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A CHRISTMAS CAROL

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Produção editorial e digital: SAAVEDRA EDIÇÕES
Preparação: CRISTIANE SAAVEDRA
Revisão: JÉSSICA GASPARINI | SAAVEDRA EDIÇÕES
Capa: RENATO KLISMAN | SAAVEDRA EDIÇÕES

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

Dickens, Charles, 1812-1870


Um conto de natal [livro eletrônico] : uma história de fantasma no natal / Charles Dickens ; tradução
Ana Paula Resende. — 1. ed. — São Paulo : Skeelo Editora, Produtos e Serviços Digitais, 2021.
ISBN 978-65-5961-016-7
TÍTULO ORIGINAL: A CHRISTMAS CAROL
1. Contos - Literatura infantojuvenil 2.Literatura infantojuvenil I. Título.
CDD 028.5
21-72360

Índice para catálogo sistemático:


1. Contos : Literatura infantojuvenil 028.5
SUMÁRIO
Capa

Folha de Rosto

Créditos

Prefácio

Estrofe um: o fantasma de Marley

Estrofe dois: o primeiro dos três espíritos

Estrofe três: o segundo dos três espíritos

Estrofe quatro: o últimos dos espíritos

Estrofe cinco: o fim da história


Eu me dediquei a esse pequeno livro fantasmagórico, para acordar o Fantasma de
uma Ideia, que não tirará o bom humor de meus leitores em relação a eles
mesmos, aos outros, à época do ano ou a mim. A história assombrará suas casas
de maneira agradável, e ninguém desejará esconjurá-la.

Seu amigo e servo fiel,


C.D.
Dezembro, 1843.
Para começar a história, Marley estava morto. Não existe dúvida sobre isso. O registro
de seu funeral foi assinado pelo sacerdote, pelo clérigo, pelo agente funerário e
por seu familiar mais próximo. Scrooge assinara o documento, e sua assinatura
era confiável, um nome de peso. O velho Marley estava tão morto quanto um
prego.
Preste atenção! Eu não estou dizendo que eu saiba o que um prego de porta
tem de particularmente morto. Talvez eu preferisse dizer que um prego de caixão
é a coisa mais morta que existe no mundo da manufatura de ferro. Mas a
sabedoria de nossos ancestrais está nas comparações; e minhas mãos profanas não
mudarão isso, ou o país estará aniquilado. Você então me permitirá repetir, de
maneira enfática, que Marley estava tão morto quanto um prego.
Scrooge sabia que ele estava morto? Claro que sabia. Como poderia não
saber? Foram sócios durante não sei quantos anos. Scrooge era seu único
testamentário, único administrador, único mandatário, único legatário residual,
único amigo, e o único enlutado na ocasião de sua morte. E nem mesmo
Scrooge estava tão terrivelmente arrasado com o triste acontecimento, mas por
ser um excelente homem de negócios, no próprio dia do funeral, o solenizou
com uma indiscutível pechincha .
A menção do funeral de Marley me remete ao ponto de partida. Não há
dúvidas de que Marley estava morto. Isso precisa ficar muito bem entendido, ou
nada de maravilhoso poderá ser tirado da história que contarei. Se não
estivéssemos totalmente convencidos de que o pai de Hamlet morrera antes do
início da peça, não haveria nada de especial no fato de ele sair para passear sobre
as muralhas de seu próprio castelo em uma noite de vento leste, assim como
qualquer outro cavalheiro de meia-idade que saísse em um ímpeto, depois de
escurecer, em um local ventoso – digamos, por exemplo, o cemitério da catedral
de Saint Paul – para literalmente surpreender a cabeça fraca do filho.
Scrooge nunca tirou o nome do velho Marley da inscrição acima da porta. Lá
estava ele, anos depois de sua morte, no alto da porta do armazém: Scrooge e
Marley – tal como era reconhecida a firma. Às vezes as pessoas novas na área
chamavam Scrooge de Scrooge, e às vezes o chamavam de Marley, e ele
respondia aos dois nomes. Para ele era tudo a mesma coisa.
Ah! Mas era um grande pão duro, o Scrooge! Um velho pecador chantagista,
deturpador, avarento, invejoso e oportunista ! Duro e afiado como uma pedra,
da qual jamais nenhum metal conseguira extrair um fogo generoso; secreto, meio
contido e solitário como uma ostra. O frio que havia dentro dele gelava sua velha
fisionomia, beliscava seu nariz pontudo, enrugava seu rosto, endurecia seu andar;
tornava seus olhos vermelhos, seus lábios finos azuis; e o fazia se manifestar de
maneira perspicaz, com sua voz áspera. Uma película de gelo parecia se formar
em sua cabeça, e em suas sobrancelhas, e em seu queixo pontudo. Ele carregava
sua própria temperatura fria por onde ia; congelava seu escritório nos dias
quentes e não o aquecia sequer um grau no Natal.
O calor ou frio externo não tinham a menor influência sobre Scrooge. Não
havia calor que o aquecesse, nem frio que o esfriasse. Nenhum vento que soprava
era mais penetrante que ele, nenhuma neve que caía era mais certeira em seus
propósitos, nenhuma chuva pesada menos inclinada à súplica. O mau tempo
não tinha como apanhá-lo. A chuva mais intensa, e neve, granizo e geada só
poderiam ter vantagem sobre ele em um aspecto. Eles normalmente “caíam”
com graciosidade, e Scrooge não era capaz de cair assim.
Ninguém jamais o abordava na rua para lhe perguntar, com ar agradável: “
Meu querido Scrooge, como vai você? Quando virá me visitar?”. Um mendigo
nunca lhe pedia um centavo, nenhuma criança jamais lhe perguntava as horas,
nenhum homem ou mulher sequer uma única vez em toda sua vida lhe pediu
informações sobre este ou aquele lugar. Até mesmo os cães-guia pareciam
conhecê-lo; e quando o viam se aproximando, arrastavam seus donos para os
vãos das portas ou para o abrigo de algum pátio; e então abanavam seus rabos
como se quisessem dizer: “ É melhor olho nenhum do que um mau-olhado,
mestre das sombras!”
Mas Scrooge não se importava com aquilo! Inclusive gostava muito . Gostava
de avançar pelos caminhos populosos da vida, advertindo toda simpatia humana
a manter distância. Scrooge era, para aqueles que entendiam do assunto, um
“louco”.
Certa vez – e de todos os bons dias do ano, precisava ser na véspera do Natal
–, o velho Scrooge sentou-se ocupado em seu escritório. Era um dia frio,
desolado, doído, com nevoeiro, e ele podia ouvir as pessoas no pátio do lado de
fora, passando de lá para cá, esfregando as mãos contra o peito, e batendo os pés
no chão de pedras para aquecê-los. Os relógios da cidade tinham acabado de
bater três horas, mas já estava bem escuro – na verdade, naquele dia não houvera
luz – e as velas bruxuleavam nas janelas dos escritórios vizinhos, como borrões de
alegrias no palpável ar marrom. O nevoeiro descia e tomava conta de todas as
frestas, entrava pelas fechaduras, e era tão denso que embora o pátio fosse dos
mais estreitos, as casas do outro lado não passavam de meros fantasmas. Ver a
nuvem sombria que caía sobre a cidade, escurecendo tudo, fazia a pessoa
imaginar que a Natureza morava ali ao lado e estava preparando o mau tempo
em larga escala.
A porta do escritório de Scrooge estava aberta para que ele pudesse ficar de
olho em seu ajudante, que em um minúsculo cômodo ao lado, um tipo de
cubículo, copiava algumas cartas. Scrooge tinha uma lareira bem pequena em seu
escritório, mas a lareira do cômodo onde estava o ajudante era tão menor que
parecia caber nela apenas um pedaço de carvão. Mas ele não podia reabastecê-la,
pois Scrooge mantinha a caixa de carvão em seu escritório, e com certeza se o
ajudante entrasse lá com sua pá, o mestre diria que seria necessário os dois se
separarem a partir de então. Assim, o ajudante tratou de se enrolar em seu
cachecol branco e tentou se aquecer com a vela; esforço que, por não ser um
homem de muita imaginação, foi em vão.
— Feliz Natal, tio! Deus lhe abençoe! — exclamou uma voz alegre.
Era a voz do sobrinho de Scrooge, que se aproximou dele com tanta rapidez
que aquele foi o único aviso de sua presença ali.
— Bah! — disse Scrooge. — Que bobagem!
Ele se aquecera tanto caminhando rapidamente no nevoeiro e na neve, o
sobrinho de Scrooge, que estava todo brilhando; o rosto estava corado e bonito;
os olhos cintilavam e sua respiração fumegava.
— O Natal é uma bobagem, tio? — perguntou o sobrinho de Scrooge. —
Tenho certeza de que o senhor não quis dizer isso.
— Quis, sim — disse Scrooge. — Feliz Natal! Que direito você tem de ser
feliz? Que razão você tem para estar feliz? Você é pobre.
— Então, vamos pensar — respondeu o sobrinho, com alegria. — Que
direito o senhor tem de ficar triste? Que razão o senhor tem para ficar
rabugento? O senhor é rico.
Como não tinha uma resposta melhor para dar ao sobrinho naquela ocasião,
Scrooge repetiu:
— Bah! — e disse, mais uma vez: — Q ue bobagem!
— Não fique bravo, tio! — disse o sobrinho.
— Como não ficar bravo — continuou o tio —, se vivo em um mundo de
tolos como este? Feliz Natal! Não tem essa história de Feliz Natal! O que é o
Natal para você senão a época de pagar contas sem ter dinheiro; a época de se ver
um ano mais velho, mas nem uma hora mais rico; uma época de colocar suas
contas em dia e de ver em cada uma delas um total que foi acumulado nos
últimos doze meses? Se eu pudesse escolher — disse Scrooge, indignado —, cada
idiota que me desejasse “Feliz Natal” seria cozido juntamente com seu próprio
pudim, e enterrado com um ramo de azevinho perfurando seu coração. Seria
ótimo!
— Tio! — exclamou o sobrinho.
— Sobrinho! — respondeu o tio, com seriedade. — Passe o Natal do seu
jeito e me deixe passar o meu do meu jeito.
— Passar o Natal? — repetiu o sobrinho de Scrooge. — Mas o senhor não
passa o Natal.
— Me deixe não passar o Natal, então — disse Scrooge. — Isso lhe fará
muito bem! O melhor bem que alguém já lhe fez!
— Existem muitas coisas que poderiam ter me feito bem, das quais não me
beneficiei, ouso dizer — respondeu o sobrinho. — O Natal está entre elas. Mas
sei que sempre penso na época do Natal, quando ela chega – independente da
veneração graças a seu nome e origem sagrados, se é que alguma coisa que se
relacione a ele possa ser vista independente dele – como uma época boa; uma
época gentil, de perdão e caridade, uma época agradável; a única época que
conheço, no longo calendário do ano, em que homens e mulheres parecem
entrar em acordo e abrir sem cautela seus corações fechados, e pensar nas pessoas
abaixo deles como se elas fossem companheiras de viagem para a sepultura, e não
uma outra raça de criaturas dedicadas a outras jornadas. E, por isso, tio, embora
eu nunca tenha conseguido colocar um centavo de ouro ou prata em meu bolso,
acredito que essa época me faz bem; e por isso eu digo: Deus abençoe o Natal!
O ajudante que estava no cubículo aplaudiu involuntariamente.
Imediatamente tomou consciência de seu ato indevido e cutucou o fogo,
apagando a última fagulha que havia ali.
— Se eu ouvir um outro som vindo de você — disse Scrooge —, você vai
passar o seu Natal sem emprego! — E , olhando para o sobrinho, acrescentou:
— Você é um grande orador, senhor. Por que você não vai trabalhar no
Parlamento?
— Não fique bravo, tio. Venha! Venha jantar conosco amanhã.
Scrooge disse que iria ver o sobrinho, sim, ele realmente disse. Ele disse a
expressão toda, e disse que isso seria a primeira coisa que ele faria no dia
seguinte.
— Mas, por quê? — perguntou o sobrinho de Scrooge. — Por quê?
— Por que você se casou? — perguntou Scrooge.
— Porque eu me apaixonei.
— Porque você se apaixonou! — grunhiu Scrooge como se aquela fosse a
única coisa do mundo mais ridícula do que um desejo de Feliz Natal. — Ora,
passar bem!
— Mas, tio, o senhor nunca veio me visitar antes de eu me casar. Por que
usar isso como desculpa para não vir agora?
— Passar bem — disse Scrooge.
— Eu não quero nada do senhor; não peço nada ao senhor; por que não
podemos ser amigos?
— Passar bem — disse Scrooge.
— Fico muito triste, muito mesmo, em ver o senhor tão decidido. Nunca
tivemos nenhuma discussão, e por isso sou muito feliz. Mas fiz a tentativa por
causa do Natal, e vou manter o meu espírito do Natal até o fim. Por isso, um
Feliz Natal para o senhor, tio!
— Passar bem! — disse Scrooge.
— E um Feliz Ano Novo!
— Passar bem! — repetiu Scrooge.
Mesmo assim o sobrinho saiu da sala sem demonstrar nenhuma irritação.
Parou em frente à porta do outro cômodo para saudar o ajudante que, por mais
que sentisse frio, era mais caloroso do que Scrooge , e retornou as saudações com
cordialidade.
— Esse é outro — murmurou Scrooge, que ouviu quando ele falou com o
ajudante —, meu ajudante, que ganha quinze xelins por semana, com esposa e
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filhos, falando sobre um Natal feliz. Eu vou parar no Bedlam .
O lunático, ao abrir a porta para que o sobrinho de Scrooge saísse, permitiu
que duas outras pessoas entrassem. Eram cavalheiros de porte imponente,
agradáveis de se contemplar e estavam, agora, no escritório de Scrooge. Traziam
livros e papéis nas mãos e curvaram-se para ele.
— Scrooge e Marley, creio eu — disse um dos cavalheiros, referindo-se à sua
lista. — Com quem tenho o prazer de falar, com o senhor Scrooge ou com o
senhor Marley?
— O senhor Marley morreu há sete anos — respondeu Scrooge. — Ele
morreu sete anos atrás, exatamente nesta data.
— Não temos dúvida de que a liberalidade do senhor Marley está muito bem
representada por seu sócio sobrevivente — disse o cavalheiro, mostrando suas
credenciais.
Certamente estava, pois os dois eram espíritos da mesma natureza. Ao ouvir a
sinistra palavra “liberalidade”, Scrooge franziu a testa e balançou a cabeça,
devolvendo as credenciais.
— Nesta época festiva do ano, senhor Scrooge — disse o cavalheiro, pegando
uma caneta —, é mais do que desejável que façamos alguma contribuição para os
pobres e necessitados, que tanto sofrem nos dias de hoje. Milhares deles carecem
de elementos básicos; centenas de milhares precisam de acomodações, senhor.
— E o que aconteceu com as prisões? — perguntou Scrooge.
— Temos muitas prisões — disse o cavalheiro, colocando a caneta de volta
na mesa.
— E os sindicatos? — perguntou Scrooge. — Ainda estão funcionando?
— Sim. Ainda funcionam — respondeu o cavalheiro. — Eu gostaria de
poder dizer que eles não existem mais.
— Então o Treadmill e a Lei dos Pobres ainda estão em pleno
funcionamento? — perguntou Scrooge.
— Os dois, a todo vapor, senhor.
— Ah! Fiquei preocupado com o que o senhor disse no começo, achei que
algo aconteceu para que eles não pudessem mais continuar com suas atividades
— disse Scrooge. — Fico feliz em saber que continuam trabalhando.
— Com a impressão de que eles mal conseguem providenciar alento cristão
para o corpo e o espírito da multidão — continuou o cavalheiro —, alguns de
nós estamos nos dedicando a reunir fundos para comprar comida e bebida para
os pobres, e também agasalhos. Escolhemos essa época do ano, porque é uma
época, entre todas as outras, em que a pobreza é mais percebida, e a abundância
rejubila. Com quanto o senhor vai contribuir?
— Com nada! — respondeu Scrooge.
— O senhor gostaria de fazer uma contribuição anônima?
— Eu quero que me deixem em paz — disse Scrooge. — Já que
perguntaram com quanto quero contribuir, cavalheiros, aí está minha resposta.
Eu não me sinto feliz no Natal e não posso proporcionar alegria para as pessoas.
Eu ajudo a manter os estabelecimentos que mencionei – eles já me custam o
bastante . Aqueles que têm necessidade devem ir atrás deles.
— Muitos não podem ir até eles; e muitos preferem morrer a ir até esses
lugares.
— Se eles preferem morrer — disse Scrooge — que morram, assim
diminuem um pouco o excedente populacional. Além disso, com licença, mas
não entendo nada disso.
— Mas o senhor deveria entender — observou o cavalheiro.
— Isso não é da minha conta — respondeu Scrooge. — Para um homem já
basta entender de seu próprio negócio, e não interferir no negócio dos outros.
Meus negócios me ocupam constantemente. Boa tarde, cavalheiros!
Ao perceber claramente que seria inútil insistir na questão, os cavalheiros se
retiraram. Scrooge voltou ao seu trabalho com uma opinião ainda melhor sobre
si mesmo, e com um humor mais animado do que o normal.
Enquanto isso, o nevoeiro e a escuridão aumentaram de tal maneira que as
pessoas corriam de um lado para o outro com tocha na mão, instruindo os
empregados para que andassem na frente dos cavalos para conduzi-los na direção
certa. A antiga torre de uma igreja, cujo velho sino desafinado estava sempre
espiando Scrooge por trás de uma janela gótica que se abria na parede, ficou
invisível, dando as horas e os quartos de hora em meio às nuvens, com as
badaladas sendo seguidas por trêmulas vibrações, como se lá no alto a cabeça
gelada do sino estivesse batendo os dentes. O frio tornou-se intenso. Na rua
principal, no canto do largo, alguns operários faziam reparos no encanamento do
gás, e acenderam uma grande fogueira em um braseiro, em torno do qual reunia-
se um grupo de homens e rapazes esfarrapados, aquecendo as mãos e piscando de
prazer diante do fogo. O hidrante fora abandonado à solidão e seus excedentes,
aborrecidos, congelaram-se, transformando-se em misantrópico gelo. O
resplendor das lojas, com seus ramos de azevinho e suas frutinhas estalando ao
calor da luz que saía das janelas, deixava ruborizados os rostos pálidos que
passavam. As lojas de aves e mercearias tornaram-se uma grande piada: um
espetáculo de tamanha grandiosidade que chegava a ser quase impossível
acreditar que princípios sem nenhum encanto, como o da barganha e do lucro,
tivessem alguma relação com elas. O senhor prefeito, protegido em sua grandiosa
mansão, dava ordens a seus cinquenta cozinheiros e padeiros para que fosse
realizado o Natal que uma casa de um senhor prefeito deve oferecer; e mesmo o
pequeno alfaiate a quem, na segunda-feira anterior, ele aplicara uma multa no
valor de cinco xelins por embriaguez e algazarra na rua, dedicava-se a mexer o
pudim no dia seguinte, no sótão onde morava, enquanto sua magra mulher, com
o bebê no colo, saía às pressas de casa para comprar a carne.
A neblina e o frio eram cada vez mais intensos. Um frio cortante, penetrante,
de gelar a alma. Se o bom Santo Dunstan tivesse pincelado o nariz do Espírito
das Trevas com um pouco de clima como aquele, em vez de utilizar suas armas
costumeiras, ele teria então rugido de horror diante de tal propósito libidinoso.
O dono de um jovem e diminuto nariz roído e mastigado pelo frio faminto, da
mesma forma como os ossos são mastigados pelos cães, inclinou-se diante do
buraco da fechadura da porta de Scrooge para agraciá-lo com uma canção de
Natal. Mas ao primeiro som de:
“Deus o abençoe, alegre cavalheiro!
Que nada o desaponte!”
Scrooge empunhou sua régua com tanto ímpeto no gesto que o cantor fugiu
apavorado, abandonando o buraco da fechadura ao nevoeiro e a um gelo ainda
mais condizente.
Com o passar do tempo, chegou a hora de fechar o escritório. Mal-
humorado, Scrooge desceu de seu banquinho e tacitamente admitiu o fato para
o impaciente ajudante em seu cômodo, que no mesmo instante soprou a vela e
colocou o chapéu.
— Suponho que você vá querer tirar o dia todo de folga amanhã —
comentou Scrooge.
— Se for conveniente, senhor.
— Não é conveniente — exclamou Scrooge —, além disso, não é justo. Se
eu fosse descontar meia coroa pelo dia de trabalho, ainda diria que estou
explorando você, não é mesmo?
O ajudante sorriu sem graça.
— E ainda assim — disse Scrooge —, você não acha que eu sou explorado
quando eu pago o dia de serviço para você não vir trabalhar.
O ajudante comentou que aquilo acontecia apenas uma vez no ano.
— Desculpa esfarrapada para assaltar o bolso de um homem todo dia vinte e
cinco de dezembro! — disse Scrooge, abotoando o sobretudo até a altura do
pescoço. — Mas suponho que o senhor vai precisar mesmo tirar o dia todo de
folga. Esteja aqui bem cedo depois de amanhã.
O ajudante prometeu que chegaria cedo; e Scrooge saiu grunhindo. Em um
piscar de olhos o escritório foi fechado e o ajudante, com as pontas compridas de
seu cachecol branco balançando abaixo da cintura (pois ele não tinha um
sobretudo), deslizou ladeira abaixo na Cornhill, atrás de uma fila de garotos,
vinte vezes, em comemoração à véspera de Natal, e depois correu o mais rápido
que pôde para sua casa em Camden Town, para brincar de cabra-cega.
Scrooge comeu seu jantar melancólico na melancólica taverna que costumava
frequentar; e, depois de ler todos os jornais e distrair-se o resto da noite com o
livro-caixa, foi para casa dormir. Morava no apartamento que um dia pertencera
a seu falecido sócio. O apartamento consistia em uma série de cômodos
sombrios, em um edifício desproporcionalmente alto, junto a um pátio, em um
lugar onde ficava tão deslocado que a ideia que vinha à cabeça para explicar sua
presença ali era a de que ele tivesse corrido para lá quando ainda era uma
edificação jovem, brincando de esconde-esconde com as outras casas, tendo
depois esquecido o caminho que lhe permitia ir embora. Agora já estava bastante
velho, e horroroso, pois ninguém, exceto Scrooge, vivia nele. Todos os outros
apartamentos eram alugados para escritórios. O pátio era tão escuro que até
Scrooge, que conhecia cada uma de suas pedras, era obrigado a andar tateando as
paredes. A neblina e a geada envolviam de tal modo o velho portal do prédio que
parecia que o Gênio do Mau Tempo estava sentado na soleira da porta entregue
a uma melancólica meditação.
Mas é preciso admitir que não havia nada de especial na aldrava da porta a
não ser o fato de que era muito grande. Além disso, também é preciso admitir
que Scrooge vira aquela aldrava todos os dias durante todo o tempo em que
residira naquele local; e, ainda, que Scrooge tinha um pouco daquilo que
chamamos de imaginação sobre ele assim como qualquer outro homem na
cidade de Londres, incluindo até – o que chega a ser uma palavra audaciosa – a
corporação, os magistrados municipais e sua criadagem. Além disso, tenha-se em
mente que Scrooge não pensara em Marley desde aquela tarde, quando
mencionara a morte do sócio, ocorrida sete anos antes. Feito isso, quero ver
alguém me explicar, se puder, como foi possível que Scrooge, com a chave
enfiada na fechadura da porta de seu apartamento, visse na aldrava, sem que esta
passasse por nenhum processo intermediário de alteração, não uma aldrava, mas
o rosto de Marley.
O rosto de Marley. Ele não se encontrava imerso na escuridão impenetrável
como estavam os outros objetos do pátio, porém ostentava uma luminosidade
sombria, como uma lagosta estragada em um porão escuro. Não estava bravo
nem feroz, mas olhava para Scrooge como Marley tinha o hábito de olhar: com
óculos fantasmagóricos levantados na direção de uma testa fantasmagórica. O
cabelo, estranhamente, agitava-se como se um hálito ou um bafo quente o
soprasse; e embora os olhos estivessem muito abertos, estavam perfeitamente
imóveis. Esse fato, e sua tonalidade lívida, tornavam aquele rosto horrível; só que
esse horror dava a impressão de ocorrer independentemente do rosto e de forma
alheia a seu controle, e não parecia ser parte integrante da expressão que lhe era
costumeira.
Enquanto Scrooge olhava fixamente para o fenômeno, enxergou a aldrava
novamente.
Dizer que ele não se assustou, ou que seu sangue não tomou consciência de
uma terrível sensação de que se mantivera afastado desde a infância, não seria
verdade. Mas ele colocou a mão na chave que havia deixado na fechadura, deu-
lhe a volta decidido, entrou e acendeu sua vela.
Ele parou, sim, indeciso por um momento, antes de fechar a porta; e olhou,
sim, com cuidado atrás dela antes de entrar, como se esperasse ter a visão do
rabicho espetado de Marley no corredor. Mas não havia nada atrás da porta além
dos parafusos e porcas que prendiam a aldrava e por isso ele disse: “Que
bobagem!” e bateu a porta.
O barulho ressoou pela casa como um trovão. Cada aposento dos andares de
cima e cada garrafa da adega do comerciante de vinhos no andar de baixo
pareciam ter sua sequência própria de ecos. Scrooge não era homem de se
assustar com ecos. Ele fechou a porta, atravessou o corredor e subiu as escadas;
fez tudo isso devagar e enquanto subia tirou o excesso de cera de sua vela.
Vocês podem falar vagamente sobre conduzir uma carruagem puxada por seis
cavalos subindo um bom e velho lance de escadas, ou por meio de uma recente e
ruim Lei do Parlamento, mas o que eu quero dizer a vocês é que era possível
conduzir um carro fúnebre escada acima, amplamente, com a barra de lascas
voltada para a parede e a porta virada para a balaustrada; e isso podia ser feito
com facilidade. Havia bastante largura para tanto, e espaço de sobra; o que talvez
seja a razão para Scrooge pensar ter visto um vagão de locomotiva subindo as
escadas à sua frente na escuridão. Meia dúzia de postes de iluminação da rua não
teriam sido suficientes para iluminar a entrada, então é possível imaginar que
estava bastante escuro no lugar onde Scrooge estava com sua vela.
Scrooge subiu, sem se importar com a penumbra. A escuridão era algo
barato, e Scrooge gostava disso. Mas antes de fechar a porta pesada, ele andou
pelos cômodos do apartamento para conferir se estava tudo bem. Ele acabara de
se lembrar do rosto que vira na entrada e isso lhe despertou o desejo de fazer
aquilo.
Sala de visitas, quarto, depósito. Tudo estava como deveria estar. Não havia
ninguém embaixo da mesa, ninguém embaixo do sofá; um fogo fraco na lareira;
colher e prato fundo no lugar; e a pequena panela com mingau sobre o fogão
(Scrooge estava resfriado). Não havia ninguém embaixo da mesa; ninguém
dentro do armário; ninguém em seu roupão, pendurado de maneira suspeita na
parede. O depósito estava como de costume. Dentro dele estavam o velho
guarda-fogo, sapatos velhos, duas cestas de pesca, suporte de três pernas para
bacia e um atiçador de fogo.
Bastante satisfeito ele fechou a porta e se trancou lá dentro; deu duas voltas
na chave, o que não costumava fazer. Assim, protegido de qualquer surpresa,
tirou a gravata, colocou seu roupão, os chinelos e o gorro de dormir e sentou-se
em frente à lareira para tomar seu mingau.
Na verdade o fogo estava bastante fraco, não servia de nada para aquela noite
tão fria. Ele foi obrigado a sentar-se perto e a inclinar-se sobre ele, para conseguir
pelo menos sentir um pouco do calor que saía daquele punhado de combustível.
A lareira era antiga, fora construída por algum comerciante holandês há muito
tempo, e fora revestida com graciosos azulejos holandeses criados para ilustrar as
Escrituras. Era possível ver ali Caim e Abel, as filhas do Faraó, Rainhas de Sabá,
mensageiros angélicos descendo pelo ar em nuvens de plumas, Abraãos,
Baltazares, apóstolos zarpando para o mar em barcos de manteiga, centenas de
personagens para atrair seus pensamentos; e ainda assim o rosto de Marley,
morto há sete anos, surgia como a vara do antigo profeta, e engolia todo o resto.
Se cada azulejo já fora branco um dia, e se cada um tivesse a capacidade de dar
forma, em sua superfície, a alguma imagem retirada dos fragmentos dispersos de
seus pensamentos, cada um deles teria uma cópia da cabeça do velho Marley.
— Bobagem! — disse Scrooge; e então atravessou o cômodo.
Depois de dar várias voltas no aposento, ele sentou-se novamente. Ao apoiar
a cabeça na poltrona passou os olhos por um sino, um sino sem uso, que estava
pendurado no cômodo, e que se comunicava por algum motivo agora esquecido
com um apartamento no andar mais alto do edifício. Foi com grande espanto, e
com um terror inexplicável que, enquanto ele olhava, viu o sino começar a
balançar. Balançou de maneira tão delicada que mal chegava a emitir algum som;
mas logo começou a badalar alto, assim como aconteceu com todos os sinos da
casa.
O episódio deve ter durado meio minuto, ou um minuto, mas pareceu uma
hora. Os sinos pararam de badalar ao mesmo tempo, assim como quando
começaram a tocar. Foram sucedidos por um ruído de metais lá embaixo, como
se alguém estivesse arrastando uma corrente pesada por cima das garrafas que
ficavam no porão do comerciante de vinho. Scrooge então se lembrou de ter
ouvido que fantasmas em casas assombradas arrastavam correntes.
A porta do porão se abriu com um estrondo e então ele ouviu o barulho
muito mais alto, vindo lá de baixo, e então subindo as escadas, e depois vindo
em direção à sua porta.
— Isso é bobagem! — disse Scrooge. — Não vou acreditar nisso.
Mas sua cor mudou quando, sem parar, o barulho atravessou a porta maciça
e entrou no aposento, parando bem diante de seus olhos. Com sua entrada, as
chamas fracas se agitaram como se gritassem: “Conheço ele! É o fantasma de
Marley!”, e depois se enfraqueceram novamente.

O mesmo rosto, exatamente o mesmo rosto. Marley com seu rabicho, sua
casaca de sempre, calças justas e botas. As franjas da bota estavam eriçadas, assim
como seu rabicho, as abas de sua casaca e seu cabelo também estavam. A corrente
que ele puxava estava presa a sua cintura. Era comprida, e enrolava-se nele como
uma cauda, e era feita (pois Scrooge observava de perto) de cofres, chaves,
cadeados, livros-caixa, escrituras e pesadas bolsas de aço trabalhado. Seu corpo
era transparente, de maneira que Scrooge, ao observá-lo e olhando através de seu
colete, conseguia ver os dois botões da parte de trás de sua casaca.
Scrooge sempre ouvira dizer que Marley não tinha entranhas, mas nunca
acreditara naquilo até agora.
Nunca acreditou, como continuava a não acreditar. Embora ele olhasse para
o fantasma de cima a baixo, e visse que ele estava ali, em pé, na sua frente, e
embora ele sentisse a influência gelada de seus olhos frios e mortais, e percebesse
até mesmo a textura do lenço dobrado que estava amarrado em torno de sua
cabeça e queixo – lenço que ele jamais vira antes –, ele ainda estava incrédulo e
duvidava do que via.
— E isso agora! — disse Scrooge, mais cáustico e frio do que nunca. — O
que você quer de mim?
— Quero muito! — era a voz de Marley, não havia dúvida.
— Quem é você?
— Pergunte quem eu era.
— Então, quem era você? — perguntou Scrooge, levantando a voz. — Você
é peculiar, para um fantasma. — Ele ia simplesmente dizer “peculiar”, mas
achou mais apropriado acrescentar o restante do comentário.
— Quando eu estava vivo eu era seu sócio, Jacob Marley.
— Você consegue... você consegue se sentar? — perguntou Scrooge, olhando
para ele em dúvida.
— Consigo.
— Sente-se, então.
Scrooge perguntou aquilo porque não sabia se um fantasma tão transparente
teria condições de se sentar em uma cadeira; e sentiu que caso isso não fosse
possível, talvez fosse necessário que ele desse alguma explicação embaraçosa. Mas
o fantasma sentou-se do outro lado da lareira, como costumava fazer.
— Você não acredita em mim — observou o fantasma.
— Não mesmo — disse Scrooge.
— Que outra prova você gostaria que eu lhe desse, além dessa oferecida aos
seus sentidos?
— Eu não sei — disse Scrooge.
— Por que você duvida de seus sentidos?
— Porque — disse Scrooge — qualquer coisa simples os afeta. Um pequeno
desconforto no estômago já causa alguma interferência. Você pode muito bem
ser um pedaço de carne mal digerido, um tanto de mostarda, um naco de queijo,
uma fatia de batata mal cozida. Essa história mais parece ter relação com uma
refeição estragada do que com morte, seja lá o que você for!
Scrooge não tinha o hábito de fazer piadas, nem se sentia, no fundo,
brincalhão naquele momento. A verdade é que ele tentou bancar o engraçado
para distrair sua própria atenção e tentar diminuir o terror que sentia, pois a voz
do espectro incomodava cada pontinha de seus ossos.
Ficar ali sentado, olhando para aqueles olhos fixos, vidrados, em silêncio por
um momento, era suficiente, Scrooge achava, para acabar com ele. Havia algo
muito estranho também, existia algo muito horrível no fato de o fantasma estar
equipado com uma atmosfera infernal para uso próprio. Scrooge não conseguia
senti-la, mas esse era claramente o caso; pois embora o Fantasma estivesse
sentado totalmente imóvel, seu cabelo, as abas da casaca e as franjas das botas
continuavam eriçadas, e aquilo era causado por algo parecido com o vapor
quente produzido por um fogão.
— Está vendo esse palito? — perguntou Scrooge, voltando rapidamente ao
ataque pelo motivo mencionado acima; e desejando, embora apenas por um
segundo, afastar de si aquele olhar pesado.
— Sim — respondeu o Fantasma.
— Você não está olhando para ele — disse Scrooge.
— Mas estou vendo — disse o fantasma — mesmo sem olhar para ele.
— Muito bem! — respondeu Scrooge. — Se eu engolisse isso, eu passaria o
resto dos meus dias perseguido por uma legião de fantasmas, todos fruto da
minha imaginação. Bobagem! Digo a você, tudo isso é bobagem!
Ao ouvir isso o espírito soltou um grito aterrorizante e sacudiu sua corrente
fazendo um barulho tão desolado e apavorante que Scrooge segurou com força
em sua cadeira para não cair. Mas seu terror ficou ainda maior quando o
fantasma, ao tirar a faixa em volta de sua cabeça, como se estivesse quente demais
para usá-la ali dentro, permitiu que seus maxilares inferiores caíssem sobre seu
peito!
Scrooge caiu de joelhos e cobriu o rosto com as mãos.
— Piedade! — disse ele. — Aparição horrorosa, por que você veio me
atormentar?
— Homem de espírito mundano — respondeu o fantasma —, você acredita
em mim ou não?
— Acredito — disse Scrooge. — Preciso acreditar. Mas, por que os espíritos
vagam pela terra, e por que vieram atrás de mim?
— É necessário que o espírito de cada homem — respondeu o fantasma —
evolua em meio aos outros homens, seus companheiros de jornada, e avance até
bem longe. Caso esse espírito não consiga ir muito adiante na vida, fica
condenado a fazê-lo depois da morte. Seu castigo é vagar pelo mundo... Ai,
pobre de mim!... e assistir àquilo de que já não pode participar, mas de que
poderia ter participado na Terra e transformado em felicidade!
De novo o espectro soltou um grito e balançou sua corrente e torceu as mãos
sombrias.
— Você está acorrentado — disse Scrooge, tremendo. — Me diga, por quê?
— Carrego a corrente que forjei na vida — respondeu o fantasma. —
Construí a corrente elo por elo, centímetro por centímetro. E a prendi em
minha cintura por vontade própria e é por vontade própria que a uso. Por acaso
ela é estranha para você?
Scrooge tremia mais e mais.
— Ou você saberia dizer — continuou o fantasma — o peso e o
comprimento da forte corrente que você mesmo carrega? Ela era tão pesada e
comprida quanto esta, sete Natais atrás. Você trabalhou duro nela desde então. É
uma corrente portentosa a sua!
Scrooge olhou para o assoalho a sua volta na expectativa de se ver cercado
por mais de cem metros de corrente de ferro, mas não viu nada.
— Jacob — implorou ele. — Velho Jacob Marley, conte-me mais. Diga-me
palavras de conforto, Jacob!
— Não tenho nenhuma palavra de conforto para lhe oferecer — respondeu o
fantasma. — Palavras de conforte vêm de outras regiões, Ebenezer Scrooge, e é
proporcionada por outros ministros, para outros tipos de homens. Também não
posso lhe contar o que eu gostaria de contar. Só posso contar um pouco mais do
que já contei. Não posso descansar, não posso ficar, não posso ficar muito tempo
em lugar nenhum. Meu espírito nunca saiu das redondezas do escritório – ouça
bem o que digo! Em vida, meu espírito jamais se arriscou para além dos limites
estreitos de nosso cubículo de contar dinheiro; e jornadas exaustivas esperam por
mim!
Scrooge tinha o hábito de, sempre que ficava pensativo, colocar as mãos nos
bolsos das calças, e o fez ao pensar no que o fantasma dissera, mas sem levantar
os olhos ou ficar em pé.
— Você deve ter se demorado muito com isso, Jacob — observou Scrooge,
de maneira objetiva, embora com humildade e respeito.
— Demorado! — repetiu o fantasma.
— Morto há sete anos — refletiu Scrooge. — E viajando o tempo todo!
— O tempo todo — disse o fantasma. — Sem descanso ou paz.
Incessantemente torturado pelo remorso.
— Você viaja rápido? — perguntou Scrooge.
— Nas asas do vento — respondeu o fantasma.
— Você deve ter percorrido uma grande extensão de território em sete anos
— disse Scrooge.
O fantasma, ao ouvir isso, deu um outro grito e agitou sua corrente de
maneira tão medonha no silêncio profundo da noite que não seria de estranhar
se a polícia lhe aplicasse uma multa por perturbação de sossego.
— Ai de mim! Prisioneiro acorrentado e duplamente imobilizado! —
exclamou o espectro. — Não saber que será preciso transcorrerem anos de
trabalho incessante por parte dos imortais, até este mundo entrar na eternidade,
para que o bem de que este mundo é capaz se desenvolva por completo! Não
saber que todo espírito cristão que trabalha gentilmente em sua pequena área,
seja ela qual for, descobrirá que uma vida mortal é curta demais para suas
imensas possibilidades de serventia. Não saber que não há arrependimento capaz
de remediar o desperdício da oportunidade da vida que nos é dado viver! E eu
era assim! Ai, eu era assim!
— Mas você sempre foi um bom homem de negócios, Jacob — disse
Scrooge com voz hesitante, começando a perceber que tudo aquilo também se
aplicava a ele.
— Homem de negócios! — exclamou o fantasma, voltando a torcer as mãos.
— Meu negócio era a humanidade. Meu negócio era o bem-estar comum; a
caridade, a piedade, a tolerância e a benevolência, tudo isso era meu negócio. As
operações comerciais que desenvolvi não passavam de uma gota de água no
imenso oceano de meu negócio!
Dizendo isso, ergueu sua corrente, como se aquela fosse a causa de tanto
sofrimento e desamparo, para em seguida deixá-la cair novamente com força no
chão.
— É nesta época do ano — disse o espectro — que mais sofro. Por que eu
tive que passar pelo mundo em meio a meus semelhantes sempre de olhos
baixos, sem nunca os levantar na direção daquela Estrela abençoada que
conduziu os Magos àquela pobre estrebaria? Não havia lares pobres para onde
sua luz pudesse ter me conduzido?
Scrooge estava bastante abalado ao ouvir o espectro falar daquela maneira e
começou a tremer muito.
— Ouça-me! — exclamou o fantasma. — Meu tempo está acabando.
— Estou ouvindo — disse Scrooge. — Mas não seja duro comigo! Não fique
dando voltas no assunto, Jacob! Eu lhe imploro!
— Eu não sei explicar como é possível que eu apareça para você sob uma
forma visível. Eu me sentei ao seu lado, invisível, por dias a fio.
Essa não era uma ideia agradável. Scrooge estremeceu e passou o lenço na
testa molhada de suor.
— Essa parte de minha penitência não é das mais fáceis — prosseguiu o
fantasma. — Estou aqui esta noite para avisá-lo de que você ainda tem uma
chance e uma esperança de escapar de ter um destino como o meu. Uma chance
e uma esperança que lhe proporciono, Ebenezer.
— Você sempre foi um bom amigo — disse Scrooge. — Obrigado.
— Você será assombrado — continuou o fantasma — por Três Espíritos.
O queixo de Scrooge caiu quase tanto quanto o do fantasma caíra.
— É essa a chance e a esperança que você mencionou, Jacob? — perguntou
ele, com voz vacilante.
— É.
— Acho, acho que prefiro não ter essa chance — disse Scrooge.
— Sem a visita deles — disse o fantasma —, você não terá como evitar o
caminho que estou percorrendo. O primeiro deles virá hoje, quando o sino bater
uma hora.
— Não seria possível os três virem de uma vez só, Jacob? — tentou Scrooge.
— O segundo amanhã à noite, à mesma hora. O terceiro virá na noite
seguinte, quando a última badalada da meia-noite for dada. Não espere me ver
novamente; e, para seu próprio bem, trate de nunca mais esquecer o que se
passou entre nós!
Depois de dizer essas palavras, o espectro pegou seu lenço, que deixara sobre
a mesa, e amarrou-o em torno da cabeça como estava antes. Scrooge percebeu
que era isso que estava acontecendo pelo barulhinho dos dentes quando as
mandíbulas se juntaram. Ele se arriscou a erguer novamente os olhos e viu seu
visitante sobrenatural confrontando-o, de maneira ereta, com a corrente enrolada
em seu corpo e braço.
A aparição foi se afastando dele de costas; e a cada passo que dava, a janela ia
se abrindo mais um pouco, de modo que quando o espectro chegou junto dela,
estava completamente aberta.
O fantasma fez um gesto para que Scrooge se aproximasse, que ele obedeceu.
Quando os dois estavam a dois passos um do outro, o fantasma de Marley
ergueu a mão, sinalizando para que o outro não chegasse mais perto. Scrooge
parou.
Não tanto por obediência, mas por surpresa e temor: porque, quando aquela
mão se ergueu, ele percebeu estranhos ruídos no ar; sons desconexos de lamento
e arrependimento, gemidos inenarravelmente doloridos e auto acusatórios. O
espectro ouviu por um instante, depois se uniu ao triste canto fúnebre; e flutuou
para fora, para a noite gelada e escura.
Scrooge se aproximou da janela, desesperado de curiosidade, e olhou para
fora.
O ar estava repleto de fantasmas vagando em todas as direções em uma pressa
incansável, gemendo o tempo todo. Todos eles tinham correntes como o
fantasma de Marley; uns poucos (quem sabe governantes culposos) se
encontravam acorrentados juntos; nenhum estava livre. Scrooge conhecera
muitos deles em vida. Aliás, conhecera particularmente bem um velho fantasma
de casaca branca com um monstruoso cofre de ferro preso ao tornozelo que
chorava com ar dolorido por não poder ajudar uma mulher miserável com um
bebê no colo que avistava lá embaixo, sentada na soleira de uma porta. O
sofrimento de todos eles, sem sombra de dúvida, decorria do fato de não
poderem interferir de forma concreta nas questões humanas, de terem perdido
seu poder para sempre.

Se aquelas criaturas haviam se fundido na névoa ou se a névoa as envolvera,


isso era algo que Scrooge não sabia dizer. O certo é que elas e suas vozes foram
desaparecendo juntas; e que a noite voltou a ser como era quando ele retornou
para casa.
Scrooge fechou a janela e examinou a porta por onde o fantasma entrara.
Estava trancada com duas voltas de chave, como ele a trancara com suas próprias
mãos, e os cadeados continuavam no lugar. Tentou dizer: “Que bobagem!”, mas
não conseguiu passar da primeira sílaba. E como estava muito cansado devido às
emoções que experimentara, ao cansaço do dia, à visão que teve do Mundo
Invisível, à incômoda conversa com o fantasma, ou ao adiantado da hora, foi
direto para a cama, sem se trocar, e adormeceu no mesmo instante.
1. Bethlem Royal Hospital, mais conhecido como Bedlam, foi um hospital psiquiátrico construído e
fundado em 1247.
Quando Scrooge acordou, estava tão escuro, que olhando para fora da cama, ele mal
conseguia discernir a vidraça transparente das paredes opacas de seus aposentos.
Fazia esforço para enxergar na escuridão com seus olhos de fuinha, quando os
sinos de uma igreja próxima começaram a bater a hora. Ele prestou atenção para
contar quantas badaladas seriam.
Para imenso espanto seu, o sino pesado passou das seis às sete, depois das sete
às oito, e continuou até as doze badaladas, e só então parou. Meia-noite!
Quando ele fora se deitar, já eram mais de duas da manhã! O relógio estava
errado. Um pingente de gelo devia ter entrado em seu mecanismo! Meia-noite!
Para saber a hora certa, apertou a mola do próprio relógio, que lhe forneceu,
em seu ritmo acelerado, doze batidas e depois parou.
— Ora, isso não é possível — disse Scrooge —, eu não posso ter dormido
um dia inteiro e ter continuado dormindo a noite toda. Não é possível que tenha
acontecido alguma coisa com o sol e que agora seja meio-dia.
A ideia o assustava. Pulou da cama e foi tateando até a janela. Para conseguir
ver alguma coisa, precisou limpar a camada de gelo que cobria a vidraça com a
manga do roupão, mas não conseguiu ver quase nada. Percebeu apenas que o
tempo continuava nublado e extremamente frio, e que não se ouvia o barulho
das pessoas correndo de um lado para o outro, como sem dúvida estaria
acontecendo se a noite tivesse derrotado a claridade do dia e tomado posse do
mundo. Isso era um grande alívio, pois “três dias a contar da data deste primeiro
aviso, pagar-se-á ao sr. Ebenezer Scrooge, ou à sua ordem” e assim por diante,
teria se tornado um documento sem valor se não houvesse dias para contar.
Scrooge voltou para cama e pensou, e pensou e pensou; pensou de frente
para trás e de trás para a frente, mas não conseguia chegar a nenhuma conclusão.
Quanto mais pensava, mais perplexo se sentia; e quanto mais se esforçava para
não pensar, mais pensava.
O fantasma de Marley o deixava muito perturbado. Toda vez que concluía,
depois de madura reflexão, que tudo não passara de um sonho, seu pensamento,
com a força de uma mola, voltava atrás, à posição inicial, e apresentava o mesmo
problema para ser revisto desde o início: “Foi um sonho ou não?”
Scrooge permanecia no mesmo estado até que os sinos começaram a anunciar
a passagem de mais três quartos de hora quando, de repente, ele se lembrou que
o fantasma lhe avisara sobre um visitante para o momento em que o sino desse
uma hora. Decidiu ficar acordado até depois da uma hora, e, considerando-se
que era tão improvável ele conseguir adormecer quanto ir para o Paraíso, essa foi,
talvez, a mais sábia decisão que tomou.
Aquele quarto de hora passou tão devagar que mais de uma vez ele acreditou
ter cochilado sem dar-se conta e deixado de escutar o sino. Mas chegou o
momento em que conseguiu ouvir.
— Dim-dom!
— Meia-noite e quinze — disse Scrooge, contando.
— Dim-dom!
— Meia-noite e meia! — disse Scrooge.
— Dim-dom!
— Quinze para uma — disse Scrooge.
— Dim-dom!
— Uma hora — disse Scrooge, triunfante. — E nada aconteceu!
Ele falou aquilo antes que o sino tocasse, o que aconteceu agora, com uma
única e profunda badalada, monótona, melancólica, sem ressonância. No mesmo
instante a luz do quarto se acendeu e a cortina da cama se abriu.
A cortina da cama foi aberta, digo a vocês, por uma mão. Não a cortina que
ficava junto aos seus pés, não a que ficava às suas costas, mas a cortina para onde
seu rosto estava virado. A cortina da cama se abriu e Scrooge deu um salto ainda
reclinado e deu de cara com o visitante de outro mundo que a afastava: tão perto
dele quanto estou agora de vocês, e, em espírito, estou bem ao lado.
Era uma figura estranha – parecia uma criança, mas ao mesmo tempo em
que se parecia com uma criança também se parecia com um velho, visto por
algum meio sobrenatural, o que lhe dava a aparência de ter sumido de vista e
diminuído para as proporções de uma criança. O cabelo, que lhe descia pelo
pescoço e ia até o meio das costas, era branco como por obra da idade; e, no
entanto, seu rosto não tinha uma única ruga e apresentava um aspecto
extremamente suave. Os braços eram longos e musculosos, assim como as mãos,
que pareciam ter uma força extraordinária. As pernas e pés, bastante delicados,
estavam nus, assim como os membros superiores. Usava uma túnica bastante
branca, e em torno da cintura trazia um cinto brilhante, de belos reflexos. Na
mão, tinha um ramo de azevinho verde e fresco, e, em singular contradição com
aquele emblema hibernal, envergava uma roupa toda enfeitada com flores de
verão. Mas o mais estranho era que do alto de sua cabeça brotava um raio de luz
cintilante que tornava tudo visível; o que explicava o fato de ele trazer debaixo
do braço um gorro, o qual sem dúvida usava nos momentos em que não queria
brilhar.
Mesmo isso, porém, quando Scrooge começou a olhar para a aparição com
mais segurança, não era essa sua característica mais estranha. Seu cinto brilhava e
cintilava, ora aqui e ora ali, e o que era luz em um momento, era escuro no
outro, de maneira que a imagem em si apresentava flutuações em nitidez: ora era
uma coisa com um braço, ora com uma perna, ora com vinte pernas, ora com
um par de pernas sem cabeça, ora uma cabeça sem corpo; e dessas partes que se
dissolviam não era possível ver nenhum contorno na penumbra espessa em que
se desvaneciam. E, por mais extraordinário que isso fosse, a aparição logo voltava
a assumir o aspecto que lhe era próprio, nítido e claro como antes.
— É o senhor o Espírito cuja vinda me foi anunciada, cavalheiro? —
perguntou Scrooge.
— Sou!
A voz era suave e amável, e estranhamente baixa, como se, em lugar de estar
tão perto dele, viesse de longe.
— Quem e o que é o senhor? — perguntou Scrooge.
— Eu sou o Fantasma do Natal Passado.
— Passado há muito tempo? — perguntou Scrooge, observando a estatura de
gnomo de seu visitante.
— Não. Do seu passado.
Talvez Scrooge não conseguisse explicar o porquê, caso lhe perguntassem,
mas estava com muita vontade de ver o espírito usando seu gorro, e implorou-
lhe que cobrisse a cabeça.
— O quê? — perguntou o Fantasma. — Será possível que você queira
apagar tão depressa, com mãos terrenas, a luz que lhe ofereço? Não lhe basta ser
um daqueles cujas paixões construíram este gorro e me obrigam, durante grande
parte do ano, a usá-lo descido até as sobrancelhas?
Scrooge, reverentemente, desmentiu toda e qualquer intenção de ofender,
bem como todo e qualquer conhecimento de ter “encapuzado” o espírito de
propósito em qualquer período de sua vida. Em seguida criou coragem para
perguntar o que o trazia a sua casa.
— Seu bem-estar! — disse o Fantasma.
Scrooge manifestou seus agradecimentos, mas não pôde deixar de pensar que
uma noite de sono contínuo teria contribuído melhor para isso. O Espírito deve
ter escutado seus pensamentos, pois imediatamente lhe disse:
— Sua reabilitação, nesse caso! Tome cuidado!
Enquanto falava, ergueu a mão vigorosa e pegou-o gentilmente pelo braço.
— Levante-se e venha comigo!
Teria sido inútil Scrooge argumentar que o clima e a hora não eram
adequados para um pedestre sair às ruas; que sua cama estava quente e o
termômetro estava bem abaixo de zero; que, de chinelos, roupão e gorro, usava
roupas muito leves e que ainda por cima estava resfriado. Não havia como
resistir, porém, àquela mão que o segurava, delicada como uma mão de mulher.
Assim, Scrooge levantou-se da cama. Ao constatar, porém, que o espírito
avançava na direção da janela, puxou sua túnica em uma súplica.
— Sou mortal! — protestou Scrooge. — Vou cair.
— Basta um toque da minha mão aqui — disse o espírito, roçando-lhe o
peito no lugar do coração —, e você ficará amparado em situações bem piores!
Enquanto essas palavras eram pronunciadas, os dois atravessaram a parede e
se viram no alto de uma estrada rural, com campos dos dois lados. A cidade
desaparecera por completo, sem deixar um único vestígio. As trevas e a neblina
haviam desaparecido com ela, pois fazia um dia claro e frio de inverno, com neve
cobrindo o chão.
— Deus do céu! — disse Scrooge, cruzando as mãos e olhando ao redor. —
Foi aqui que eu fui criado! Aqui eu fui criança!
O espírito o olhou com bondade. Seu toque suave, embora tivesse sido leve e
momentâneo, parecia continuar presente na impressão de tato do velho. Ele
percebeu mil aromas flutuando no ar, cada um deles relacionado a mil
pensamentos, esperanças, alegrias e cuidados esquecidos havia muito, muito
tempo!
— Seus lábios estão tremendo — disse o Fantasma. — E o que é isso em seu
rosto?
Scrooge murmurou, com uma emoção pouco frequente na voz, que era uma
espinha, e implorou ao Fantasma que o levasse a um determinado lugar.
— Você se lembra do caminho? — perguntou o espírito.
— Se eu me lembro? — exclamou Scrooge com emoção. — Eu poderia ir até
lá com os olhos vendados.
— Que estranho você não ter se lembrado do caminho por tantos anos! —
observou o Fantasma. — Vamos em frente.
Os dois foram andando pela estrada; Scrooge reconhecia cada porteira, cada
mourão, cada árvore. Foram andando até que uma vila, onde era possível ver
uma feira, apareceu à distância, com sua ponte, sua igreja e seu rio sinuoso.
Nesse momento viram alguns pôneis peludos trotando pela estrada na direção
deles; eram montados por garotos que falavam aos gritos com outros garotos que
vinham em charretes e carroças conduzidas por agricultores. Todos aqueles
garotos estavam cheios de entusiasmo, berrando uns para os outros, e os vastos
campos ficaram tão repletos de sons alegres que o ar gélido ria só de ouvi-los.
— Eles são apenas sombras das coisas que já aconteceram — disse o
Fantasma. — Não têm consciência da nossa presença.
Os viajantes alegres foram se aproximando, e à medida que chegavam perto,
Scrooge ia reconhecendo e identificando cada um deles. Que alegria infinita ver
aquela gente! Seus olhos frios brilhavam e o coração se sobressaltava ao ver
aquelas pessoas passando! Ele sentia uma alegria imensa ao ouvi-las desejar Feliz
Natal umas às outras, quando chegava o momento de se separarem nas
encruzilhadas e atalhos para tomar o rumo de suas diversas casas! Para Scrooge, o
que significava um Feliz Natal? Para o diabo essa história de Feliz Natal! Que
proveito isso já lhe trouxera na vida?
— A escola não está totalmente vazia — disse o Fantasma. — Uma criança
solitária, esquecida pelos amigos, ficou por lá.
Scrooge disse que sabia quem era o menino. E começou a chorar.
Os dois se afastaram da estrada por uma trilha muito viva na lembrança e
pouco depois se aproximaram de uma mansão de tijolos vermelhos e foscos, com
uma cúpula no telhado em cujo topo havia um pequeno galo de ferro, desses que
assinalam a direção do vento, equipado com uma sineta. Era uma casa grande,
mas sem vida, pois seus aposentos espaçosos eram pouco usados, as paredes
estavam úmidas e emboloradas, as vidraças quebradas, os portões decadentes.
Nos estábulos, galinhas cacarejavam e se pavoneavam, e as cocheiras e baias
tinham sido invadidas pelo matagal. Por dentro, o antigo esplendor não estava
mais bem preservado, pois quando os dois entraram no vestíbulo sombrio e
olharam pelas portas abertas dos inúmeros quartos, constataram que todos eram
modestamente mobiliados e que eram frios e imensos. Havia um cheiro de terra
no ar, um despojamento gélido naquele local, que de alguma forma se
associavam a muitas madrugadas à luz de velas e a pouca coisa para se comer.
Eles continuaram, o Fantasma e Scrooge, atravessando o vestíbulo em
direção a uma porta no fundo da casa. A porta se abriu diante deles,
desvendando uma mesa comprida, desolada, melancólica, que fileiras de bancos
e carteiras muito modestos tornavam-na ainda mais desolada. Sentado em uma
das carteiras havia um menino, lendo ao pé de uma lareira pequena; e sentou-se
em um dos bancos e chorou ao ver o pobre eu esquecido como costumava ser.
Na casa não se percebia nenhum eco latente, fosse ele de um guincho ou
carreira de camundongos atrás das divisórias, de uma gota a pingar na fonte
quase descongelada que havia no pátio monótono atrás da casa, de um sussurro
entre os ramos sem folhas de um choupo desolado, do ranger inútil da porta de
uma despensa vazia, não, nem um estalo no fogo, mas o coração de Scrooge foi
invadido por uma onda de emoção que o fez debulhar em lágrimas.
O espírito tocou-lhe o braço e apontou para ele mesmo mais moço,
concentrado na leitura. De repente, do lado de fora da janela, surgiu um homem
com roupas de estrangeiro, fantasticamente real e nítido ao olhar, com um
machado enfiado no cinto e puxando pela rédea um burro carregado de madeira.
— Olhe, é o Ali Babá! — exclamou Scrooge em êxtase. — É o querido e
sincero Ali Babá! Sim, sim, já sei! Houve um Natal, quando aquela criança
solitária foi abandonada sozinha na escola, em que ele apareceu, pela primeira
vez, exatamente como estamos vendo. Coitado do menino! E olhe lá a Valentine
— disse Scrooge —, ao lado do valente irmão dela, o Orson; lá vão eles! E como
é mesmo que ele se chamava? Aquele que foi abandonado de cuecas dormindo,
diante dos portões de Damasco! Você está vendo? E o Pajem do Sultão virado de
cabeça para baixo pelos Gênios; veja, lá está ele de pernas para o ar! Bem-feito.
Gostei de ver isso. Por que ele tinha que se casar com a Princesa?
Se os companheiros de negócios de Scrooge pudessem vê-lo dedicando toda a
vivacidade de sua natureza àqueles assuntos, em extraordinário tom de voz, entre
o riso e o pranto, e com um rosto animado, cheio de agitação, ficariam bastante
surpresos!
— Olha lá o Papagaio! — exclamou Scrooge. — Corpo verde e cauda
amarela, com uma coisa que parece uma alface no alto da cabeça; veja só! “Pobre
Robinson Crusoe”, foi o que ele gritou ao ver Robinson Crusoe voltar para casa
depois de navegar em torno da ilha. “Pobre Crusoe voltar para casa depois de
navegar em torno da ilha. Pobre Robinson Crusoe, onde você andava, Robinson
Crusoe?”. O homem achou que estava sonhando, mas não estava. Era o
Papagaio, sabe. E olhe só o Sexta-Feira, correndo a toda a velocidade para o
pequeno regato onde vive! Ei! Você aí! Ei!
E depois, com uma velocidade de transição muito contrária a seu estilo
habitual, Scrooge declarou, com pena do menino que havia sido:
— Pobre menino!
E começou a chorar novamente.
— Eu gostaria... — murmurou Scrooge, enfiando a mão no bolso e olhando
ao redor, depois de secar os olhos na manga do paletó —, mas agora não adianta
mais.
— Qual é o problema? — perguntou o espírito.
— Nada — disse Scrooge. — Nada. Ontem à noite um menino cantou uma
cantiga de Natal na porta da minha casa. Eu gostaria de ter dado alguma coisa a
ele, só isso.
O Fantasma sorriu, pensativo, fez um gesto com a mão e disse:
— Vamos ver outro Natal!
Com essas palavras, o menino que Scrooge fora um dia cresceu um pouco, e
a sala ficou um pouco mais escura e mais suja. As divisórias encolheram, as
vidraças racharam; pedaços de gesso caíram do teto, deixando à mostra as vigas,
mas como isso tudo era possível, eis uma coisa que Scrooge ignorava tanto
quanto vocês. O que ele sabia era que tudo aquilo estava correto, que tudo tinha
acontecido exatamente daquele jeito. Lá estava ele, sozinho novamente, quando
todos os outros garotos tinham ido para suas casas divertir-se durante o feriado.
Dessa vez ele não estava lendo, mas andando de um lado para outro, na
maior aflição. Scrooge olhou para o Fantasma e, balançando a cabeça com
tristeza, fixou os olhos na porta.
Ela se abriu, e uma menininha bem menor que o menino entrou correndo,
prendeu os braços em torno de seu pescoço e, com muitos beijos, chamou-o de
“meu querido, meu querido irmão” .
— Vim buscar você, vamos para casa, meu querido irmão! — disse a criança,
batendo as mãozinhas e dobrando-se de rir. — Vamos para casa, para casa, para
casa!
— Para casa, pequena Fan? — perguntou o menino.
— É! — respondeu a criança, radiante de alegria. — Para casa, e para
sempre. Para casa, para todo o sempre. Papai está tão mais amoroso do que era
antes, nossa casa está um paraíso! Uma bela noite, quando eu estava indo para a
cama, ele falou comigo com tanto carinho que criei coragem de pedir mais uma
vez que você voltasse para casa, e ele disse que sim, que você podia, e me
mandou vir buscá-lo em sua carruagem. E você vai se tornar um homem! —
disse a criança, arregalando os olhos. — Nunca mais vai voltar para cá, mas
primeiro vamos todos passar as festas juntos e ter o Natal mais divertido do
mundo.
— Você é uma mulher e tanto, pequena Fan! — exclamou o garoto.
Ela bateu palmas e riu, e tentou tocar sua cabeça, mas como era pequena
demais, caiu na risada novamente, e ficou na ponta dos pés para abraçá-lo.
Depois começou a arrastá-lo, com seu entusiasmo infantil, na direção da porta, e
ele, nem um pouco contrário à ideia, acompanhou-a.
No vestíbulo, uma voz terrível chamou:
— Desçam o baú do master Scrooge!
E o diretor da escola em pessoa apareceu no vestíbulo, olhando para master
Scrooge com feroz condescendência, e deixando-o cheio de pavor ao apertar-lhe
a mão. Em seguida, conduziu as duas crianças até o último dos velhos cubículos,
a sala de estar mais arrepiante que já se viu, em que os mapas pendurados nas
paredes e os globos celeste e terrestre juntos às janelas estavam embaçados de
frio. Lá ele desencavou uma garrafa de vinho curiosamente aguado e um pedaço
de bolo curiosamente massudo, ministrando porções dessas guloseimas aos dois
pequenos; ao mesmo tempo, enviou um serviçal bem magro para oferecer ao
cocheiro da carruagem “alguma coisa para beber”. O cocheiro respondeu que
agradecia muito, mas que se fosse o mesmo aperitivo que já havia tomado de
uma outra vez, dispensava-o. E, como a essas alturas, o baú de master Scrooge já
estava bem amarrado no alto da carruagem, as crianças se despediram de bom
grado do diretor da escola e embarcaram, atravessando alegremente a alameda
que cruzava o jardim, com as rodas velozes soltando a camada de gelo e neve que
cobria as folhas das sempre-vivas, deixando uma nuvem para trás.
— Sempre uma criatura delicada, a quem um ventinho poderia derrubar —
disse o Fantasma. — Mas ela tinha um grande coração!
— Tinha mesmo — exclamou Scrooge. — Você está certo. Não posso
contestá-lo, espírito. Deus me livre!
— Ela morreu quando adulta — disse o Fantasma — e teve filhos, eu acho.
— Um filho — respondeu Scrooge.
— Verdade — disse o Fantasma. — Seu sobrinho!
Scrooge pareceu incomodado, e respondeu rapidamente:
— Sim.
Embora tivessem saído da escola alguns momentos antes, atravessavam agora
as ruas movimentadas de uma cidade, com personagens sombrios passando de
um lado para o outro, com carroças e carruagens espectrais disputando espaço
nas ruas, e com toda a algazarra e todo o tumulto de uma autêntica cidade. Pelo
aspecto das lojas, foi fácil perceber que lá também, uma vez mais, era Natal, mas
já escurecera, e as luzes dos postes estavam acesas.
O Fantasma parou junto à porta de um certo armazém e perguntou a
Scrooge se reconhecia o lugar.
— Se reconheço? — exclamou Scrooge. — Fui aprendiz nesse lugar!
Entraram. Ao avistar um velho cavalheiro usando uma peruca ao estilo galês,
sentado atrás de uma escrivaninha tão alta que se ele fosse um pouquinho mais
alto batia a cabeça no teto, Scrooge gritou, no maior entusiasmo:
— Olhe! O velho Fezziwig! Deus o abençoe, Fezziwig está vivo de novo!
O velho Fezziwig largou a caneta e ergueu os olhos para o relógio, que
marcava sete horas. Esfregou as mãos, ajeitou o portentoso colete, sorriu para si
mesmo ao se olhar de cima até embaixo, dos pés ao órgão da benevolência, e
gritou com uma voz amena, amistosa, sonora, cheia e jovial:
— Ei, vocês aí! Ebenezer! Dick!
O antigo Scrooge, agora um rapaz, entrou em um passo rápido,
acompanhado de seu colega aprendiz.
— Aquele é o Dick Wilkins! — disse Scrooge ao Fantasma. — Ah, meu
Deus, é ele! Ele gostava muito de mim, o Dick. Pobre Dick! Querido, muito
querido!
— Olá, olá, meus rapazes! — disse Fezziwig. — Chega de trabalho por hoje.
Véspera de Natal, Dick. Natal, Ebenezer! Vamos fechar o estabelecimento —
exclamou o velho Fezziwig, batendo as mãos em uma palmada sonora —, vamos
rápido, antes que eu conte até três!
Não dava para acreditar na velocidade com que aqueles dois fizeram o que
lhes era pedido! Os rapazes saíram para a rua com os tampões de madeira que
protegiam as portas – um, dois, três – fixaram-nos em seus lugares – quatro,
cinco, seis – puseram as trancas e os pinos – sete, oito nove – e voltaram em um
pé só, bufando como cavalos de corrida!
— Ôôôôaaaa! — exclamou o velho Fezziwig, escorregando de sua
escrivaninha alta com fantástica agilidade. — Vamos lá, meus rapazes, preciso de
muito espaço livre aqui dentro! Ôôôôaaaa, Dick! Mexa-se, Ebenezer.
Espaço livre! Não havia nada que aqueles dois não afastassem, ou estivessem
dispostos a afastar, do meio da sala, com o velho Fezziwig no comando das
operações. Em um instante o serviço estava feito. Tudo o que era possível tirar
do lugar foi retirado dali, como uma coisa que se retira de circulação para todo o
sempre; o assoalho foi varrido e lavado, os lampiões lustrados, a lareira
alimentada com muita lenha; e o armazém se transformou no salão de baile mais
impecável, quente, seco e cintilante que alguém pudesse desejar ver em uma
noite de inverno.
Um violinista com um livro de partituras na mão entrou no recinto e se
dirigiu para a escrivaninha alta, que se transformou em palco, e pôs-se a tocar seu
instrumento como se fossem cinquenta dores de barriga juntas. Entrou a sra.
Fezziwig, com um vasto sorriso substancial. Entraram as três jovens Fezziwig,
radiantes e adoráveis. Entraram os seis jovens apaixonados cujos corações elas
haviam partido. Entraram todos os rapazes e mocinhas que trabalhavam no
estabelecimento. Entrou a arrumadeira com o primo, que era padeiro. Entrou a
cozinheira com o melhor amigo do irmão, o leiteiro. Entrou o aprendiz do outro
lado da rua, que na opinião de todos o patrão maltratava, procurando esconder-
se atrás da garota da loja, logo depois da do vizinho, e dessa, todos sabiam, a
patroa puxava a orelha. Todos eles foram entrando, um após o outro; uns
envergonhados, outros ousados, uns com graça, outros sem jeito, uns
empurrando, outros puxando; e todos eles foram entrando, de todo modo e de
qualquer jeito. E todos andaram para um lado, vinte casais ao mesmo tempo,
todos de braço dado, depois de novo para o outro lado; fizeram meia-volta e
viraram; giraram e giraram em todos os níveis de afetuoso aperto; com o casal
que ia na frente sempre dando a volta no lugar errado; com o casal seguinte
virando a dança muito de repente; e no fim todos na mesma linha sem ninguém
atrás para continuar. Quando esse resultado foi obtido, o velho Fezziwig,
batendo palmas para parar a dança, gritou: “Que beleza!”, e o violinista
mergulhou o rosto ardente em um jarro de cerveja trazido especialmente para
esse fim. Sem querer saber de descanso ou boa aparência, porém, ele recomeçou
em seguida, mesmo sem bailarinos no salão, como se o outro violinista, exausto,
tivesse saído carregado em uma maca, e ele fosse um homem novo em folha
decidido a jogar o anterior no esquecimento, ou morrer.
Mais danças aconteceram, depois jogos de prendas, mais dança, depois bolo,
e brindes, depois uma peça grande de assado frio, uma peça grande de cozido
frio, várias tortas de carne e muita cerveja. Mas a grande sensação da noite fez
sua entrada depois do assado e do cozido, quando o violinista (uma figura muito
jeitosa, aliás! O tipo de homem que entende muito mais do seu negócio do que
vocês ou eu teríamos condições de dizer a ele!) interpretou “Sir Roger de
Coverley”. Foi quando o velho Fezziwig entrou no salão para dançar com a sra.
Fezziwig. Eles é que conduziram a dança, e a tarefa não foi pequena: vinte e três
ou vinte e quatro pares de dançarinos, pessoas que não estavam para brincadeira,
pessoas que queriam dançar e que não tinham a menor intenção de deixar por
menos.
Mas se houvesse duas vezes mais dançarinos no salão – ah, se houvesse quatro
vezes mais dançarinos no salão – o velho Fezziwig teria sido páreo para eles, e a
sra. Fezziwig também. No que diz respeito a ela, a sra. Fezziwig bem merecia ser
par dele em todas as acepções do termo. Se isso não for elogio suficiente, digam-
me o que mais eu poderia falar de elogioso, para eu falar neste mesmo instante.
As canelas de Fezziwig pareciam lançar raios. Elas brilhavam como luas em todas
as partes da dança. Teria sido impossível prever, em qualquer momento dado, o
que iria acontecer com os dois no instante seguinte. E depois que o velho
Fezziwig e a sra. Fezziwig completaram os movimentos da dança, depois que
avançaram e recuaram, seguraram as mãos do companheiro, inclinaram-se e
cumprimentaram, fizeram reviravoltas, passaram por baixo dos braços levantados
dos outros bailarinos e voltaram para o lugar, Fezziwig fez uma “tesoura” – uma
tesoura tão ágil que a impressão que deu foi que ele havia piscado com as pernas,
para em seguida cair novamente sobre os pés sem perder o aprumo.
Quando o relógio bateu onze horas, o baile chegou ao fim. O sr. e a sra.
Fezziwig se posicionaram, cada um a um lado da porta, e apertaram a mão de
todos os presentes individualmente, à medida que iam saindo, desejando-lhes
um feliz Natal. Depois que todos haviam se retirado, com exceção dos dois
aprendizes, despediram-se também deles, a seguir as vozes alegres sumiram na
distância e os rapazes foram deixados sozinhos com suas camas, que ficavam
debaixo de um dos balcões nos fundos da loja.
Durante todo esse tempo, Scrooge se comportara como um homem que
perdera a razão. Seu coração e sua alma estavam lá, participando da cena,
estavam com a pessoa que ele havia sido. Ele corroborava tudo, lembrava-se de
tudo, desfrutava de tudo, tomado por uma agitação estranhíssima. Somente
naquele momento, quando as fisionomias felizes da pessoa que ele havia sido e
de Dick se viraram para a parede, ele se lembrou do Fantasma e percebeu que
este o olhava fixamente, enquanto a luz no topo de sua cabeça brilhava com
grande intensidade.
— Algo pequeno — disse o Fantasma — que faz essa gente tola demonstrar
tamanha gratidão.
— Pequeno! — repetiu Scrooge.
O espírito fez um sinal para que ele prestasse atenção no que diziam os dois
aprendizes, que se derramavam em elogios a Fezziwig; e depois que Scrooge
obedeceu, ele comentou:
— Ora! Não é verdade? Ele gastou umas poucas libras de seu dinheiro
mortal, umas três ou quatro, não mais. Será que é tanto assim, para merecer
todos esses elogios?
— Mas não é isso — disse Scrooge, irritado com a observação e falando, sem
se dar conta, como a pessoa que havia sido, e não como a que era agora. — Não
é isso, espírito. Ele tem o poder de nos fazer felizes ou infelizes, de deixar nosso
trabalho leve ou cansativo, um prazer ou um fardo. Digamos que seu poder está
todo em palavras e em aparências, em coisas tão minúsculas e insignificantes que
seria impossível enumerá-las, ou somá-las. E daí? A felicidade que ele
proporciona é tão grande que é como se valesse uma fortuna.
Ele percebeu o olhar do espírito, e parou de falar.
— O que foi? — perguntou o Fantasma.
— Nada — disse Scrooge.
— Acho que tem alguma coisa — insistiu o Fantasma.
— Não — disse Scrooge. — Não. Eu só gostaria de poder dizer uma ou duas
palavrinhas para o meu ajudante agora, só isso.
A pessoa que ele fora apagou a luz no momento em que ele externava esse
desejo, e Scrooge e o Fantasma viram-se novamente ao ar livre, um ao lado do
outro.
— Meu tempo está acabando — observou o espírito. — Depressa!
Essas palavras não foram dirigidas a Scrooge, nem a ninguém que ele pudesse
ver, mas seu efeito foi imediato. Porque uma vez mais Scrooge viu a si mesmo.
Agora estava mais velho, era um homem no vigor da idade. Seu rosto não exibia
os vincos ásperos e rígidos da velhice, mas começara a apresentar as marcas da
preocupação e da avareza. Havia um movimento ansioso, ávido, inquieto em
seus olhos, que mostrava a paixão que criara raízes e onde a sombra da árvore
que crescia refletiria.
Ele não estava sozinho, pois a seu lado se assentava uma linda mocinha em
traje de luto: os olhos dela estavam cheios de lágrimas, e as lágrimas cintilavam à
luz emitida pelo Fantasma dos Natais Passados.
— Pouco importa — dizia ela, com meiguice. — Para você, não faz
diferença. Outro ídolo tomou meu lugar, e se esse ídolo pode alegrá-lo e consolá-
lo nos tempos que virão, como eu teria tentado fazer, não tenho razões para me
queixar.
— Que ídolo tomou o seu lugar? — perguntou ele.
— Um ídolo dourado.
— Essa é a justiça do mundo! — disse ele. — Para a pobreza, ele reserva seus
piores rigores, mas nada ele condena com tanta severidade quanto a busca da
riqueza!
— Você teme demais o mundo! — respondeu ela com suavidade. — Todas
as suas outras esperanças foram engolfadas pela esperança de ficar fora do alcance
das sórdidas reprimendas do mundo. Vi como suas aspirações mais nobres foram
caindo uma a uma, até que a paixão mestra, o Lucro, tomou conta de você. Não
é mesmo?
— E daí? — respondeu ele. — Admitindo que seja verdade que adquiri toda
essa sabedoria, qual é o problema? Não mudei em relação a você.
Ela balançou a cabeça.
— Mudei?
— Nosso trato é muito antigo. Foi celebrado quando os dois éramos pobres
e não nos incomodávamos com isso, confiantes em que chegado o momento
haveríamos de ver aumentar nossa fortuna terrena graças ao nosso trabalho
paciente. Você mudou. Na época em que fizemos nosso trato, você era outro
homem.
— Eu era uma criança — disse ele, impaciente.
— Seus próprios sentimentos lhe dizem que você não era o que é hoje —
respondeu ela. — Eu sou. As coisas que nos prometiam a felicidade quando
nosso coração era um só, ficaram impregnadas de tristeza, agora que somos duas
pessoas diferentes. Quantas vezes, com quanta intensidade, pensei nisso tudo,
isso não vou lhe dizer. Basta dizer que pensei no assunto e que estou disposta a
abrir mão de você.
— Alguma vez lhe pedi que abrisse mão de mim?
— Com palavras não. Nunca.
— Como pedi, então?
— Com uma mudança de atitude; com uma alteração de humor; com uma
atmosfera de vida diferente; com outra esperança como seu objetivo supremo.
Com tudo que fazia meu amor ter algum interesse para você. Hoje, parece que
jamais houve nada entre nós — disse a mocinha, olhando para ele com doçura,
mas também com firmeza. — Diga-me, você iria me procurar neste momento
para tentar conquistar meu amor? Ah, não!
Ele pareceu acatar a justeza da suposição, a despeito de si mesmo. Mas,
fazendo um esforço, observou:
— Você é que acha que não.
— Eu acharia ótimo ter uma opinião diferente, se fosse possível —
respondeu ela. — Deus sabe o quanto eu gostaria! Mas se até eu percebi o que
estava acontecendo, é porque sei a que ponto essa verdade deve ser forte e
irresistível. Porém, se, hoje, amanhã, ontem, você fosse um homem sem
compromissos, nem mesmo eu acreditaria que pudesse escolher uma garota sem
fortuna. Você que, confiado, justamente em sua intimidade comigo, avalia todas
as coisas pelo Lucro... E se, por acaso, traindo por um momento o princípio que
o orienta, você viesse a escolher uma moça como eu, por acaso não sei que logo
em seguida sentiria tão só desgosto e arrependimento? Sei que é assim, por isso
abro mão de você. De coração pesado, pelo amor que sinto por aquele que você
foi um dia.
Ele fez menção de falar; ela, porém, com a cabeça virada para o lado,
continuou:
— Talvez você sofra... a lembrança do que ficou para trás me leva a ter
alguma esperança de que isso aconteça. Por pouco, bem pouco tempo, e logo em
seguida você deixará de lado essa lembrança, alegremente, como quem deixa de
lado um sonho que não traz proveito algum, do qual foi muito oportuno
acordar. Desejo-lhe felicidade na vida que escolheu!
A moça se afastou; os dois se separaram.
— Espírito! — disse Scrooge. — Não me mostre mais nada! Leve-me para
casa. Por que você tem prazer em me torturar?
— Só mais uma sombra! — exclamou o Fantasma.
— Nem mais uma! — gritou Scrooge. — Nem uma mais. Não quero ver.
Não me mostre mais nada.
Mas o incansável Fantasma, puxando-o pelos dois braços, obrigou-o a
observar a cena seguinte.
O cenário e o ambiente agora eram diferentes. Estavam em um aposento,
não muito grande ou bonito, mas muito confortável. Perto da lareira estava
sentada uma linda jovem tão parecida com a do episódio anterior que no início
Scrooge pensou que fosse ela, até que a viu, agora transformada em atraente
matrona, sentada diante da filha. O cômodo estava bastante barulhento, pois
havia outras crianças ali que Scrooge, em sua agitação, foi incapaz de contar, e,
diferentemente do famoso rebanho do poema, não eram quarenta crianças
comportando-se como uma só, mas cada uma delas comportando-se como
quarenta. O resultado era uma gritaria inacreditável, com a qual ninguém
parecia estar se incomodando, ao contrário, mãe e filha riam alegres, achando
graça da situação, e a filha, que pouco depois se decidiu a participar das
atividades, viu-se energicamente atacada pelos jovens malfeitores. O que eu não
teria dado para ser um deles! Mas jamais conseguiria ser grosseiro assim! Não,
não! Não há dinheiro no mundo que me fizesse despentear e soltar aquele cabelo
trançado! Eu jamais arrancaria aquele precioso sapatinho, Deus me perdoe, nem
que fosse para salvar minha vida. E segurá-la pela cintura no meio da
brincadeira, como eles fizeram, aquele bando de maluquinhos, nunca eu faria
uma coisa dessas; e se o fizesse, acharia justo, como castigo, ver meu braço
formar um arco em torno da cintura dela para todo o sempre. E, no entanto,
reconheço: como eu teria gostado de tocar seus lábios, de fazer-lhe perguntas
para ver se ela os abria; de contemplar as pálpebras daqueles olhos voltados para
o chão, sem pensar em fazê-la corar; desprender mechas de cabelos, alguns
centímetros dos quais seriam um tesouro de valor incalculável; em suma, eu teria
gostado, confesso, de possuir um pouquinho da liberdade de uma criança sendo,
ao mesmo tempo, suficientemente adulto para compreender o valor daquilo
tudo.
Mas uma batida à porta foi ouvida, e o fato desencadeou tamanha correria
que a do rosto sorridente e vestido descomposto foi sendo levada em sua direção
no centro de um grupo ruidoso e entusiasmado, lá chegando bem a tempo de
receber o pai, que vinha escoltado por um homem carregado de brinquedos e
presentes de Natal. E a balbúrdia, o empurra-empurra, o ataque que se
desencadeou ao indefeso carregador! Escalaram o homem usando cadeiras como
escada, exploraram seus bolsos, despojaram-no dos pacotes embrulhados em
papel pardo, seguraram-no pela gravata, quase o esgoelaram de tanto abraço,
estapearam suas costas e chutaram-lhe as pernas em manifestações de incontido
afeto! E os gritos de surpresa e prazer com que se recebia cada pacote! E a terrível
declaração de que o bebê fora flagrado no ato de enfiar uma frigideira de boneca
na boca, tornando-se mais do que suspeito de ter engolido um peru de faz-de-
conta grudado em uma bandeja de madeira! E o grande alívio ao se constatar que
tudo não passava de alarme falso! A alegria, a gratidão e o êxtase! Todos
igualmente indescritíveis. Basta dizer que pouco a pouco as crianças e suas
emoções foram saindo da sala e uma após a outra subindo a escada que levava ao
andar de cima da casa, onde todas foram para a cama e se aquietaram.
E agora Scrooge observava a cena com mais atenção do que nunca, quando o
dono da casa, com a filha amorosamente apoiada nele, sentou-se com ela e a mãe
perto da lareira; e quando pensou que uma criatura como aquela, igualmente
graciosa e promissora, poderia tê-lo chamado de “pai”, sendo uma primavera no
inverno desolado de sua existência, sua visão ficou muito embaçada.
— Belle — disse o marido, voltando-se para a esposa com um sorriso. —
Hoje à tarde vi um velho amigo seu.
— Quem?
— Adivinhe!
— Como vou adivinhar? Ah, já sei! — acrescentou ela em um só fôlego,
rindo junto com ele. — O senhor Scrooge.
— O senhor Scrooge. Passei pela janela de seu escritório, e como não estava
fechada e ele se encontrava lá dentro com uma vela acesa, não tive como não o
ver. Ouvi dizer que o sócio está prestes a morrer; e ele lá, sentado sozinho. Acho
que não tem ninguém neste mundo.
— Espírito! — disse Scrooge, com voz hesitante. — Leve-me embora deste
lugar.
— Eu lhe disse que essas eram sombras das coisas que um dia aconteceram
— disse o Fantasma. — Não me culpe se elas são o que são.
— Tire-me daqui! — implorou Scrooge. — Não aguento mais!
Virando-se para o Fantasma, Scrooge viu que o rosto que olhava para ele era
uma estranha combinação dos fragmentos de todos os rostos que o outro acabava
de lhe mostrar, e avançou contra ele.
— Deixe-me em paz! Leve-me de volta! Pare de me perseguir!
Durante a luta, se é que podemos chamar luta algo em que o Fantasma não
oferecia nenhuma resistência visível e mantinha-se imperturbável diante dos
esforços do adversário, Scrooge observou que sua luz ardia alta e forte; e,
obscuramente associando esse fato à influência que o outro exercia sobre ele,
empunhou o gorro-extintor e, em um ato repentino, enfiou-o com força na
cabeça dele.
O Espírito sumiu por baixo do gorro, ficando com a totalidade de sua forma
coberta por ele, mas embora Scrooge pressionasse o gorro para baixo com todas
as suas forças, não conseguiu ocultar a luz, que jorrava por baixo do gorro em
um fluxo ininterrupto, iluminando o chão.
Tinha consciência de estar exausto e invadido por uma sonolência irresistível,
e, mais ainda, de estar em seu próprio quarto. Pressionou o gorro com força pela
última vez, como que para despedir-se, e sentiu a mão relaxar, mal teve tempo de
jogar-se na cama, já dormia profundamente.
Acordando no meio de um ronco prodigiosamente forte e sentando-se na cama para
organizar os pensamentos, Scrooge não teve ocasião de ser informado de que o
sino estava de novo a ponto de dar a badalada da uma hora. Teve a impressão de
que havia recuperado a consciência em cima da hora, com o objetivo específico
de encontrar o segundo mensageiro que lhe seria encaminhado em decorrência
da intervenção de Jacob Marley. Porém, constatando que sentia um frio
desagradável toda vez que começava a especular qual de suas cortinas esse novo
espectro afastaria ao entrar, tratou de abri-las todas com as próprias mãos;
depois, deitando-se outra vez, pôs-se a vigiar atentamente toda a área que
contornava sua cama. Tinha a intenção de desafiar o Espírito no momento em
que ele surgisse, e não queria ser tomado de surpresa, nem que o deixassem
nervoso.
Os cavalheiros do tipo fácil e despreocupado, desses que se vangloriam de ter
conhecimento de certo número de malandragens e que, em geral estão, a par dos
últimos acontecimentos, manifestam a ampla gama de suas capacidades para a
aventura afirmando que estão preparados para o que der e vier, do jogo de
palitinhos ao assassinato, sendo que entre esses dois extremos, evidentemente,
encontramos um conjunto bastante amplo e abrangente de questões. Sem chegar
a afirmar que Scrooge fosse radical a esse ponto, tenho a dizer-lhes, com
tranquilidade, que podem acreditar que ele estaria preparado para enfrentar um
bom número de situações bizarras e que nada, de um bebê a um rinoceronte,
poderia causar-lhe desconforto ou surpresa.
Agora, embora ele estivesse preparado para quase tudo, não estava nem um
pouco preparado para coisa nenhuma; e, consequentemente, quando o sino
bateu a uma e nenhum vulto apareceu, ele foi tomado por uma crise violenta de
tremedeira. Cinco minutos, dez minutos, um quarto de hora, o tempo foi
passando e nada acontecia. Esse tempo todo ele ficou deitado em sua cama, o
cerne e centro de um clarão intenso que a envolvera desde o momento em que o
sino anunciara a hora, e que, sendo apenas luz, era mais inquietante que uma
dúzia de fantasmas, pois Scrooge era incapaz de chegar a uma conclusão sobre o
que aquilo significava, ou para que servisse. Apreensivo ficou durante algum
tempo com a ideia de que ele mesmo pudesse ser, naquele exato momento, um
interessante caso de combustão espontânea, e isso sem o consolo de ter
conhecimento do fato. Por fim, contudo, ele começou a pensar – como vocês ou
eu teríamos feito desde o começo, pois é sempre a pessoa não envolvida nos
acontecimentos que sabe o que deveria ter sido feito, e que com toda a certeza
teria feito o que era preciso –, por fim, digo eu, ele começou a pensar que a fonte
e o segredo daquela luz fantasmagórica provavelmente estavam na peça ao lado,
de onde, prestando-se bem atenção na luz, ela parecia irradiar-se. Depois que
essa ideia tomou conta de sua mente, ele se levantou com todo o cuidado e foi
até a porta arrastando os chinelos.
No momento em que a mão de Scrooge pousou sobre o trinco, uma voz
desconhecida chamou-o pelo nome e lhe ordenou que entrasse. Ele obedeceu.
Aquela era sua sala. Quanto a isso não havia dúvida. Só que passara por uma
transformação surpreendente. As paredes e o teto estavam tão recobertos de
ramos verdes que a sala parecia um verdadeiro bosque, com frutinhas iluminadas
cintilando por toda parte. As folhas rígidas do azevinho, do visco e da hera
refletiam a luz feito minúsculos espelhos espalhados ao redor; e na lareira, subia
chaminé acima um fogo tão forte que aquela pobre edificação pétrea jamais vira
igual, nem no tempo de Scrooge, nem no de Marley, nem no decorrer de muitos
e muitos invernos. Empilhados no assoalho formando uma espécie de trono
viam-se perus, gansos, caça, aves, grandes quartos de carne, leitõezinhos, longos
espirais de salsichas, tortas salgadas, pudins de ameixa, barris de ostras, castanhas
bem quentes, maçãs vermelhinhas, laranjas suculentas, peras esplêndidas, bolos
imensos e tigelas fumegantes de ponche que, com seu vapor delicioso,
diminuíam a visibilidade no interior do aposento. Comodamente instalado em
um sofá estava um simpático Gigante, de aspecto glorioso; segurava uma tocha
luminosa com um formato bastante semelhante ao da Cornucópia, que ele
erguia bem alto, para que sua luz iluminasse Scrooge, que espiava da porta.
— Entre! — exclamou o Gigante. — Entre! Venha me conhecer melhor,
homem!
Scrooge entrou timidamente e inclinou a cabeça diante daquele novo
espírito. Não era o Scrooge teimoso de sempre; e embora os olhos do espírito
fossem claros e bondosos, ele não se sentia à vontade ao olhar para ele.
— Sou o Fantasma do Natal de Hoje — disse o espírito. — Olhe para mim!
Scrooge olhou, reverentemente. O fantasma usava uma simples túnica, ou
manto, verde com arminho nas bordas. Essa vestimenta era tão folgada em torno
de seu corpo que o peito portentoso ficava descoberto, como se desdenhasse ser
resguardado ou oculto sob um artifício qualquer. Seus pés, visíveis por baixo das
amplas dobras do traje, também estavam nus; e sobre a cabeça, como única
proteção, ele ostentava um ramo de azevinho, salpicado aqui e ali com cintilantes
pingentes de gelo. Seus cachos longos e escuros estavam soltos e livres; livres
como o rosto amável, os olhos brilhantes, a mão aberta, a voz alegre, o
comportamento descontraído e o ar contente. Presa à cintura, ostentava uma
antiga bainha, mas a bainha não continha nenhuma espada e seus metais
estavam comidos pela ferrugem.
— Você nunca viu alguém como a mim antes! — exclamou o espírito.
— Nunca — respondeu Scrooge.
— Você jamais encontrou os membros mais jovens de minha família (pois
sou muito jovem), ou seja, meus irmãos mais velhos, nascidos nestes últimos
anos? — prosseguiu o Fantasma.
— Acho que não — disse Scrooge. — Você tem muitos irmãos, espírito?
— Mais de mil e oitocentos — disse o Fantasma.
— Que família imensa para sustentar! — murmurou Scrooge.
O Fantasma do Natal de Hoje se levantou.
— Espírito — disse Scrooge com voz submissa —, leve-me para onde quiser.
Ontem à noite fui obrigado a dar um passeio e aprendi uma lição que já estou
usando agora. Esta noite, se tiver algo para ensinar-me, permita que eu me
beneficie disso.
— Segure minha túnica!
Scrooge fez o que ele mandou e agarrou com força a túnica.
Azevinho, visco, frutinhas rubras, hera, perus, gansos, caça, aves, carne,
porcos, salsichas, ostras, tortas, pudins, frutas e ponche, tudo desapareceu no
mesmo instante. O mesmo aconteceu com a sala, o fogo, o clarão luminoso e a
noite, e os dois se viram andando pelas ruas da cidade na manhã de Natal, onde
(porque o tempo estava terrível) as pessoas produziam uma espécie de música
áspera, mas ao mesmo tempo sincopada e não de todo desagradável, ao retirar a
neve depositada nas calçadas e telhados de suas residências; as crianças se
divertiam loucamente ao ver a neve precipitar-se na rua embaixo, fragmentando-
se em pequenas nevascas artificiais.
As casas tinham fachadas escuras, e janelas mais escuras ainda, contrastando
com a capa lisa e alva da neve sobre os telhados e com a neve suja acumulada no
chão; nesta última as rodas das pesadas carruagens e carroças haviam aberto
vincos profundos, vincos que se cruzavam e entrecruzavam centenas de vezes nos
pontos em que as principais artérias se subdividiam, formando canais intrincados
difíceis de acompanhar, na espessa lama amarela e na água quase congelada. O
céu estava encoberto e as ruas menores se engasgavam em uma neblina opaca,
parte gelo e parte água, cujas partículas mais pesadas caíam em uma chuva de
átomos fuliginosos, como se todas as chaminés da Grã-Bretanha, de comum
acordo, tivessem pegado fogo e ardessem em chamas com garra e determinação.
Não havia nada especialmente animado no clima ou na cidade, nem por isso
deixava de imperar uma atmosfera alegre que o mais límpido ar de verão, o mais
luminoso sol de verão, talvez tivessem tentado em vão disseminar.
Isso porque as pessoas que retiravam a neve dos telhados estavam de bom
humor, tomadas de alegria, gritando umas para as outras lá de cima, às vezes
tentando acertar alguém de brincadeira com uma bola de neve – projétil mais
bem-intencionado que muito comentário maldoso –, rindo animadas quando
acertavam o alvo e não menos animadas quando erravam. Nem todas as lojas de
comerciantes de aves tinham fechado, e os fruteiros eram pura glória em meio a
suas frutas. Viam-se grandes balaios cheios de castanhas, redondos, bojudos, cuja
forma evocava os coletes dos velhos festeiros que cochilavam diante das portas de
suas casas ou andavam pelas ruas aos tropeções, em uma opulência apoplética.
Viam-se cebolas espanholas, trigueiras e de cintura grossa, cintilando na pujança
de seu volume feito monges espanhóis, de suas prateleiras, eles davam piscadelas
espertas e maliciosas às garotas que passavam lançando olhares de suma
gravidade para as guirlandas de visco. Via-se um festival de peras e maçãs,
empilhadas em altas pirâmides; viam-se cachos de uvas que os fruteiros, em sua
benevolência, penduraram em ganchos estrategicamente distribuídos com o
objetivo de deixar a boca dos passantes cheia de água sem que estes precisassem
pagar por isso; viam-se montes de avelãs marrons em seus ninhos de barba-de-
pau, cuja fragrância evocava antigos passeios no bosque e agradáveis caminhadas
de pés afundando até o tornozelo em folhas secas; viam-se maçãs assadas à moda
de Norfolk, redondas e caramelizadas, que ressaltavam o amarelo das laranjas e
dos limões e, no caráter intensamente compacto de suas suculentas pessoas,
exigiam e insistiam que as levassem para casa em sacos de papel e as comessem
depois do jantar. Até os peixinhos dourados e prateados expostos em um aquário
redondo em meio a essas frutas esplêndidas, embora pertencessem a uma raça
mortiça, de sangue estagnado, pareciam ter conhecimento de que alguma coisa
estava acontecendo; e, levando-se em conta que eram peixes, ficavam dando
voltas e mais voltas em seu pequeno mundo, arquejantes, em uma excitação lenta
e sem paixão.
E as mercearias! Ah, as mercearias! Quase fechadas, com uma ou duas de suas
portas já protegidas pelos tampões de madeira, mas que vistas podiam ser
observadas por entre as frestas! Não era apenas o fato de que as balanças, ao
arriar de encontro aos balcões, produzissem um ruído alegre, ou de que suas
cordas e cilindros se apartassem de maneira tão brusca, ou de que as latas de
gêneros fossem manipuladas para cima e para baixo como se fizessem parte do
equipamento de um mágico, ou mesmo de que os aromas mesclados do chá e do
café fossem tão agradáveis ao olfato, ou ainda de que as uvas fossem tão
abundantes e tão raras, as amêndoas tão extremamente brancas, as ramas de
canela tão compridas e direitas, os outros condimentos tão deliciosos, as frutas
cristalizadas tão rebocadas e salpicadas de açúcar derretido que o mais
imperturbável dos observadores se sentia tonto e em seguida irritado. Tampouco
era o fato de que os figos estivessem redondos e suculentos, ou de que as ameixas
francesas se ruborizassem em tímido recolhimento no interior de suas caixas
decoradas com exuberância, ou de que tudo fosse bom de comer e se
apresentasse em roupagens natalinas; o que contava era que os fregueses estavam
todos com tanta pressa, tão ansiosos na expectativa esperançosa daquele dia, que
tropeçavam uns nos outros à porta, entrechocando violentamente seus cestos de
vime e esquecendo as compras sobre o balcão, para voltar correndo em seguida e
buscá-las, cometendo centenas de pequenas trapalhadas no maior bom humor
deste mundo; enquanto o dono da mercearia e seus empregados agiam com tanta
presteza e disposição que os corações bem educados com que prendiam os
aventais atrás das costas bem que poderiam ter sido os seus próprios, usados pelo
lado de fora para inspeção geral e para que as gralhas natalinas pudessem bicá-los
caso quisessem.
Em pouco tempo, porém, a torre do campanário chamou todas as pessoas de
bem para a igreja e à capela, e lá se foram elas, andando aos grupos pelas ruas em
suas melhores roupas e com os semblantes mais felizes desse mundo. E, ao
mesmo tempo, emergia de uma infinidade de ruelas, passagens e becos um
número grande de pessoas levando os quitutes de seus festeiros jantares para
serem assados nos fornos dos padeiros. A visão daqueles festeiros pobres pareceu
interessar bastante ao espírito, que se posicionou, com Scrooge ao lado, à porta
de uma padaria, descobrindo os jantares das pessoas que passavam para aspergi-
los com o incenso de sua tocha. E era um tipo de tocha bastante incomum, pois
vez ou outra, quando as pessoas que iam levando seus jantares xingaram umas às
outras ao trombarem entre si, bastou que ele derramasse sobre elas algumas gotas
de água da tocha para que no mesmo instante o bom humor voltasse a tomar
conta daquela gente. “Ora”, diziam eles, “que vergonha ficar brigando no dia de
Natal!” E assim se encerrava o assunto! “Deus que o abençoe”, e assim se
encerrava o assunto!
Na hora certa os sinos pararam de badalar e as padarias fecharam suas portas;
e todos aqueles jantares e o progresso de seu cozimento espalhavam-se por todos
os cantos, formando uma mancha acolhedora de neve derretida na parte do
telhado que ficava no alto do forno do padeiro; nesse ponto o cimento fumegava
como se as pedras também estivessem sendo assadas.
— Isso que você salpica da sua tocha tem um sabor especial? — perguntou
Scrooge.
— Tem. O meu.
— E ele combina com todos os tipos de jantares servidos hoje? — perguntou
Scrooge.
— Com todos os jantares servidos com amor. Principalmente os dos pobres.
— Por que principalmente os dos pobres?
— Porque são os que mais necessitam dele.
— Espírito! — disse Scrooge, depois de pensar por um momento. — Eu
gostaria de saber por que logo você, entre todos os seres dos muitos mundos que
nos rodeiam, haveria de querer perturbar as oportunidades de distração inocente
dessas pessoas!
— Eu! — exclamou o espírito.
— Você quer privá-las da possibilidade que elas têm de jantar a cada sete
dias, normalmente o único dia em que se pode dizer que elas realmente jantam
— disse Scrooge. — Não é verdade?
— Eu! — gritou o espírito.
— Você não faz o que pode para fechar essas padarias no Sétimo Dia? —
perguntou Scrooge. — E isso não é a mesma coisa?
— Eu faço o que posso para fechá-las! — exclamou o espírito.
— Desculpe-me se eu estiver errado. Isso tem sido feito em seu nome, ou
pelo menos em nome de sua família — disse Scrooge.
— Há pessoas nesse seu mundo — respondeu o espírito — que dizem nos
conhecer e que praticam seus atos de paixão, orgulho, má vontade, ódio, inveja,
parcialidade e egoísmo em nosso nome, e que, no entanto, nos são tão estranhas,
a nós e a toda a nossa espécie, como se jamais tivessem existido. Lembre-se disso,
e trate de acusá-las pelos atos que praticam, e não a nós.
Scrooge prometeu que faria isso; e os dois prosseguiram, invisíveis como
antes, rumo aos subúrbios da cidade. Uma característica notável do Fantasma
(que Scrooge observara na padaria) era que, apesar de sua dimensão gigantesca,
ele podia acomodar-se facilmente em qualquer lugar; e que, fosse em um salão de
grandes dimensões fosse em um aposento de teto baixo, ele se apresentava com a
mesma elegância e graça que correspondiam à criatura sobrenatural que era.
E talvez fosse o prazer que o bondoso espírito sentia ao exibir esse seu poder,
ou então sua própria natureza amável, generosa, cálida, e sua solidariedade com
todos os homens pobres, a razão a conduzi-lo diretamente à casa do ajudante de
Scrooge, pois foi para lá que ele se dirigiu, com Scrooge ao lado, agarrado a sua
túnica. E diante da porta, o espírito sorriu e parou um momento para abençoar a
moradia de Bob Cratchit com borrifos de sua tocha. Imaginem só! Bob ganhava
apenas quinze “Bob” por semana; aos sábados embolsava apenas quinze cópias
de seu nome cristão, e mesmo assim o Fantasma do Natal de Hoje abençoava sua
casa de quatro cômodos!
Nesse momento apareceu diante deles a sra. Cratchit, esposa de Bob
Cratchit, usando um vestido velho, mas cheio de fitas, que são baratas e causam
boa impressão, custando apenas seis centavos. Ela estava colocando a mesa, com
a ajuda de Belinda Cratchit, sua segunda filha, também coberta de fitas,
enquanto o jovem Peter Cratchit enfiava um garfo na panela de batatas e,
prendendo as pontas de seu monstruoso colarinho (propriedade particular de
Bob, confiada ao filho e herdeiro em consideração à data) entre os dentes,
orgulhava-se por estar tão elegantemente vestido, ansioso por mostrar suas
roupas nos parques da moda. Nesse momento dois Cratchit menores, um
menino e uma menina, entraram correndo e berrando que ao passar na frente da
padaria haviam sentido um cheiro de pato e reconhecido o deles; e, embalados
por pensamentos luxuriosos de louro e cebolas, aqueles jovens Cratchit
dançavam em torno da mesa, elevando o jovem Peter Cratchit à categoria divina,
enquanto este (sem vaidade, embora quase afogado em seu colarinho) ia
soprando o fogo até as vagarosas batatas subirem no fervor da água para bater
com força na tampa da caçarola, como se estivessem pedindo que as deixassem
sair e as descascassem.
— Onde andará o precioso pai de vocês? — perguntou a sra. Cratchit. — E
o irmão de vocês, o Tiny Tim? E a Martha, que no Natal passado chegou meia
hora atrasada?
— A Martha chegando, mamãe! — disse uma menina, que apareceu na porta
enquanto falava.
— Olhe a Martha, mamãe! — gritaram os dois Cratchit menores. — Oba!
Vamos comer um pato daqueles, Martha!
— Ora, que Deus a abençoe, minha querida, mas você está bastante atrasada!
— disse a sra. Cratchit, beijando a menina dezenas de vezes e tirando, com
cuidado, seu xale e gorro.
— Tivemos muito trabalho ontem, e hoje foi preciso arrumar tudo, mamãe!
— respondeu a garota.
— Ora! Tudo bem, o importante é que você está aqui — disse a sra.
Cratchit. — Sente-se perto do fogo, querida, para se aquecer, e que Deus a
proteja!
— Não, não! Olhe o papai chegando — gritaram os dois pequenos Cratchit
que estavam em toda parte ao mesmo tempo. — Esconda-se, Martha, esconda-
se.
E Martha se escondeu. Em seguida entrou o pequeno Bob – o pai – com
pelo menos um metro de cachecol, sem contar a franja, pendurado dentro de si,
e com a roupa puída bem cerzida e escovada, para ficar com aspecto
apresentável, e o Tiny Tim sentado sobre seus ombros. Coitado do Tiny Tim,
que usava pequenas muletas e tinha as pernas sustentadas por uma armação de
ferro!
— Ora, mas onde está nossa Martha? — perguntou Bob Cratchit, olhando
ao redor.
— Ela não vem — disse a sra. Cratchit.
— Não vem! — disse Bob, com uma súbita tristeza, pois viera correndo da
igreja até em casa, fazendo de conta que era o cavalo de corrida de Tim. — Não
vem no dia de Natal?
Martha não gostava de ver o pai desapontado, mesmo que fosse só
brincadeira, por isso saiu antes da hora de seu esconderijo atrás da porta do
armário e correu para os braços dele, enquanto os dois Cratchit pequenos
convocavam o Tiny Tim e saíam com ele rumo à lavanderia para que pudesse
ouvir o pudim cantando no tacho de cobre.
— E como o pequeno Tim se comportou? — quis saber a sra. Cratchit,
depois de brincar com Bob por ter acreditado neles e de Bob abraçar a filha até
não poder mais.
— Uma verdadeira joia — disse Bob —, perfeito. Não sei como, mas de
tanto ficar sentado sozinho ele tem ideia e pensa as coisas mais estranhas que se
possam imaginar. Quando nós vínhamos para casa, ele me disse que esperava
que as pessoas o tivessem visto lá na igreja, porque já que ele é aleijado, talvez
fosse bom elas se lembrarem, no dia de Natal, daquele que fazia os paralíticos
andarem e os cegos tornarem a ver.
A voz de Bob tremia enquanto ele contava essas coisas, e mais trêmula ficou
quando ele disse que o Tiny Tim estava ficando forte e disposto.
Ouviram o barulho das pequenas muletas movimentando-se sobre o
assoalho, e logo em seguida surgiu o Tiny Tim na sala. Ele sentou-se em seu
banquinho diante do fogo, interrompendo a conversa dos pais. Com ele vinham
o irmãozinho e a irmãzinha. E enquanto Bob, arregaçando as mangas – pobre
homem, como se fosse possível deixá-las ainda mais amarrotadas do que já
estavam – preparava, com gim e limão, uma bebida quente em uma jarra, que,
depois de muito bem mexida foi colocada sobre a chapa que havia na lareira para
ferver, o menino Peter, acompanhado pelos dois levados pequenos Cratchit, foi
buscar o pato, com o qual os três voltaram sem demora em solene procissão.
Sua chegada desencadeou uma atividade tão intensa que até se poderia
imaginar que o pato é a ave mais rara deste mundo, um fenômeno emplumado
diante do qual um cisne negro simplesmente desaparece; e na verdade, naquela
casa, isso correspondia à verdade dos fatos. A sra. Cratchit esquentou bem o
molho (que já estava pronto em uma pequena caçarola); o jovem Peter amassou
as batatas com vigor exemplar; a srta. Belinda despejou açúcar no creme de
maçã; Martha passou um pano nos pratos aquecidos; Bob instalou o Tiny Tim a
seu lado, bem no cantinho da mesa; os dois jovens Cratchit pegaram cadeiras
para todos, sem esquecer deles próprios, e, vigilantes em seus lugares, enfiaram
colheres na boca para não começar a pedir suas porções de pato antes de chegar a
vez de serem servidos. Por fim, as travessas foram trazidas e colocadas na mesa e
disseram as graças costumeiras. Veio então um momento em que ninguém
respirou, enquanto a sra. Cratchit, examinando lentamente e de uma ponta à
outra o fio da faca de cortar carnes, preparava-se para enterrá-la no peito da ave,
mas quando esse gesto foi consumado, e o tão ansiado jato de recheio se
materializou, um murmúrio de prazer surgiu ao redor, e mesmo o Tiny Tim,
estimulado pelos dois pequenos Cratchit, começou a bater na mesa com o cabo
da faca gritando com voz débil:
— Oba!
Nunca se vira um pato como aquele. Bob declarou não acreditar que algum
dia alguém já tivesse assado um pato como aquele. Como estava macio, que
sabor, como era grande, como tinha custado pouco, e tais comentários
provocaram a admiração geral. Complementado pelo creme de maçã e o purê de
batata, o jantar foi suficiente para a família inteira; na realidade, como afirmou a
sra. Cratchit bastante orgulhosa (ao ver um pedaço minúsculo de osso sobre o
prato), tinha até sobrado! Mas todo mundo estava satisfeito, particularmente os
Cratchit mais jovens, cobertos até as sobrancelhas em louro e cebolas. E logo
depois, assim que a srta. Belinda trocou os pratos, a sra. Cratchit deixou a sala –
nervosa demais para suportar a presença de testemunhas – para desenformar o
pudim e trazê-lo para a mesa.
E se ele não estivesse bem cozido? E se na hora de desenformar ele se
despedaçasse? E se alguém tivesse pulado o muro do quintal e roubado o pudim
enquanto eles se deliciavam com o pato? Só de pensar nessa possibilidade os dois
Cratchit menores chegaram a ficar lívidos! Todos os tipos de tragédia passaram
pela cabeça da família.
Opa! Olhem só quanto vapor! O pudim estava desenformado. E o perfume?
Até parecia dia de lavar roupa! Aquele era o cheiro da toalha. Um perfume como
o de um restaurante, que tinha ao lado uma confeitaria, que tinha ao lado uma
lavanderia! O pudim era tudo isso junto. Meio minuto depois, a sra. Cratchit
fazia sua entrada solene: de rosto corado, mas sorrindo com orgulho, trazendo o
pudim, que de tão firme mais parecia uma bala de canhão toda salpicada e em
chamas, coberta com um bom copo de conhaque no qual tocara fogo, decorado
com um ramo de azevinho espetado no topo.
Ah, um pudim esplêndido! Bob Cratchit declarou tranquilamente que
considerava aquele o maior sucesso culinário da sra. Cratchit desde que os dois
haviam se casado. A sra. Cratchit declarou que agora que a preocupação passara,
podia confessar suas dúvidas quanto à qualidade da farinha. Todos tinham algo a
declarar sobre o pudim, mas ninguém disse ou sequer pensou que ele era
pequeno demais para uma família numerosa. Afirmar uma coisa dessas seria pura
e simples heresia. Qualquer Cratchit teria ficado vermelho só de pensar uma
barbaridade dessas.
Finalmente acabaram de jantar. A toalha foi retirada, a lareira varrida e o
fogo reforçado. Depois de provarem a bebida da jarra e considerá-la perfeita,
colocaram maçãs e laranjas na mesa e, no fogo, para assar, uma pá bem cheia de
castanhas. Toda a família Cratchit reuniu-se em torno da lareira, formando o
que Bob Cratchit denominava círculo, que dizer, um semicírculo, e perto do
cotovelo de Bob Cratchit estavam todos os cristais da família. Duas canecas de
vidro e uma xícara sem asa.
Tais recipientes suportaram a bebida quente da jarra tão bem quanto os
copos de ouro teriam feito; bebida que Bob distribuiu com olhar exultante,
enquanto as castanhas, na lareira, estalavam e se abriam ruidosamente. Nesse
momento, Bob brindou:
— Feliz Natal para todos nós, meus queridos. Deus nos abençoe!
E a família toda repetiu suas palavras.
— Deus abençoe a todos nós! — disse Tiny Tim, por último.
O menino estava sentado no banquinho, bem juntinho do pai. Bob segurou
sua mãozinha frágil, como se amasse o menino e quisesse mantê-lo por perto,
como se temesse que o levassem embora.
— Espírito — disse Scrooge, com um interesse que jamais sentira antes —,
diga-me se Tiny Tim sobreviverá.
— Vejo um assento vazio a um canto dessa pobre lareira e um par de muletas
sem dono, guardado com muito amor. Caso essas sombras continuem
inalteradas pelo Futuro, o menino morrerá.
— Não, não — disse Scrooge. — Ah, não, bondoso espírito! Diga que ele
será poupado.
— Se essas sombras permanecerem inalteradas pelo Futuro, ninguém de
minha espécie irá encontrá-lo aqui — respondeu o Fantasma. — E então? Se ele
tem que morrer, é melhor que isso aconteça e diminua o excedente populacional.
Scrooge baixou a cabeça ao ouvir suas próprias palavras citadas pelo espírito,
invadido por uma dolorosa sensação de arrependimento.
— Homem — disse o Fantasma —, se é que no fundo de seu coração você é
um homem e não uma pedra, evite essas frases cheias de maldade enquanto não
descobrir o que é esse excedente populacional, e onde ele se encontra. Por acaso
você imagina ter o poder de determinar quem vai viver e quem vai morrer? É
possível que aos olhos do Salvador você tenha menos valor e mereça viver menos
do que milhões de pessoas semelhantes ao filho desse pobre homem. Ah, Deus!
Imagine só, ouvir o inseto sobre a folha pronunciar-se a respeito do número
excessivo de irmãos que rastejam famintos na poeira!
Scrooge se inclinou diante da repreensão do Fantasma e, trêmulo, baixou os
olhos para o chão. Ao ouvir alguém pronunciar seu nome, porém, ergueu-os
mais que depressa.
— Ao senhor Scrooge! — disse Bob. — Esse brinde é para o senhor Scrooge,
o patrocinador deste banquete!
— Ora bolas, imagine só, o senhor Scrooge, patrocinador deste banquete! —
exclamou a sra. Cratchit, corando. — Seria ótimo se ele estivesse aqui. Eu
gostaria de dizer-lhe algumas verdades e gostaria que ele estivesse com bom
apetite para ouvi-las.
— Querida! — disse Bob. — As crianças! Hoje é dia de Natal!
— Só mesmo no dia de Natal — disse ela — para alguém beber à saúde de
um homem tão odioso, avarento, mau e sem sentimentos como o senhor
Scrooge. Você sabe que é verdade, Robert! Ninguém conhece aquele homem
melhor do que você, pobre criatura!
— Minha querida — foi a resposta de Bob —, hoje é dia de Natal.
— Bebo à saúde dele porque você quer, e porque é Natal — disse a sra.
Cratchit —, mas não por ele. Desejo longa vida ao senhor Scrooge! Feliz Natal e
próspero Ano Novo! Não tenho a menor dúvida de que ele há de ser muito feliz
e muito próspero!
Depois que a mãe brindou, as crianças também brindaram. Era a primeira
coisa que elas faziam sem entusiasmo. O último a brindar foi Tiny Tim, que não
estava ligando para a saúde de Scrooge, o Ogro da família. Bastara mencionar
seu nome para que uma sombra obscurecesse a festa, uma sombra que só se
desfez depois de cinco minutos inteiros.
Mas quando a sombra se desfez, a alegria da família foi dez vezes maior do
que antes, só pelo alívio de ter encerrado a questão de Scrooge, o Maligno. Bob
Cratchit contou que estava com um emprego em vista para o menino Peter que,
se desse certo, significaria um acréscimo semanal no orçamento doméstico da
respeitável quantia de cinco xelins e seis centavos. Os dois Cratchit menores
riram até cair, imaginando Peter no papel de homem de negócios enquanto
Peter, propriamente dito, instalado no centro de seu colarinho, contemplava
muito pensativo o fogo da lareira, como se já deliberasse que investimentos
específicos haveria de privilegiar assim que tomasse posse daqueles valores
estonteantes. Martha, que era uma modesta aprendiz de chapeleira, explicou
quais eram exatamente as suas atribuições e quantas horas trabalhava sem parar e
como pretendia passar a manhã seguinte inteirinha na cama para descansar
bastante, pois, como o dia seguinte seria feriado, ela passaria o dia em casa. Além
disso, Martha também contou como alguns dias antes vira uma condessa e um
cavalheiro da aristocracia, e como o cavalheiro era “quase tão alto quanto o
Peter”; e Peter, ouvindo essas palavras, puxou o colarinho para cima com tanto
orgulho que vocês, se estivessem naquela sala, não teriam conseguido enxergar a
cabeça dele. E o tempo todo, as castanhas e a jarra iam passando de mão em
mão. Mais tarde o Tiny Tim cantou uma canção falando de uma criança perdida
andando pelo meio da neve. Tim possuía uma voz melancólica e cantou com
muito sentimento.
Não havia nada de extraordinário naquilo tudo. Não era uma família bonita,
eles não estavam bem-vestidos, seus sapatos estavam longe de ser à prova d’água,
os trajes eram modestos e seria muito natural que Peter estivesse familiarizado,
provavelmente estava, com as instalações de uma casa de penhores. Mas todos se
sentiam felizes, agradecidos, satisfeitos uns com os outros, e alegres naquele
momento; e quando a visão começou a esmaecer-se e eles pareceram ainda mais
felizes iluminados pelas faíscas cintilantes da tocha do espírito, Scrooge manteve
o olhar fixo neles, especialmente em Tiny Tim, até o fim.
A essa altura já estava escurecendo e nevava muito, e enquanto Scrooge e o
espírito avançavam pelas ruas, o reflexo das chamas a arder nas cozinhas e nas
lareiras de salas e todo tipo de aposentos oferecia um espetáculo deslumbrante.
Aqui, o clarão do fogo iluminava os preparativos para um jantar aconchegante,
com os pratos quentes a assar infinitamente ao calor da lareira e cortinas
vermelho-escuras prontas para serem puxadas, com o objetivo de não deixar
entrar o frio e a escuridão. Ali, todas as crianças da casa corriam para fora na
neve ao encontro das irmãs e irmãos casados, e dos primos, tios e tias, querendo
chegar na frente para cumprimentar primeiro as visitas. Lá, ainda, as sombras do
grupo que festejava reunido se desenhavam nas cortinas; e lindas mocinhas de
boina e botas de pele, tagarelando todas ao mesmo tempo, saíam em um bando
despreocupado para a casa de algum vizinho, onde ai do rapaz solteiro que as
visse entrar – ah, maliciosas feiticeiras, como elas estavam conscientes disso! –
numa aura de luz!
Mas a julgar pela quantidade de pessoas que se encontravam nas ruas a
caminho de reuniões em casas de amigos, seria de se imaginar que não sobraria
ninguém nas casas para recebê-las quando chegassem a seus destinos, e não que
todas as casas esperavam as visitas com as lareiras entupidas de lenha até o meio
da chaminé. Ah, só Deus sabe a felicidade do Fantasma diante daquelas cenas!
Como o peito dele se inundava de emoção, como ele abria os braços amplos e
flutuava pelas ruas, distribuindo, com mão generosa, seu brilho luminoso e
inofensivo a tudo o que lhe estava ao alcance! Até o acendedor de lampiões, que
corria pelas ruas sombrias pontilhando-as com manchas de luz e agora estava
vestido para festejar a noite em algum lugar, soltou uma gargalhada gostosa
quando o espírito passou, e isso que nem de longe desconfiava que naquele
momento tivesse alguma outra companhia além do próprio Natal!
E agora, sem nenhum aviso por parte do Fantasma, os dois se viram no meio
de um matagal desolado e deserto, com pedras toscas amontoadas, como
assinalando um cemitério de gigantes, e com poças de água espalhadas por toda
parte; quer dizer, isso se a água não estivesse congelada e impedida de escorrer, e
tendo por única vegetação o musgo, o tojo e uma relva de folhas rijas que crescia
desordenada. Ao longe, no poente, o sol deixara um rastro de um vermelho
ardente que se refletiu por um instante naquele abandono feito um olho
taciturno e que, em uma carranca cada vez mais fechada, acabou por desaparecer
no véu espesso da mais escura das noites.
— Que lugar é este? — perguntou Scrooge.
— Um lugar onde moram os mineiros, que trabalham dentro da terra —
respondeu o espírito. — Mas eles me conhecem. Preste atenção!
Uma luz brilhava na janela de uma cabana, e os dois avançaram rapidamente
naquela direção. Atravessando a parede de argila e pedra, viram um grupo
animadíssimo, reunido em torno de uma lareira resplandecente: um homem e
uma mulher muito, muito velhos, junto com os filhos, os filhos dos filhos e mais
uma geração daquela, todos arrumados alegremente com seus trajes de passeio.
O velho, com um tom de voz que raras vezes se elevava acima dos uivos do vento
que soprava na escuridão desolada do exterior, cantava para os outros uma
canção de Natal – em seu tempo de menino aquela já era uma canção bem
antiga –, e de vez em quando todas as vozes se reuniam para cantar o refrão. À
medida que as vozes se elevavam, o velho ganhava energia e jovialidade; e assim
que elas se calavam, seu vigor retrocedia outra vez.
O espírito não quis se demorar por ali e, dizendo a Scrooge que se segurasse
com força em sua túnica e elevando-se acima da desolação daquela cabana, voou
velozmente – para outro lugar? Para o mar? Para o mar. Para horror de Scrooge,
ao olhar para trás, ele viu o litoral que se afastava, uma apavorante cadeia de
montanhas, e seus ouvidos ficaram surdos com o trovão das águas, ondas que
urravam e se precipitavam para o interior das medonhas cavernas que tinham
cavado, tentando, com todas as forças minar a terra.
Sobre um sombrio recife formado por rochas submersas, nas quais as águas
do mar batiam, a uma distância de uma ou duas léguas do litoral, erguia-se um
farol solitário. As algas, em pilhas imensas, prendiam-se à sua base; e aves da
tempestade – nascidas da ventania, é possível supor, assim como as algas da água
– dali alçavam voo ou pousavam ali, como as ondas que roçavam.
Mas até naquele local, dois homens, que tomavam conta do farol, haviam
feito uma fogueira, que através de uma fenda na espessa parede de pedra,
projetava um raio luminoso sobre o mar temível. Unindo as mãos ásperas por
sobre a mesa tosca à qual estavam sentados, os dois se desejaram Feliz Natal e
brindaram com suas canecas de grogue; e um deles, o mais velho, com uma
fisionomia avariada e marcada pelo mal tempo, como se fosse a figura de proa de
um velho navio, cantou uma melodia vigorosa que mais parecia uma tempestade
em si.
E mais uma vez o Fantasma partiu, flutuando sobre o mar negro e
arquejante, – avançando, avançando – até chegar a um lugar muito afastado de
qualquer costa, como explicou a Scrooge, pousando em um navio. Em torno
deles estavam o timoneiro a manobrar seu leme, o vigia em seu cesto na proa, e
os oficiais de plantão; personagens escuros, fantasmagóricos, em seus diversos
postos, mas cada um daqueles homens cantarolava uma melodia de Natal, ou
tinha um pensamento natalino, ou falava em voz baixa com o companheiro mais
próximo sobre algum Natal do passado, com as correspondentes esperanças de
regresso ao lar. E todos os homens a bordo, adormecidos ou despertos, bons ou
maus, tiveram uns para com os outros uma palavra mais amável naquele dia do
que em qualquer outro dia do ano, e participaram dessa ou daquela maneira das
festividades, e evocaram de longe os seres queridos, e tiveram a certeza de serem
lembrados com carinho.
Foi uma grande surpresa para Scrooge, enquanto ouvia a lamúria do vento,
enquanto pensava na solenidade do fato de alguém mover-se em meio à
escuridão solitária no alto de um abismo desconhecido, cujas profundezas eram
segredos distantes como a Morte, foi uma grande surpresa para Scrooge,
enquanto pensava nessas coisas, ouvir uma grande gargalhada. E a surpresa de
Scrooge foi ainda maior ao reconhecer naquela gargalhada a de seu próprio
sobrinho, e ao perceber-se em um aposento claro, seco, luminoso, com o espírito
sorrindo ao seu lado e olhando para aquele mesmo sobrinho com uma
afabilidade aprovadora!
— Há, há! — ria o sobrinho de Scrooge. — Há, há, há!
Se vocês, por um acaso improvável, conhecem alguém que possua uma risada
mais alegre que a do sobrinho de Scrooge, só posso lhes dizer que eu também
gostaria de conhecer essa pessoa. Apresentem-me a ela, que tratarei de cultivar
essa amizade.
Trata-se de uma adaptação justa, equitativa e elevada ao fato de que, embora
a enfermidade e o sofrimento sejam infecciosos, nada no mundo é tão
irresistivelmente contagioso quanto o riso e o bom humor. Quando o sobrinho
de Scrooge ria daquele jeito, segurando a barriga, sacudindo a cabeça e
contorcendo o rosto nas caretas mais extravagantes, a sobrinha por afinidade de
Scrooge ria tanto quanto ele. E os amigos reunidos na casa deles, não ficavam
para trás, e também soltavam grandes gargalhadas.
— Há, há! Há, há, há, há!
— Ele disse que o Natal é uma bobagem, juro pela minha vida! — ria o
sobrinho de Scrooge. — E ele acreditava no que dizia!
— Que vergonha falar uma coisa dessas, Fred! — disse a sobrinha de
Scrooge, indignada.
Abençoadas mulheres, que nunca fazem nada pela metade. Elas vão sempre
até o fim.
Ela era muito bonita, extraordinariamente bonita. Tinha covinhas no rosto e
um ar de surpresa, sua boquinha era vermelha e dava a impressão de ter sido feita
de encomenda para ser beijada – como, sem dúvida, era –, no queixo tinha
diversas sardas encantadoras, que se juntavam quando ela ria, e seus olhos eram
os mais ensolarados que já se viram em uma linda cabecinha. No todo, ela era o
que se podia chamar de provocadora, sabe? Mas era também satisfatória. Ah,
perfeitamente satisfatória!
— Ele é um velho camarada cômico — disse o sobrinho de Scrooge —, essa
é que é a verdade. E não tão agradável quanto deveria ser. Só que suas ofensas
contêm em si o próprio castigo, e não tenho nada a dizer contra ele.
— Ele deve ser muito rico, Fred — sugeriu a sobrinha de Scrooge. — Pelo
menos é o que você sempre me diz.
— E daí, minha querida? — retrucou o sobrinho de Scrooge. — Sua riqueza
não lhe serve para nada. Ele não faz nada de bom com ela. Não vive com
conforto. Não tem a satisfação de pensar – há, há, há! – que algum dia irá nos
beneficiar com ela.
— Não tenho a menor paciência com ele — observou a sobrinha de Scrooge.
As irmãs da sobrinha de Scrooge e todas as outras senhoras presentes
manifestaram a mesma opinião.
— Ah, eu tenho! — disse o sobrinho de Scrooge. — Tenho pena dele. Não
consigo ficar com raiva nem que eu queira. Quem é que sofre com aquele mau
humor? Ele mesmo, sempre! Veja só, ele enfiou na cabeça que não gosta de nós e
não vem jantar conosco. Qual é a consequência disso? Ele não perde grande
coisa.
— Pois em minha opinião ele está perdendo grande coisa, sim —
interrompeu a sobrinha de Scrooge.
Todos os demais disseram a mesma coisa, e eles tinham todo o poder de
julgar, pois naquele momento tinham acabado de jantar, e, com a sobremesa
servida, aglomeravam-se ao redor da lareira, à luz de lamparina.
— Ah, ótimo! Estou muito satisfeito por vocês acharem isso — disse o
sobrinho de Scrooge. — É que não acredito muito nessas donas de casa jovens. E
você, o que acha, Topper?
Era visível que Topper estava de olho nas irmãs da sobrinha de Scrooge, pois
respondeu que um homem solteiro era um verdadeiro proscrito, sem direito de
expressar opinião sobre o assunto. Ouvindo isso, uma das irmãs da sobrinha de
Scrooge – a rechonchuda, com o lenço de renda, não a de rosas – corou.
— Continue, Fred — disse a sobrinha de Scrooge batendo palmas. —
Quando ele começa a dizer uma coisa, nunca vai até o fim! Que sujeito mais
ridículo!
O sobrinho de Scrooge se deliciou com uma nova gargalhada, e como era
impossível não se contagiar, mesmo com a irmã gorducha fazendo o maior
esforço para ficar séria, inclusive recorrendo ao vinagre aromático, todos sem
exceção começaram a rir com ele.
— Eu ia dizer que o resultado da implicância dele conosco e do fato de que
se recusa a participar de nossas festas é, em minha opinião, que ele deixa de
desfrutar de momentos agradáveis, que não lhe fariam mal nenhum. Tenho
certeza de que perde companhias mais agradáveis do que é capaz de imaginar,
tanto naquele seu escritório velho e seboso como no seu apartamento
empoeirado. Tenho a intenção de dar-lhe a mesma oportunidade todos os anos,
queira ele ou não, porque sinto pena dele. Ele pode desdenhar o Natal até
morrer, mas vai acabar mudando sua opinião a respeito da data, e nesse ponto eu
o desafio a fazê-lo, se todos os anos eu aparecer na sua frente, no maior bom
humor, perguntando: “E então, tio Scrooge? Como vão as coisas?”, Se eu não
conseguir nada melhor do que inspirá-lo a deixar cinquenta libras para o coitado
do ajudante dele, mesmo isso já é alguma coisa. E acho que ontem consegui
abalá-lo um pouco.
Foi a vez dos outros rirem ao imaginar Fred abalando Scrooge. Mas como ele
era um ótimo rapaz e não se incomodava com a razão do riso dos outros, ainda
mais que eles continuariam rindo do mesmo jeito, Fred estimulava os amigos a
continuar com sua alegria e passava a garrafa no maior entusiasmo.
Depois do chá, cantaram um pouco de música. Aquela era uma família
musical, que sabia o que estava fazendo quando cantava a três ou mesmo a
quatro vozes; em especial Topper, que era capaz de rosnar tranquilamente como
baixo, sem nem mesmo chegar a estufar as veias grandes da testa ou ficar
vermelho. A sobrinha de Scrooge tocava harpa muito bem, e, entre outras
melodias, tocou um tom bastante simples (um quase-nada, que em dois minutos
vocês aprendem a assobiar) que a menina que fora buscar Scrooge no internato
conhecia muito bem, coisa que o Fantasma dos Natais Passados o fizera recordar.
Ao ouvir aquela melodia específica, todas as coisas que o primeiro Fantasma
mostrara a Scrooge voltaram-lhe à lembrança, ele foi ficando cada vez mais
comovido, e lhe ocorreu que se tivesse ouvido aquela música mais vezes, muitos
anos antes, talvez tivesse cultivado com as próprias mãos as gentilezas da vida
para seu próprio deleite, sem ter de recorrer à pá do coveiro que enterrara Jacob
Marley.
Mas eles não dedicaram a noite inteira à música. Passado algum tempo,
brincaram de jogos de prendas, porque de vez em quando é bom ser criança, e
não existe época melhor para isso do que o Natal, cujo poderoso Fundador era
ele mesmo criança. Muito bem! Seguiu-se, primeiro, uma brincadeira de cabra-
cega. Lógico que brincaram de cabra-cega. E eu, de minha parte, acredito tão
piamente que Topper não estava enxergando nada, quanto acredito que suas
botas tinham olhos. A meu ver, Topper e o sobrinho de Scrooge estavam
combinados; e acho inclusive que o Fantasma do Natal de Hoje sabia disso. A
maneira como Topper corria atrás da irmã gorducha de lenço de renda era um
ultraje à credulidade da natureza humana. Derrubando no chão as ferramentas
da lareira, tropeçando nas cadeiras, dando um encontrão no piano, enrolando-se
todo nas cortinas, aonde quer que ela fosse, ele ia atrás. Ele sempre sabia onde
estava a irmã gorducha. Não pegava nenhuma outra pessoa. Se você tropeçasse
nele, como alguns ali tropeçaram, de propósito, ele fazia uma encenação, como
se fosse pegá-los, o que teria sido uma afronta para a sua capacidade de
entendimento, e no mesmo instante saía sorrateiro na direção da irmã gorducha.
Ela bem que gritou diversas vezes que aquilo não era justo, e de fato não era, mas
quando afinal ele a pegou, quando, apesar de todos os roçares das sedas de suas
roupas e das corridinhas que ela dava fugindo dele, ele a pegou em um canto
onde ela não tinha como escapar, aí ele apresentou um comportamento
perfeitamente execrável. Fingiu que não sabia quem ela era, fingiu que tinha
necessidade de passar a mão no cabelo dela e, para maior segurança quanto a sua
identidade, de tatear certo anel que ela levava no dedo e uma corrente que levava
no pescoço; foi um comportamento baixo, monstruoso! Sem dúvida ela o
informou de sua opinião sobre aquilo tudo quando, uma outra pessoa assumiu a
função de outra cabra-cega, os dois ficaram trocando confidências juntinhos
atrás das cortinas.
A sobrinha de Scrooge não entrou na brincadeira de cabra-cega, em vez disso,
foi instalada confortavelmente em uma poltrona, apoiaram seus pés em um
banquinho, em um cantinho protegido, com o Fantasma e Scrooge lago atrás
dela. Dos jogos de prendas, porém, ela quis participar, e demonstrou de maneira
fervorosa o sentimento que nutria por seu amor com todas as letras do alfabeto.
Ao brincar de “Como, Quando e Onde” também teve um desempenho
fantástico, e, para secreta alegria do sobrinho de Scrooge, deixou as irmãs muito
para trás, embora elas também fossem garotas bastante espertas, como Topper
poderia dizer a vocês. Devia haver perto de vinte pessoas naquela sala, e todas
participavam das brincadeiras. Scrooge também, pois estava tão interessado nas
brincadeiras do grupo que se esqueceu por completo de que sua voz não
produzia ruído aos ouvidos deles, e às vezes dava um palpite em voz bem alta –
aliás, frequentemente, corretos, porque a agulha mais fina, de melhor qualidade,
com garantia de não quebrar, não era mais aguda que Scrooge, por mais franco
que ele tivesse inventado de ser.
Ao vê-lo naquele estado de espírito, o Fantasma ficou bastante satisfeito e
começou a olhar para ele com tanta complacência que Scrooge lhe pedia como
criança que o deixasse ficar até os convidados irem embora. Isso, porém, o
Fantasma disse que não poderia ser feito.
— Eles estão começando outra brincadeira! — dizia Scrooge. — Só mais
meia hora, Fantasma, só meia hora!
Era uma brincadeira chamada Sim e Não, em que o sobrinho de Scrooge
tinha que pensar em uma coisa e os outros tinham que descobrir no que havia
pensado fazendo-lhe perguntas às quais ele respondia apenas com “sim” ou
“não”, conforme o caso. O fogo cruzado do interrogatório a que foi submetido
extraiu dele as seguintes informações: que estava pensando em um animal, um
animal vivo, um animal um tanto desagradável, um animal selvagem, um animal
que rugia e às vezes grunhia, que às vezes também falava, que vivia em Londres,
que andava pelas ruas, que não era exibido no zoológico, que ninguém levava
pela correia, que não morava em um viveiro, que jamais era morto no mercado,
que não era cavalo, não era asno, não era vaca, não era boi, não era tigre, não era
cachorro, não era porco, não era gato, não era urso. Toda vez que alguém
perguntava alguma coisa, o sobrinho tinha um novo ataque de riso, e sua
gargalhada atingiu um nível tão descontrolado que ele foi obrigado a levantar-se
do sofá e sapatear no assoalho. No fim, a irmã gorducha teve um ataque do
mesmo gênero e gritou:
— Descobri! Já sei o que é, Fred! Já sei!
— E o que é? — perguntou Fred.
— É o seu tio Scro-o-o-o-oge!
E era mesmo. Houve um sentimento geral de admiração, embora alguns
argumentassem que a resposta para a pergunta “É um urso?” deveria ter sido
“Sim”, isso porque a resposta negativa teria induzido qualquer deles que por
acaso estivesse cogitando a possibilidade de tratar-se do senhor Scrooge a
abandonar a ideia.
— Uma coisa é certa: ele nos divertiu imensamente — disse Fred —, e seria
muita ingratidão da nossa parte não fazer um brinde à saúde dele. E aqui temos,
bem à mão, um copo de vinho quente. Vamos lá: ao tio Scrooge!
— Está bem! Ao tio Scrooge! — exclamaram todos.
— Feliz Natal e próspero Ano Novo para o velho, seja ele o que for! — disse
o sobrinho de Scrooge. — Se eu quisesse brindar na frente dele, ele não aceitaria,
mas aqui vai, de qualquer maneira. Ao tio Scrooge!
Sem dar-se conta, tio Scrooge fora ficando tão alegre e despreocupado que se
pudesse teria devolvido o brinde e feito seus agradecimentos em um discurso
inaudível, caso o Fantasma tivesse lhe dado tempo. Mas a cena toda se esvaiu
com o hálito da última palavra pronunciada pelo sobrinho; e Scrooge e o espírito
retomaram sua peregrinação.
Muita coisa eles viram, e muito longe foram, muitos lares visitaram, sempre
encontrando um final feliz. O espírito se aproximou do leito dos enfermos e eles
se reanimaram; foi a países distantes, e estes ficaram próximos; visitou homens
que passavam por dificuldades, e eles se tornaram pacientes, alimentando uma
esperança maior; visitaram a pobreza, e ela se tornou rica. Em asilos, hospitais e
prisões, em todos os refúgios da miséria de que o homem, na vaidade de sua
mínima autoridade passageira, não havia fechado a porta, barrando a entrada do
espírito, ele deixou sua bênção e ensinou a Scrooge os seus preceitos.
Se aquela fosse apenas uma noite, teria sido uma longa noite; contudo,
Scrooge tinha suas dúvidas a esse respeito, porque os feriados de Natal pareciam
estar condensados no espaço de tempo que os dois passaram juntos. Era
estranho, também, que enquanto Scrooge permanecia inalterado em sua
aparência exterior, o Fantasma ia ficando mais velho, nitidamente mais velho.
Scrooge observara essa mudança, mas evitou mencioná-la até o momento em
que, tendo saído de uma festa infantil de comemoração do dia de Reis e ao olhar
para o espírito quando estavam em um espaço aberto, deu-se conta de que o
cabelo dele ficara grisalho.
— A vida dos espíritos é assim tão curta? — perguntou Scrooge.
— Minha vida neste planeta é muito breve — respondeu o Fantasma. — Ela
termina nesta noite.
— Nesta noite! — exclamou Scrooge.
— Hoje, à meia-noite. Preste atenção! A hora está chegando.
Naquele instante ouviram-se as badaladas que assinalavam faltarem quinze
minutos para a meia-noite.
— Perdoe-me se lhe faço uma pergunta despropositada — disse Scrooge,
observando atentamente a túnica do espírito —, mas vejo uma coisa estranha,
que não pertence a sua pessoa, projetando-se de sua túnica. Um pé, ou uma
garra?
— Talvez seja uma garra, a julgar pela carne que tem mais acima — foi a
resposta triste do espírito. — Veja só.
Das dobras de sua túnica ele extraiu duas crianças imundas, abjetas,
amedrontadas, horrendas, miseráveis. Elas se ajoelharam aos pés dele, agarrando-
se a sua roupa.
— Oh, Homem! Veja só! Olhe, olhe isto! — exclamou o Fantasma.
Era um menino e uma menina. Amarelos, magros, esfarrapados, ferozes,
famintos, mas ao mesmo tempo prostrados em sua humildade. Onde uma
graciosa juventude deveria ter arredondado suas feições, tingindo-as das
tonalidades do mais puro frescor, havia algo estragado, encarquilhado, como o
toque da velhice, que as deixava repuxadas, franzidas e descamadas. Onde os
anjos deveriam estar entronizados, os demônios espreitavam; e distribuíam
olhares perversos e ameaçadores. Nenhuma mutação, degradação, perversão da
humanidade, em qualquer grau, em todos os mistérios magníficos da Criação,
produziu monstros que chegassem aos pés daqueles, em matéria de horror e
pânico.

Scrooge deu um passo para trás, consternado. Depois que o espírito lhe
mostrou as crianças dessa maneira, ele tentou dizer que eram duas belas crianças,
mas se engasgou com as palavras e não conseguiu dizer uma mentira de tão
grande.
— Espírito! São seus filhos? — foi tudo o que Scrooge conseguiu dizer.
— Não. São os filhos do Homem — disse o Espírito, baixando os olhos para
as crianças. — E se prendem a mim, na ausência dos pais. Esse menino é a
Ignorância. O nome da menina é Necessidade. Tenha cuidado com os dois, e
com todos de sua espécie, mas principalmente tenha cuidado com este menino,
pois na testa dele vejo que está inscrita a sentença da Perdição, a menos que a
sentença seja apagada. Renegue-a! — exclamou o espírito, apontando para a
cidade com a mão. — Abomine aqueles que vierem pregá-la! Admita-a para seus
propósitos facciosos, e torne-a ainda pior. Depois aceite as consequências!
— Eles não têm abrigo nem recursos? — perguntou Scrooge.
— E as prisões, o que são? — perguntou o espírito, virando-se para Scrooge
pela última vez enquanto pronunciava as palavras que ele mesmo havia dito. —
E os sindicatos, o que são?
Ouviram-se as badaladas da meia-noite.
Scrooge olhou ao redor em busca do Fantasma, e não o viu mais. Quando
cessaram as reverberações da última badalada, ele se lembrou que o velho Jacob
Marley lhe predissera, e, erguendo os olhos, pôde ver um solene Fantasma todo
envolto em um sudário aproximando-se dele, como uma névoa sobre a terra.
O Fantasma se aproximou, devagar, de maneira grave, e em silêncio. Quando chegou
perto, Scrooge dobrou um dos joelhos, porque, no próprio ar pelo qual aquele
espírito se movia, pareciam disseminar-se o mistério e a melancolia.
Vinha envolto em uma longa vestimenta escura que lhe ocultava a cabeça, o
rosto e a forma, deixando visível apenas uma mão estendida. Não fosse isso, teria
sido difícil discernir aquela criatura na noite e distingui-la da escuridão que a
circundava.
Quando ele estava a seu lado, Scrooge sentiu que era alto e majestoso e que
sua presença misteriosa lhe inspirava um solene pavor. E isso era tudo o que ele
sabia, pois o espírito não se movia nem falava.
— Por acaso estou na presença do Fantasma do Natal Futuro? — perguntou
Scrooge.
O espírito não emitiu nenhuma resposta, mas apontou para frente com sua
mão.
— Você me mostrará sombras de coisas que não aconteceram, mas que ainda
acontecerão em tempos que virão? — prosseguiu Scrooge. — É isso, espírito?
Por um instante, a parte superior da vestimenta contraiu-se em suas dobras,
como se o espírito tivesse inclinado a cabeça. Aquela foi a única resposta que
obteve.
Embora àquela altura Scrooge já estivesse habituado à companhia de
fantasmas, o medo do vulto silencioso era tanto que suas pernas começaram a
tremer incessantemente, e percebeu que mal conseguia ficar de pé quando pôs a
segui-lo. O espírito parou por um instante, como se estivesse observando o
estado em que ele se encontrava e dando-lhe tempo para recuperar-se.
Mas aquilo só piorou as coisas para Scrooge. Ele foi tomado por um horror
vago e impreciso ao imaginar que por trás do vulto difuso havia dois olhos
fantasmagóricos a observá-lo atentamente, enquanto ele próprio, por mais que
estendesse os seus ao máximo, não conseguia ver nada além de uma mão
espectral e uma grande massa escura.
— Fantasma do Futuro! — exclamou ele. — Você me dá um medo terrível,
maior do que o medo que senti dos outros espectros que vi. Mas sei que você só
quer o meu bem, e espero viver para ter a oportunidade de ser um homem
diferente do que tenho sido, por isso estou preparado para fazer-lhe companhia e
meu coração está repleto de gratidão. Você não vai falar comigo?
Ele não respondeu. A mão apontava para algum ponto à frente deles.
— Vá na frente! — disse Scrooge. — Vá na frente! A noite está passando
depressa e sei que o tempo é precioso para mim. Vá na frente, espírito!
O Fantasma se afastou da mesma forma como tinha se aproximado. Scrooge
foi atrás, seguindo a sombra da mortalha, que o levantou no ar, ele pensou, e o
levou consigo.
Aparentemente, eles mal chegaram a entrar na cidade, porque a cidade mais
parecia brotar em torno deles e rodeá-los, como por iniciativa própria. Mas lá
estavam eles, no centro da cidade, em plena Bolsa, entre os comerciantes que
corriam de um lado para outro com o dinheiro nos bolsos, trocando ideias em
grupos, consultando o relógio, brincando pensativos com os grandes sinetes de
ouro; e assim por diante, como Scrooge sempre os vira fazer.
O espírito parou ao lado de uma pequena aglomeração de negociantes.
Observando que era para eles que a mão apontava, Scrooge se aproximou para
ouvir o que diziam.
— Não — dizia um gordo enorme, de queixo monstruoso. — Também não
sei grande coisa a respeito, nem em um sentido nem no outro. Só sei que ele
morreu.
— E morreu quando? — quis saber outro.
— Ontem à noite, parece.
— De quê? O que ele tinha? — perguntou um terceiro, servindo-se de uma
grande quantidade de rapé em uma caixa enorme. — Achei que aquele nunca
fosse morrer.
— Só Deus sabe — disse o primeiro, com um bocejo.
— E o que ele fez com o dinheiro? — perguntou um indivíduo de rosto
vermelho com uma excrescência pendular na ponta do nariz que balançava como
a papada de um peru.
— Sei lá! — disse o homem de queixo grande, com outro bocejo.
— Imagino que tenha deixado para sua firma. Para mim é que não deixou.
Só sei disso.
A piada foi recebida com uma gargalhada geral.
— Imagino que o enterro seja de quinta categoria — opinou o mesmo que
falara antes —, porque juro que não conheço ninguém que pretenda
comparecer. Que tal organizarmos um grupo de voluntários?
— Se servirem almoço, eu topo — observou o indivíduo com a excrescência
no nariz. — Mas se eu for, eu quero comer.
Nova gargalhada.
— Já vi que no fim das contas o menos interesseiro aqui sou eu — disse o
homem que falara em primeiro lugar —, pois nunca uso luvas pretas e nunca
almoço. Mas se alguém mais for, estou disposto a ir também. Porque, pensando
bem, tenho a impressão de que talvez fosse o seu amigo mais próximo; afinal,
tínhamos o hábito de trocar algumas palavras sempre que nos encontrávamos.
Bem, já vou indo!
Os que falaram e os que ouviram tomaram seus rumos, e se juntaram a
outros grupos. Scrooge conhecia os personagens e olhou para o espírito em busca
de uma explicação.
O Fantasma deslizou na direção de uma das ruas. Seu dedo apontou para
duas pessoas que conversavam. Como antes, Scrooge se aproximou para ouvir,
imaginando que a explicação pudesse estar ali.
Também conhecia bem aquelas duas figuras. Eram homens de negócios,
pessoas muito ricas e importantes. Sempre fizera questão de cultivar sua estima,
quer dizer, estritamente do ponto de vista dos negócios, apenas do ponto de vista
dos negócios.
— Como vai? — perguntou um deles.
— Bem, e você? — perguntou o outro.
— Bem! — disse o primeiro. — Quer dizer que o Diabo acabou batendo as
botas?
— É, fiquei sabendo! — respondeu o segundo. — Está frio, não é?
— É sempre assim, na época do Natal. Você não tem o hábito de patinar,
imagino...
— Não, não. Tenho mais o que fazer. Até outro dia!
Isso foi tudo. Assim os dois homens se encontraram, conversaram e se
despediram um do outro.
No início, Scrooge ficou tentado a se surpreender com o fato de que o
espírito desse tanta importância a conversas tão triviais aparentemente;
convencido, porém, de que elas teriam um objetivo oculto, resolveu fazer força
para descobri-lo. Era muito pouco provável que dissessem respeito à morte de
Jacob, seu antigo sócio, pois o fato acontecera no passado e a jurisdição daquele
Fantasma era o futuro. Quem, em seu círculo mais próximo, poderia estar sendo
mencionado? Ele não tinha dúvidas de que, fosse quem fosse a pessoa a quem
aquelas palavras se aplicavam, elas se destinavam a proporcionar-lhe algum tipo
de orientação moral para aprimorá-lo, por isso decidiu guardar bem tudo o que
ouvisse e presenciasse, observando com especial atenção a sombra dele mesmo
quando ela entrasse em cena. Isso porque estava convencido de que seu
comportamento no futuro poderia fornecer-lhe a explicação que faltava para que
tivesse condições de resolver aqueles enigmas com facilidade.
Ficou onde estava e olhou ao redor em busca da própria imagem, só que em
sua esquina costumeira havia outro homem, e embora o relógio marcasse a hora
em que ele habitualmente se encontrava ali, não viu nada que parecesse com ele
entre as inúmeras pessoas que iam entrando pelo Pórtico. O fato, contudo, não o
surpreendeu tanto assim, afinal, estava planejando mudar de vida e imaginou,
esperançoso, que significasse que suas resoluções recentes haviam sido postas em
prática.
Escuro e silencioso, o Fantasma continuava a seu lado com a mão estendida.
Quando Scrooge despertou de suas especulações meditativas pareceu-lhe, pela
atitude da mão e seu posicionamento em relação a ele, que os olhos invisíveis o
fitavam com bastante atenção. Ao pensar nisso estremeceu, e começou a sentir
muito frio.
Deixaram aquele local movimentado e se dirigiram para uma área obscura da
cidade, cuja localização e má fama Scrooge conhecia, embora nunca tivesse se
aventurado por ali. Passaram por vielas estreitas e malcheirosas; lojas e casas
decrépitas; pessoas seminuas, embriagadas, desmazeladas, feias. Os becos e
arcadas funcionavam como esgoto, despejando suas ofensas de odor, sujeira e
vida sobre as ruas próximas; e o bairro inteiro exalava crime, imundície e miséria.
Nas profundezas desse covil da abominação, havia uma loja humilde,
embaixo de uma cobertura, onde se comprava ferro, roupa velha, garrafas, ossos
e sebo. Em seu interior, espalhadas pelo chão, enxergava-se pilhas e mais pilhas
de chaves enferrujadas, pregos, correntes, dobradiças, limas, balanças, pesos e
ferro-velho de todos os tipos. Segredos que poucos gostariam de investigar
vicejavam e se ocultavam em meio a montanhas de trapos asquerosos, massas de
gordura em decomposição e sepulcros de ossos. Sentado no meio da mercadoria,
ao lado de um aquecedor a carvão construído com tijolos velhos, via-se um
sujeito de cabelo grisalho de seus setenta anos; o homem se protegia da friagem
da rua atrás de uma divisória improvisada com todos os tipos de trapos,
pendurados em um varal, e fumava seu cachimbo desfrutando toda a calma do
lugar.
Scrooge e o Fantasma chegaram à presença desse homem ao mesmo tempo
em que uma mulher com uma trouxa pesada entrava furtivamente no
estabelecimento. Ela acabara de chegar quando outra mulher, carregando uma
trouxa semelhante, entrou também, seguida de perto por um homem de roupa
preta puída cuja surpresa ao vê-las não foi menor que a das duas ao se
reconhecerem. O espanto paralisou os três por alguns momentos, durante os
quais o velho do cachimbo se aproximou; em seguida, os três visitantes caíram na
gargalhada.
— A faxineira vai ser a primeira a ser atendida! — exclamou a mulher que
chegara primeiro. — Depois vai ser a lavadeira, e em seguida, o empregado do
agente funerário. Veja só, velho Joe, que sorte grande a sua! Nós três nos
encontrarmos aqui, e por acaso!
— Vocês não podiam ter achado lugar melhor para se encontrarem — disse
o velho Joe, tirando o cachimbo da boca. — Entrem para a sala. Com você, não
tenho cerimônia há muito tempo, e os outros dois também são velhos
conhecidos. Esperem que vou fechar a porta da loja. Ah! Como ela range! As
dobradiças da minha porta são a coisa mais enferrujada que existe aqui dentro.
Aliás, acho que os ossos mais velhos que há por aqui são os meus. Há, há! Nós
quatro combinamos tanto com nossas profissões, formamos um belo grupo!
Entrem, entrem para a sala.
A sala era o espaço protegido pela divisória de trapos. Utilizando um bastão
de metal, o velho amontoou bem as brasas na lareira e, depois de regular o pavio
do lampião fumacento (pois era de noite) com a boquilha do cachimbo, tornou a
enfiar o cachimbo na boca.
Enquanto ele fazia isso, a mulher que falara primeiro jogou sua trouxa no
chão e sentou-se com maus modos em um banquinho, apoiou os cotovelos nos
joelhos e olhou ferozmente para os outros dois com ar de desafio.
— E daí, qual é o problema? Qual é o problema, senhora Dilber? —
perguntou a mulher. — Todo mundo tem direito de cuidar dos próprios
interesses. Ele sempre cuidou.
— Isso é verdade! — disse a lavadeira. — Ninguém jamais fez isso mais do
que ele.
— E então, por que esse ar de medo, criatura? Ninguém vai ficar sabendo!
Ninguém aqui vai dedurar o outro, não é?
— Não, claro que não! — disseram a sra. Dilber e o homem ao mesmo
tempo. — Esperemos que não!
— Pois então, muito bem! — exclamou a mulher. — Está tudo bem. Quem
é que vai ligar para a perda de umas coisinhas de nada? Acho que um homem
morto não vai dar bola para isso.
— Não, claro que não! — disse a sra. Dilber, rindo.
— Se aquele malvado pão-duro quisesse ficar com elas depois de morto —
prosseguiu a mulher —, por que não foi uma pessoa normal quando estava vivo?
Se tivesse sido, alguém teria aparecido para cuidar dele na hora da morte, e ele
não teria sido obrigado a ficar sozinho naquela agonia até dar o último suspiro.
— O que a senhora falou é a mais pura verdade — disse a sra. Dilber. — Ele
está colhendo o que semeou.
— Eu bem que gostaria que o castigo fosse maior — observou a mulher. —
E teria sido, acreditem, se tivesse sido possível, juro que eu teria enfiado a mão
no resto. Abra minha trouxa, velho Joe, e me diga quanto vai pagar pelo que eu
lhe trouxe. Diga logo, sem rodeios. Não tenho medo de ser a primeira, não me
importo com eles. Eles podem ver o que eu trouxe. Tenho a impressão de que
antes de nos encontrarmos aqui, já sabíamos muito bem que estávamos cuidando
dos nossos interesses. Qual é o mal? Abra a trouxa, Joe.
Mas o espírito cavalheiresco dos amigos não permitiu tamanho sacrifício e
desprendimento, e o homem de roupa preta puída, tomando a dianteira,
apresentou o material que ele trouxera na frente delas. Não era muita coisa. Um
ou dois sinetes, um estojo de lápis, um par de abotoaduras e um broche de
pouco valor. Nada mais. Os objetos foram examinados e avaliados por um velho
Joe muito sisudo, que foi escrevendo na parede com um pedaço de giz as
quantias que estava disposto a pagar por aqueles objetos e depois, ao concluir
que daquele saco não sairia mais nada, somou tudo para ver quanto dava.
— É isso que lhe devo — disse Joe. — E não tem conversa, não pago nem
um centavo a mais. Nem que você me torture. Quem é o próximo?
Em seguida foi a vez da sra. Dilber. Lençóis, toalhas, um pouco de roupa,
duas colherinhas de prata antigas, pinças para servir cubos de açúcar, alguns
pares de botas. Sua conta foi anotada na parede, da mesma maneira.
— Sempre pago demais para as senhoras. É uma fraqueza minha, acabo me
prejudicando — disse o velho Joe. — Olhe, seu total é este. E não venha
querendo mais, que sou capaz de me arrepender de minha bondade e acabar
descontando meia coroa.
— Agora abra a minha trouxa, Joe — disse a mulher que chegara em
primeiro lugar.
Joe se ajoelhou para ficar mais confortável e, depois de desatar uma grande
quantidade de nós, retirou do embrulho um rolo grande e pesado de um tecido
escuro.
— O que é isso? — quis saber Joe. — Um cortinado de cama?
— É! — fez a mulher, dobrando-se de rir. — Um cortinado de cama!
— Não venha me dizer que tirou o cortinado com argolas e tudo com ele lá,
deitado na cama! — disse Joe.
— É, tirei — respondeu a mulher. — Por que não?
— Você nasceu para ganhar muito dinheiro — disse Joe — e, tenho certeza
de que vai acabar ganhando.
— Eu certamente não vou me segurar sempre que eu tiver oportunidade de
meter a mão em alguma coisa de um sujeito como aquele, isso eu lhe garanto,
Joe — disse a mulher com frieza. — Cuidado, não vá derramar óleo nos
cobertores.
— Os cobertores dele? — perguntou Joe.
— E de quem mais seriam? — perguntou a mulher. — Não existe o menor
perigo de ele pegar um resfriado sem esses cobertores, isso eu posso afirmar.
— Espero que ele não tenha morrido de doença contagiosa. Já pensou? —
comentou o velho Joe, interrompendo suas atividades e erguendo os olhos para a
mulher.
— Ora, não tenha medo disso! — respondeu ela. — Claro que ele não
morreu de doença contagiosa. Eu não gostava da companhia dele tanto assim
para ficar naquela casa só para poder roubar essas coisas, se ele tivesse alguma
doença contagiosa. Ah! Você pode olhar essa camisa até ficar com dor nos olhos,
mas não vai achar nem um furinho, nem um rasgadinho. É a melhor camisa que
ele tinha, de muito boa qualidade. Eles a teriam desperdiçado, se não fosse eu.
— Como assim desperdiçado? — perguntou o velho Joe.
— Vestiram o velho para o enterro com essa camisa, imagine só! —
respondeu a mulher com uma risada. — Alguém teve essa brilhante ideia, mas
fui lá e tirei a camisa dele. Se o algodão não servir para esse tipo de coisa, então
para o que mais haveria de servir? Veste tão bem o defunto quando esta, ou seja,
ele não poderia ficar mais feio.
Scrooge acompanhava o diálogo com horror. Enquanto o grupo conversava
em torno de seu espólio à luz mortiça fornecida pelo lampião do velho, ele
contemplava a cena com um asco e uma indignação difíceis de superar; era como
se aquelas pessoas fossem demônios obscenos a pechinchar em torno do cadáver
propriamente dito.
— Há, há! — riu a mesma mulher, quando o velho Joe apareceu com um
saquinho de flanela cheio de dinheiro e separou a quantia correspondente a cada
um deles. — Esta é a moral da história, não é mesmo? Ele afugentou todo
mundo enquanto viveu, só para que nós saíssemos lucrando com a sua morte.
Há, há, há!
— Espírito! — disse Scrooge, estremecendo dos pés à cabeça. — Estou
entendendo, estou entendendo. O caso desse infeliz poderia ser o meu. Neste
momento, minha vida pende naquele sentido. Ó Céus Misericordiosos, o que é
isso?
O cenário agora era outro, e Scrooge recuou aterrorizado. Estava
praticamente encostado a uma cama, uma cama despojada, sem cortinas, e nessa
cama, por baixo de um lençol em frangalhos, havia uma forma encoberta que,
embora muda, fazia-se anunciar com pavorosa eloquência.
O quarto estava muito escuro, escuro demais para ser observado em detalhes,
contudo, Scrooge olhava em torno obedecendo a um impulso secreto, ansioso
por saber que tipo de quarto era aquele. Um raio pálido, provindo do exterior
projetava-se diretamente sobre a cama, e na cama, saqueado e destruído, sem
ninguém que o velasse, sem ninguém que chorasse por ele, sem ninguém que se
importasse com ele, estava o corpo daquele homem.
Scrooge olhou para o Fantasma. A mão imóvel apontava para a cabeça do
defunto. O lençol estava jogado sobre o corpo com tanto desleixo que se Scrooge
movesse um dedo poderia levantá-lo e ver o rosto. A ideia lhe ocorreu, ele se deu
conta de como seria fácil executá-la e teve vontade de fazê-lo, mas sentiu-se tão
impossibilitado de levantar o pano como de afastar o espectro ali a seu lado.
Ah, Morte fria, fria, rígida, Morte medonha, ergue aqui teu altar e cubra-o
com todos os terrores de que puderes lançar mão, pois estes são os seus
domínios! Mas da cabeça amada, honrada e reverenciada não podes tocar um só
fio de cabelo para teus horrendos desígnios, nem tornar odiosa a sua fisionomia.
Não é que a mão seja pesada e por isso tombe ao ser solta, não é que o coração e
o pulso ainda palpitem, é que a mão estava aberta, generosa e leal, o coração
audaz, afetuoso e terno, e o pulso, o pulso de um homem. Golpeia. Sombra,
golpeia! E vê como as boas ações jorram do ferimento para semear no mundo
uma vida imortal!
Nenhuma voz pronunciava essas palavras junto ao ouvido de Scrooge, mas
nem por isso ele deixou de ouvi-las ao olhar para a cama. E pensou, se esse
homem pudesse se levantar neste momento, quais seriam seus primeiros
pensamentos? A avareza, a usura, a esperteza? Aquilo tudo o proporcionou um
belo fim, realmente!
Prostrado na casa escura e deserta, ali estava o coitado, sem um homem, uma
mulher, uma criança que dissesse como fora gentil para com ele ou ela desta ou
daquela maneira, ou que graças à lembrança de uma só palavra gentil de sua
parte, agora também seria gentil com ele. Um gato arranhava a porta, e por baixo
da pedra da lareira ouvia-se o barulho de ratos roendo. O que quereriam eles
naquele aposento mortuário, e por que estariam tão inquietos, tão perturbados?
Scrooge não ousava pensar naquilo.
— Espírito! — exclamou —, este lugar me dá medo. Quando sairmos daqui,
garanto que a lição que ele me ensinou irá comigo, acredite em mim. Vamos
embora!
Mas o Fantasma continuava apontando para a cabeça do morto com um
dedo impassível.
— Entendo — retrucou Scrooge —, e o faria, se pudesse. Mas não tenho
essa força, espírito. Não tenho essa força.
Mais uma vez pareceu-lhe que o espírito olhava para ele.
— Se nesta cidade existe alguém triste pela morte desse homem — disse
Scrooge, tomado de desespero —, mostre-me essa pessoa, espírito, eu lhe
imploro!
O Fantasma abriu o manto negro diante de si por um instante, como uma
asa, e ao recolhê-la, surgiu um aposento iluminado pela luz do sol, onde se viam
uma mãe e seus filhos.
A mulher esperava alguém, e com enorme ansiedade, pois andava de um lado
para o outro, estremecia quando ouvia um ruído, olhava pela janela, consultava o
relógio, tentava, sem conseguir, concentrar-se na costura, e tolerava com
dificuldade as vozes das crianças em suas brincadeiras.
Finalmente ouviu o que tanto esperava: alguém batia à porta. Correu para
abrir, e seu marido entrou. Um homem que, embora jovem, tinha o rosto
abatido, moldado pela preocupação. Só que naquele momento esse rosto
apresentava uma expressão surpreendente, uma espécie de prazer do qual ele se
envergonhava e que fazia o possível para reprimir.
O marido sentou-se à mesa para jantar, que lhe fora guardado perto do fogo,
e quando ela lhe perguntou com voz tímida quais eram as novidades (o que só
conseguiu fazer após um silêncio prolongado), ele pareceu não saber muito bem
como responder.
— Boas ou más? — perguntou ela, querendo facilitar as coisas.
— Más — respondeu ele.
— Estamos completamente arruinados?
— Não. Ainda temos esperança, Caroline.
— Se ele se compadeceu — disse ela, perturbada —, temos uma esperança!
Se um milagre desses acontecesse, nem tudo estaria perdido.
— Ele já não tem como compadecer-se — disse o marido —, porque
morreu.
A julgar pela expressão de seu rosto, aquela era uma mulher branda e
paciente, mas no fundo de seu coração a notícia lhe trouxe alívio, e foi
exatamente isso que ela disse, com as mãos cruzadas sobre o peito. No instante
seguinte, arrependida, quis retirar o que havia dito, mas o primeiro impulso fora
o de seu coração.
— Agora entendo o que a mulher que parecia embriagada sobre quem lhe
falei ontem à noite me disse quando tentei falar com ele e conseguir mais uma
semana de prazo. E o que imaginei que não passasse de desculpa para não me
receber, era tudo verdade. Naquele momento, ele não só estava muito doente,
como na realidade estava morrendo — disse o marido.
— E para quem será transferida nossa dívida?
— Não sei. Mas até ficarmos sabendo, já teremos o dinheiro. E mesmo que
não tivéssemos, seria muito azar o herdeiro ser tão impiedoso quanto ele. Esta
noite podemos dormir tranquilos, Caroline!
De fato. Por mais que tentassem disfarçar, seus corações estavam mais leves.
Os rostinhos das crianças, que haviam interrompido suas brincadeiras para
agrupar-se em torno dos pais e ouvir aquelas histórias de que entendiam tão
pouco, tinham ficado mais alegres; e a casa inteira estava mais feliz com a morte
daquele homem! A alegria foi a única emoção que o Fantasma conseguiu mostrar
a ele, a emoção causada por aquele evento, era prazerosa.
— Deixe-me ver um pouco de ternura relacionada a uma morte — implorou
Scrooge —, do contrário aquela alcova escura de onde acabamos de sair jamais
me sairá da cabeça.
O Fantasma o guiou por muitas ruas que seus pés estavam acostumados a
percorrer e, conforme avançavam, Scrooge olhava em torno para ver se conseguia
ver-se em algum lugar; sem sucesso. Os dois entraram na casa do pobre Bob
Cratchit, a mesma onde já haviam estado antes, e encontraram a mãe e os filhos
sentados ao pé da lareira. Em silêncio. Em completo silêncio. Os pequenos
Cratchit, tão brincalhões, estavam sentados em um canto, imóveis como
estátuas, olhando para Peter, que tinha um livro nas mãos. A mãe e as filhas
costuravam. Todos, porém, no mais profundo silêncio.
— E Ele pegou uma criança, e a levou para o meio deles!
Onde Scrooge já ouvira aquelas palavras? Estava certo de que não sonhara
com elas. Provavelmente o garoto a lera alto no momento em que ele e o espírito
entraram pela porta. Mas por que não continuou?
— Essa cor cansa meus olhos — disse.
A cor? Ah, pobre Tiny Tim!
— Pronto, já melhorou — disse a mulher de Cratchit. — A luz da vela é
fraca, mas não quero, por nada neste mundo, que o pai de vocês me encontre
com os olhos cansados quando chegar em casa. E deve estar quase na hora de ele
chegar.
— Na verdade já passou da hora — respondeu Peter, fechando o livro. —
Mas acho que ultimamente ele tem andado um pouco mais devagar do que
antes, mãe.
Todos ficaram de novo muito silenciosos. Por fim a mãe disse, com voz
firme e animada, que só vacilou uma vez:
— Antes ele andava com... ele andava com o Tiny Tim nos ombros e numa
rapidez incrível!
— É, eu também me lembro disso — exclamou Peter. — Vi ele fazer isso
muitas vezes.
— Eu também lembro — afirmou um dos outros.
Todos lembravam.
— Também, ele era muito levinho — continuou a mãe, olhando
atentamente para a costura —, e o pai gostava tanto dele que não havia nenhum
problema, nenhum problema. Olhem só, papai chegou!
Ela correu ao encontro do marido, e o pequeno Bob com seu cachecol –
coitado, como precisava de seu cachecol – entrou na sala. O chá estava pronto à
sua espera sobre o gradil da lareira, e foi um empurra-empurra para ver quem o
atendia melhor. Depois os dois pequenos Cratchit foram para o seu colo e
encostaram os rostinhos no rosto do pai, como quem diz: “Não se aborreça,
papai. Não fique triste!”
Bob mostrou-se muito bem-disposto com todos, conversando amavelmente
com a família. Observou a costura sobre a mesa e elogiou a diligência e a rapidez
da sra. Cratchit e das meninas. Em seguida informou que as obras estariam
concluídas bem antes de domingo.
— Domingo! Você foi lá hoje, então, Robert? — quis saber a esposa.
— Fui, minha querida — respondeu Bob. — Pena você não ter ido também.
Tenho certeza de que teria ficado feliz ao ver como o lugar é cheio de verde. Mas
você ainda há de ir lá muitas vezes. Prometi a ele que aproveitaria um domingo
para dar uma caminhada até lá. Meu pequeno, meu pequeno filho! — chamou
Bob. — Meu pequeno filho querido!
Bob rendeu-se à dor de uma vez só. Não conseguiu conter-se. Se tivesse
conseguido, talvez ele e o filho ficassem ainda mais afastados um do outro do
que já estavam.
Saiu da sala e subiu as escadas para o quarto, que estava bastante iluminado e
todo decorado para o Natal. Havia uma cadeira junto à cama da criança e sinais
de que pouco antes alguém andara por ali. O infeliz Bob sentou-se na cadeira e,
depois de refletir um pouco e se recompor, beijou o rostinho do menino.
Conformando-se com o sucedido, desceu a escada mais alegre.
Todos se aproximaram da lareira para conversar; as meninas e a mãe sempre
ocupadas com a costura. Bob contou-lhes, então, da extrema delicadeza do
sobrinho do sr. Scrooge, a quem só vira uma vez, e de passagem, e o qual ao
encontrá-lo na rua naquele dia e ao ver que ele estava um pouquinho, “só um
pouquinho abatido, vocês sabem”, disse Bob, quisera saber o que havia
acontecido para ele ficar naquele estado.
— E eu lhe contei — disse Bob —, porque ele é a pessoa mais amável deste
mundo. “Sinto muito, de coração, senhor Cratchit!”, disse ele. “Pelo senhor e
pela sua boa esposa.” Aliás, não faço ideia de como ele teria ficado sabendo desse
detalhe.
— Que detalhe, querido?
— Ora, de que você é uma boa esposa — respondeu Bob.
— Mas isso todo mundo sabe! — disse Peter.
— Muito bem observado, meu rapaz! — exclamou Bob. — Espero que
saibam mesmo. “Sinto muito de coração,” disse ele, “por sua boa esposa. Se eu
puder ser útil de alguma maneira”, disse ele, entregando-me seu cartão, “aqui
está meu endereço. Podem contar comigo”. Pois bem, não foi porque se ofereceu
para fazer alguma coisa por nós, e sim por sua delicadeza, que essas palavras me
fizeram bem. Parecia até que ele tinha conhecido nosso Tiny Tim e estava
sofrendo como nós.
— Tenho certeza de que ele é uma boa alma! — disse a sra. Cratchit.
— E mais certeza ainda teria, minha querida — replicou Bob —, se tivesse
estado com ele e conversado com ele. Eu não ficaria nem um pouco surpreso,
escrevam o que estou dizendo, se ele conseguisse um emprego melhor para o
Peter.
— Imagine só, Peter! — disse a sra. Cratchit.
— É, mas aí o Peter vai encontrar alguém e resolver formar a família dele! —
exclamou uma das meninas.
— Vá cuidar da sua vida! — respondeu Peter, rindo.
— Nada mais natural! — disse Bob. — É isso mesmo que vai acontecer um
dia desses. Só que ainda temos muito tempo, querida. Mas ainda que venhamos
a nos separar, independentemente do momento em que isso acontecer, tenho
certeza de que nenhum de nós vai esquecer o Tiny Tim, não é mesmo? Afinal,
esta é a nossa primeira grande separação.
— Nunca, papai! — gritaram todos.
— E eu sei — disse Bob —, eu sei, meus queridos, que sempre que nos
lembrarmos como ele era paciente e meigo, mesmo sendo tão pequeno, não
vamos começar a discutir por pouca coisa, esquecendo o pobre Tiny Tim.
— Não, pai, nunca! — gritaram todos novamente.
— Estou muito feliz — disse o pequeno Bob. — Estou muito feliz!
A sra. Cratchit o beijou, suas filhas o beijaram, os dois pequenos Cratchit o
beijaram, e Peter lhe deu um aperto de mão. Espírito do Tiny Tim, tua essência
infantil era uma essência divina!
— Espectro — disse Scrooge —, algo me diz que o momento de nossa
despedida está chegando. Sei disso, sem saber como. Diga-me quem era o
homem morto naquela cama?
O Fantasma do Natal Futuro conduziu-o como antes – só que em uma
ordem cronológica diferente, pensou Scrooge, na verdade, aparentemente essas
últimas visões não obedeciam a um critério de ordem. Em comum, tinham
apenas o fato de ocorrerem no Futuro – para os lugares frequentados pelos
negociantes, porém não o levou ao encontro de si mesmo. Na verdade, o espírito
não se deteve para coisa nenhuma, mas seguiu em frente, como se tivesse um
propósito no qual pensara pouco antes. Scrooge lhe pediu que esperasse por um
momento.
— Neste largo — disse Scrooge —, que estamos atravessando às pressas,
situa-se, e há muito tempo, meu local de trabalho. Estou vendo o prédio. Deixe-
me tomar conhecimento do que serei nos dias que virão!
O espírito parou, sua mão apontava para outro lugar.
— Meu escritório fica ali — exclamou Scrooge. — Por que você está
apontando para uma direção diferente?
O dedo implacável não se alterou.
Scrooge correu até a janela de seu escritório e olhou para dentro. Continuava
a ser um escritório, mas não era o dele. A mobília não era mais a mesma, e o
homem sentado na cadeira não era ele. O espectro continuava apontando para o
mesmo lugar.
Scrooge aproximou-se dele novamente e, tentando adivinhar por que e para
onde estavam indo, viu-se diante de um portão de ferro. Antes de entrar, olhou
ao redor.
Um cemitério. Era ali, portanto, que o desgraçado cujo nome ia ficar
sabendo agora repousava debaixo da terra. O local era respeitável. Cercado pelas
paredes dos edifícios, tomado pela relva e pelas ervas daninhas, sua vegetação
apontava para a exuberância da morte, e não da vida, engasgado com o excesso
de sepultamentos, gordo de tanto fartar o apetite. Um local respeitável!
Em pé no meio dos túmulos, o espírito apontou para um deles. Trêmulo,
Scrooge se aproximou. O espectro estava idêntico ao que era antes, mas Scrooge
tinha medo de encontrar um novo significado em sua forma solene.
— Antes de olhar para essa lápide que você aponta — disse Scrooge —,
responde uma pergunta. Essas são as sombras das coisas que serão, ou apenas as
sombras das coisas que poderão ser?
O Fantasma continuou apontando para baixo, para o túmulo junto ao qual
se encontrava.
— O curso da vida dos homens acaba encobrindo certos objetivos em
direção aos quais, se eles perseverassem, seriam conduzidos — disse Scrooge. —
Mas se esse curso for abandonado, os objetivos se modificam. Acho que é isso
que você tem tentado me mostrar.
O espírito, como sempre, permaneceu imóvel.
Com dificuldade, Scrooge aproximou-se do túmulo, tremendo muito, e,
seguindo com o olhar a direção para a qual o dedo apontava, leu, na lápide do
túmulo abandonado, seu próprio nome, EBENEZER SCROOGE.
— Então era eu aquele homem na cama? — gritou, caindo de joelhos.
— Sou eu o homem deitado naquela cama? — chorou ele, de joelhos.
O dedo que apontava afastou-se do túmulo e virou-se para ele, depois voltou
a apontar para o túmulo.
— Não, espírito! Ah, não, não!
E o dedo ainda lá.
— Espírito! — gritou ele, agarrando-se com força à túnica — Ouça-me! Já
não sou o mesmo homem. Não serei o homem que teria sido se não tivesse
passado por essa experiência. Por que me mostrar isso, se não há esperança para
mim?
Pela primeira vez, a mão pareceu vacilar.
— Espírito bondoso — prosseguiu Scrooge, colocando-se de joelhos diante
dele —, sua natureza intercede por mim, e tem piedade de mim. Prometa-me
que se eu modificar minha vida ainda poderei mudar essas sombras!
A mão generosa tremeu.
— Hei de honrar o Natal no meu coração, e dedicar-me a pensar nele o ano
inteiro. Viverei ao mesmo tempo no Passado, no Presente e no Futuro. Os
Espíritos dos Três viverão dentro de mim. Não me esquecerei das lições que
aprendi. Ah, diga-me que posso apagar as letras gravadas nessa lápide!
Em seu desespero, agarrou-se à mão espectral. A mão quis soltar-se, mas
Scrooge perseverou em suas súplicas, e não a largou. O espírito, ainda mais forte,
repeliu-o.
Erguendo as mãos em uma última súplica para que seu destino fosse alterado,
Scrooge viu como o capuz e a indumentária do Fantasma se modificavam.
Encolheram, desmancharam-se e acabaram reduzidos à coluna de uma cama.
Sim! E a coluna era a coluna da sua cama. A cama era a sua, o quarto era o seu. E o
melhor de tudo, o mais esplêndido, era que o tempo diante dele era seu, todo
seu para consertá-lo.
— De agora em diante viverei ao mesmo tempo no Passado, no Presente e
no Futuro — repetiu Scrooge, saltando da cama. — Os Espíritos dos Três
viverão dentro de mim! Ah, Jacob Marley! Que os céus e a época natalina sejam
louvados por este milagre! Digo isso de joelhos, velho Jacob, de joelhos!
Estava tão animado, tão resplandecente de boas intenções, que sua voz
embargada não dava conta de manifestar todo o seu empenho. Havia chorado
muito em seus embates com o espírito e ainda trazia o rosto úmido de lágrimas.
— Elas não foram arrancadas — gritou Scrooge, abraçando a parte lateral do
cortinado da cama — não foram arrancadas, as argolas ainda estão aqui! Eu
estou aqui! Posso dispersar as sombras das coisas que teriam sido. E vou
dispersar. Sei que vou!
E enquanto isso, o tempo todo, mantinha as mãos ocupadas com suas
roupas, virava-as do avesso, tentava enfiá-las ao contrário, rasgava-as, deixava-as
cair, tornava-as cúmplices de todo tipo de extravagância.
— Não sei o que fazer! — exclamava Scrooge, rindo e chorando ao mesmo
tempo, e adotando um comportamento de perfeito Laocoonte em relação a suas
meias. — Estou me sentindo leve como uma pena, feliz como um anjo, alegre
como um menino. Minha cabeça dá voltas como se eu estivesse bêbado. Feliz
Natal para todos! Próspero Ano Novo para todos! Ei, vocês aí! Ei!
Correra para a sala e lá se encontrava agora, completamente esbaforido.
— Ali está a panelinha do mingau de aveia! — exclamou, disparando outra
vez e correndo atarantado diante da lareira. — Ali está a porta por onde entrou o
Fantasma de Jacob Marley! Ali está o canto onde o Fantasma do Natal de Hoje
estava sentado! Ali está a janela de onde vi as Almas Perdidas! Está tudo em
ordem, foi tudo verdade, todas aquelas coisas aconteceram. Há, há, há!
Francamente, para um homem sem prática havia tantos anos, seu riso era um
riso magnífico, um riso realmente notável. O pai de uma longa, longa linhagem
de risadas brilhantes!
— Não sei em que dia do mês estamos! — espantou-se Scrooge. — Não sei
quanto tempo passei entre os Espíritos. Não sei coisa nenhuma. Sou como um
bebê. Não faz mal. Não estou preocupado com isso. Bem que eu gostaria de ser
um bebê. Ei! Olá! Vocês aí!
Seu entusiasmo foi interrompido pelos sinos das igrejas, que começaram a
repicar com uma animação sem igual em sua lembrança. Blém, blém, blam,
ding, dong. Blém, blém, blam, ding, dong! Ah, que glória, que glória!
Scrooge correu para a janela, abriu-a e debruçou-se no parapeito. Nada de
neblina, nada de garoa. Um dia esplêndido, sem nuvens, risonho, estimulante,
frio, para que o sangue dançasse ao som de suas flautas, um sol dourado, um céu
divino, um ar fresco delicioso, sinos felizes. Ah, que glória. Que glória!
— Que dia é hoje? — perguntou Scrooge, gritando para um rapaz todo
bem-vestido na rua abaixo, que aparentemente fizera uma pausa na caminhada
para olhar um pouco ao redor.
— Como? — perguntou o rapaz, totalmente surpreso.
— Que dia é hoje, querido jovem? — insistiu Scrooge.
— Hoje? — repetiu o rapaz. — Ora, hoje é dia de Natal!
— Hoje é dia de Natal! — repetiu Scrooge para si mesmo. — Não perdi o
Natal! Os Espíritos fizeram tudo em uma noite só. Está certo, eles podem fazer o
que bem entenderem. Claro que podem. Claro que podem. Ei, querido jovem!
— O que o senhor quer? — respondeu o rapaz.
— Por acaso você sabe onde é a loja do comerciante de aves, na esquina da
primeira rua depois daquela ali? — apontou Scrooge.
— É claro que sei! — respondeu o jovem.
— Que garoto inteligente! — disse Scrooge. — Você é um garoto incrível.
Você sabe me dizer se o peru especial que estava pendurado lá foi vendido? Não
é do peru especial pequeno que estou falando, mas do grande.
— Qual, aquele do meu tamanho? — indagou o rapaz.
— Que garoto encantador! — disse Scrooge. — É um prazer falar com ele.
Isso, meu camarada!
— Continua lá pendurado — respondeu o jovem.
— Ah, é? — disse Scrooge. — Pois corra até lá e compre o bicho.
— Eu, hein? — exclamou o jovem.
— É isso mesmo — disse Scrooge —, estou falando sério! Vá até lá e compre
o peru e diga ao homem que venha até a minha casa para eu explicar a ele onde
deve fazer a entrega. E você também, volta aqui junto com ele para eu lhe dar
um trocado. Se você conseguir voltar com o homem em menos de cinco
minutos, lhe dou meia coroa!
O garoto saiu feito um raio. Seria preciso ter mão muito firme no gatilho
para conseguir disparar um tiro naquela velocidade.
— Vou mandar o peru para Bob Cratchit! — murmurou Scrooge,
esfregando as mãos e soltando uma gargalhada. — Ele nunca vai conseguir
adivinhar quem mandou. O animal tem o dobro do tamanho do Tiny Tim. Vai
ser a piada do século.
A mão que escreveu o endereço em um pedaço de papel não estava lá muito
firme, mesmo assim Scrooge deu um jeito de escrever. Logo em seguida, desceu
para abrir a porta da rua e esperar o comerciante de aves. Enquanto ficava ali
parado, aguardando, viu a aldrava da porta.
— Vou gostar dessa aldrava pelo resto da minha vida! — exclamou Scrooge,
dando palmadinhas no objeto. — Até agora eu mal tinha olhado para ela. Que
expressão sincera em sua fisionomia! Uma aldrava magnífica! Aí vem o peru. Ei!
Olá! Como vai o senhor? Feliz Natal!
Aquilo sim, era peru! Um bicho daqueles com certeza nem conseguia se
aguentar em cima das próprias pernas. E se tentasse, sem dúvida as perninhas
haveriam de quebrar-se em um instante, como bastões de cera de sinete.
— Nossa, o senhor não vai conseguir carregar isso até Camden Town —
disse Scrooge. — Vai precisar pegar um carro.
Ao fazer essa afirmação, Scrooge soltou uma risada; ao pagar o peru, soltou
uma risada; ao pagar o carro de aluguel, soltou uma risada; ao dar a gorjeta para
o rapazinho, soltou uma risada; risadas maiores que essas só as que soltou depois
de voltar para sua poltrona, completamente sem fôlego, sentar-se e rir até chorar.
Fazer a barba não foi uma tarefa simples. Sua mão continuava muito
trêmula, e fazer a barba é coisa que exige atenção, ainda que o indivíduo não
fique dançando enquanto se barbeia. Mas mesmo que tivesse cortado fora a
ponta do nariz, Scrooge teria simplesmente colado um pedaço de esparadrapo no
lugar e se dado por muito satisfeito.
Depois de vestir suas melhores roupas, ele, enfim, saiu pela porta afora.
Àquela altura as pessoas já enchiam as ruas, como as vira fazer quando estava na
companhia do Fantasma do Natal de Hoje; e, andando com as mãos atrás das
costas, examinava-as com um sorriso maravilhado nos lábios. Para dizer o
mínimo, apresentava um aspecto tão irresistivelmente simpático que três ou
quatro sujeitos bem-dispostos disseram:
— Bom dia, meu senhor! Feliz Natal!
Scrooge repetiria muitas vezes, depois, que de todos os sons agradáveis que já
escutara, nenhum outro fora tão agradável quanto aquele a seus ouvidos.
Não havia andado muito quando avistou, caminhando em sua direção, o
cavalheiro de fina estampa que o visitara em seu escritório na véspera dizendo:
“Scrooge e Marley, penso eu”. Sentiu um aperto no peito ao pensar com que
cara aquele senhor tão respeitável iria olhar para ele quando os dois se cruzassem
na calçada, mas, sabendo exatamente o caminho que devia seguir, ele o fez sem
nenhuma hesitação.
— Meu caro senhor — disse Scrooge, apressando o passo e tomando nas suas
as mãos do outro. — Como está passando? Espero que ontem o senhor tenha
conseguido o que queria! Foi muita gentileza sua. Feliz Natal para o senhor!
— Senhor Scrooge?
— Sim — disse Scrooge. — Meu nome é esse mesmo, e temo que não seja
muito agradável a seus ouvidos. Permita-me que lhe peça perdão. E será que o
senhor teria a bondade.... — E nesse ponto Scrooge pôs-se a cochichar junto ao
ouvido do cavalheiro.
— Santo Deus! — exclamou o outro, como se o ar de repente lhe faltasse. —
Meu caro senhor Scrooge, o senhor está falando sério?
— Peço-lhe encarecidamente! — disse Scrooge. — Nem um centavo a
menos. Estou com muitas prestações atrasadas, deixe-me acertar o que devo. Será
que o senhor poderia me fazer esse favor?
— Estimado cavalheiro — disse o outro, sacudindo efusivamente as mãos de
Scrooge —, não sei o que dizer diante de tanta generosi...
— Por favor, não diga nada — retorquiu Scrooge. — Passe em meu
escritório. O senhor promete que vai passar?
— Claro! — exclamou o velho homem. E dava para perceber que ele
pretendia fazer o que prometia.
— Obrigado! — disse Scrooge. — Agradeço imensamente. Agradeço
cinquenta vezes. Deus o abençoe!
Scrooge foi à igreja, passeou pelas ruas, observou as pessoas correndo em
todas as direções, bagunçou o cabelo das crianças, quis saber da vida dos
mendigos, espiou as cozinhas das casas, ergueu os olhos para as janelas dos
apartamentos, e constatou que todas essas coisas lhe proporcionavam prazer. Se
havia algo que ele nunca sonhara, era que uma caminhada – ou qualquer outra
coisa – fosse capaz de lhe dar tanta felicidade. À tarde, dirigiu-se à casa do
sobrinho.
Passou na frente da porta uma dúzia de vezes até criar coragem de subir a
escada e bater. Mas tomou impulso e bateu.
— Seu patrão está em casa, minha querida? — perguntou à mocinha que
veio abrir a porta. Mocinha simpática, muito simpática.
— Está sim, senhor.
— E onde ele está, meu bem? — perguntou Scrooge.
— Na sala de jantar, senhor, está com a patroa. Faça o favor de vir comigo
que lhe mostro o caminho.
— Não precisa. Ele me conhece — disse Scrooge, já com a mão na maçaneta
da porta da sala de jantar. — Pode deixar que eu entro sozinho, meu bem.
Girou delicadamente a maçaneta e espiou pela abertura da porta. O casal
estava inspecionando a mesa (arrumada com grande pompa); é que os jovens
anfitriões sempre ficam preocupados com esse tipo de coisa e fazem questão de
verificar se está tudo certo.
— Fred! — disse Scrooge.
Minha nossa, sua sobrinha deu um pulo assustada! Por um instante, Scrooge
se esquecera de como ela ficara acomodada no canto com os pés no banquinho,
do contrário nunca teria falado assim de repente, nunca, de jeito nenhum.
— Não acredito! — exclamou Fred. — Quem está aí?
— Sou eu. Seu tio Scrooge. Vim jantar com vocês. Posso entrar, Fred?
Se podia entrar? O sobrinho quase arrancou o braço dele ao apertar sua mão.
Em cinco minutos, o tio já estava à vontade. Nada no mundo poderia ser mais
cordial que aquela casa. A sobrinha não tinha mudado nem um pouco. Nem
Topper, quando ele chegou. Nem a irmã gorducha, quando ela chegou. Nem
nenhum dos outros, quando eles chegaram. Festa maravilhosa, convivência
maravilhosa, felicidade maravilhosa!
Mas, na manhã seguinte, Scrooge chegou mais cedo ao escritório. Ah,
chegou bem cedinho. Será que ia conseguir chegar primeiro e flagrar Bob
Cratchit atrasado? Era exatamente isso que ele pretendia fazer.
E conseguiu. Ah, conseguiu! O relógio deu nove horas. Nada de Bob. Nove e
quinze. Nada de Bob. Bob chegou exatamente dezoito minutos atrasado.
Scrooge estava instalado em sua escrivaninha, de porta bem aberta, para não
perder o momento em que ele entrasse no cubículo.
Quando Bob abriu a porta, já vinha sem chapéu, também já havia tirado o
cachecol. Em um piscar de olhos, estava sentado em sua banqueta, com a caneta
na mão, como se estivesse tentando correr atrás do tempo perdido.
— Ei, você! — grunhiu Scrooge, esforçando-se para imitar sua voz
costumeira. — Você acha que pode chegar a essa hora?
— Sinto muito, senhor — disse Bob. — Estou mesmo atrasado, eu sei.
— Ah, está atrasado? — repetiu Scrooge. — Está mesmo. Tenho a impressão
de que está. Chegue aqui, por favor.
— É só uma vez por ano, senhor! — implorou Bob, aparecendo na porta que
dava para o cubículo. — Não vai acontecer de novo. É que ontem andei
festejando um pouco, senhor.
— Pois ouça bem o que vou lhe dizer, meu amigo! — disse Scrooge. — Não
estou disposto a continuar engolindo esse tipo de coisa. Por isso — continuou,
pulando de sua banqueta e dando uma cotovelada tão forte na casaca de Bob que
o rapaz perdeu o equilíbrio e foi parar outra vez no interior do cubículo —, por
isso fique sabendo que vou aumentar seu salário!
Bob estremeceu e foi se aproximando devagarinho da régua. A primeira coisa
que lhe veio à cabeça foi aplicar uma boa reguada em Scrooge, agarrá-lo bem
agarrado e chamar as pessoas que estavam ali fora, no largo, para que viessem
socorrê-lo trazendo uma camisa-de-força.
— Feliz Natal, Bob! — disse Scrooge, com um entusiasmo inconfundível,
dando tapinhas nas costas do outro. — Bob, meu bom rapaz, desejo-lhe um
Natal mais feliz do que os que tenho lhe proporcionado nesses muitos anos! Vou
aumentar seu salário e fazer o possível para ajudar sua família necessitada. Ainda
hoje à tarde, vamos discutir os seus assuntos, Bob, tomando uma boa jarra de
vinho quente. Você fica responsável pela lareira, Bob Cratchit, e não me escreva
mais nem um i antes de sair para comprar outro balde de carvão.

Scrooge saiu melhor do que a encomenda. Fez tudo o que havia prometido e
muito mais; e para o Tiny Tim, que não morreu, foi um segundo pai.
Transformou-se em um dos melhores amigos, dos melhores patrões, dos
melhores homens que a boa velha cidade, ou qualquer outra boa velha cidade,
vila ou aldeia já tivessem visto nesse bom velho mundo. Algumas pessoas
acharam graça na modificação por que ele havia passado, mas ele não se
importou nem um pouco com isso, deixou que rissem, pois era sábio o bastante
para saber que jamais aconteceu nada de bom neste planeta sem que no começo
aparecesse alguém para dar risada; e, sabendo perfeitamente que esse tipo de
gente não tem mesmo capacidade de discernimento, achou que era uma boa
coisa elas criarem rugas em torno dos olhos de tanto rir, e não em decorrência de
outros motivos menos atraentes. Seu próprio coração também ria, e, para ele,
aquilo era o bastante.
Ele nunca mais teve notícias dos Espíritos, porém a partir daquele momento
viveu sob o Princípio da Abstinência Absoluta. E a seu respeito sempre se
afirmou que, caso se pudesse dizer que algum homem vivo detinha a capacidade
de festejar o Natal, esse homem era Scrooge. E que tal verdade possa ser dita
sobre nós, e de cada um em particular! E sendo assim, como bem observou Tiny
Tim, que Deus nos abençoe, que abençoe a todos nós!

FIM

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