entre diferentes formas de religião ou espiritualidade, entre aque-
como farão muitos dos budistas que figuram nas pesquisasdos autores, mas las que colocam a autoridade em primeiro lugar e, em consequência, põem
eles permanecerão tão alérgicos ao moralismo e à predisposição de sua busca sob suspeiçãoe hostilizam os modos contemporâneosde busca, e aquelas
pela autoridade quanto todos os demais que buscam do mesmo modo. formas que embarcaramnestesúltimos e podem ou não vir a reconhecer
De novo, "descobrir sobre si mesmo, expressar a si mesmo, descobrir seu uma ou outra forma de autoridade no decurso de sua busca. Ora, essaoposi-
próprio caminho de tornar-se tudo o que se pode ser" é oposto a "negar ou ção tem algumas afinidades com a divisão que remonta a 500anos atrás em
sacrificar a si mesmo em prol de uma ordem de coisasacima do eu ou até[...] nossa civilização, por volta da época da Reforma.
viver tendo tal ordem como referência".:: Porém, essecontraste não pode ser C)sancestrais espirituais das pessoas que hoje estão engajadas nessa bus-
considerado como exaustivo. A primeira formulação poderia ser vista como ca pertencem a uma corrente para a qual o abade Henri Bremond inventou a
uma definição da ética contemporânea da autenticidade; a segunda alude a designação "humanisme dévot [humanismo devotos" na sua obra volumosa
sobre a França do sécu]o XV]].n Seus oponentes naquele pais e século foram
uma visão do que é supremamente importante na vida. A questão levantada
os jansenistas. As batalhas que imediatamente vêm à mente são aquelas entre
na primeira pode dar início a uma busca e esta podeacabar na segunda como
jesuítas e jansenistas e costumamos defina-las em termos das doutrinas, po-
uma possível resposta. Ninguém garante isso, mas ninguém assegura o con
sições políticas e posturas e alianças estratégicas adoradas pelos respectivos
Erário tampouco-
De fato, os autores veem corretamente que grande parte da espirituali- lados. Porém, ocorreu-me algo mais básico: uma diferença quanto à atitude
dade que chamamosde "Nova Era" é instruída por um humanismo que se profunda na vida espiritual da pessoa.Para os humanistas devotos,o obje-
inspira na crítica romântica ao moderno agente disciplinado e instrumental,
tivo principal era cultivar em si mesmoso amor de Deus, valendo-me aqui
de uma formulação crucial de um de seus vultos fundantes naquele século,
que, como vimos anteriormente, foi central aosanos sessenta;a ênfase recai
sobre unidade, integridade, holismo, individualidade.:' Porém, eles também a saber, São Francisco de Sales. Isso queria dizer que eles estavam dispostos
a confiar nos impulsos iniciais desseamor em si mesmos;elesse puserama
ressaltamque a espiritualidadeque estudamse diferencia da "cultura do
cultivar um germe que já podia seridentificado.:'
bem-estar genérica e subjetiva" pelo desejo generalizado de ir além disso. Ela
Podemosdar um bom exemplo do que isso implicava se olharmos para
implica em "aprofundar a busca"." Paraalgumaspessoas,isso não irá além
o século precedente, para uma de suas fontes, que encontramos na história
de alguma força vital concebida em termos imanentes, mas não precisa parar
por aí. É claro que há pessoasque querem afirmar uma oposição fundamen-
's/d., íbfd., P. 16.
16Henri Bremond. L'HfsfofreIftfél'abred selzfflne?zt relígfeur etl Fi'ande,depufs/a P l desglífrres
io Heelas, Woodhead ef a/., The Spíríflla/ Reco/ufíolí. de re/fgíot jtlsqu'â tios Jours.Paris: A. Colin, ll volumes, 1967-1968;cf. volume 1: L'/zulrlalzís/ne
déuof
/d., Ibid., P. 31. 10 humanismo devotar
17São Francisco de fales fala de um "recueillement amoureux de I'âme en Doeu [recoljaimento amo-
/d.,ibid.,P.81.
/d.,Ibid.,P.26. roso da alma em Deusa";ver Tr#íféde I'Hlnollr de Doeu.Paria:Monastre de la Visitation, s.d., Livro VI,
''/d.,íbfd.,P.88. capítu[os vi-xi, p. 250-267]ed. pare.: Tratadoda amor de Deus.2. ed. Petrópo]is: Vozes,2005]
600 Parte IV: Narrativas de sectílarização CapíttLlo14.Religiãohoje 601

sobre a conversão de Início de Loyola, fundador dos jesuítas. Enquanto se do das atitudes subjacentesa elas.Uma vez que se enquadra essasatitudes
recuperavado ferimento sofrido em combate,ele ficou desesperadamente como doutrinas, trai-se as mesmas, pondo a perder as nuances que incorpo-
entediado e pediu algo para ler. Ele desejavaler especificamentealgumas raram. E claro que ninguém jamais pensou que as suas próprias intuições
novelas de cavalaria, que eram o artigo de consumo dos cavaleiros e damas seriam suficientes como indicadores, que seriam válidas contra todo o peso
de sua época e que mais tarde seriam satirizadas por Cervantes. Porém, não da doutrina cristã; e aqueles que estavam no outro lado foram capazesde re-
havia nenhuma no castelo ao qual estava recolhido e a única coisa em que conhecer isso e extrair força de momentos de elevação espiritual. Pode-seaté
conseguiu pâr as mãos foram as biografias dos santos. Após um tempo, ele argumentar que a posiçãoválida aqui era reconhecer uma complementarida-
começou a dar-se conta de algo: a leitura das novelas era emocionante e ex- de e combinar algumas características de cada uma: no âmbito de uma postu-
citante no momento em que acontecia, mas depois deixava uma sensaçãode ra básica de autoconfiança, estar consciente das múltiplas possibilidades de
aridez e insatisfação; a leitura das histórias dos santos, em contrapartida, o complacência e autodecepção, do que pessoas como Loyola e São Francisco
deixava muito edificado, mas não era seguida de nenhum declínio; ele per- na verdade estavam conscientes. Esta é a posição assumida por Wuthnow
maneciacom uma sensaçãode satisfaçãoe até de alegria. Isso se tornou a entre as duas posturas espirituais que ele chama de "residir" e "procurar".'ç
base para uma forma crucial de discernimento em seusposteriores Exercícios Porém, ainda restam duas direções para as quais se pode tender.
espírífuízís.
Houve aí uma indicação do caminho a seguir.Essasensaçãoin- Eu afirmo que estaspermanecem até os dias de hoje como a basepara dois
terior de alegria foi denominada por ele de "consolação", e o seu oposto, de tipos de sensibilidade religiosa, aquele que subjaz respectivamente aosnovos
desolação".A primeira era produzida nele quando se detinha na leitura de tipos de busca espiritual, de um lado, e à opção anterior por uma autoridade
las hazaftas de Dios [das façanhas de [)eusj"; a segunda muitas vezes veio que fecha a questão,do outro. E nós podemos fazer algum\astentativas muito
em decorrência de histórias sobre "las hazaóashumanas [as façanhas huma- parciais e hesitantes de entender por que isso pode ter sido assim. Tomemos
nasl". Estafoi a reflexão que o iniciou no caminho pelo qual o conhecemos como exemplo o tipo de conversão em que as pessoassão resgatadasde uma
agora da história.:' profunda desordem em suas vidas, o tipo que muitas vezes acompanhou os
Os oponentes dessehumanismo devoto levantaram fortes objeçõesao reavivamentosnos EUAnos últimos dois séculosou o tipo que se pode ob-
tipo de confiançaque ele parecia querer depositar em suaspróprias intui- servar em igrejas evangelicais e pentecostais no Brasil ou na Africa ocidental
ções. Como poderiam homens caídos ter essapresunção? Eles eram poten- atuais. Com certeza é muito compreensível que essasconversões podem ser
cialmente fontes de interminável autoengano. O que se necessitavamesmo sentidasmuitas vezes como capitulação diante de uma autoridade externa
era algo externo em que se agarrar,alguma autoridade que fosse além do que supera os impulsos autodestrutivos dentro da pessoa.Isso não deveria
próprio senso de direção, alguma coisa em que Deus pudesse ser encontra- invalidar nem ser invalidado por outro tipo de percurso, no qual alguém que
do. Isso pode ser a Bíblia ou a autoridade da Igreja, maso ponto crucial era busca pode chegar à mesma fé cristã depois de seguir intuições prévias que
que isso não estivesse baseado nas próprias intuições pareciam não leva-lo para lá: o tipo de história de vida de Bede Griffiths, por
A mesma questão surgiu na famosa disputa ocorrida no final do século exemplo, de cuja autobiografia fiz citações no capítulo l
XVll entre dois bispos franceses, Bossuet e Fénelon, sobre se a pessoa deveria Uma vez mais, essasalternativas foram consolidadaspor várias doutri-
aspirar ao amor verdadeiramente puro de Deus, um amor que poderia durar nas que as transformaram em polos opostos e produzem o efeito ofuscante
até mesmo quando tudo indicasse a ela que está condenada. Um momento de forçar as pessoasa irem aos extremos, à autoridade peremptória, de um
crucial na vida de SãoFrancisco de Sales,após um longo período em que ele lado, e à autossuficiência,
do outro; ou pura autossuspeição
ou total auto-
sentiu que poderia estar condenado, foi quando ele sentiu que nem mesmo confiança. Isso naturalmente, em conformidade com u ma antiga obsessão do
isso poderia impede-lo de amar a [)eus. Féne]on abraçou esseidea] e Bossuet cristianismo latino, significa cimentar com precisão última, inalcançável e, no
sustentou que isso implica a presunção de que poderíamos nos elevar acima final, autodestrutiva as basesda autoridade final, imutável e inerrante, seja
da nossa condição pecaminosa. ela uma certa forma de decisãopapal ou uma leitura literal da Bíblia.
Ora, essasdisputasforam travadasem termosde doutrinas no século Porém, se for possível escapar dessa dialética que empurra as pessoas a
XVll, em particular das doutrinas hiperagostinianas da depravação humana essesextremos, deveria ficar claro que há outras alternativas e que muita
e da incapacidade de escapar dela sem a graça eficaz. Porém, eu estou falan- coisada vida espiritual/religiosade hoje se encontra nesseterreno inter-
mediário.
BJean Lacouture. Jésuftes;Z. Les Calzq éraltfs. Paria: Seuil, 1991, p 21-22 [ed. pare Os /esuítas.Z. Os
coliqtíísfadores.
Trad. Ana Mana Capovi]]a. Porto A]egre: L&PM, 1994,p. 22-23] 19Wuthnow- Affer Heauen,capítulo l
602 Parte iV: Narrativas de secltlarização
Capíttlío14.Religiãohaja 603

Isso não quer dizer que não haja conexãoentre uma dispensaçãopós- ram crer em um Deus pessoal, ao passo que mais aderem a algo como uma
durkheimiana, de um lado, e, de outro, a tendência para uma experiência força impessoal;:: em outras palavras, um conjunto maior de pessoasexpressa
individualizada do espiritual, que muitas vezesescorregana direção do sen- crençasreligiosasque se movem fora da ortodoxia cristã. Seguindo essalinha,
tir-se bem e do superficial. Porque está claro que essetipo de espiritualidade
temos um crescimento das religiões não cristãs, particularmente daquelas que
condescendente é o que um grande número de pessoasentenderá como se- têm sua origem no Oriente, e a proliferação de práticas do tipo Nova Era, de
guir o seu próprio caminho. ]'orém, issoestámuito longe de ser tudo o que visõesque interligam a fronteira entre humanismo e espiritualidade,de prá-
há a dizer. De fato, é verdade que, caso se pudesse de algum modo pular de ticas que conectam espiritualidade com terapia. Além disso, cada vez mais
volta a algum séculoanterior o número de autoindulgentesengajadosna pessoasadotam o que antes teria sido visto como posiçõesinsustentáveis;
busca diminuiria radicalmente. Porém, isso de modo algum justifica nosso
por exemplo, elas seconsideram católicas mesmo não aceitando muitos dog-
ato de identificar a exigência de seguir o caminho espiritual próprio de cada mas cruciais ou combinam cristianismo com budismo ou rezam mesmo não
um com as opções mais fracas e superficiais visíveis hoje. estando seguros de que creem. Isso não quer dizer que não tenha havido
Algumas almas conservadoras sentem que, para condenar esta era, é su- pessoasque assumiram posições desse tipo no passado. O que ocorre é que
ficiente mencionar que ela levou um grande número de pessoasa modos agora parece mais fácil ser franco em relação a isso. Em reaçãoa tudo isso,
de espiritualidade não muito exigentes sem vínculo algum. Porém, elas de- a fé cristã se encontra no processo de redefinir-se e recompor-sede várias
veriam fazer a si mesmasduas perguntas: em primeiro, é concebívelque se maneiras, desde o Vaticano ll até os movimentos carismáticos. Tudo isso re-
possa retornar a uma dispensaçãopaleodurkheimiana ou até neodurkhei- presenta a consequência da cultura expressionista em seu impacto sobre o
miana?E, em segundo, indo mais a fundo, cada dispensaçãonão possui as nosso mundo. Ela criou uma situação bem nova.a
suas próprias formas desviantes favoritas? Se a nossa tende a multiplicar as Daniêle Hervieu-Léger fala de uma "découplage de la croyance et de la
opções espirituais um tanto rasas e condescendentes, não deveríamos esque- pratiquelum desacoplamento de crença e práticas", de um "désemboítement
cer os custos espirituais de vários tipos de conformidade forçada: hipocrisia, de la croyance, de I'appartenance et de la référence identitaire jdesencaixe
estultificação espiritual, revolta interior contra o Evangelho, confusão entre de crença, pertencimento e referência identitárial". Grace Davie fala de "crer
fé e poder e coisas ainda piores. Mesmo se tivéssemos uma escolha, não estou sempertencer". O estreito elo normativo entre certa identidade religiosa, a fé
seguro se não seria mais sábio ater-se à presente dispensação em certasproposições teológicas e uma prática-padrão não vigora mais para
um grande número de pessoas.Muitas delas estão tratando de compor a sua
[8] Quais são ascaracterísticasdessa nova paisagem espiritual? A primeira é visão pessoalbem própria por meio de uma espéciede "bricolagem"; mas há
uma que todo mundo irá saudar: a derrubada de barreiras entre diferentes também alguns padrões muito difundidos que se atravessam no caminho
grupos religiosos, a desconstrução dos muros em volta de guetos, onde estes das constelações tradicionais. Não só os que declaram ter alguma fé em Deus
existiram,como relata Michael Hornsby-Smith em relaçãoà Igreja Católica e se identificar com a Igreja, sem realmente comparecer aos seus cultos ("crer
inglesa após o Vaticano ll.20E os efeitos disso naturalmente são muito mais sem pertencer"), mas também um padrão escandinavo de identificar-se com
palpáveis onde antes havia sociedadesparticionadas de acordo com as deno- a igreja nacional, à qual só se comparece para os ritos de passagemcruciais,
minações, como na Holanda. ao passo que de resto se professa um ceticismo muito difundido a respeito
Porém, o outro lado disso constitui um declínio. Os resultados externos e
a teologia. A estreita conexão entre identidade nacional, uma certa tradição
mensuráveis são o que se pode esperar: primeiro, o aumento do número da-
queles que se declaram ateístas,agnósticos ou que afirmam não ter religião, z Por exemplo, o Gal/up Politicql & Ecotzo/rifa
Index(n. 394, junho de 1993)relata que, na Grã-Breta-
e isso em muitos países, incluindo a Grã-Bretanha, a França, os EUA e a Aus- nha, 40% creem em "algum tipo de espírito força vital", em contraposição a 30% que têm fé em um "Deus
pessoal"; citado em Heelas, Woodhead et a/., 7'/zeSpidfua/ Reoolufíolí,p. 166. F'roporçõesanálogas foram
trália.': Porém, para além disso, o leque de posições intermediárias amplia-se constatadas na Suéciae na França; ver Daniêle Hervieu-Léger. l.e Pé/erízlef /eCoJluertí.Paris:Flammarion,
1999,P. 4+46
muito: muitas pessoas desligam-se da prática ativa, mas ainda declaram-se
zaO movimento de muitas sociedadesocidentais para o que tenho chamadode uma dispensa-
pertencentes a alguma confissão ou crentes em Deus. Em outra dimensão, o ção "pós-durkheimiana" obviamente facilitou seu deslocamento na direção do "multiculturalismo", ao
leque de crenças em algo além amplia-se, sendo que menos pessoas decla- mesmo tempo que essa questãose tornou mais urgente, devido à crescente diversidade de suas popu-
lações. Porém, o multiculturalismo também produziu tensões que frequentemente são exacerbadas pela
influência continuada de uma ou outra compreensão "durkheimiana" sobre segmentosimportantes da
n Michael Hornsby-Smith, Recent Transformations in English Catholicism, in: S. Bruce (Ed.). Relí-
população. Os conservadores cristãos são irascíveis em relação ao expressivismo excessivonos EUA; e
gz0}2 alta À,fodernízafíolt, capítulo 6
muitos francesestêm dificuldade em ver seu país contendo um importante componenteislâmico,na
zi Ver Steve Bruce. Re/ígíozt iJt f/2eÀ4odern Wor/d. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 33, 137ss.
medida em que sempre se referiram a ele como um país essencialmente católico ou como definido pela
Sylvette Denêfle. Socio/ogíe de /a Séct{/arísafíolí. Paris: IIHarmattan, 1997. tensão constitutiva entre catolicismo e "laTcité"
604 Parte IV NarTatioas de secularização
'T Capíttiio14.Religiãohoje 605

eclesial, uma forte crença comum e um sentimento de ordem civilizacional, igrejas, em maior ou menor número dependendo do país (vasto nos EUA,
que era modelar para a Era da Mobilização, cedeu seu lugar, enfraquecendo minúsculo na Suécia).
de modo crucial a consistência da teologia. Porém, enquanto em outros países Mas há outra razão que asseguraa importância continuada das identida-
isso também significou um declínio na identificação com a Igreja, esta cone- des neodurkheimianas. Em algumas sociedades, há uma relação quaseago-
xão eclesialpermaneceu forte nos paísesescandinavos,ainda que privada nística com o ambiente pós-dur](heimiano. Pense-se, por exemplo, nos EUA e
de suas conotaçõesteológicas originais. As igrejas são vistas, digamos, como em certas exigências da Direita Cristã, como, por exemplo, oração na escola.
elemento crucial da identidade histórico-cultural. Essepadrão também pode Porém, essasidentidades talvez estejam mais em evidência naqueles grupos
ser encontrado em outros países europeus, mas nas nações nórdicas ele pa que se sentem reprimidos ou ameaçados(seria o caso também da Direita
regepredominante.m Cristã?), e muitas vezes pessoas com certa identidade étnica ou histórica pro-
O que está por trás dessasfiguras e tendências?Não podemos entender curarão certo sinalizador religioso para juntar gente ao seu redor. Mencionei
nossa presente situação por meio de um único tipo ideal, mas se nos com- anteriormente, por exemplo, poloneses e irlandeses. Trata-se de povos que
preendermos em movimento, deixando uma Era da Mobilização e rumando foram arremessadosdentro da forma política moderna por terem se mobili-
para uma Era da Autenticidade, então podemos encarar todo essemovimen- zado para conseguir sua independência ou estabelecersua integridade, no
to, em certo sentido, como um distanciamento do cristianismo. Por cristia- contexto de serem governados por estrangeiros e algumas vezes sofrerem
nismo entendo uma civilização em que sociedadee cultura foram profunda- pesada opressão. Por essarazão, eles assumiram a linguagem moderna e as
mente moldadas pela fé cristã. Essedistanciamento constitui uma evolução concepções modernas de uma entidade política; eles se tornaram povos no
abaladora,se pensarmos no modo, em vigor até bem recentemente, como as sentido moderno. E povos modernos, isto é, coletividadesque aspiram ser
igrejas cristãs concebiam a sua missão. Se nos restringirmos à Igreja Católica agentesna história, necessitamde certa compreensão do que querem, do que
(e havia analogiascom a "igreja" interdenominacional nas sociedadespro eu chamo de identidade política. Nos dois casosmencionados,ser católico
restantespluralistas), a meta era prover um lar religioso comum para toda a constituía parte importante dessa identidade.
sociedade. No caso da França, podemos pensar na reforma católica do século Essefenómeno continua sendo importante no mundo moderno, embora
XVll, tentando recuperar o terreno perdido para a Igreja da Reforma, bem da perspectiva da fé se possa ter sensações ambivalentes em relação a isso.
como penetrar em segmentos da sociedade rural que nunca haviam sido pro- A razão disso é que há uma gama de casos,desde o devotamento religioso
priamente cristianizados; depois, no século XIX, a Igreja tentou novamente profundo até, em toda linha, situações em que o sinalizador religioso é cinica-
compensar os danos causados pela Revolução; o objetivo da .4cfío/zCaf/zo/íque mente manipulado para mobilizar as pessoas.Pense-seem MiloÊevié e no BJP
no início do século XX foi missionar os ambientes que haviam escapulido. Porém, quaisquer que sejam os juízos éticos emitidos, trata-se de uma realida-
Hoje, porém, estáclaro que essaambição é irrealizável. de poderosa no mundo de hoje, e uma que não estáprestesa desaparecer.
Ora, nossassociedadesocidentais permanecerão para sempre moldadas Em termos gerais,porém, podemos dizer que, nas sociedadesnorte-
historicamente pelo cristianismo. Mais adiante retomarei a alguns aspectos atlânticas do século XXI não fendidas por diferenças étnico-confessionais
do que isso significa. Porém, com o distanciamento do cristianismo refiro-me (por exemplo, NÃO estamosfalando da Irlanda do Norte), as formas de uma
ao fato de que será cada vez menos comum que as pessoassejam atraídas Era da Mobilização, que recentemente se tornaram predominantes, terão
para ou mantidas em alguma crença por alguma forte identidade política dificuldade em manter seusmembros, seja numa escalamaior (Europa) ou
ou de grupo ou então pelo sentimento de estarem sustentando uma ética menor (EUA).
essencial em termos sociais. Obviamente, ainda haverá grande quantidade Agora, se não aceitarmos, e eu não aceito, a visão de que a aspiração hu-
de ambas as coisas:no mínimo, a identidade de grupo poderá ser impor- mana à religião enfraquecerá,onde residirá o acessoà prática da religião e
tante para imigrantes, particularmente para os de proveniência recente -- e ao engajamento mais profundo nela? A resposta está nas várias formas de
mais ainda para os não cristãos, ou seja, islamitas ou hindus, que sentem prática espiritual para as quais cada pessoaé atraída em sua própria vida
como são diferentes da maioria religiosa já estabelecida. E com certeza res- espiritual. Isso pode implicar meditação ou alguma obra caritativa ou um
tará o núcleo daqueles que serão membros e frequentadores regulares de grupo de estudos ou uma peregrinação ou alguma forma especial de oração
ou ainda um conjunto dessas coisas.
H Hervieu-Léger l,e Pé/erín et /e Cozloertí, p. 41, 56; Grace Davie. Re/ígíolí fn Brífaítz sfnce IZ945; Be/feoíltg
zoít/zouf
Beloltgíng.Oxford: Blackwel1,1994.Uma discussãodo padrão específicoda Escandináviapode
ser encontrado em Hervieu-Léger, l,e Pé/el"Ín ef /e Colízlertf, p. 57; e Grace Davie. Re/ígíolz {lt À,,foderzlEu?'ope. NdT: Bharatiya Janata Party = Partido Bharatiya Janala ou Partido Popular Indiano, de feição
Oxford: Oxford Univelsity Press, 2000, p. 3. nacionalista hinduísta. Cf. http:/7wwwbjp.org/. ' ' "-' "' '"'
606 Parte l\4 Narratioas desectíiarização 607
Capítttto 14. Religião hoje

Naturalmente, sempre existiu uma série de formas desse tipo, digamos, E claro que elas não necessaüamente se sentirão com toda a comodidade
como extras opcionais para aqueles que já estavam inseridos em primeira nessascomunidades como fizeram seus ascendentes.E particularmente uma
linha na prática eclesial ordinária. Porém, agora frequentemente ocorre o in- erapós-durkheimiana pode significar um grau muito maisbaixo de continuida-
verso. Primeiro as pessoas são atraídas para uma peregrinação ou um Dia de intergeracional do devotamente religioso. Porém, as opções acentuadamen-
Mundial da Juventude ou um grupo de meditaçãoou um círculo de oração; e te coletivas não perderão adeptos. Talvez até se manifeste a tendência oposta.
só depois disso, casoavancem na direção apropriada, elas se verão inseridas Uma razão para levar a sério esta última ideia consiste na importância
na prática comum. ininterrupta do festivo. As pessoas buscarão aqu eles momentos de fusão, que
E haverá muita mobilidade entre tais formas de prática e entre ascrenças nos arrancam do dia a dia e nos põem em contado com algo que está além de
a elas associadas. nós mesmos. Vemos isso em peregrinações, assembleias de massas como os
Isso evidencia uma vez mais que é equivocadoconfundir a dispensação Dias Mundiais das Juventude, em encontros únicos de pessoasmovidas por
pós-durkheimiana com uma espiritualidade trivializada e completamente algum evento de grande repercussão, como o funeral da Princesa Diana, bem
privatizada. E claro que haverá grandes quantidades de ambos. Essessão os como concertos de rock, FRziPS
e coisas do gênero. O que tem tudo isso a ver
perigos que rondam a nossa presente situação complicada. Um mundo pós- com religião?A relaçãoé complexa.De um lado, alguns desseseventossão
durl<heimiano significa, como eu disse anteriormente, que nossa relação com inquestionavelmente "religiosos", no sentido adorado por mim no início des-
o espiritual está cada vez mais desvinculado de nossa relação com nossas so- ta discussão,isto é, orientado para algo supostamentetranscendente(uma
ciedades políticas. Porém, isso por si só não diz absolutamente nada sobre se peregrinação a Medjugorje ou um Dia Mundial da Juventude). E o que talvez
ou como nossa relação com o sagrado será mediada por conexões coletivas. não tenha sido suficientemente comentado é o modo como essadimensão da
A sociedade pós-durkheimiana seria grosso modo uma sociedade em que nosso religião, que remonta às suasformas mais primitivas, bem anteriores à Era
pertencimento religioso estaria desconectadode nossa identidade nacional. Axial, ainda está bem viva hoje, a despeito de todas as tentativas feitas pelas
E quasecerto que será uma sociedade em que a gama de devotamentos reli- elites reformistas durante muitos séculos de tornar nossasvidas religiosas e/
giosos será ampla e variada. Também é quase tão certo que haverá pessoas em ou morais mais pessoaise interiorizadas, de desencantar o universo e mini-
quantidade que seguirão uma vida religiosa centrada na experiência pessoal, no mizar o coletivo.
sentido que William Jamestornou famoso.2s
Porém, disso não decorre que to- Sob alguns pontos de vista essasformas estão bem adaptadas à complica-
das as pessoas ou mesmo a maioria delas procederá dessemodo. Muitas pesso- da situação contemporânea. Hervieu-Léger ressalta como a fiou ra tradicional
asencontrarão o seu lar espiritual, por exemplo, em igrejas, inclusive na Igreja do peregrino pode ser dotada de um novo sentido hoje, à medida que pessoas
Católica. Em um mundo pós-durkheimiano, esse devotamente estará desvin- jovens viajam em busca de fé ou sentido para suas vidas. A peregrinação
culado da lealdade à sodedade sacralizada(estilo paleo) ou a alguma identi- também é uma busca. O exemplo de Taizé é conclusivo nessetocante. Um
dade nacional (estilo neo); ou estará desvinculado da pretensão (que agora soa centro cristão interconfessional na Borgonha, tendo como núcleo uma comu-
arrogante)de proporcionar a matriz indispensável para a ordem civilizacional nidade de monges reunidos em torno do falecido Roger Schtltz, atrai milha-
comum; e, se eu estiver certo no que disse anteriormente, o modo de acesso res de jovens de um grande conjunto de países nos meses de verão e dezenas
será diferente, mas continuará sendo uma conexão coletiva. de milhares aos seus encontros internacionais. Seu poder de atração reside
Essasconexões, seja via sacramento ou via prática comum, ainda. são ob- em parte no fato de que as pessoas são recebidas como quem está em busca
viamente poderosas no mundo moderno. Temosde evitar aqui um erro que de algo, no fato de poderem expressar a si mesmas sem serem "confrontés à
facilmente se comete,a saber,o de confundir o novo lugar da religião em nos- un dispositifnormatif du croire,ni mêmeà un discoursdu benspréconstitué
sasvidas pessoais e sociais, a compreensão emolduradora de que deveríamos jconfrontadas com um dispositivo normativo de crença, tampouco com um
seguir nosso próprio sensoespiritual, com a questãoconcernente a que cami- discurso com sentido preestabelecidos". E, no entanto, ao mesmo tempo, o
nhos seguiremos.A nova moldura possui um componente fortemente indivi- centro está claramente enraizado no cristianismo e em valores do entendi-
dualista, mas isso não necessariamente significa que o conteúdo tenha de ser mento e da reconciliação internacionais, cujas raízes religiosas são explora-
individualizador. Muitas pessoasverão que estãoaderindo a comunidades das através do estudo bíblico e da liturgia. Essacombinação em seu todo é
religiosas extremamente poderosas, porque é a elas que o senso para o espi- que atrai as pessoasjovens, que desejam encontrar-secom seus iguais de
ritual levará muitas delas. outras terras e explorar a fé cristã sem quaisquer precondições quanto ao
resultado. Na formulação de um visitante: 'A Taizé, on ne vaus donne pas la
b William James. The Uarleffes of Relfgíous Experíe71ce.Penguin Books, 1982.
réponse avant que vous ayez posé la question, et surtout, c'est à chacun de
608 Parte !V: Narrativas de secularização
'v' Capíttílo14.Religiãohoje 609

chercher sa réponse IEm Taizé você não recebea resposta antes que tenha uaul Elas desejam levar isso adiante e estão em busca de maneiras de fazer
feito a pergunta e sobretudo é coisa de cada um procurar sua respostas". isso.2'E isso que as leva às práticas que constituem seu principal acessoàs
E claro que a experiência de Taizé não se situa simples e totalmente na formas de crença tradicionais.28
categoriado festivo.Certamente,
há o despedir-se
do dia a dia e o canta-
ta com algo maior. um sentimento de fraternidade universal, mesmo que Sebem que essedistanciamento do cristianismo oferece uma certa chave
nem sempre a sua fonte seja a paternidade de Deus; maso sentimento de para compreendernossasituação,se bem que as conexõesentre crençae
fusão não é sempre proeminente. Mas tampouco está totalmente ausente; identidades políticas nacionais/de grupo e modos de vida vão ficando cada
um componente central da experiência de Taizéé cantar em conjunto, cantos vez mais fracas,se bem que como consequênciaparcial estamostestemu-
especialmente compostos pela comunidade, cada pessoa na sua própria lín- nhando agora uma polarização entre espiritualidades de busca e a autori-
gua, um modelo e aperitivo da reconciliação buscada entre povos e culturas. dade peremptória, ainda resta muita coisa enigmática e difícil de entender.
Não é nenhuma surpresa que Taizé tenha proporcionado o modelo a partir Muitas pessoas se distanciaram de suas igrejas ancestrais sem desligar-se de-
do qual os Dias Mundiais da Juventude foram desenvolvidos, uma forma de las de todo. Elas, por exemplo, retêm algumas das crenças do cristianismo e/
peregrinação/assembleiacristã para a Era da Autenticidade.;' ou preservam algum laço nominal com a igreja, ainda identificadas de algum
Mas como ficam os concertos de rock e as rales?Nos termos do nosso modo com ela: elas responderão,digamos, a uma pesquisade opinião, di-
critério, eles são completamente "não religiosos"; e, no entanto, eles tampou- zendo que são anglicanas ou católicas. Os sociólogos são forçados a inventar
co podem ser facilmente enquadradosno mundo secular e desencantado. novos termos, como "crer sem pertencer" ou "cristianismo difuso" para dar
Fusõesem ação/sentimento comum, que nos tiram do dia a dia, muitas vezes conta dessefato.'P Essefenómeno está particularmente em evidência na Eu
geram a poderosa sensação fenomenológica de que estamos em contado com rapa ocidental.
algo maior, como quer que, enfim, queiramos explicar ou entender isso. Uma C)correque a]go simi]ar a isso sempre existiu. isto é, as igrejas sempre
visão desencantadado mundo necessitauma teoria para explicar o poder tiveram uma faixa de penumbra ao redor do núcleo dos crentesortodoxos
continuado dessetipo de experiência.Naturalmente que agora tais teorias e plenamente praticantes, cujas crenças buscam abrigo à sombra da hetero-
podem ser esboçadas;a]gumas já foram: por exemp]o, Dur](heim, Freud, Ba- doxia e/ou cuja prática era parcial ou fragmentária. Vimos exemplosdisso
taille. Porém, continua verdadeiro que o estadode espírito do participante anteriormente, ao tratar da "religiosidade popular" de populações que ainda
está bem distante da postura desengajada e objetificante, que é considerada vivem em parte ou amplamente nas formas do "ancien régime". Ora, o termo
como evidência convincente da alegadaverdade da cosmovisãonaturalista e 'cristianismo difuso" de fato foi cunhado para designar a religiosidade popu
imanente. Não é óbvio a priori que o senso para algo que está além, inerente lar não oficial de um período mais moderno, mas ainda não contemporâneo,
a essas fusões, possa ser explicado em última instância (e assim eliminado) o final do século XIX e início do século XX no Reino Unido. John Wolffe, se-
por meio de categoriasnaturalistas. O festivo permanece como um nicho em guindo os passos de Cox, tentou dar sentido a uma das versões dessa visão
nossomundo, no qual o (supostamente)transcendentepode irromper em Tratava-sede
nossasvidas, como quer que o tenhamos organizado em torno de compreen- um tipo de crençavago e não doutrinal: Deus existe; Crista foi um bom homem e um exem-
sõesimanentes da ordem. plo a ser seguido; as pessoasdeveriam levar vidas decentes em termos caritativos junto com
Outra coisaque é fácil de subestimarquando se confunde moldura com seusvizinhos e aqueles que procederem assim irão para o céu quando morrerem. Aqueles
que sofrem neste mundo receberãocompensaçãono próximo. Às igrejas eram vistas antes
conteúdo é o modo como a nossa resposta às nossasintuições espirituais
originais pode ter continuidade em práticasespirituais formais. Nosso per-
27Ver a interessante discussãoem Robert Wuthnow. ÁJfer Heauen,capítulo 7, "The Practice of Spiri-
curso pode ter início num momento de inspiração,numa forte sensaçãode tuality [A prática da espiritua]idade]"
afinidade espiritual ou num momento de lampejo ofuscante,mas pode ter w Outra maneira de formular todo o desenvolvimento desde 1500seria nos termos dessesdiferentes
tipos e níveis de vida religiosa. No início desseperíodo, havia um única igreja. Esta (a) unificou (ao estilo
prosseguimento por meio de alguma disciplina espiritual, talvez até bastante paleodurkheimiana) toda a sociedade;(b) suasassociaçõeslocais (paróquias)constituíramo local da
exigente. Pode ser em meditação; pode ser em oração. A pessoa desenvolve sociabilidade religiosa cara a cara e (c) ela era a matriz, dentro da qual alguns podiam buscar uma vida
devocional de cunho mais privado. Agora essastrês formas de prática religiosa podem existir de modo
uma vida religiosa. Discutivelmente essetipo de percurso setornou cada vez
totalmente dissociadoumas das outras. As pessoaspodem estar "dentro; de uma sem engajar-sena
mais proeminente e difundido em nossaera (vastamente)pós-durkheimia- outra. Porém. devemos ressaltar: isso ;)odeser o caso. Nem todos vivenciarão essa dissociação. Devo essa
na. Muitas pessoas não estão satisfeitas com uma sensação momentânea de formulação a José Casanova (comunicação privada).
9Ver GraceDavie, Re]igfonín Brffafn sínce]945; eJohn Walffe. A expressão"cristianismo difuso" foi
cunhada poi Jeffrey Cox. The EzzglísbC#]]rcbes]]] a Sec ]ar Socfefy,LaF7bef# 1870-]930.New York: Oxford
b Hervieu-Léger, l,e Pé/erílz ef /e Collz;erfí, p- 100-108. University Press, 1982, capítulo 4
610 Pal"teIV Narratioas de sectllarização CapíttiÍo14.Religiãohoje 611

com apatia do que com hostilidade: suas atividades sociaistrazem alguma contribuição para mero substancial daqueles que declaram ainda crer em Deus e/ou identificar-
a comunidade. Reconhecia-se que a Escola Dominical previa uma parte necessária da criação
das crianças e os ritos de passagem requeriam uma sanção religiosa formal. A associação era
se com alguma igreja, ainda que estes estejam a uma distância muito maior
mantida pelo comparecimento a certos festivais anuais ou sazonais,mas a participação se- dela do que os cristãos "difusos" de um século atrás. Por exemplo, suas visões
manal no culto era vista como desnecessáriae excessiva.Era mais provável que mulheres e sãomais heterodoxas(Deus muitas vezesé concebido mais com uma força
crianças se envolvessem regularmente, mas isso não implicava que os homens adultos fos-
viva) e elesdeixaramde participar em muitos dos ritos de passagem,como o
sem hostis; pode-se conjeturar que eles meramente tendiam a encarar-se como o principal
ganha-pão iia família e, por essarazão, sentiam que as mulheres deveriam representar os batismo e o matrimónio.(Na Grã-Bretanha, diferentemente da Alemanha, os
interesses da família na arena religiosa. A ênfase recaiu mais sobre o lado prático e comuni- funerais religiosos se mantêm melhor do que os demais ritos.)
tário do que sobre o teológico e individual." Em outras palavras, a apostaria ou a alienação em relação à igreja e a al-
Talvezessaespéciede penumbra fossemaior em 1900e o núcleo que ela guns aspectosdo cristianismo ortodoxo assumiu mais a forma do que Grace
circundava um pouco menor do que por ocasiãoda maré alta da onda evan- Davie chama de "nominalismo cristão". O secularismo comprometido "per-
gelicalpor volta de 1850.
Porém,semprehouve essetipo de hinterlândiacir- manece o credo de uma minoria relativamente pequena. (...) Em termos de
cundando as zonas centrais da crença e prática em qualquer igreja com grande crença, a categoria residual é antes o nominalismo do que o secularismo".s:
número de membros. Somente minorias comprometidas, em combate com Ainda não estáclaro como se deve entender isso. Uma grande dose de
suas cercanias, têm sido capazes de manter cem por cento de compromisso ambivalência de diferentes tipos está contida nessapostura distanciada que
em cem por cento dos membros. Em épocas mais antigas, a hinterlândia da Davie chama de "crer sem pertencer". Seria um fenómeno meramente tran-
ortodoxia menor situava-se mais na dimensão da religiosidade popular. das sicional, como sustentam os secularistas?Para algumas pessoas,indubitavel-
mente. Mas, para todas?
crençase práticas semimágicasque cercavam a liturgia e osfestivais da igreja.
De Certaforma, essefenómeno talvez possa ser melhor descritonos ter-
E inclusive algumas delas sobreviveram até o início do século XX,como atesta
a obra de Sarah Williams, ainda que o "cristianismo difuso" de 1900tenha mos das formas passadasda vida cristã coletiva. Ele se encontra a alguma
sido, em sua essência, diferente da penumbra religiosa de épocas mais anti- distância do "cristianismo difuso", que, por sua vez, estava a uma certa dis-
gas. Ainda assim, era penumbra. Quando se compara esses diferentes está- tância dos modelos de prática totalmente comprometida. Ele traça uma órbi-
ta mais afastadada estrela que ainda constitui um ponto-chave de referência.
gios do cristianismo britânico, há, na opinião de Wolffe, "algum fundamento
Nessalinha, as formas da Era da Mobilização ainda permanecemvivas nas
para o juízo de que, por volta de 1900,os britânicos estavam, ainda que em
margens da vida contemporânea. Isso se torna evidente em certos momen
um sentido difuso e passivo, mais próximos da ortodoxia cristã do que jamais
estiveram em toda a sua história".s: tos, como, por exemplo, quando as pessoasdesejam estar em conexão com
Então, o que aconteceua partir de 1960?Bem, é evidente que parte da o seu passado; recorrendo ao caso britânico, em alguns momentos do ceri-
monial real, como o Jubileu e o funeral da Rainha Mãe. É aí, como se fosse
penumbrafoi perdida; encontravam-seagoraclaramentefora da fé cristã,
a velha identidade neodurkheimiana em plena força ligando o britanismo
não mais identificadas com qualquer igreja, as pessoasque antes estavam
(ou cujos pais estiveram) na hinterlândia. Algumas dessaspessoasadotaram com certa forma do cristianismo protestante, onde estranhamentea Igreja
alguma visão bem diferente, como a materialista, ou adotaram uma religião Anglicana tem permissão para celebrar cerimónias para qualquer pessoa (in-
clusive católicasl); é aí que ela revive por um dia. Nossa órbita excêntrica, que
não cristã. Algo dessa mudança está refletido no crescimento numérico da-
normalmente nos carregapara o longínquo espaçoexterior, passaperto do
queles que declaram não ter religião. Isso, porém, ainda não dá conta d;o nú-
sol original nessasocasiões.Isso faz parte da significância, que mencionei an-
N]John Wolffe. God#lzdGreaferBrífaílt. Londres: Routledge, 1994,p. 92-93.David Hempton(Relígfon teriormente, do fato de que nosso passadoestá irrevogavelmente contido no
ü71dPol fica/ Culrule í l Brítaí z alia Irelatzd. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 136-137) dá cristianismo. Um momento similar ocorreu na França recentemente,durante
outra versão para essa compreensão difundida do cristianismo, ressaltando que todos os termos que as festividades dos 1.500anos do batismo de Clóvis. Várias figuras "lasque
inventamos para descrevê-lo, incluindo os próprios "crer sem pertencer" e "cristianismo difuso", não
são suficientemente flexíveis para captar a realidade complexa. Hempton também aponta para a impor- jlaicasl" reclamaram, mas ascerimónias prosseguiram sem dar atençãoa isso.
tância da música religiosa, particularmente do canto hípico, nessa cultura Negar a história é difícil.
ai Wolffe, Godand GreaferBrítain. Boutry faz um comentário paralelo sobre o período de 1840-1860no
Departamento de Ain(mas issonão era algo excepcionalnessetocante na França):"Jamais peut-être, dons Outro tipo de ocasiãosurge quando o desastre desfere um golpe, como
la longue histoire de I'Église catholique, la réalité vécue du ministêre n'aura aussi exactement colncidé avec ocorreu no dia ll de setembro de 2001, nos EUA, ou na tragédia do estádio de
son idéal; jamais I'existence des curés de villages ne será approchée d'aussi prós du modêle du 'bon prêtre', futebol de Hillsborough, na Inglaterra, em abril de 1989,onde morreram 94
élaboré quelque trois siêcles plus tât par les Pores du Concile de TrentelTalvez, na longa história da Igreja
Católica, jamais a realidade vivida do ministério terá coincidido tão exatamente com seu ideal; jamais a
existência dos curas nas povoações terá seaproximado tanto do modelo do 'bom padre' elaborado cerca de 3zGrace Davie, Re/{©oJÍín Brífaílt sílzceIZ945,p. 69-70. Para os números, ver as tabelas elaboradas por
três séculos antes pelos Pais do Concílio de Trentol" (Boutry, Prêtreset nroísses, p. 243) ela nas p. 46-50
612 Parte IV; Narrativas de secularização
Capítulo 14. Religião hoje 613

pessoas,em sua maioria partidários do Liverpool. Grace Davie descreve as


emocionadas e curiosamente gratas. Lembro a reação à vida e particularmen-
cerimónias que se seguiram em Liverpool.;; Mais uma vez, um caso alemão
te à morte do papa Jogo XXIII. E algo similar tem acontecido com algumasdas
recente é o do massacreque ocorreu numa escolade Erfurt, em abril de 2002.
ações de Jogo Paulo 11.Essasreações muitas vezes chegam muito além dos
Aqui, na ex-Alemanha
Oriental, onde o nível de práticacultualdiminuiu limites da Igreja Católica.Estamoslidando com um fenómeno que não está
mais do que em qualquer outro lugar do mundo, houve uma corrida para confinado à religião. Uma figura como Nelson Mandela despertouo mesmo
as igrejas que normalmente se encontram desertas. Algo similar aconteceu tipo de reaçãode confirmação e gratidão.
quando a balsa da Estânia afundou no Báltico com muitos suecosa bordo; as
Talvez precisemos aqui de uma nova concepção, que possa captar a dinâmi-
igrejas de toda a Suéciaficaram lotadas para os ofícios memoriais.n
cainterior subjacentea essefenómeno. Grace Davie e Daniêle Hervieu-Léger
E, é claro, há os eventos que combinam os dois aspectosmencionados parecem ter trabalhado nessa direção em seus escritos. Podemos emprestar de
acima, como o velório e o funeral da Princesa Diana em 1997.
[)avie a expressão"religião vicária".'s Ela estátentando captar aqui a relação
Assim, aparentemente a identidade religiosa ou espiritual de massasde
de pessoas com uma igreja, da qual elas mantêm uma certa distância, mas que
pessoas continua sendo definida por aquelas formas religiosas, das quais elas
elas não obstante continuam, em certo sentido, apreciando; que elas querem
normalmente mantêm uma boa distância. Ainda é preciso insistir um pouco
que esteja aí, em parte como portadora da memória ancestral, em parte como
mais na articulação dessa postura, em descrevê-la, por assim dizer, a partir
um recurso para enfrentar alguma necessidade futura (por exemplo, quando
de dentro, como fez Wolffe na passagemcitada anteriormente sobre o cris-
necessitarem
de um rito de passagem,
especialmenteum funeral);ou como
tianismo difuso. Talvez devamos seguir ainda uma outra pista aqui. Afinal fonte de conforto e orientação em facede algum desastrecoletivo.
de contas, é bem conhecida a postura de manter certa distância de alguma
Nesse caso, talvez não devêssemosfalar simplesmente da perda de uma
exigência espiritual que, não obstante, se reconhececomo tal. O famoso dito
identidade neodurkheimiana ou de uma conexão com a religião por meio de
agostiniano "Senhor torna-me casto, mas não já" sintetiza algo nessetocante.
nosso devotamente à ordem civilizacional, mas antes de uma espéciede mu-
Porém, isso normalmente é menos dramático; todos nós temos coisas impor- tação. A referência religiosa em nossa identidade nacional (e/ou sentimen-
tantes a fazer em nossasvidas e sentimos que não podemos concentrar toda to de ordem civilizacional) não desaparece,mas antes muda, recuaaté uma
a nossa atenção e energia em exigênciasespirituais ou morais que, em certo certa distância. Ela permanece muito forte na memória; também como um
sentido, consideramos válidas e até chegamos a admirar em outros, quando
certo fundo de reserva de energia espiritual ou de consolação. Ela passade
se dedicam mais plenamente a elas.
uma forma "quente" para uma forma "fria"(com nossasdesculpas a Marshall
Nosso apego a elas se expressa em não querer perdê-las de vista, em nos
McLuhan). A forma quente demanda uma identidade forte e participativa e/
sa resistência em nega-las ou em vê-las denegridas por outros. Isso pode ser ou um senso agudo de cristianismo como baluarte da ordem moral. A forma
uma parte do que está por detrás do fato de alguém responder a uma pes- mais fria permite uma certa ambivalência quanto à identidade histórica, bem
quisa de opinião, dizendo que acredita em Deus (ou em anjos ou em vida
como um certo grau de dissidência da moral oficial da Igreja (que, em nossos
após a morte), mesmo que, digamos, não batize suas crianças ou não cose dias, será mais forte no domínio da ética sexual)
na igreja ou talvez deixe de fazer qualquer outra coisa que reflita claramen-
Tomando a Grã-Bretanha como exemplo, a forma quente original da sín-
te essafé. Isso também explicaria por que as mesmaspessoaspodem ficar teseentre ser britânico, decente e cristão foi prejudicada de muitas manei-
muito tocadas pelas ações de outros que manifestam sua relação com essa
ras no século XX, sendo talvez a mais grave delas a experiência da Primeira
fonte espiritual. Na linguagem da minha discussãoanterior. as pessoaspo- Guerra Mundial. E, no cenário europeu em geral, o nacionalismo quente,
dem continuar apegados a uma perspectiva de transformação, na qual não militante sofreuuma grandeperda de crédito durante as duas guerrasmun-
estãopresentemente engajadas; elas até podem sentir que a estão perdendo
diais. No entanto, essasidentidades, seja a nacionalista, seja a civilizacional,
de vista de tempos em tempos. A nitidez da recepção,por assim dizer, oscila
não sumiram simplesmente.E a identidade europeia nova, principiante,
constantemente, como a de uma rádio FM da cidade na árezi rural. Quando onde existe, une essasduas dimensões; a Europa torna-se uma comunidade
veem ou ouvem a respeito de vidas de pessoasque parecemter sido real- supranacional, a ser definida por certos "valores". Contudo, as identidades
mente tocadaspor essasfontes de transformação,elas podem ficar muito
mais antigas assumem uma forma nova, que implica distância, passividade
emocionadas. Nesses momentos, a transmissão está alta e clara. Elas estão
e, acima de tudo, uma certa aversão em face às asserçõesde suas variantes
outrora "quentes'
s3Id., ibid., p. 88-91.
N Peter Berger. Religion and the West. The N2zfÍ0}7a/
.r}2feJesf,
n. 80, p. 113-114, verão de 2005.
3sPor exemplo, Glace Davie. Eurc#z; 77e E;tcq2ü0}7a/Cose.Londres: Darton, Longman & Uodd, 2002, p. 46.
614 Parte IV: Narrativas de secularização Capíttílo14.Religiãohoje 615

E, na verdade, europeus educados, cultos se sentem extremamente des- mas talvez consigamosavançar um pouco mais se investigarmos melhor
confortáveis com quaisquer manifestaçõespúblicas tanto de nacionalismo essa diferença
forte quanto de sentimento religioso. O contrastecom os EUAnessetocan- Desde os seus primórdios, a sociedade norte-americanaconsiderou-se
te tem sido comentado com frequência. E ele pode ajudar a retomar aqui como integradora de elementos diferentes. O lema é "e pluribus Unum
uma das questões mais debatidas no campo da teoria da secularização,a E claro que no início esseselementosconstituíram Estados.Porém,logo em
saber, a da "exceção norte-americana" -- ou, caso se prefira, visto a partir de seguida, um dos modelos de integração passou a ser o das "denominações'
uma perspectiva mais ampla, a "exceçãoeuropeia". Formulando de outra Quando as antigasigrejas estabelecidasse tornaram secundáriase a popu-
maneira, deparamo-nos com um padrão forte, ainda que não uniforme de lação se fragmentou num grande número de igrejas, a unidade pede não
declínio nas sociedades europeias e com virtualmente nada desse tipo nos obstante ser recuperada mediante a visão de que todas elas eram parte de
EUA.Como pode ser explicada essadiferença? uma "igreja" mais ampla, que relacionava as pessoasmutuamente numa "re-
ligião civil" consensual, como descrevi acima. De início, isso incluía somente
[9] Várias tentativas têm sido feitas. (1) Por exemplo, Bruce atribui a força cristãos protestantes e havia entre estes um sentimento muito difundido de
da religião na América do Norte em parte ao contextode imigrantes. Os dúvida a respeito de se os novos ádvenas,particularmente católicos,seriam
imigrantes necessitaram agrupar-se com os de origem, a fim de emplacar realmente "norte-americanos". Porém, de alguma forma a República conse-
sua transição para a sociedade norte-americana. O ponto de reunião muitas guiu expandir sua base e, no decurso do século XX, católicos e judeus passa-
vezesera a religião compartilhada, e a principal mediadora, a igreja.:' ram a ser vistos como incluídos.
Porém, essaexplicação é muito restrita. Por que a emigração consoli- Isso significa que uma das maneiras pelas quais os norte-americanos po-
daria a filiação e a frequência à igreja? A ideia deve ser a de que igrejas dem entender sua conciliaçãonuma única sociedade apesardas diferentes
podem ser grupos de apoio cómodos. I'orém, a evidência mostra que elas crenças é encarando essas mesmas crenças como contidas nessa relação con-
nem sempre foram vistas dessamaneira. A emigraçãode fato pode produ- sensualcom a religião civil comum. Frequenta a igreja da tua escolha,mas
zir o efeito oposto, como muitas vezes acontece quando os camponeses se frequenta. Mais tarde, isso se expandiu para incluir as sinagogas.Quando os
mudam do interior para a cidade.Essefenómenotem sido tão difundido imãs também começaram a aparecer nas oraçõesmatinais junto com padres,
que certas variantes da teoria da secularização o tomaram como regra bási- pastorese rabinos,é sinal de que o islamismo também foi convidado a fazer
ca para dizer que a mobilidade é uma das coisas,ao lado da educaçãoe do parte do consenso.
desenvolvimento industrial, que tende a "secularizar" a população. Isso quer dizer que alguém pode ser integrado como norte-americano
Porém, a verdade é que não há regra geral para essecaso. A mesma fon- pe/az;íada sua crença ou identidade religiosa. Isso contrasta com a fórmula
te populacional, como o Sul da ltália, pode enviar pessoaspara diferentes de "laícité" da república jacobina, na qual a integração acontece ignorando,
destinos, como, por exemplo, o Norte da ltália, a Argentina e os EUA,com marginalizando ou privatizando a identidade religiosa, casohaja alguma.
resultados diferenciados. O fato de haver um consensobastante amplo nos EUA em torno dessa
Imigrantes italianos da área rural oriundos do Sul na virado para o século xx tenderam antiga fórmula de integração, convenientemente expandida, torna vantajo-
a adorar identidades socialistas e anarquistas anticlericais quando migraram para os so para minorias imigrantes promoverem seu próprio ingresso na sociedade
centros urbanos industriais no Norte da ltália ou ]aaArgentina católica, ao passo que
tenderam a se tornar católicos praticantes "melhores" quando migraram para os'centros dos EUA,colocandoem primeiro plano suasidentidades religiosas.E issose
urbanos industriais nos EUA.Comparações similares poderiam ser feitas no presente entre torna verdadeiro em grande medida para algumas minorias, cuja alternativa
imigrantes hindus em Londres e Nova.porque ou entre islamitas de fala francesa da Africa seria serem encaradasem termos de raça, que é a outra dimensão maior da
Ocidental em Parase emNova porque."
diversidade nos EUA em que as relações tendem a ser tensas e conflituosas.
O que faz a diferença? Somoslançados de volta à nossa pergunta ori- Uma característicacrucial da sociedade dos EUA,que pode ajudar a expli-
ginal. Há alguma diferença no "imaginário social" dos dois tipos de socie- car a exceção norte-americana(ou europeia), é o fato de ela ter uma experiên-
dades de destino. Refiro-me em particular à sua compreensão do lugar da cia longa e positiva de integração pela via das identidades religiosas, ao passo
religião na sociedade.Aparentemente,retomamos ao ponto de partida; que na Europaestassempreforam fatoresde divisão: ou entre dissidentes
e a igreja nacional ou entre a Igreja e as forças laicas.E essaexperiênciare
MSteve Bruce. Re/fgío/z }l t/ze À,'foderlzI'Vor/d. Oxford: Oxford University Press, 1996, capítulo 6 lativamente positiva é acompanhadapor aquela outra dimensão da diver-
37Ver José Casanova, Immigration and Religious I'lul'alisa: An EU/US comparison", nota 20, in sidade,a da raça, que sempre foi profundamente problemática. De fato, a
ThomasBanchoff(Ed.). TheNew RellgfolísPluralíslr ützdDe/ziocracy.
Oxford: Qxford University I'reis
2006.Aprendi muita coisa com a discussão de Casanova aqui e em outras passagens. noçãode "branquidade" evoluiu na história norte-americana. Alguns grupos
616 ParteIV Narrativas de secularização Capíttllo14.Religiãohoje 617

previamente excluídos, como católicos de tez escura provenientes do sul da dados. Mas talvez seja mais do que isso. Talvez o senso de que a religião está
Europa, ingressam na categoria, em dado momento, precisamente porque em declínio e que issoé um sinal de "modernidade" não só faz com que as
sua crença passaa fazer parte da religião civil consensual." pessoasminimizem sua crençae seu envolvimento religiosos,mas também
Assim, não é só nem principalmente a condição de imigrante como tal tenha um efeito desencorajador sobre estes.A crença na teoria da seculariza-
(por exemplo, a necessidade de estabelecer redes e coisas do gênero) que çãoestariaaquando,nessecaso,em parte como uma "profecia que cumpre a
opera nessecaso; o fator crucial é, antes, uma característicaestrutural da so- sl mesma" .40
ciedade hospedeira, o modo como ela integra pela via da identidade religio- (3) Porém, talvez o cerne da exceção norte-americana seja que essa socieda-
sa. Porém, essa experiência histórica mesma só começa a explicar a diferença de é a única que, desde o início (se abstrairmos dos paísesda "antiga" Comu-
em relação à Europa. nidade Britânica),esteveinteiramente inserida no molde neodurkheimiano.
(2) Outro importante favor de diferenciação pode ter sido a natureza hie- bodas as sociedades europeias têm alguns elementos do a?zcíe/z
ré8fmeou do re-
rárquica das sociedades europeias. A elites britânicas, por exemplo, e par- gime paleodurkheimiano, talvez até mais vestigiais do que reais -- como o am-
ticularmente a ínfe//igerzfsfa
vivenciaram uma cultura fragmentada desde o biente ritual que cerca até as monarquias constitucionais --, mas muitas vezes
século XVlll; a proeminência da descrença pode até ter sido menor em certos ainda suficientemente importante -- como a presença das igrejas (ao menos
períodos de forte piedade, mas ela sempre estevepresente. Ora, algo similar pretensamente) estatais ou de comunidades rurais com sua "religion du ter-
pode até se aplicar à ínfe//lgenfsfanorte-americana,mas a posição que ela roir [religião do chãos". As proporções de pa]eo e neo foram muito diferentes
ocupou na sua própria sociedade foi bem diferente. Na sociedadedeferencial à medida que nos movemos da Espinha para a Grã-Bretanhaou a Suécia,
britânica, o padrão de vida da elite possui um prestígio que, em grande medi- mas todo os Estados europeus igualmente contêm alguma mescla dos dois,
da, falta-lhe nos EUA.Isso significa que a descrençada elite pode tanto resistir ao passo que vida religiosa norte-americana se constituiu inteiramente na
mais eficazmente a conformar-se quanto mais prontamente prover modelos Era da Mobilização.
para pessoasem outros níveis. Mais uma vez há paralelos com outras socie- Isso significa que algumas das dinâmicas que se originam das estruturas
dades europeias, que, nesse tocante, todas contrastam com os EUA.39 do arzcíellrépnze (AR) terão lugar, em graus variados, em todas as sociedades
A capacidade das elites de dar o tom a toda a sociedade, de definir seu do Velho Mundo. Uma delas é a reaçãocontra a igreja estatal no contexto
imaginário religioso", pode vir a ser um favor muito importante. E provável de uma sociedadenão igualitária,em que a tentaçãode alinhar a religião
que o mundo acadêmiconorte-americanoestejatão profundamente imbuí- estabelecidacom poder e privilégio é quase irresistível. Isso não deixaráde
do de descrençaquanto seu equivalente europeu. Certamente, as suposições produzir reaçõesanticlericais,que facilmente poderão transformar-se em
básicas,digamos, da ciência social e da história parecem ser igualmente se- descrençamilitante, dada a disponibilidade das opções exclusivamentehu-
cularistas. Porém, no caso norte-americano, isso parece ficar sem efeito so- manistas desde o século XVTll; essadescrença militante estará disponível, en-
bre os segmentos mais amplos da sociedade maior, ao passo que em países tão, para canalizar toda a força do descontentamento popular com o clero
europeus a visão da elite parece ter definido o quadro do lugar da religião, estabelecido. Vemos essa dinâmica exaurir-se na França e na Espanha, em
aceito de modo geral. O público europeu parece ter interiorizado a principal certa medida até na Prússia. Na Grã-Bretanha, em contrapartida, vimos que
história da secularizaçãocomo declínio constante, contra a qual argumentei o anticlericalismopopular encontrou expressão,em grande medida, na não
aqui, de um modo que os norte-americanos não fizeram. conformidade. Porém, inclusive nesse caso uma corrente alternativa esteve
A força dessasdiferentes histórias nos dois lados do Atlântico parece presente desde o início, em figuras como Tom Paine e Godwin; ao passoque
emergir de uma característicapeculiar dos dados levantados em pesquisas ideias dessetipo não tiveram o mesmo impacto nos primórdios da história
de opinião. Percebeu-seque em pesquisaspara apurar o nível de envolvi- dos EUA.C) cunho dado por uma fileira impressionantede deístasentre os
mento religioso - digamos, quantas vezes alguém frequento a igreja - os fundadores,sendo Jeffersono mais notável dentre eles, pareceter sido, em
norte-americanos tendem a exagerar a frequência de seu comparecimento, grande medida, obliterada pelo segundo Grande Reavivamento.
ao passo que os europeus tendem a diminui-la. Nessenível, algum senso Outra dinâmica que ganha importância nessescasosé a do efeito per-
do que deveria acontecer "normalmente" intervém no sentido de afetar os turbador sobre a crença religiosa de uma crise que afeta igualmente as for-

n Idem?t. 4nEsta é a tese de José Casanova, no seu artigo Orfodoxías seclt/aresy beterodoxhs rellgosas etz/a r?roder-
a9Repito: há similaridadecom uma tesede Martin; ver David Martin. Pelifecostalísln.
Oxford: Bla nídad,p. 18-20.Essatese será exposta em seu livro, a ser publicado, sobre o que é válido e o que é falso
ckwel1,2002,p. 56, 68. na tese tradicional da secularização
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mas do AR e as formas da Mobilização e que, ao mesmo tempo, obviamente que cada pessoacompartilha uma certa codificação moral ou espiritual, que é
é maior do que o questionamento dirigido unicamente às estruturas neo- como você apreende a nossa experiência moral intensamente coletiva, esva-
durkheimianas. Se os camponesestransformados em cidadãos franceses neceu mais rapidamente na Grã-Bretanha e enfraqueceu o código; enquanto
só podem ser resgatados da descrença mediante os modos da mobilização isso, no casonorte-americano, muitas pessoassentiram e continuaram sentido
neodurl<heimiana, então o ato de minar estesúltimos produz um efeito mui- que você pode mostrar seu norte-americanismo aderindo à Igreja, em parte
to mais profundo de desestabilização da crença ou, ao menos, da prática. Em por razões que acabei de esboçar. Nesse tocante, seguindo o argumento aci-
contrapartida, numa sociedadeem que o movimento rumo à Era da Mobili- ma, outras sociedades europeias são similares à Grã-Bretanha, passaram pelas
zaçãofoi completado sem qualquer apostasia significativa da crença,o efeito mesmas experiências históricas com resultados similares."
do ato de minar os modos previamente predominantes dessamobilização A esseargumento deve ser acrescentado o ataque triplo que sofreu o com-
obviamente será muito menor. plexo família-religião-patriotismo dos anos de 1950na era dos direitos civis,
(4) Talvez possamosprecisar ainda mais nossaquestãoda diferença entre do Vietnã e da revolução expressiva.Essanão seria, no casonorte-americano,
América do Norte e Europa se a formularmos da seguinte maneira. Minha a analogia à Primeira Guerra Mundial para os britânicos? Talvez,mas é óbvio
principal linha de argumentação aqui tem sido a de que a revolução cultural que nem todos veem isso assim. De fato, as diferentes reaçõesa essaera pa-
dos anos sessentadesestabilizou as formas anteriores da religião e por essa recem sublinhar as "guerras culturais" da política dos EUA contemporâneos.
razão teve continuidade no desenvolvimento de novas formas. A ética da I'arece que aquela fusão de crença, valores familiares e patriotismo ainda é
autenticidade, que setornou muito forte em tempos recentes,acompanhada tão importante para uma de duas partesda sociedadenorte-americana,que
de uma revolução sexual, amuoude duas maneiras para desarranjar formas ela fico.u consternada em vê-la ser questionada, tanto em seus valores centrais
religiosasmuito vigorosasdo séculoXIXe do início do séculoXX. Em pri- (por exemplo, a disputa pelo aborto e pelo casamento homossexual)quanto
meiro lugar, ela minou os alinhamentos neodurkheimianos da crença com na ligação entre sua crença e o regime político (disputas pela oração na escola,
a identidade política e, em segundo, cortou rente ao chão a estreita conexão pela frase "sob Deus" e similares)
entre crença religiosa e uma certa moral sexual, uma das importante fusões Além disso, um grande número de norte-americanos,inclusive aqueles
da religião com a moral supostamente portadora de caráter civilizacional que não são da direita, ainda se sentem bem confortáveis com a ideia de que
Assim sendo, a nossa questão pode ser formulada assim:por que essa os EUA é "uma nação sob Deus". Os que se sentem desconfortáveis com essa
desestabilizaçãodeu origem a um declínio do devotamento e da prática reli identidade têm voz e sãodominantes nas universidadese (alguns)meios de
ciosos e, em certa medida, até da crença religiosa na Europa e não nos EUA? comunicação, mas não são tão numerosos assim. Isso é tanto mais assim, pelo
No que concerne aos EUA, pelo menos uma faceta da resposta salta aos fato de que os próprios grupos de imigrantes não cristãos e não judeus, que
olhos. Naquele país, houve uma forte reação ou resistência contra afrouxar supostamente seriam os aliados naturais dos que querem oferecer resistência
os laços que uniam religião, identidade política e moral civilizacional. De à codificação bíblica da identidade norte-americana, estão ansiosos para serem
fato, permanece muito forte o modo do patriotismo norte-americano, que.vê cooptados por uma variação convenientemente ampliada da mesma. Os imãs
o país essencialmente como uma nação sob Deus e certos "valores familiares passaram a figurar ao lado de padres e rabinos em orações públicas e essauni-
como essenciais para sua grandeza. Ele está sempre pronto a rechaçar o que dade panreligiosa vêm à tona especialmenteem momentos de crise ou desas-
considera como desnaturação da América do Norte. Esseé um modo de reli- tre, como ocorreu após o ll de Setembro.
gião que permanece muito forte nos EUA. Em outras palavras, a importância continuada da identidade religiosa para
Em contraposição, o patriotismo constitucional-moral, que denominei an- a integração nacional apraz à maioria dos norte-americanos em "uma nação
teriormente de síntese reinante entre nação, moralidade e religião e que, em sob Deus", mesmo que estejam disputando acirradamente com outros as su-
tempos idos, era muito similar na Grã-Bretanha e nos EUA,Qoi,não obstante, postas decorrências disso, em áreas como o aborto ou o casamento homosse-
muito menos forte na Grã-Bretanha; na verdade, ele sofreu uma contestação xual. Grandes quantidades de votantes em Estados"azuis", que abominam os
muito mais forte. Essefoi o caso particularmente na sequência da Primeira zelotes da Direita Religiosa, são,em sua maioria, membros de igrejas represen-
Guerra Mundial, que foi muito mais traumática para a sociedadebritânica tativas, que ainda desejam firmar alegremente as fórmulas consagradas das
do que para a sociedade norte-americana. Como argumentei acima, na Grã- denominações que coexistem harmoniosamente
Bretanha, o questionamento à civilização representado por esse cataclismo
certamentefoi vivenciado por muitos como questionamentoà sua crença. ii Isso seaproximada teseesboçadapor Mártir, casoeu o tenha entendido corretamente,em Peia
Em decorrência, o forte sentimento gerado pelo efeito neodurkheimiano de fecosl'alísln,p. 53.
620 Parte IV Narratillas de sectliarização Capíttiio14.Religiãohoje 621

Ora, em parte, isso é o resultado da enorme diferença na quantidade de Assim, nos termos da discussãoproposta por mim há poucos parágrafos,
pessoasque aderem a alguma religião nos EUAem comparaçãocom a Eu- a síntesenorte-americana tradicional de "religião civil", uma forte identidade
ropa. Porém, também tem a ver com as respectivasatitudes em relaçãoà neodurkheimiana, originalmente em torno de um cristianismo não denomi-
identidade nacional. Na segunda metade do século XX, a Europa tem sido nacional, tendo uma forte conexão com a ordem civilizacional, ainda está na
muito reticente quanto ao seu anterior sentimento de nacionalidade e a ex- fase"quente", diferentemente do seu equivalente britânico. A religião civil
plicação para isso está nos eventos da primeira metade desse mesmo século. original gradualmente se tornou mais ampla do que sua base protestante.
A União Europeia foi construída como tentativa de ir além das formas an- mas ela agora alcançou um estágio em que, enquanto o elo com a ordem
teriores, na plena consciência de como elas foram destrutivas. A afirmação civilizacional permanece forte, a conexãocom a religião passou a ser questio-
grandiloquente dos nacionalismos autoexaltadores mais antigos está agora nada por um amplo círculo de crentes secularistas e liberais. Questões como
reservada à direita radical, que é percebida por todos os demais como uma a supressão da oração na escola, o aborto e, mais recentemente, casamento
peste, uma possível doença mortal, e que, por isso mesmo, é antieuropeia. A homossexual tornam-se altamente carregadas de tensão. Falei acima de uma
guerra, inclusive a guerra "justa", como expressãoda superioridade do pro- 'guerra cultural", mas outra analogia pode ser "la guerre franco-française [a
metonacional, causaprofundo constrangimento na maioria dos europeus- guerra franco-francesas",duas codificações ideológicas da mesma identida-
A atitude dos EUAnadosé bem diferente. Isso pode ser assimem parte de nacional em forte oposição,num contexto em que o nacionalismo(para
porque eles se confrontam com bem menos esqueletosno armário da família não dizer, chauvinismo de grande poder) permanece muito forte. Essaé a
do que seus primos europeus. Penso, porém, que a resposta é mais simples. receita para conflitos renhidos.a
É bem mais fácil ter confiança irrestrita em sua própria fortaleza quando se é (5) Isso provê a metade da reposta. A outra metade é que, para aqueles
o poder hegemónico. Os esqueletos estão ali, mas podem ser resolutamente que estão dispostos a deslocar-separa uma postura pós-durkheimiana e são
ignorados, a despeito dos esforçosde um bravo grupo de estudiosos empe- críticos à moral sexual tradicional, a história do pluralismo religioso norte-
nhados nas "guerras em torno da história". A maioria dos alemãesbaixa a americano oferece o modelo das numerosas opções de formas religiosas mais
cabeçaquando é lembrada do slogan"Gott mit uns adeus conoscol" usado na pessoalizadas e experimentais. O livro secular e muito celebrado de William
Primeira Guerra Mundial (sobre a Segunda Guerra Mundial, quando menos
Jamesjá nos propordonou muitos exemplosdisso bem antesda revolução
sedisser,tanto melhor).': Porém, a maioria dos norte-americanos têm poucas
cultural do séculoXX.4s
Em outraspalavras,modelosde vida religiosaque
dúvidas sobrede que lado Deus está. Nessecontexto, é bem mais fácil viver irromperam dos modos neodurkheimianos e moralistas já eram comuns no
com a definição neodurkheimiana tradicional."
cenário dos EUA.As pessoasque agora gostariam de explorar essescaminhos
já têm exemplos a seguir.
4zDe fato, só podemos ficar estupefatos com o chauvinismo de intelectuais e acadêmicos em ambos
os ladospor ocasiãoda eclosãoda PrimeiraGuerra Mundial. Um bom número de professoresalemães [)esde o início do séculoXIX, os EUA têm sido uma pátria de liberdade
publicou um manifesto explicandoque a batalha de suasnaçõesera em nome da Ku/fzlr.Ao que um religiosa, expressade um modo muito norte-americano: isto é, eles têm sido
grupo de eruditos católicosfrancesesrespondeu em novembro, identificando a causareal do terrível
conflito: "La philosophie allemande, avec son subjectivisme de fond, avec son idéalisme transcendantâl, um país de livre-escolha religiosa. As pessoas se põem em movimento, for-
avec son dédain des données du seis commun, avec sescloisons étanches entre le monde du phéno- mam novas denominações, aderem àquelas em que não foram criados, aban-
mêne et celui de la pensée, entre le monde de la raison et celui de la morde ou de la religion, n'a-t-elle
pas préparé le terrain aux préventions les plus extravagantesd'hommes qui, pleins de confiance en leur
propõe esprit et se tenant eux-mêmes pour des êtres supérieurs, se sono cru le droit de s'élever au-dessus relativas à crença, seja porque vivem numa identidade "britânica", que desde então decaiu na "nação-
des rêgles communes, ou de les plier à leur fantaisie? anão terá sido a filosofia alemã, cam seu subjeti- matriz" bem como na ex-calúnia, seja porque(como no caso do Quebec) elas passaram por uma guinada
vismo como pano de fundo, com seu idealismo transcendental, com seu desdém pelos dados do senso que se assemelhamais ao modelo europeu. Porém, acima de tudo, elasnão constituem poderes hege-
comum, com suasdivisórias herméticas entre o mundo do fenómeno e o do pensamento, entre o mundo mânicos e, num dos casos,são constantemente lembradas desse fato pela proximidade da nação que o
da razão e o da moral ou da religião, que preparou o terreno para as prevenções mais insensatasde pes- é. Assim, não é surpresa encontrar os números da crença/prática religiosa situados mais ou menosentre
soasque, cheiasde confiança em seu próprio espírito e considerando a si próprias como seressuperiores, os da Europa e os dos EUA. Tampouco causasurpresa que a questão do casamento homossexual,mesmo
acham-seno direito de colocar-seacimadas regrascomunsou de molda-lasao seutapricho?j"Maritain, que tenha provocado comoçãotambém entre os conservadoresdo Camada,não despertou o mesmo
na suapre]eçãode inverno de 1914-1915 no l?zsfftutCaf/iolíqile[lnstituto Católico],proclamouque uma grau de furor e indignação como no nosso vizinho ao sul
vitória francesa"signifierait, non pas immédiatement sons doure, mais dans sesconséquenceséloignées, 'u Essaidentidade "quente" pode tambémajudar a explicar as diferençasentre Europae América
la victoire de la civilisation et de la foi catholique sur le naturalisme de la Ku/fur germano-protestante do Norte que vieram à tona por ocasiãoda recenteguerra no Iraque. Alguns comentaristastentaram
jsignificaria, não de imediato, sem dúvida, mas eln sua consequênciasa longo prazo, a vitória da civiliza- capturar esse fato na seguinte frase memorável: "Os norte-americanos são de Morte. os europeus são
ção e da fé católica soba'eo naturalismo da KurtKr germana-protestantes" (apHdPhilippe Chenaux. Elzfre de Vênus". Ver Robert Kagan. q Pnradlsea}2dPomar.New York: Taylor and Francês,2003 [ed. porá.: Do
Maurras ef À4arítaff:. Paras:Cera, 1999, p. 18-19, 201). parado e do poder.' os Estados Utzfdos e a Europa fia zonaarde/?zlnií ldlal. Trad. Jussara limões. Rio de Janeiro
't3Talvezum "casode controle" possaserencontrado nassociedadesda antigaComunidade Britâni- Rocco, 20031
ca de Nações: Canadá, Austrália, Nova Zelândia. Como os EUA, e isto(quase) desde o início, elasestive- 4sWilliam Jades. The Uaríeffesof RelÜlous Experfellce.New York: Random House, 1999 ted. porá.:As
ram na Era da Mobilização.Porém. elastambém não se deram bem em suas definições neo-dulkheimianas oadedades da experiência religfosR.' urlr estado sobre a natureza/zurnalla. São Paulo: Cultrix, 1995j
622 Parte !V Narrativas de sectllarização CapítLlto
14.Religiãohoje 623

donam aquelas que existem e assim por diante. Toda a sua cultura religiosa autonomia e das identidades livremente buscadas obrigatoriamente levaria a
está, de certa maneira, preparada para a Era da Autenticidade, mesmo antes um declínio da religião. E a aceitaçãogeral dessahistória contribuiu, por seu
que isso se tornasse uma faceta da cultura de massa na última parte do século turno, para um declínio da crença e da prática como profecia que cumpre a
XX. E verdade que a ética da autenticidade estavapresenteantes dos anos si mesma
de 1960entre as elites cultas nos dois lados do Atlântico, mas as pessoascom Nesse ponto, confesso que estou dando golpes às cegas. Foge-me uma
formação constituíam uma parcela bem mais ampla da população dos EUA explicação plenamente satisfatória dessa diferença, que, em certo sentido, é a
mesmo antes da expansão das universidades no período pós-guerra. questãocrucial no confronto com a teoria da secularização.a
Por essa razão, toda essa mudança foi muito menos desestabilizadora
na América do Norte. Em contraposição, na Europa os precedentes das for- j10] Talvez eu possa tentar reunir alguns dos fios dessa discussão. Estive
mas pós-durkheimianas mais novas eram esparsosou não existentes. Basta tentando descrevercomo passamosda descrença (parcial) da elite do sé-
pensarmos, por exemplo, na Alemanha e na França, onde os novos "cultos culo XVlll para a descrença(mais ampla, mas ainda parcial), mas também
perturbavam profundamente as pessoas.Até mesmoos ateístasfrancesesfi- desafeição e distância da religião no século XXI. Isso me levou para a área
cavam um tanto horrorizados quando a religião não assumia a forma católica da teoria da secularização;nesseponto, declareimeu desacordocom a
padrão que eles adoravam odiar. versão "ortodoxa" e minha concordância com as críticas dos historiadores e
sociólogos "revisionistas". Não estamos lidando com um retrocesso linear
É o bastante como resposta à questão que emerge da minha argumentação (não estou tratando de estatísticasaquil) na crença/prática, causadapela
anterior. Confesso que só estou meio satisfeito com essa resposta; talvez três incompatibilidade entre algumas características da "modernidade" e da
quartos satisfeito, para ser mais exato. Penso que a argumentação sobre os EUA crença religiosa. Não aceito o que muitas vezes parece ser uma premissa
está correra e a falta de uma reaçãoneodurkheimiana na Europa também me tácita acercada motivação humana subjacente a essanarrativa basilar da
parece carreta e compreensível. Porém, ainda se pode perguntar: por que os eu- secularização. Sustento particularmente que esseanseio religioso, o anseio
ropeus não foram mais inventivas na criação de novas formas? Por que eles não por e a respostaa uma perspectivamais do que imanentede transfor-
copiaram simplesmente os modelos norte-americanos, que, afinal de contas, não mação,que Chantal Milon-Delsol chama de "désir d'éternité [desejode
eram desconhecidos nessa era de rápida comunicação e viagens internacionais? eternidades"," permanece como uma intensa fonte independente de mo-
Talvez a resposta só possa ser procurada em fatores de longo prazo. Um tivação na modernidade.4*
deles pode ser a contínua sombra histórica do ízncfelz
régímena Europa, men-
cionada anteriormente. A hegemonia das igrejas nacionais (ou transnacio- %Até agora estivemos comparando os EUA com sociedades europeias, mas talvez outro aspecto
nais nacionalmente estabelecidas) ainda molda a visão das pessoas por sécu- venha à tona se os compararmoscom a União Europeia; porque esta,em sua autodefiniçãogradual,
deu passospróprios na direção da secularidade 1, sendo o mais notável deles a recusa a integrar Deus
los depois de terem cessadode desempenhar qualquer papel controlador; e na nova constituição, altamente contestada.Ver Peter Berger, Religion in the West, in: 7'/zeNaffolla/ Jlífer-
isso talvez até em lugares como a Grã-Bretanha, onde a hegemonia foi bas- esf,verão de 2005, p. 112-119.Berger vê os EUA como uma agência de secularização:"Ser integrado na
Europa significa assinar a eurossecularidade"(p. 113); porém, formulado de maneira ainda mais precisa,
tante mitigada pelo pluralismo religioso. Enquanto isso, nos EUA não existiu poderíamosdizer que a integraçãona Europa continua encorajando a perda de poder de quaisquer
nem o menor vestígio disso. Isso pode ter sido determinante para o impacto identidades neodurkheimianas que ainda existam
de uma ética da autenticidade nos dois continentes. Enquanto na América Comparando as duas estruturas políticas, podemos dizer que, para muitos norte-americanos, o elo
neodurkheimiano entre Deus e nação é forte, ao passo que, para os europeus, não só esseelo está desa
do Norte essenovo valor poderia facilmente ser associadocom modos de creditado em países individuais, mas, no plano continental, a pluralidade confessional em que os vellaos
expressãoreligiosa, na Europa era mais fácil vincular religião com autorida- patriotismos estavam radicados representaum obstáculo adicional. Nessestermos, "Deus" pode ser consi.
derado como uma ameaçaà integração europeia, enquanto ainda fortalece o patriotismo norte-americano.
de, com conformidade a padrões que abrangem toda a sociedade, para não Pensarsobre essa questão no plano europeu também mostra como outro dos favoresmencionados
falar de divisões hostis entre pessoase até de violência. Para muitas pessoas, acima opera com grande força. Dissemos acima que as sociedades europeias tenderam a acompanhar
suas culturas de elite mais do que a norte-americana. Mas esseefeito é maximizado no plano "europeu",
inclusive as jovens, as igrejas e a religião ainda carregavam essabagagem de onde o percurso foi feito inteiramente por essaselites -- com consequências que vieram à tona recente-
submissão e conformidade, que, para muitos norte-americanos, elas há mui- mente em referendos propostos por vários Estadosdo continente
47Esprít, junho de 1997, p. 45-47.
to já haviam perdido. Nessasituação, o convite para encontrar um caminho a Ao usar essaexpressãomais vaga,não estou tentando de forma alguma definir algum tipo de
próprio obrigatoriamente levaria um número maior de pessoasna Europa do constante antropológica, uma definição atemporal do senso religioso humano. Creio que isso seencontra
bem além de nossa capacidade, ao menos neste momento. A formas e os modos da religião são demasia-
que nos EUA a buscar formas extrarreligiosas de sentido. do variados no decurso da história. "Eternidade" é um termo significativo nas tradições religiosas e que
Além disso, essaidentificação da religião como o inimigo da autenticida- definiu o cristianismo latino; daí o uso que faço dele aqui. Alego que a religião nesse registro ainda exerce
de ajudou a dar crédito à história da secularização de que um crescimento da uma forte atração sobre as pessoashoje.
624 Pül"teIVI Narrativas de secularização CapÍtLiío 14. Religião hoje 625

Não obstante, é óbvio que ocorreu um declínio na crença e na prática e, um mundo em que a crença perdeu muitas das matrizes sociaisque a faziam
além disso, foi perdido o stízfusinquestionável de que gozava a crença em sécu- parecer "óbvia" e inquestionável. Não todas, é claro; ainda há ambientes em
los passados.Esseé o fenómeno maior da "secularização". O que falta entender que ela representa a solução "d(:ÃaíZt[padrãol": a não ser que você tenha in-
é em que ele consiste exatamente. Uma das maneiras de formular a minha tese tuições muito fortes em contrário, parecerá conveniente que você prossiga
poderia ser, por razões de simplicidade, a de outra "história de subtração". Isso dessa maneira. Também temos, porém, ambientes em que a descrença está
implicaria ignorar momentaneamenteo modo como cada estágiodessepro- muito próxima de ser a solução deánulf(incluindo parcelasimportantes da
cessoincluiu novas construçõesde identidade, imaginário social,instituições e academia).Assim sendo, por toda parte aumentou a fragilização.
práticas. Porém, o enfoque sobre o lado negativo ressaltará mais claramente o Se quiséssemoslevar adiante essaexplicação como uma "história de subtra-
contrastecom a teoria principal. ção", poderíamos dizer que a secularização,definida como a perda das matri-
Posto isso de modo bastante esquemático, podemos perguntar: o que im- zes sociais da crença, consequentemente como declínio e fragilização, acabou
pedia as pessoas (isto é, quase todas elas) de serem capazes de adorar posturas por produzir um "campode jogo nivelado",porque essasmatrizeshaviam
de descrença em 1500?Nossa resposta é: o mundo encantado; em um cosmo conferido previamente uma vantagem preferencial à crença.Porém, essaideia
de espíritos e forças, alguns deles maus e destrutivos, era preciso ater-seao que por si só é absurda, pois o que realmente temos não é nenhum campo de jogo,
quer que fosse concebido como o suporte principal do poder benéfico, nosso mas um terreno muito acidentado; há grandes quantidades de inclinações,
baluarte contra o mal. Outra resposta foi: a crença estava tão entrelaçada com a mas elas não tendem todas na mesma direção. A tendência do BlbieBe/f [Cin-
vida socialque uma dificilmente poderia ser concebidasema outra. Essasduas turão Bíblico] não é a mesma que a de uma universidade urbana
estavamoriginalmente interconectadas: alguns entrelaçamentosimplicavam Poderíamos dizer que este é um mundo em que o destino da crença de-
usoscoletivos do poder benéfico, divino, contra os perigos do mundo dos es- pende muito mais do que antes de poderosas intuições de indivíduos que
píritos; cerimónias como "bater os marcos" da paróquia ilustram isso. as irradiam para outros. E essasintuições estarão,por sua vez, muito dis-
Negativamente e deixando de lado toda a construção que resultou nisso, tantes de serem autoevidentes para os outros. Para alguns, incluindo alguns
os séculos transcorridos desde então presenciaram a dissipação do cosmo en- crentes, essedesenvolvimento epocal se assemelhará a um retorno ao cris-
cantado (alguns elementos da crença no encantamento permanecem, mas eles tianismo. Para outros, o recuo do cristianismo implica tanto perdas quanto
não formam um sistema, sendo sustentados por indivíduos aqui e ali, mais do ganhos. Algumas grandes realizações da vida coletiva estão perdidas, mas
que sodalmente compartilhados). Seguiu-se,então, a introdução, no contexto outras facetas de nossa difícil situação em relação a Deus são deslocadas para
da ordem moral moderna, de uma alternativa viável à crença,das formas do o primeiro plano; por exemplo, o que lsaías quis dizer quando falou de um
humanismo exclusivo, por sua vez, seguido da multiplicação de posições tan- 'Deus abscõndito". No século XVll, você teria de ser um Pascalpara apreciar
isso. Agora vivenciamos isso diariamente.
to crentesquanto descrentes,o que denominei de "nova". Isso tudo gerou a
O resultado desse pluralismo e fragilização mútua frequentemente será
contestação, o solapamento e a dissolução das formas sociais mais antigas que
uma retirada da religião da áreapública. De certo modo, issoé inevitável e,
inseriam a presençade Deus no espaçosocial: as formas paleodurkheimianas
nessascircunstâncias,bom. A justiça requer que uma democracia moderna
e, mais genericamente, as formas do íz/zcie/z
régíme.No início, as maiores bene-
ficiárias dessedeclínio foram as formas neodurkheimianas e demais formas da mantenha a mesma distância de diferentes posições de fé. A linguagem de cer-
tos organismos públicos, como, por exemplo, das cortes, deve estar isenta de
Era da Mobilização, que foram erguidas sobre as ruínas das estruturas e comu-
premissas extraídas de uma ou outra posição. Nossa coesão depende de uma
nidades do aFzcíelz régílne.Porém, os desenvolvimentos subsequentes acabaram
ética política, da democracia e dos direitos humanos, basicamente extraídos da
por solapar também estas, incluindo a exigência de que a civilização deveria
Ordem Moral Moderna, firmada por diferentes comunidadescrentese não
ser cristã para ser bem ordenada. Não mais vivemos em sociedades, nas quais
crentes, cada uma delas por sua própria razão divergente da dos demais. Vive-
se possamanter o sentimento muito difundido de que a crençaem Deus é
mos no mundo do que John Rawls descreveu como "consenso sobreposto'
central para a vida ordenada que usufruímos (parcialmente).'9
Porém, sob outro ângulo, como argumentou José Casanova,5' o discurso
Trata-sede um mundo pluralista, no qual muitas formas de crença e des-
religioso estará muito mais exposto à área pública. A democracia requer que
crença se chocam e, em consequência, fragilizam umas às outras. Trata-se de
todo cidadão ou grupo de cidadãos utilize, no debate público, a linguagem

49Tenho a impressão que o quadro em três estágiosque estou desenvolvendo aqui foi bem captado :' John liawls. Palífícal Libera/ísm. New Ynrk: Columbia University Press, 1993Íed. pare.: l.íbel'a/fsll?o
no ensaioainda inédito TheRegísfecf/teTzcketazzd
f/zel«ebsífe,de Hugh McLeod.Mas eu não presumida político. Barcarena: Presença, 1997]
sua concordância com o modo como o elaboro aqui. 51José Casanova. Plrblfc Rellgons ílz fAc ib oderlt World. Chicago: University of Chicago Press, 1994
'Y'
626 Parte IV: Narrativas ãe secularização Capítulo 14. Religião hoje 627

que seja mais significativa para todos.A prudência pode urgir-nos a formu- sam no caminho do éfhosda época e contra as quais muitas pessoasainda
lar as coisasem termos que têm algo a ver com os demais, mas exigir isso estão reagindo. Elas se encontram numa desvantagem ainda mais séria oca-
seria uma imposição intolerável à fala cidadã. A medida que o senso de estar sionadapor um subproduto imprevisto do clima de busca fragmentada: o
vivendo no cristianismoesvanecee reconhecemosque nenhuma família es- fato de que o abandono da prática significou que geraçõesem crescimento
piritual está no comando ou fala por todos, haverá maior senso de liberdade muitas vezes perderam contado com as linguagens religiosas tradicionais.s'
para articular nossospróprios pensamentose, em alguns casos,estesserão Na formulação de Paul Valadier
inevitavelmente formulados no discurso religioso. c'est en bien des cas I'ouverture même au seno religieux, la compréhensionminima-
Creio que essedesenvolvimento está por trás do aparente paradoxo per- le de ce qu'il en est d'un acrede foi, I'expériencetoute simple du sacre,ou de Doeu[-.],
I'appercepüon que la foi n'est pas pure absurdité mais démarche senséeet exaltante qui fome
cebido por Grace Davie, a saber,que foi precisamente após o grande declínio défaut, [-.] le deste même par lequel que]que chore se ]aissepressentir de I'univers religieux
pós-1960que certos bispos anglicanos começaram a fazer fortes intervenções, jsão justamente os casos da abertura mesma para o sentimento religioso, da compreensão mí-
criticando publicamente o governo Thatcher.s' Talvezpossamosdizer que foi nima daquilo que constitui um ato de fé, da simples experiência do sagradoou de Deus (.. .),
da percepção de que a fé não é puro absurdo, mas atitude sensata e exaltação que fazem falta,
somente após o abrupto declínio que os líderes anglicanos se libertaram da (. ..) o gesto mesmo pelo qual qualquer coisa do universo religioso pode ser p;essentida].s4
carga mental de serem igreja estabelecida e puderam sentir-se livres para
expressar suas proprias opiniões. Em contrapartida, o que depõe contra as formas de descrençaé a série de
E o bastante no que se refere à história negativa como narrativa central. irritantes insatisfaçõescom a ordem moral moderna e a disciplina que asacom-
Poderíamos,no entanto, acrescentaruma narrativa complementar que en- panha, o rápido desgastede suasversõesutópicas, a contínua sensaçãode que
fatize as características positivas da presente espiritualidade da busca. Por há algo mais. Essesfavorespodem fazer com que as pessoaspartam em muitas
positivas" não entendo característicasque necessariamentetenhamos de direções,incluindo as do contra-Iluminismo imanente, mas tambémpodem
endossar;entendo que não dirigiremos o foco para aquilo que nossa era de- abrir avenidaspara a crença.Esseé o ponto em que uma das desvantagens
salojou, mas para aquilo que a caracteriza. O que salta à vista aqui é o vetor da crença mencionadas anteriormente possui um reverso positivo, a saber o
de longo prazo no cristianismo latino, movendo-se por mais de meio milênio próprio fato de que suasformas não estãoabsolutamente em consonânciacom
rumo a formas mais pessoais, comprometidas de devoção e prática religio- grande parte do espírito da época; um espírito no qual as pessoaspodem ficar
sas.A espiritualidade da busca que presenciamoshoje poderia ser entendida aprisionadas e sentir a necessidade de libertar-se; o fato de que a crença nos co-
como a forma que essemovimento assumiu na Era da Autenticidade. A mes- necta com tantas avenidas espirituais através de diferentes eras;com o passar
ma tendência de longo prazo que produziu o crente individual disciplinado, do tempo, isso pode atrair pessoasa ela. La /alfa co/zfílzua[A luta continua].
cônscio, comprometido, o crente calvinista, jansenista, humanista devoto, No que concerne à área central do cristianismo latino, isto é, a Europa oci-
metodista; que depois disso nos proporcionou ainda o cristão "renascido", dental, em contraposição às suasáreasexternas tanto no norte quanto no sul
da América do Norte, seu futuro é muito obscuro. O contato evanescentede
e agora produz o peregrino de nossosdias, a pessoaem constante busca,
tentando discernir e seguir seu próprio caminho. O futuro da religião nor- muitos com aslinguagens tradicionais da crença parecepressagiar um futuro
te-atlântica depende, de um lado, dos resultados concatenadosde todo um de declínio. Porém, a intensidade mesma da busca por formas adequadasde
vida espiritual indica que essasoportunidades perdidas podem estar reple-
conjunto dessas buscas; e, do outro lado, das relações hostis, indiferentes ou
(assimesperamos)simbióticas, que se desenvolverão entre modos de busca e tas de promessas. Talvez a fase "fria" das identidades religiosas europeias
centros de autoridade religiosa tradicional, entre os que Wuthnow denomina possa ser interpretada em termos mais ou menos similares aospropostos por
de "os residentes" e "os que estão em busca' Mikhail Epstein para descrever a situação da Rússia pós-soviética.
Num par de ensaiosinteressantes,ssEpstein introduz a concepçãode "re-
ligião mínima". Ele também fala de uma categoria de sobreposição,as pes-
Paraalguns, essanão será uma ideia encorajadora.Qualquer que seja o
nível de crença e prática, num campo irregular de variados graus de incli-
51Grace Davie, Relijdolt íll Bdtaílt sínce IZ945, p. 1123-124.
nação, prossegue o debate entre as diferentes formas de crença e descrença. H Paul Valadier, in: Esprff, junho de 1997, p. 39-40.
Nesse debate, haverá modos de crença em desvantagem pela memória de 55Mikhail Epstein,Minimal Religion, e: Post-Atheism:From Apophatic Theology to "Minimal Re-
ligion", in: Mikhail Epstein,Alexander Genese SlobodankaVladiv-Glover. Rtíssfalz
Post?tzoder/lfs/ti;
New
suas formas anteriormente dominantes, que de muitas maneiras se atraves-
Perspecfiocs
flt Post-Soz;fef
Culfure. New York/Oxford: Berghahn Books, 1999.Cf. também Jonathan Sutton,
Minimal Religion" and Mikhail Epstein'sInterpretation of Religion in Late-Sovietand Post-SovietRus-
5zGrace Davie, Re/]l©oJÍíll BHfafn sínce ]945, p. 149ss.Também Grace Davie, Relljgíozlílí À,,íoderlz
E11i'ope, sia,in: Sfudlesízt EasfEllropea7z
Tho ght, fevereiro de 2006.Sou grato a Jonathan Sutton por chamar minha
P.53-54 atenção para o trabalho de Epstein.
Capítulo 14. Religião hoje 629
628 Parte IV Narrativas de secularização

isso está acontecendo agora. Contudo, pelo fato de - assim penso - essa he-
boasque se declaram "apenas cristãs" em pesquisasde opinião a respeito do
devotamento religioso, em contraposição àquelasque aderem a uma ou ou gemonia ter ajudado a efetuar o declínio, sua superação abriria novas possi-
bilidades.
tra confissão cristã, como a ortodoxa ou a católica. Epstein encara esse tipo de
Ser"espiritual, masnão religioso" é u m dos fenómenos ocidentais que têm
postura religiosa como "pós-ateísta", e isto em dois sentidos. As pessoas en-
alguma afinidade com a "religião mínima" de Epstein na Rússia;ele costuma
volvidas foram criadas sob um régínzeateísta militante, que negava e reprimia
designar uma vida espiritual que mantém alguma distância da disciplina e
todas as formas religiosas, de modo que elas se encontravam equidistantes
e igualmente ignorantes de todas as opções confessionais. Porém, a posição da autoridade das confissõesreligiosas.E claro que, nessecaso,a distância
é igualmente pós-ateísta no sentido mais forte de que as pessoasenvolvidas reflete uma reaçãoàs pretensõesda autoridade religiosa e certa cautelaem
reagiram contra o seu treinamento; elas adquiriram, de alguma maneira, um relação à liderança confessional, ao passo que, na Rússia, a reação é contra a
'terra devastada"deixadapelo ateísmomilitante, e a distânciaem relaçãoàs
senso para Deus que, por mais maldefinido que seja,as situa fora do espaço
em que foram criadas. confissõesé, de início, uma questão de desconhecimento e falta de familiari-
Religião mínima" é uma espiritualidade vivida no próprio círculo ime- dade. Nos dois casos,porém, um certo senso ecumênico difuso é difundido,
diato da pessoa,com sua família e seus amigos, mais do que em igrejas, uma e mesmo aqueles que subsequentemente assumem alguma vida confessional
espiritualidade especialmente cõnscia da dimensão do particular, tanto re- e, em consequência,se tornam "religiosos",retêm algo dessaliberdade origi-
lativa aos sereshumanos individuais quanto aos lugares e coisasque nos nal em relação ao sectarismo. O que também permanece importante, tanto
rodeiam. Em resposta à preocupação universalista por "quem está distante' no Oriente quanto no Ocidente,é um contínuo sensopara a importância de
enfatizada pelo comunismo marxista, ela procura honrar a "imagem e seme- seguir seu próprio percurso espiritual e o senso de que -- nas palavras de Ber-
lhança de Deus" nas pessoasparticulares que compartilham nossasvidas.;' diaeff reproduzidas por Epstein --"Conhecimento, moralidade, arte, governo
Porém, pelo fato de essareligião ter nascido fora de quaisquer estruturas e economia deveriam tornar-se religiosos, mas livremente e de dentro para
confessionais,ela possui o seu próprio tipo de universalismo, uma sorte de fora, não por coação a partir de fora".s'

ecumenismo espontâneo e irrefletido, no qual a coexistência de formas plu- Como quer que seja, estamosrecém no início de uma nova era de busca
religiosa, cujo resultado ninguém é capaz de prever.
rais de espiritualidade e culto é tida como líquida e certa.Mesmoquando as
pessoasque iniciam nesse tipo de espiritualidade acabampor filiar-se à igre-
ja, como muitas delas fazem, elas retém algo de sua visão original.
Cedo ou tarde, o crente minimal costuma filiar-se a uma tradição religiosa específica,
tornando-se um cristão ortodoxo, um batista ou um judeu. Porém, depois de ter expe-
rimentado esseespaçovibrante dg vazio, da vastidão, [.-] ela/ele preservapara sempre
o novo sentimento de abertura. E lá, na imensidão do espírito, sem quaisquer prepa-
rativos, batismos, catecismos,que Deus subitamente se aposta dele. Pode-seespecular
que esseímpeto para a reforma religiosa marcará o espírito da Rússia do século XXI
A restauração das tradições pré-ateístas é o foco do anual [19951reavivamento re]igioso,
mas o passado ateísta, a experiência da vastidão, não passará sem deixar rastros, e esse
rastro "do vazio" semanifestará no empenho pela plenitude de espírito, transcendendo
as fronteiras das denominações históricas. Essaspessoasque encontraram Deus na vasti-
dão sentem que as paredeldos templos existentes são muitos acanhadas para eles e que
deveriam ser expandidas.P'

Talvez se possa dizer algo análogo sobre a situação na Europa "pós-se-


cular". Não estou empregando essetermo para designar uma era em que
os declínios na crença e na prática ocorridos no último século teriam sido
revertidos, porque isso não parece provável, pelo menos não neste momen-
to; refiro-me, antes,a um tempo em que a hegemoniada narrativa principal
preponderante da secularização será cada vez mais questionada. Pensoque

%/d.,ibid.,P.167-168.
57/d.,íbjd.,P.386. 5' /d, ibid.,P. 362.

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