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Folha de Rosto
Créditos
Prefácio
O mesmo rosto, exatamente o mesmo rosto. Marley com seu rabicho, sua
casaca de sempre, calças justas e botas. As franjas da bota estavam eriçadas, assim
como seu rabicho, as abas de sua casaca e seu cabelo também estavam. A corrente
que ele puxava estava presa a sua cintura. Era comprida, e enrolava-se nele como
uma cauda, e era feita (pois Scrooge observava de perto) de cofres, chaves,
cadeados, livros-caixa, escrituras e pesadas bolsas de aço trabalhado. Seu corpo
era transparente, de maneira que Scrooge, ao observá-lo e olhando através de seu
colete, conseguia ver os dois botões da parte de trás de sua casaca.
Scrooge sempre ouvira dizer que Marley não tinha entranhas, mas nunca
acreditara naquilo até agora.
Nunca acreditou, como continuava a não acreditar. Embora ele olhasse para
o fantasma de cima a baixo, e visse que ele estava ali, em pé, na sua frente, e
embora ele sentisse a influência gelada de seus olhos frios e mortais, e percebesse
até mesmo a textura do lenço dobrado que estava amarrado em torno de sua
cabeça e queixo – lenço que ele jamais vira antes –, ele ainda estava incrédulo e
duvidava do que via.
— E isso agora! — disse Scrooge, mais cáustico e frio do que nunca. — O
que você quer de mim?
— Quero muito! — era a voz de Marley, não havia dúvida.
— Quem é você?
— Pergunte quem eu era.
— Então, quem era você? — perguntou Scrooge, levantando a voz. — Você
é peculiar, para um fantasma. — Ele ia simplesmente dizer “peculiar”, mas
achou mais apropriado acrescentar o restante do comentário.
— Quando eu estava vivo eu era seu sócio, Jacob Marley.
— Você consegue... você consegue se sentar? — perguntou Scrooge, olhando
para ele em dúvida.
— Consigo.
— Sente-se, então.
Scrooge perguntou aquilo porque não sabia se um fantasma tão transparente
teria condições de se sentar em uma cadeira; e sentiu que caso isso não fosse
possível, talvez fosse necessário que ele desse alguma explicação embaraçosa. Mas
o fantasma sentou-se do outro lado da lareira, como costumava fazer.
— Você não acredita em mim — observou o fantasma.
— Não mesmo — disse Scrooge.
— Que outra prova você gostaria que eu lhe desse, além dessa oferecida aos
seus sentidos?
— Eu não sei — disse Scrooge.
— Por que você duvida de seus sentidos?
— Porque — disse Scrooge — qualquer coisa simples os afeta. Um pequeno
desconforto no estômago já causa alguma interferência. Você pode muito bem
ser um pedaço de carne mal digerido, um tanto de mostarda, um naco de queijo,
uma fatia de batata mal cozida. Essa história mais parece ter relação com uma
refeição estragada do que com morte, seja lá o que você for!
Scrooge não tinha o hábito de fazer piadas, nem se sentia, no fundo,
brincalhão naquele momento. A verdade é que ele tentou bancar o engraçado
para distrair sua própria atenção e tentar diminuir o terror que sentia, pois a voz
do espectro incomodava cada pontinha de seus ossos.
Ficar ali sentado, olhando para aqueles olhos fixos, vidrados, em silêncio por
um momento, era suficiente, Scrooge achava, para acabar com ele. Havia algo
muito estranho também, existia algo muito horrível no fato de o fantasma estar
equipado com uma atmosfera infernal para uso próprio. Scrooge não conseguia
senti-la, mas esse era claramente o caso; pois embora o Fantasma estivesse
sentado totalmente imóvel, seu cabelo, as abas da casaca e as franjas das botas
continuavam eriçadas, e aquilo era causado por algo parecido com o vapor
quente produzido por um fogão.
— Está vendo esse palito? — perguntou Scrooge, voltando rapidamente ao
ataque pelo motivo mencionado acima; e desejando, embora apenas por um
segundo, afastar de si aquele olhar pesado.
— Sim — respondeu o Fantasma.
— Você não está olhando para ele — disse Scrooge.
— Mas estou vendo — disse o fantasma — mesmo sem olhar para ele.
— Muito bem! — respondeu Scrooge. — Se eu engolisse isso, eu passaria o
resto dos meus dias perseguido por uma legião de fantasmas, todos fruto da
minha imaginação. Bobagem! Digo a você, tudo isso é bobagem!
Ao ouvir isso o espírito soltou um grito aterrorizante e sacudiu sua corrente
fazendo um barulho tão desolado e apavorante que Scrooge segurou com força
em sua cadeira para não cair. Mas seu terror ficou ainda maior quando o
fantasma, ao tirar a faixa em volta de sua cabeça, como se estivesse quente demais
para usá-la ali dentro, permitiu que seus maxilares inferiores caíssem sobre seu
peito!
Scrooge caiu de joelhos e cobriu o rosto com as mãos.
— Piedade! — disse ele. — Aparição horrorosa, por que você veio me
atormentar?
— Homem de espírito mundano — respondeu o fantasma —, você acredita
em mim ou não?
— Acredito — disse Scrooge. — Preciso acreditar. Mas, por que os espíritos
vagam pela terra, e por que vieram atrás de mim?
— É necessário que o espírito de cada homem — respondeu o fantasma —
evolua em meio aos outros homens, seus companheiros de jornada, e avance até
bem longe. Caso esse espírito não consiga ir muito adiante na vida, fica
condenado a fazê-lo depois da morte. Seu castigo é vagar pelo mundo... Ai,
pobre de mim!... e assistir àquilo de que já não pode participar, mas de que
poderia ter participado na Terra e transformado em felicidade!
De novo o espectro soltou um grito e balançou sua corrente e torceu as mãos
sombrias.
— Você está acorrentado — disse Scrooge, tremendo. — Me diga, por quê?
— Carrego a corrente que forjei na vida — respondeu o fantasma. —
Construí a corrente elo por elo, centímetro por centímetro. E a prendi em
minha cintura por vontade própria e é por vontade própria que a uso. Por acaso
ela é estranha para você?
Scrooge tremia mais e mais.
— Ou você saberia dizer — continuou o fantasma — o peso e o
comprimento da forte corrente que você mesmo carrega? Ela era tão pesada e
comprida quanto esta, sete Natais atrás. Você trabalhou duro nela desde então. É
uma corrente portentosa a sua!
Scrooge olhou para o assoalho a sua volta na expectativa de se ver cercado
por mais de cem metros de corrente de ferro, mas não viu nada.
— Jacob — implorou ele. — Velho Jacob Marley, conte-me mais. Diga-me
palavras de conforto, Jacob!
— Não tenho nenhuma palavra de conforto para lhe oferecer — respondeu o
fantasma. — Palavras de conforte vêm de outras regiões, Ebenezer Scrooge, e é
proporcionada por outros ministros, para outros tipos de homens. Também não
posso lhe contar o que eu gostaria de contar. Só posso contar um pouco mais do
que já contei. Não posso descansar, não posso ficar, não posso ficar muito tempo
em lugar nenhum. Meu espírito nunca saiu das redondezas do escritório – ouça
bem o que digo! Em vida, meu espírito jamais se arriscou para além dos limites
estreitos de nosso cubículo de contar dinheiro; e jornadas exaustivas esperam por
mim!
Scrooge tinha o hábito de, sempre que ficava pensativo, colocar as mãos nos
bolsos das calças, e o fez ao pensar no que o fantasma dissera, mas sem levantar
os olhos ou ficar em pé.
— Você deve ter se demorado muito com isso, Jacob — observou Scrooge,
de maneira objetiva, embora com humildade e respeito.
— Demorado! — repetiu o fantasma.
— Morto há sete anos — refletiu Scrooge. — E viajando o tempo todo!
— O tempo todo — disse o fantasma. — Sem descanso ou paz.
Incessantemente torturado pelo remorso.
— Você viaja rápido? — perguntou Scrooge.
— Nas asas do vento — respondeu o fantasma.
— Você deve ter percorrido uma grande extensão de território em sete anos
— disse Scrooge.
O fantasma, ao ouvir isso, deu um outro grito e agitou sua corrente de
maneira tão medonha no silêncio profundo da noite que não seria de estranhar
se a polícia lhe aplicasse uma multa por perturbação de sossego.
— Ai de mim! Prisioneiro acorrentado e duplamente imobilizado! —
exclamou o espectro. — Não saber que será preciso transcorrerem anos de
trabalho incessante por parte dos imortais, até este mundo entrar na eternidade,
para que o bem de que este mundo é capaz se desenvolva por completo! Não
saber que todo espírito cristão que trabalha gentilmente em sua pequena área,
seja ela qual for, descobrirá que uma vida mortal é curta demais para suas
imensas possibilidades de serventia. Não saber que não há arrependimento capaz
de remediar o desperdício da oportunidade da vida que nos é dado viver! E eu
era assim! Ai, eu era assim!
— Mas você sempre foi um bom homem de negócios, Jacob — disse
Scrooge com voz hesitante, começando a perceber que tudo aquilo também se
aplicava a ele.
— Homem de negócios! — exclamou o fantasma, voltando a torcer as mãos.
— Meu negócio era a humanidade. Meu negócio era o bem-estar comum; a
caridade, a piedade, a tolerância e a benevolência, tudo isso era meu negócio. As
operações comerciais que desenvolvi não passavam de uma gota de água no
imenso oceano de meu negócio!
Dizendo isso, ergueu sua corrente, como se aquela fosse a causa de tanto
sofrimento e desamparo, para em seguida deixá-la cair novamente com força no
chão.
— É nesta época do ano — disse o espectro — que mais sofro. Por que eu
tive que passar pelo mundo em meio a meus semelhantes sempre de olhos
baixos, sem nunca os levantar na direção daquela Estrela abençoada que
conduziu os Magos àquela pobre estrebaria? Não havia lares pobres para onde
sua luz pudesse ter me conduzido?
Scrooge estava bastante abalado ao ouvir o espectro falar daquela maneira e
começou a tremer muito.
— Ouça-me! — exclamou o fantasma. — Meu tempo está acabando.
— Estou ouvindo — disse Scrooge. — Mas não seja duro comigo! Não fique
dando voltas no assunto, Jacob! Eu lhe imploro!
— Eu não sei explicar como é possível que eu apareça para você sob uma
forma visível. Eu me sentei ao seu lado, invisível, por dias a fio.
Essa não era uma ideia agradável. Scrooge estremeceu e passou o lenço na
testa molhada de suor.
— Essa parte de minha penitência não é das mais fáceis — prosseguiu o
fantasma. — Estou aqui esta noite para avisá-lo de que você ainda tem uma
chance e uma esperança de escapar de ter um destino como o meu. Uma chance
e uma esperança que lhe proporciono, Ebenezer.
— Você sempre foi um bom amigo — disse Scrooge. — Obrigado.
— Você será assombrado — continuou o fantasma — por Três Espíritos.
O queixo de Scrooge caiu quase tanto quanto o do fantasma caíra.
— É essa a chance e a esperança que você mencionou, Jacob? — perguntou
ele, com voz vacilante.
— É.
— Acho, acho que prefiro não ter essa chance — disse Scrooge.
— Sem a visita deles — disse o fantasma —, você não terá como evitar o
caminho que estou percorrendo. O primeiro deles virá hoje, quando o sino bater
uma hora.
— Não seria possível os três virem de uma vez só, Jacob? — tentou Scrooge.
— O segundo amanhã à noite, à mesma hora. O terceiro virá na noite
seguinte, quando a última badalada da meia-noite for dada. Não espere me ver
novamente; e, para seu próprio bem, trate de nunca mais esquecer o que se
passou entre nós!
Depois de dizer essas palavras, o espectro pegou seu lenço, que deixara sobre
a mesa, e amarrou-o em torno da cabeça como estava antes. Scrooge percebeu
que era isso que estava acontecendo pelo barulhinho dos dentes quando as
mandíbulas se juntaram. Ele se arriscou a erguer novamente os olhos e viu seu
visitante sobrenatural confrontando-o, de maneira ereta, com a corrente enrolada
em seu corpo e braço.
A aparição foi se afastando dele de costas; e a cada passo que dava, a janela ia
se abrindo mais um pouco, de modo que quando o espectro chegou junto dela,
estava completamente aberta.
O fantasma fez um gesto para que Scrooge se aproximasse, que ele obedeceu.
Quando os dois estavam a dois passos um do outro, o fantasma de Marley
ergueu a mão, sinalizando para que o outro não chegasse mais perto. Scrooge
parou.
Não tanto por obediência, mas por surpresa e temor: porque, quando aquela
mão se ergueu, ele percebeu estranhos ruídos no ar; sons desconexos de lamento
e arrependimento, gemidos inenarravelmente doloridos e auto acusatórios. O
espectro ouviu por um instante, depois se uniu ao triste canto fúnebre; e flutuou
para fora, para a noite gelada e escura.
Scrooge se aproximou da janela, desesperado de curiosidade, e olhou para
fora.
O ar estava repleto de fantasmas vagando em todas as direções em uma pressa
incansável, gemendo o tempo todo. Todos eles tinham correntes como o
fantasma de Marley; uns poucos (quem sabe governantes culposos) se
encontravam acorrentados juntos; nenhum estava livre. Scrooge conhecera
muitos deles em vida. Aliás, conhecera particularmente bem um velho fantasma
de casaca branca com um monstruoso cofre de ferro preso ao tornozelo que
chorava com ar dolorido por não poder ajudar uma mulher miserável com um
bebê no colo que avistava lá embaixo, sentada na soleira de uma porta. O
sofrimento de todos eles, sem sombra de dúvida, decorria do fato de não
poderem interferir de forma concreta nas questões humanas, de terem perdido
seu poder para sempre.
Scrooge deu um passo para trás, consternado. Depois que o espírito lhe
mostrou as crianças dessa maneira, ele tentou dizer que eram duas belas crianças,
mas se engasgou com as palavras e não conseguiu dizer uma mentira de tão
grande.
— Espírito! São seus filhos? — foi tudo o que Scrooge conseguiu dizer.
— Não. São os filhos do Homem — disse o Espírito, baixando os olhos para
as crianças. — E se prendem a mim, na ausência dos pais. Esse menino é a
Ignorância. O nome da menina é Necessidade. Tenha cuidado com os dois, e
com todos de sua espécie, mas principalmente tenha cuidado com este menino,
pois na testa dele vejo que está inscrita a sentença da Perdição, a menos que a
sentença seja apagada. Renegue-a! — exclamou o espírito, apontando para a
cidade com a mão. — Abomine aqueles que vierem pregá-la! Admita-a para seus
propósitos facciosos, e torne-a ainda pior. Depois aceite as consequências!
— Eles não têm abrigo nem recursos? — perguntou Scrooge.
— E as prisões, o que são? — perguntou o espírito, virando-se para Scrooge
pela última vez enquanto pronunciava as palavras que ele mesmo havia dito. —
E os sindicatos, o que são?
Ouviram-se as badaladas da meia-noite.
Scrooge olhou ao redor em busca do Fantasma, e não o viu mais. Quando
cessaram as reverberações da última badalada, ele se lembrou que o velho Jacob
Marley lhe predissera, e, erguendo os olhos, pôde ver um solene Fantasma todo
envolto em um sudário aproximando-se dele, como uma névoa sobre a terra.
O Fantasma se aproximou, devagar, de maneira grave, e em silêncio. Quando chegou
perto, Scrooge dobrou um dos joelhos, porque, no próprio ar pelo qual aquele
espírito se movia, pareciam disseminar-se o mistério e a melancolia.
Vinha envolto em uma longa vestimenta escura que lhe ocultava a cabeça, o
rosto e a forma, deixando visível apenas uma mão estendida. Não fosse isso, teria
sido difícil discernir aquela criatura na noite e distingui-la da escuridão que a
circundava.
Quando ele estava a seu lado, Scrooge sentiu que era alto e majestoso e que
sua presença misteriosa lhe inspirava um solene pavor. E isso era tudo o que ele
sabia, pois o espírito não se movia nem falava.
— Por acaso estou na presença do Fantasma do Natal Futuro? — perguntou
Scrooge.
O espírito não emitiu nenhuma resposta, mas apontou para frente com sua
mão.
— Você me mostrará sombras de coisas que não aconteceram, mas que ainda
acontecerão em tempos que virão? — prosseguiu Scrooge. — É isso, espírito?
Por um instante, a parte superior da vestimenta contraiu-se em suas dobras,
como se o espírito tivesse inclinado a cabeça. Aquela foi a única resposta que
obteve.
Embora àquela altura Scrooge já estivesse habituado à companhia de
fantasmas, o medo do vulto silencioso era tanto que suas pernas começaram a
tremer incessantemente, e percebeu que mal conseguia ficar de pé quando pôs a
segui-lo. O espírito parou por um instante, como se estivesse observando o
estado em que ele se encontrava e dando-lhe tempo para recuperar-se.
Mas aquilo só piorou as coisas para Scrooge. Ele foi tomado por um horror
vago e impreciso ao imaginar que por trás do vulto difuso havia dois olhos
fantasmagóricos a observá-lo atentamente, enquanto ele próprio, por mais que
estendesse os seus ao máximo, não conseguia ver nada além de uma mão
espectral e uma grande massa escura.
— Fantasma do Futuro! — exclamou ele. — Você me dá um medo terrível,
maior do que o medo que senti dos outros espectros que vi. Mas sei que você só
quer o meu bem, e espero viver para ter a oportunidade de ser um homem
diferente do que tenho sido, por isso estou preparado para fazer-lhe companhia e
meu coração está repleto de gratidão. Você não vai falar comigo?
Ele não respondeu. A mão apontava para algum ponto à frente deles.
— Vá na frente! — disse Scrooge. — Vá na frente! A noite está passando
depressa e sei que o tempo é precioso para mim. Vá na frente, espírito!
O Fantasma se afastou da mesma forma como tinha se aproximado. Scrooge
foi atrás, seguindo a sombra da mortalha, que o levantou no ar, ele pensou, e o
levou consigo.
Aparentemente, eles mal chegaram a entrar na cidade, porque a cidade mais
parecia brotar em torno deles e rodeá-los, como por iniciativa própria. Mas lá
estavam eles, no centro da cidade, em plena Bolsa, entre os comerciantes que
corriam de um lado para outro com o dinheiro nos bolsos, trocando ideias em
grupos, consultando o relógio, brincando pensativos com os grandes sinetes de
ouro; e assim por diante, como Scrooge sempre os vira fazer.
O espírito parou ao lado de uma pequena aglomeração de negociantes.
Observando que era para eles que a mão apontava, Scrooge se aproximou para
ouvir o que diziam.
— Não — dizia um gordo enorme, de queixo monstruoso. — Também não
sei grande coisa a respeito, nem em um sentido nem no outro. Só sei que ele
morreu.
— E morreu quando? — quis saber outro.
— Ontem à noite, parece.
— De quê? O que ele tinha? — perguntou um terceiro, servindo-se de uma
grande quantidade de rapé em uma caixa enorme. — Achei que aquele nunca
fosse morrer.
— Só Deus sabe — disse o primeiro, com um bocejo.
— E o que ele fez com o dinheiro? — perguntou um indivíduo de rosto
vermelho com uma excrescência pendular na ponta do nariz que balançava como
a papada de um peru.
— Sei lá! — disse o homem de queixo grande, com outro bocejo.
— Imagino que tenha deixado para sua firma. Para mim é que não deixou.
Só sei disso.
A piada foi recebida com uma gargalhada geral.
— Imagino que o enterro seja de quinta categoria — opinou o mesmo que
falara antes —, porque juro que não conheço ninguém que pretenda
comparecer. Que tal organizarmos um grupo de voluntários?
— Se servirem almoço, eu topo — observou o indivíduo com a excrescência
no nariz. — Mas se eu for, eu quero comer.
Nova gargalhada.
— Já vi que no fim das contas o menos interesseiro aqui sou eu — disse o
homem que falara em primeiro lugar —, pois nunca uso luvas pretas e nunca
almoço. Mas se alguém mais for, estou disposto a ir também. Porque, pensando
bem, tenho a impressão de que talvez fosse o seu amigo mais próximo; afinal,
tínhamos o hábito de trocar algumas palavras sempre que nos encontrávamos.
Bem, já vou indo!
Os que falaram e os que ouviram tomaram seus rumos, e se juntaram a
outros grupos. Scrooge conhecia os personagens e olhou para o espírito em busca
de uma explicação.
O Fantasma deslizou na direção de uma das ruas. Seu dedo apontou para
duas pessoas que conversavam. Como antes, Scrooge se aproximou para ouvir,
imaginando que a explicação pudesse estar ali.
Também conhecia bem aquelas duas figuras. Eram homens de negócios,
pessoas muito ricas e importantes. Sempre fizera questão de cultivar sua estima,
quer dizer, estritamente do ponto de vista dos negócios, apenas do ponto de vista
dos negócios.
— Como vai? — perguntou um deles.
— Bem, e você? — perguntou o outro.
— Bem! — disse o primeiro. — Quer dizer que o Diabo acabou batendo as
botas?
— É, fiquei sabendo! — respondeu o segundo. — Está frio, não é?
— É sempre assim, na época do Natal. Você não tem o hábito de patinar,
imagino...
— Não, não. Tenho mais o que fazer. Até outro dia!
Isso foi tudo. Assim os dois homens se encontraram, conversaram e se
despediram um do outro.
No início, Scrooge ficou tentado a se surpreender com o fato de que o
espírito desse tanta importância a conversas tão triviais aparentemente;
convencido, porém, de que elas teriam um objetivo oculto, resolveu fazer força
para descobri-lo. Era muito pouco provável que dissessem respeito à morte de
Jacob, seu antigo sócio, pois o fato acontecera no passado e a jurisdição daquele
Fantasma era o futuro. Quem, em seu círculo mais próximo, poderia estar sendo
mencionado? Ele não tinha dúvidas de que, fosse quem fosse a pessoa a quem
aquelas palavras se aplicavam, elas se destinavam a proporcionar-lhe algum tipo
de orientação moral para aprimorá-lo, por isso decidiu guardar bem tudo o que
ouvisse e presenciasse, observando com especial atenção a sombra dele mesmo
quando ela entrasse em cena. Isso porque estava convencido de que seu
comportamento no futuro poderia fornecer-lhe a explicação que faltava para que
tivesse condições de resolver aqueles enigmas com facilidade.
Ficou onde estava e olhou ao redor em busca da própria imagem, só que em
sua esquina costumeira havia outro homem, e embora o relógio marcasse a hora
em que ele habitualmente se encontrava ali, não viu nada que parecesse com ele
entre as inúmeras pessoas que iam entrando pelo Pórtico. O fato, contudo, não o
surpreendeu tanto assim, afinal, estava planejando mudar de vida e imaginou,
esperançoso, que significasse que suas resoluções recentes haviam sido postas em
prática.
Escuro e silencioso, o Fantasma continuava a seu lado com a mão estendida.
Quando Scrooge despertou de suas especulações meditativas pareceu-lhe, pela
atitude da mão e seu posicionamento em relação a ele, que os olhos invisíveis o
fitavam com bastante atenção. Ao pensar nisso estremeceu, e começou a sentir
muito frio.
Deixaram aquele local movimentado e se dirigiram para uma área obscura da
cidade, cuja localização e má fama Scrooge conhecia, embora nunca tivesse se
aventurado por ali. Passaram por vielas estreitas e malcheirosas; lojas e casas
decrépitas; pessoas seminuas, embriagadas, desmazeladas, feias. Os becos e
arcadas funcionavam como esgoto, despejando suas ofensas de odor, sujeira e
vida sobre as ruas próximas; e o bairro inteiro exalava crime, imundície e miséria.
Nas profundezas desse covil da abominação, havia uma loja humilde,
embaixo de uma cobertura, onde se comprava ferro, roupa velha, garrafas, ossos
e sebo. Em seu interior, espalhadas pelo chão, enxergava-se pilhas e mais pilhas
de chaves enferrujadas, pregos, correntes, dobradiças, limas, balanças, pesos e
ferro-velho de todos os tipos. Segredos que poucos gostariam de investigar
vicejavam e se ocultavam em meio a montanhas de trapos asquerosos, massas de
gordura em decomposição e sepulcros de ossos. Sentado no meio da mercadoria,
ao lado de um aquecedor a carvão construído com tijolos velhos, via-se um
sujeito de cabelo grisalho de seus setenta anos; o homem se protegia da friagem
da rua atrás de uma divisória improvisada com todos os tipos de trapos,
pendurados em um varal, e fumava seu cachimbo desfrutando toda a calma do
lugar.
Scrooge e o Fantasma chegaram à presença desse homem ao mesmo tempo
em que uma mulher com uma trouxa pesada entrava furtivamente no
estabelecimento. Ela acabara de chegar quando outra mulher, carregando uma
trouxa semelhante, entrou também, seguida de perto por um homem de roupa
preta puída cuja surpresa ao vê-las não foi menor que a das duas ao se
reconhecerem. O espanto paralisou os três por alguns momentos, durante os
quais o velho do cachimbo se aproximou; em seguida, os três visitantes caíram na
gargalhada.
— A faxineira vai ser a primeira a ser atendida! — exclamou a mulher que
chegara primeiro. — Depois vai ser a lavadeira, e em seguida, o empregado do
agente funerário. Veja só, velho Joe, que sorte grande a sua! Nós três nos
encontrarmos aqui, e por acaso!
— Vocês não podiam ter achado lugar melhor para se encontrarem — disse
o velho Joe, tirando o cachimbo da boca. — Entrem para a sala. Com você, não
tenho cerimônia há muito tempo, e os outros dois também são velhos
conhecidos. Esperem que vou fechar a porta da loja. Ah! Como ela range! As
dobradiças da minha porta são a coisa mais enferrujada que existe aqui dentro.
Aliás, acho que os ossos mais velhos que há por aqui são os meus. Há, há! Nós
quatro combinamos tanto com nossas profissões, formamos um belo grupo!
Entrem, entrem para a sala.
A sala era o espaço protegido pela divisória de trapos. Utilizando um bastão
de metal, o velho amontoou bem as brasas na lareira e, depois de regular o pavio
do lampião fumacento (pois era de noite) com a boquilha do cachimbo, tornou a
enfiar o cachimbo na boca.
Enquanto ele fazia isso, a mulher que falara primeiro jogou sua trouxa no
chão e sentou-se com maus modos em um banquinho, apoiou os cotovelos nos
joelhos e olhou ferozmente para os outros dois com ar de desafio.
— E daí, qual é o problema? Qual é o problema, senhora Dilber? —
perguntou a mulher. — Todo mundo tem direito de cuidar dos próprios
interesses. Ele sempre cuidou.
— Isso é verdade! — disse a lavadeira. — Ninguém jamais fez isso mais do
que ele.
— E então, por que esse ar de medo, criatura? Ninguém vai ficar sabendo!
Ninguém aqui vai dedurar o outro, não é?
— Não, claro que não! — disseram a sra. Dilber e o homem ao mesmo
tempo. — Esperemos que não!
— Pois então, muito bem! — exclamou a mulher. — Está tudo bem. Quem
é que vai ligar para a perda de umas coisinhas de nada? Acho que um homem
morto não vai dar bola para isso.
— Não, claro que não! — disse a sra. Dilber, rindo.
— Se aquele malvado pão-duro quisesse ficar com elas depois de morto —
prosseguiu a mulher —, por que não foi uma pessoa normal quando estava vivo?
Se tivesse sido, alguém teria aparecido para cuidar dele na hora da morte, e ele
não teria sido obrigado a ficar sozinho naquela agonia até dar o último suspiro.
— O que a senhora falou é a mais pura verdade — disse a sra. Dilber. — Ele
está colhendo o que semeou.
— Eu bem que gostaria que o castigo fosse maior — observou a mulher. —
E teria sido, acreditem, se tivesse sido possível, juro que eu teria enfiado a mão
no resto. Abra minha trouxa, velho Joe, e me diga quanto vai pagar pelo que eu
lhe trouxe. Diga logo, sem rodeios. Não tenho medo de ser a primeira, não me
importo com eles. Eles podem ver o que eu trouxe. Tenho a impressão de que
antes de nos encontrarmos aqui, já sabíamos muito bem que estávamos cuidando
dos nossos interesses. Qual é o mal? Abra a trouxa, Joe.
Mas o espírito cavalheiresco dos amigos não permitiu tamanho sacrifício e
desprendimento, e o homem de roupa preta puída, tomando a dianteira,
apresentou o material que ele trouxera na frente delas. Não era muita coisa. Um
ou dois sinetes, um estojo de lápis, um par de abotoaduras e um broche de
pouco valor. Nada mais. Os objetos foram examinados e avaliados por um velho
Joe muito sisudo, que foi escrevendo na parede com um pedaço de giz as
quantias que estava disposto a pagar por aqueles objetos e depois, ao concluir
que daquele saco não sairia mais nada, somou tudo para ver quanto dava.
— É isso que lhe devo — disse Joe. — E não tem conversa, não pago nem
um centavo a mais. Nem que você me torture. Quem é o próximo?
Em seguida foi a vez da sra. Dilber. Lençóis, toalhas, um pouco de roupa,
duas colherinhas de prata antigas, pinças para servir cubos de açúcar, alguns
pares de botas. Sua conta foi anotada na parede, da mesma maneira.
— Sempre pago demais para as senhoras. É uma fraqueza minha, acabo me
prejudicando — disse o velho Joe. — Olhe, seu total é este. E não venha
querendo mais, que sou capaz de me arrepender de minha bondade e acabar
descontando meia coroa.
— Agora abra a minha trouxa, Joe — disse a mulher que chegara em
primeiro lugar.
Joe se ajoelhou para ficar mais confortável e, depois de desatar uma grande
quantidade de nós, retirou do embrulho um rolo grande e pesado de um tecido
escuro.
— O que é isso? — quis saber Joe. — Um cortinado de cama?
— É! — fez a mulher, dobrando-se de rir. — Um cortinado de cama!
— Não venha me dizer que tirou o cortinado com argolas e tudo com ele lá,
deitado na cama! — disse Joe.
— É, tirei — respondeu a mulher. — Por que não?
— Você nasceu para ganhar muito dinheiro — disse Joe — e, tenho certeza
de que vai acabar ganhando.
— Eu certamente não vou me segurar sempre que eu tiver oportunidade de
meter a mão em alguma coisa de um sujeito como aquele, isso eu lhe garanto,
Joe — disse a mulher com frieza. — Cuidado, não vá derramar óleo nos
cobertores.
— Os cobertores dele? — perguntou Joe.
— E de quem mais seriam? — perguntou a mulher. — Não existe o menor
perigo de ele pegar um resfriado sem esses cobertores, isso eu posso afirmar.
— Espero que ele não tenha morrido de doença contagiosa. Já pensou? —
comentou o velho Joe, interrompendo suas atividades e erguendo os olhos para a
mulher.
— Ora, não tenha medo disso! — respondeu ela. — Claro que ele não
morreu de doença contagiosa. Eu não gostava da companhia dele tanto assim
para ficar naquela casa só para poder roubar essas coisas, se ele tivesse alguma
doença contagiosa. Ah! Você pode olhar essa camisa até ficar com dor nos olhos,
mas não vai achar nem um furinho, nem um rasgadinho. É a melhor camisa que
ele tinha, de muito boa qualidade. Eles a teriam desperdiçado, se não fosse eu.
— Como assim desperdiçado? — perguntou o velho Joe.
— Vestiram o velho para o enterro com essa camisa, imagine só! —
respondeu a mulher com uma risada. — Alguém teve essa brilhante ideia, mas
fui lá e tirei a camisa dele. Se o algodão não servir para esse tipo de coisa, então
para o que mais haveria de servir? Veste tão bem o defunto quando esta, ou seja,
ele não poderia ficar mais feio.
Scrooge acompanhava o diálogo com horror. Enquanto o grupo conversava
em torno de seu espólio à luz mortiça fornecida pelo lampião do velho, ele
contemplava a cena com um asco e uma indignação difíceis de superar; era como
se aquelas pessoas fossem demônios obscenos a pechinchar em torno do cadáver
propriamente dito.
— Há, há! — riu a mesma mulher, quando o velho Joe apareceu com um
saquinho de flanela cheio de dinheiro e separou a quantia correspondente a cada
um deles. — Esta é a moral da história, não é mesmo? Ele afugentou todo
mundo enquanto viveu, só para que nós saíssemos lucrando com a sua morte.
Há, há, há!
— Espírito! — disse Scrooge, estremecendo dos pés à cabeça. — Estou
entendendo, estou entendendo. O caso desse infeliz poderia ser o meu. Neste
momento, minha vida pende naquele sentido. Ó Céus Misericordiosos, o que é
isso?
O cenário agora era outro, e Scrooge recuou aterrorizado. Estava
praticamente encostado a uma cama, uma cama despojada, sem cortinas, e nessa
cama, por baixo de um lençol em frangalhos, havia uma forma encoberta que,
embora muda, fazia-se anunciar com pavorosa eloquência.
O quarto estava muito escuro, escuro demais para ser observado em detalhes,
contudo, Scrooge olhava em torno obedecendo a um impulso secreto, ansioso
por saber que tipo de quarto era aquele. Um raio pálido, provindo do exterior
projetava-se diretamente sobre a cama, e na cama, saqueado e destruído, sem
ninguém que o velasse, sem ninguém que chorasse por ele, sem ninguém que se
importasse com ele, estava o corpo daquele homem.
Scrooge olhou para o Fantasma. A mão imóvel apontava para a cabeça do
defunto. O lençol estava jogado sobre o corpo com tanto desleixo que se Scrooge
movesse um dedo poderia levantá-lo e ver o rosto. A ideia lhe ocorreu, ele se deu
conta de como seria fácil executá-la e teve vontade de fazê-lo, mas sentiu-se tão
impossibilitado de levantar o pano como de afastar o espectro ali a seu lado.
Ah, Morte fria, fria, rígida, Morte medonha, ergue aqui teu altar e cubra-o
com todos os terrores de que puderes lançar mão, pois estes são os seus
domínios! Mas da cabeça amada, honrada e reverenciada não podes tocar um só
fio de cabelo para teus horrendos desígnios, nem tornar odiosa a sua fisionomia.
Não é que a mão seja pesada e por isso tombe ao ser solta, não é que o coração e
o pulso ainda palpitem, é que a mão estava aberta, generosa e leal, o coração
audaz, afetuoso e terno, e o pulso, o pulso de um homem. Golpeia. Sombra,
golpeia! E vê como as boas ações jorram do ferimento para semear no mundo
uma vida imortal!
Nenhuma voz pronunciava essas palavras junto ao ouvido de Scrooge, mas
nem por isso ele deixou de ouvi-las ao olhar para a cama. E pensou, se esse
homem pudesse se levantar neste momento, quais seriam seus primeiros
pensamentos? A avareza, a usura, a esperteza? Aquilo tudo o proporcionou um
belo fim, realmente!
Prostrado na casa escura e deserta, ali estava o coitado, sem um homem, uma
mulher, uma criança que dissesse como fora gentil para com ele ou ela desta ou
daquela maneira, ou que graças à lembrança de uma só palavra gentil de sua
parte, agora também seria gentil com ele. Um gato arranhava a porta, e por baixo
da pedra da lareira ouvia-se o barulho de ratos roendo. O que quereriam eles
naquele aposento mortuário, e por que estariam tão inquietos, tão perturbados?
Scrooge não ousava pensar naquilo.
— Espírito! — exclamou —, este lugar me dá medo. Quando sairmos daqui,
garanto que a lição que ele me ensinou irá comigo, acredite em mim. Vamos
embora!
Mas o Fantasma continuava apontando para a cabeça do morto com um
dedo impassível.
— Entendo — retrucou Scrooge —, e o faria, se pudesse. Mas não tenho
essa força, espírito. Não tenho essa força.
Mais uma vez pareceu-lhe que o espírito olhava para ele.
— Se nesta cidade existe alguém triste pela morte desse homem — disse
Scrooge, tomado de desespero —, mostre-me essa pessoa, espírito, eu lhe
imploro!
O Fantasma abriu o manto negro diante de si por um instante, como uma
asa, e ao recolhê-la, surgiu um aposento iluminado pela luz do sol, onde se viam
uma mãe e seus filhos.
A mulher esperava alguém, e com enorme ansiedade, pois andava de um lado
para o outro, estremecia quando ouvia um ruído, olhava pela janela, consultava o
relógio, tentava, sem conseguir, concentrar-se na costura, e tolerava com
dificuldade as vozes das crianças em suas brincadeiras.
Finalmente ouviu o que tanto esperava: alguém batia à porta. Correu para
abrir, e seu marido entrou. Um homem que, embora jovem, tinha o rosto
abatido, moldado pela preocupação. Só que naquele momento esse rosto
apresentava uma expressão surpreendente, uma espécie de prazer do qual ele se
envergonhava e que fazia o possível para reprimir.
O marido sentou-se à mesa para jantar, que lhe fora guardado perto do fogo,
e quando ela lhe perguntou com voz tímida quais eram as novidades (o que só
conseguiu fazer após um silêncio prolongado), ele pareceu não saber muito bem
como responder.
— Boas ou más? — perguntou ela, querendo facilitar as coisas.
— Más — respondeu ele.
— Estamos completamente arruinados?
— Não. Ainda temos esperança, Caroline.
— Se ele se compadeceu — disse ela, perturbada —, temos uma esperança!
Se um milagre desses acontecesse, nem tudo estaria perdido.
— Ele já não tem como compadecer-se — disse o marido —, porque
morreu.
A julgar pela expressão de seu rosto, aquela era uma mulher branda e
paciente, mas no fundo de seu coração a notícia lhe trouxe alívio, e foi
exatamente isso que ela disse, com as mãos cruzadas sobre o peito. No instante
seguinte, arrependida, quis retirar o que havia dito, mas o primeiro impulso fora
o de seu coração.
— Agora entendo o que a mulher que parecia embriagada sobre quem lhe
falei ontem à noite me disse quando tentei falar com ele e conseguir mais uma
semana de prazo. E o que imaginei que não passasse de desculpa para não me
receber, era tudo verdade. Naquele momento, ele não só estava muito doente,
como na realidade estava morrendo — disse o marido.
— E para quem será transferida nossa dívida?
— Não sei. Mas até ficarmos sabendo, já teremos o dinheiro. E mesmo que
não tivéssemos, seria muito azar o herdeiro ser tão impiedoso quanto ele. Esta
noite podemos dormir tranquilos, Caroline!
De fato. Por mais que tentassem disfarçar, seus corações estavam mais leves.
Os rostinhos das crianças, que haviam interrompido suas brincadeiras para
agrupar-se em torno dos pais e ouvir aquelas histórias de que entendiam tão
pouco, tinham ficado mais alegres; e a casa inteira estava mais feliz com a morte
daquele homem! A alegria foi a única emoção que o Fantasma conseguiu mostrar
a ele, a emoção causada por aquele evento, era prazerosa.
— Deixe-me ver um pouco de ternura relacionada a uma morte — implorou
Scrooge —, do contrário aquela alcova escura de onde acabamos de sair jamais
me sairá da cabeça.
O Fantasma o guiou por muitas ruas que seus pés estavam acostumados a
percorrer e, conforme avançavam, Scrooge olhava em torno para ver se conseguia
ver-se em algum lugar; sem sucesso. Os dois entraram na casa do pobre Bob
Cratchit, a mesma onde já haviam estado antes, e encontraram a mãe e os filhos
sentados ao pé da lareira. Em silêncio. Em completo silêncio. Os pequenos
Cratchit, tão brincalhões, estavam sentados em um canto, imóveis como
estátuas, olhando para Peter, que tinha um livro nas mãos. A mãe e as filhas
costuravam. Todos, porém, no mais profundo silêncio.
— E Ele pegou uma criança, e a levou para o meio deles!
Onde Scrooge já ouvira aquelas palavras? Estava certo de que não sonhara
com elas. Provavelmente o garoto a lera alto no momento em que ele e o espírito
entraram pela porta. Mas por que não continuou?
— Essa cor cansa meus olhos — disse.
A cor? Ah, pobre Tiny Tim!
— Pronto, já melhorou — disse a mulher de Cratchit. — A luz da vela é
fraca, mas não quero, por nada neste mundo, que o pai de vocês me encontre
com os olhos cansados quando chegar em casa. E deve estar quase na hora de ele
chegar.
— Na verdade já passou da hora — respondeu Peter, fechando o livro. —
Mas acho que ultimamente ele tem andado um pouco mais devagar do que
antes, mãe.
Todos ficaram de novo muito silenciosos. Por fim a mãe disse, com voz
firme e animada, que só vacilou uma vez:
— Antes ele andava com... ele andava com o Tiny Tim nos ombros e numa
rapidez incrível!
— É, eu também me lembro disso — exclamou Peter. — Vi ele fazer isso
muitas vezes.
— Eu também lembro — afirmou um dos outros.
Todos lembravam.
— Também, ele era muito levinho — continuou a mãe, olhando
atentamente para a costura —, e o pai gostava tanto dele que não havia nenhum
problema, nenhum problema. Olhem só, papai chegou!
Ela correu ao encontro do marido, e o pequeno Bob com seu cachecol –
coitado, como precisava de seu cachecol – entrou na sala. O chá estava pronto à
sua espera sobre o gradil da lareira, e foi um empurra-empurra para ver quem o
atendia melhor. Depois os dois pequenos Cratchit foram para o seu colo e
encostaram os rostinhos no rosto do pai, como quem diz: “Não se aborreça,
papai. Não fique triste!”
Bob mostrou-se muito bem-disposto com todos, conversando amavelmente
com a família. Observou a costura sobre a mesa e elogiou a diligência e a rapidez
da sra. Cratchit e das meninas. Em seguida informou que as obras estariam
concluídas bem antes de domingo.
— Domingo! Você foi lá hoje, então, Robert? — quis saber a esposa.
— Fui, minha querida — respondeu Bob. — Pena você não ter ido também.
Tenho certeza de que teria ficado feliz ao ver como o lugar é cheio de verde. Mas
você ainda há de ir lá muitas vezes. Prometi a ele que aproveitaria um domingo
para dar uma caminhada até lá. Meu pequeno, meu pequeno filho! — chamou
Bob. — Meu pequeno filho querido!
Bob rendeu-se à dor de uma vez só. Não conseguiu conter-se. Se tivesse
conseguido, talvez ele e o filho ficassem ainda mais afastados um do outro do
que já estavam.
Saiu da sala e subiu as escadas para o quarto, que estava bastante iluminado e
todo decorado para o Natal. Havia uma cadeira junto à cama da criança e sinais
de que pouco antes alguém andara por ali. O infeliz Bob sentou-se na cadeira e,
depois de refletir um pouco e se recompor, beijou o rostinho do menino.
Conformando-se com o sucedido, desceu a escada mais alegre.
Todos se aproximaram da lareira para conversar; as meninas e a mãe sempre
ocupadas com a costura. Bob contou-lhes, então, da extrema delicadeza do
sobrinho do sr. Scrooge, a quem só vira uma vez, e de passagem, e o qual ao
encontrá-lo na rua naquele dia e ao ver que ele estava um pouquinho, “só um
pouquinho abatido, vocês sabem”, disse Bob, quisera saber o que havia
acontecido para ele ficar naquele estado.
— E eu lhe contei — disse Bob —, porque ele é a pessoa mais amável deste
mundo. “Sinto muito, de coração, senhor Cratchit!”, disse ele. “Pelo senhor e
pela sua boa esposa.” Aliás, não faço ideia de como ele teria ficado sabendo desse
detalhe.
— Que detalhe, querido?
— Ora, de que você é uma boa esposa — respondeu Bob.
— Mas isso todo mundo sabe! — disse Peter.
— Muito bem observado, meu rapaz! — exclamou Bob. — Espero que
saibam mesmo. “Sinto muito de coração,” disse ele, “por sua boa esposa. Se eu
puder ser útil de alguma maneira”, disse ele, entregando-me seu cartão, “aqui
está meu endereço. Podem contar comigo”. Pois bem, não foi porque se ofereceu
para fazer alguma coisa por nós, e sim por sua delicadeza, que essas palavras me
fizeram bem. Parecia até que ele tinha conhecido nosso Tiny Tim e estava
sofrendo como nós.
— Tenho certeza de que ele é uma boa alma! — disse a sra. Cratchit.
— E mais certeza ainda teria, minha querida — replicou Bob —, se tivesse
estado com ele e conversado com ele. Eu não ficaria nem um pouco surpreso,
escrevam o que estou dizendo, se ele conseguisse um emprego melhor para o
Peter.
— Imagine só, Peter! — disse a sra. Cratchit.
— É, mas aí o Peter vai encontrar alguém e resolver formar a família dele! —
exclamou uma das meninas.
— Vá cuidar da sua vida! — respondeu Peter, rindo.
— Nada mais natural! — disse Bob. — É isso mesmo que vai acontecer um
dia desses. Só que ainda temos muito tempo, querida. Mas ainda que venhamos
a nos separar, independentemente do momento em que isso acontecer, tenho
certeza de que nenhum de nós vai esquecer o Tiny Tim, não é mesmo? Afinal,
esta é a nossa primeira grande separação.
— Nunca, papai! — gritaram todos.
— E eu sei — disse Bob —, eu sei, meus queridos, que sempre que nos
lembrarmos como ele era paciente e meigo, mesmo sendo tão pequeno, não
vamos começar a discutir por pouca coisa, esquecendo o pobre Tiny Tim.
— Não, pai, nunca! — gritaram todos novamente.
— Estou muito feliz — disse o pequeno Bob. — Estou muito feliz!
A sra. Cratchit o beijou, suas filhas o beijaram, os dois pequenos Cratchit o
beijaram, e Peter lhe deu um aperto de mão. Espírito do Tiny Tim, tua essência
infantil era uma essência divina!
— Espectro — disse Scrooge —, algo me diz que o momento de nossa
despedida está chegando. Sei disso, sem saber como. Diga-me quem era o
homem morto naquela cama?
O Fantasma do Natal Futuro conduziu-o como antes – só que em uma
ordem cronológica diferente, pensou Scrooge, na verdade, aparentemente essas
últimas visões não obedeciam a um critério de ordem. Em comum, tinham
apenas o fato de ocorrerem no Futuro – para os lugares frequentados pelos
negociantes, porém não o levou ao encontro de si mesmo. Na verdade, o espírito
não se deteve para coisa nenhuma, mas seguiu em frente, como se tivesse um
propósito no qual pensara pouco antes. Scrooge lhe pediu que esperasse por um
momento.
— Neste largo — disse Scrooge —, que estamos atravessando às pressas,
situa-se, e há muito tempo, meu local de trabalho. Estou vendo o prédio. Deixe-
me tomar conhecimento do que serei nos dias que virão!
O espírito parou, sua mão apontava para outro lugar.
— Meu escritório fica ali — exclamou Scrooge. — Por que você está
apontando para uma direção diferente?
O dedo implacável não se alterou.
Scrooge correu até a janela de seu escritório e olhou para dentro. Continuava
a ser um escritório, mas não era o dele. A mobília não era mais a mesma, e o
homem sentado na cadeira não era ele. O espectro continuava apontando para o
mesmo lugar.
Scrooge aproximou-se dele novamente e, tentando adivinhar por que e para
onde estavam indo, viu-se diante de um portão de ferro. Antes de entrar, olhou
ao redor.
Um cemitério. Era ali, portanto, que o desgraçado cujo nome ia ficar
sabendo agora repousava debaixo da terra. O local era respeitável. Cercado pelas
paredes dos edifícios, tomado pela relva e pelas ervas daninhas, sua vegetação
apontava para a exuberância da morte, e não da vida, engasgado com o excesso
de sepultamentos, gordo de tanto fartar o apetite. Um local respeitável!
Em pé no meio dos túmulos, o espírito apontou para um deles. Trêmulo,
Scrooge se aproximou. O espectro estava idêntico ao que era antes, mas Scrooge
tinha medo de encontrar um novo significado em sua forma solene.
— Antes de olhar para essa lápide que você aponta — disse Scrooge —,
responde uma pergunta. Essas são as sombras das coisas que serão, ou apenas as
sombras das coisas que poderão ser?
O Fantasma continuou apontando para baixo, para o túmulo junto ao qual
se encontrava.
— O curso da vida dos homens acaba encobrindo certos objetivos em
direção aos quais, se eles perseverassem, seriam conduzidos — disse Scrooge. —
Mas se esse curso for abandonado, os objetivos se modificam. Acho que é isso
que você tem tentado me mostrar.
O espírito, como sempre, permaneceu imóvel.
Com dificuldade, Scrooge aproximou-se do túmulo, tremendo muito, e,
seguindo com o olhar a direção para a qual o dedo apontava, leu, na lápide do
túmulo abandonado, seu próprio nome, EBENEZER SCROOGE.
— Então era eu aquele homem na cama? — gritou, caindo de joelhos.
— Sou eu o homem deitado naquela cama? — chorou ele, de joelhos.
O dedo que apontava afastou-se do túmulo e virou-se para ele, depois voltou
a apontar para o túmulo.
— Não, espírito! Ah, não, não!
E o dedo ainda lá.
— Espírito! — gritou ele, agarrando-se com força à túnica — Ouça-me! Já
não sou o mesmo homem. Não serei o homem que teria sido se não tivesse
passado por essa experiência. Por que me mostrar isso, se não há esperança para
mim?
Pela primeira vez, a mão pareceu vacilar.
— Espírito bondoso — prosseguiu Scrooge, colocando-se de joelhos diante
dele —, sua natureza intercede por mim, e tem piedade de mim. Prometa-me
que se eu modificar minha vida ainda poderei mudar essas sombras!
A mão generosa tremeu.
— Hei de honrar o Natal no meu coração, e dedicar-me a pensar nele o ano
inteiro. Viverei ao mesmo tempo no Passado, no Presente e no Futuro. Os
Espíritos dos Três viverão dentro de mim. Não me esquecerei das lições que
aprendi. Ah, diga-me que posso apagar as letras gravadas nessa lápide!
Em seu desespero, agarrou-se à mão espectral. A mão quis soltar-se, mas
Scrooge perseverou em suas súplicas, e não a largou. O espírito, ainda mais forte,
repeliu-o.
Erguendo as mãos em uma última súplica para que seu destino fosse alterado,
Scrooge viu como o capuz e a indumentária do Fantasma se modificavam.
Encolheram, desmancharam-se e acabaram reduzidos à coluna de uma cama.
Sim! E a coluna era a coluna da sua cama. A cama era a sua, o quarto era o seu. E o
melhor de tudo, o mais esplêndido, era que o tempo diante dele era seu, todo
seu para consertá-lo.
— De agora em diante viverei ao mesmo tempo no Passado, no Presente e
no Futuro — repetiu Scrooge, saltando da cama. — Os Espíritos dos Três
viverão dentro de mim! Ah, Jacob Marley! Que os céus e a época natalina sejam
louvados por este milagre! Digo isso de joelhos, velho Jacob, de joelhos!
Estava tão animado, tão resplandecente de boas intenções, que sua voz
embargada não dava conta de manifestar todo o seu empenho. Havia chorado
muito em seus embates com o espírito e ainda trazia o rosto úmido de lágrimas.
— Elas não foram arrancadas — gritou Scrooge, abraçando a parte lateral do
cortinado da cama — não foram arrancadas, as argolas ainda estão aqui! Eu
estou aqui! Posso dispersar as sombras das coisas que teriam sido. E vou
dispersar. Sei que vou!
E enquanto isso, o tempo todo, mantinha as mãos ocupadas com suas
roupas, virava-as do avesso, tentava enfiá-las ao contrário, rasgava-as, deixava-as
cair, tornava-as cúmplices de todo tipo de extravagância.
— Não sei o que fazer! — exclamava Scrooge, rindo e chorando ao mesmo
tempo, e adotando um comportamento de perfeito Laocoonte em relação a suas
meias. — Estou me sentindo leve como uma pena, feliz como um anjo, alegre
como um menino. Minha cabeça dá voltas como se eu estivesse bêbado. Feliz
Natal para todos! Próspero Ano Novo para todos! Ei, vocês aí! Ei!
Correra para a sala e lá se encontrava agora, completamente esbaforido.
— Ali está a panelinha do mingau de aveia! — exclamou, disparando outra
vez e correndo atarantado diante da lareira. — Ali está a porta por onde entrou o
Fantasma de Jacob Marley! Ali está o canto onde o Fantasma do Natal de Hoje
estava sentado! Ali está a janela de onde vi as Almas Perdidas! Está tudo em
ordem, foi tudo verdade, todas aquelas coisas aconteceram. Há, há, há!
Francamente, para um homem sem prática havia tantos anos, seu riso era um
riso magnífico, um riso realmente notável. O pai de uma longa, longa linhagem
de risadas brilhantes!
— Não sei em que dia do mês estamos! — espantou-se Scrooge. — Não sei
quanto tempo passei entre os Espíritos. Não sei coisa nenhuma. Sou como um
bebê. Não faz mal. Não estou preocupado com isso. Bem que eu gostaria de ser
um bebê. Ei! Olá! Vocês aí!
Seu entusiasmo foi interrompido pelos sinos das igrejas, que começaram a
repicar com uma animação sem igual em sua lembrança. Blém, blém, blam,
ding, dong. Blém, blém, blam, ding, dong! Ah, que glória, que glória!
Scrooge correu para a janela, abriu-a e debruçou-se no parapeito. Nada de
neblina, nada de garoa. Um dia esplêndido, sem nuvens, risonho, estimulante,
frio, para que o sangue dançasse ao som de suas flautas, um sol dourado, um céu
divino, um ar fresco delicioso, sinos felizes. Ah, que glória. Que glória!
— Que dia é hoje? — perguntou Scrooge, gritando para um rapaz todo
bem-vestido na rua abaixo, que aparentemente fizera uma pausa na caminhada
para olhar um pouco ao redor.
— Como? — perguntou o rapaz, totalmente surpreso.
— Que dia é hoje, querido jovem? — insistiu Scrooge.
— Hoje? — repetiu o rapaz. — Ora, hoje é dia de Natal!
— Hoje é dia de Natal! — repetiu Scrooge para si mesmo. — Não perdi o
Natal! Os Espíritos fizeram tudo em uma noite só. Está certo, eles podem fazer o
que bem entenderem. Claro que podem. Claro que podem. Ei, querido jovem!
— O que o senhor quer? — respondeu o rapaz.
— Por acaso você sabe onde é a loja do comerciante de aves, na esquina da
primeira rua depois daquela ali? — apontou Scrooge.
— É claro que sei! — respondeu o jovem.
— Que garoto inteligente! — disse Scrooge. — Você é um garoto incrível.
Você sabe me dizer se o peru especial que estava pendurado lá foi vendido? Não
é do peru especial pequeno que estou falando, mas do grande.
— Qual, aquele do meu tamanho? — indagou o rapaz.
— Que garoto encantador! — disse Scrooge. — É um prazer falar com ele.
Isso, meu camarada!
— Continua lá pendurado — respondeu o jovem.
— Ah, é? — disse Scrooge. — Pois corra até lá e compre o bicho.
— Eu, hein? — exclamou o jovem.
— É isso mesmo — disse Scrooge —, estou falando sério! Vá até lá e compre
o peru e diga ao homem que venha até a minha casa para eu explicar a ele onde
deve fazer a entrega. E você também, volta aqui junto com ele para eu lhe dar
um trocado. Se você conseguir voltar com o homem em menos de cinco
minutos, lhe dou meia coroa!
O garoto saiu feito um raio. Seria preciso ter mão muito firme no gatilho
para conseguir disparar um tiro naquela velocidade.
— Vou mandar o peru para Bob Cratchit! — murmurou Scrooge,
esfregando as mãos e soltando uma gargalhada. — Ele nunca vai conseguir
adivinhar quem mandou. O animal tem o dobro do tamanho do Tiny Tim. Vai
ser a piada do século.
A mão que escreveu o endereço em um pedaço de papel não estava lá muito
firme, mesmo assim Scrooge deu um jeito de escrever. Logo em seguida, desceu
para abrir a porta da rua e esperar o comerciante de aves. Enquanto ficava ali
parado, aguardando, viu a aldrava da porta.
— Vou gostar dessa aldrava pelo resto da minha vida! — exclamou Scrooge,
dando palmadinhas no objeto. — Até agora eu mal tinha olhado para ela. Que
expressão sincera em sua fisionomia! Uma aldrava magnífica! Aí vem o peru. Ei!
Olá! Como vai o senhor? Feliz Natal!
Aquilo sim, era peru! Um bicho daqueles com certeza nem conseguia se
aguentar em cima das próprias pernas. E se tentasse, sem dúvida as perninhas
haveriam de quebrar-se em um instante, como bastões de cera de sinete.
— Nossa, o senhor não vai conseguir carregar isso até Camden Town —
disse Scrooge. — Vai precisar pegar um carro.
Ao fazer essa afirmação, Scrooge soltou uma risada; ao pagar o peru, soltou
uma risada; ao pagar o carro de aluguel, soltou uma risada; ao dar a gorjeta para
o rapazinho, soltou uma risada; risadas maiores que essas só as que soltou depois
de voltar para sua poltrona, completamente sem fôlego, sentar-se e rir até chorar.
Fazer a barba não foi uma tarefa simples. Sua mão continuava muito
trêmula, e fazer a barba é coisa que exige atenção, ainda que o indivíduo não
fique dançando enquanto se barbeia. Mas mesmo que tivesse cortado fora a
ponta do nariz, Scrooge teria simplesmente colado um pedaço de esparadrapo no
lugar e se dado por muito satisfeito.
Depois de vestir suas melhores roupas, ele, enfim, saiu pela porta afora.
Àquela altura as pessoas já enchiam as ruas, como as vira fazer quando estava na
companhia do Fantasma do Natal de Hoje; e, andando com as mãos atrás das
costas, examinava-as com um sorriso maravilhado nos lábios. Para dizer o
mínimo, apresentava um aspecto tão irresistivelmente simpático que três ou
quatro sujeitos bem-dispostos disseram:
— Bom dia, meu senhor! Feliz Natal!
Scrooge repetiria muitas vezes, depois, que de todos os sons agradáveis que já
escutara, nenhum outro fora tão agradável quanto aquele a seus ouvidos.
Não havia andado muito quando avistou, caminhando em sua direção, o
cavalheiro de fina estampa que o visitara em seu escritório na véspera dizendo:
“Scrooge e Marley, penso eu”. Sentiu um aperto no peito ao pensar com que
cara aquele senhor tão respeitável iria olhar para ele quando os dois se cruzassem
na calçada, mas, sabendo exatamente o caminho que devia seguir, ele o fez sem
nenhuma hesitação.
— Meu caro senhor — disse Scrooge, apressando o passo e tomando nas suas
as mãos do outro. — Como está passando? Espero que ontem o senhor tenha
conseguido o que queria! Foi muita gentileza sua. Feliz Natal para o senhor!
— Senhor Scrooge?
— Sim — disse Scrooge. — Meu nome é esse mesmo, e temo que não seja
muito agradável a seus ouvidos. Permita-me que lhe peça perdão. E será que o
senhor teria a bondade.... — E nesse ponto Scrooge pôs-se a cochichar junto ao
ouvido do cavalheiro.
— Santo Deus! — exclamou o outro, como se o ar de repente lhe faltasse. —
Meu caro senhor Scrooge, o senhor está falando sério?
— Peço-lhe encarecidamente! — disse Scrooge. — Nem um centavo a
menos. Estou com muitas prestações atrasadas, deixe-me acertar o que devo. Será
que o senhor poderia me fazer esse favor?
— Estimado cavalheiro — disse o outro, sacudindo efusivamente as mãos de
Scrooge —, não sei o que dizer diante de tanta generosi...
— Por favor, não diga nada — retorquiu Scrooge. — Passe em meu
escritório. O senhor promete que vai passar?
— Claro! — exclamou o velho homem. E dava para perceber que ele
pretendia fazer o que prometia.
— Obrigado! — disse Scrooge. — Agradeço imensamente. Agradeço
cinquenta vezes. Deus o abençoe!
Scrooge foi à igreja, passeou pelas ruas, observou as pessoas correndo em
todas as direções, bagunçou o cabelo das crianças, quis saber da vida dos
mendigos, espiou as cozinhas das casas, ergueu os olhos para as janelas dos
apartamentos, e constatou que todas essas coisas lhe proporcionavam prazer. Se
havia algo que ele nunca sonhara, era que uma caminhada – ou qualquer outra
coisa – fosse capaz de lhe dar tanta felicidade. À tarde, dirigiu-se à casa do
sobrinho.
Passou na frente da porta uma dúzia de vezes até criar coragem de subir a
escada e bater. Mas tomou impulso e bateu.
— Seu patrão está em casa, minha querida? — perguntou à mocinha que
veio abrir a porta. Mocinha simpática, muito simpática.
— Está sim, senhor.
— E onde ele está, meu bem? — perguntou Scrooge.
— Na sala de jantar, senhor, está com a patroa. Faça o favor de vir comigo
que lhe mostro o caminho.
— Não precisa. Ele me conhece — disse Scrooge, já com a mão na maçaneta
da porta da sala de jantar. — Pode deixar que eu entro sozinho, meu bem.
Girou delicadamente a maçaneta e espiou pela abertura da porta. O casal
estava inspecionando a mesa (arrumada com grande pompa); é que os jovens
anfitriões sempre ficam preocupados com esse tipo de coisa e fazem questão de
verificar se está tudo certo.
— Fred! — disse Scrooge.
Minha nossa, sua sobrinha deu um pulo assustada! Por um instante, Scrooge
se esquecera de como ela ficara acomodada no canto com os pés no banquinho,
do contrário nunca teria falado assim de repente, nunca, de jeito nenhum.
— Não acredito! — exclamou Fred. — Quem está aí?
— Sou eu. Seu tio Scrooge. Vim jantar com vocês. Posso entrar, Fred?
Se podia entrar? O sobrinho quase arrancou o braço dele ao apertar sua mão.
Em cinco minutos, o tio já estava à vontade. Nada no mundo poderia ser mais
cordial que aquela casa. A sobrinha não tinha mudado nem um pouco. Nem
Topper, quando ele chegou. Nem a irmã gorducha, quando ela chegou. Nem
nenhum dos outros, quando eles chegaram. Festa maravilhosa, convivência
maravilhosa, felicidade maravilhosa!
Mas, na manhã seguinte, Scrooge chegou mais cedo ao escritório. Ah,
chegou bem cedinho. Será que ia conseguir chegar primeiro e flagrar Bob
Cratchit atrasado? Era exatamente isso que ele pretendia fazer.
E conseguiu. Ah, conseguiu! O relógio deu nove horas. Nada de Bob. Nove e
quinze. Nada de Bob. Bob chegou exatamente dezoito minutos atrasado.
Scrooge estava instalado em sua escrivaninha, de porta bem aberta, para não
perder o momento em que ele entrasse no cubículo.
Quando Bob abriu a porta, já vinha sem chapéu, também já havia tirado o
cachecol. Em um piscar de olhos, estava sentado em sua banqueta, com a caneta
na mão, como se estivesse tentando correr atrás do tempo perdido.
— Ei, você! — grunhiu Scrooge, esforçando-se para imitar sua voz
costumeira. — Você acha que pode chegar a essa hora?
— Sinto muito, senhor — disse Bob. — Estou mesmo atrasado, eu sei.
— Ah, está atrasado? — repetiu Scrooge. — Está mesmo. Tenho a impressão
de que está. Chegue aqui, por favor.
— É só uma vez por ano, senhor! — implorou Bob, aparecendo na porta que
dava para o cubículo. — Não vai acontecer de novo. É que ontem andei
festejando um pouco, senhor.
— Pois ouça bem o que vou lhe dizer, meu amigo! — disse Scrooge. — Não
estou disposto a continuar engolindo esse tipo de coisa. Por isso — continuou,
pulando de sua banqueta e dando uma cotovelada tão forte na casaca de Bob que
o rapaz perdeu o equilíbrio e foi parar outra vez no interior do cubículo —, por
isso fique sabendo que vou aumentar seu salário!
Bob estremeceu e foi se aproximando devagarinho da régua. A primeira coisa
que lhe veio à cabeça foi aplicar uma boa reguada em Scrooge, agarrá-lo bem
agarrado e chamar as pessoas que estavam ali fora, no largo, para que viessem
socorrê-lo trazendo uma camisa-de-força.
— Feliz Natal, Bob! — disse Scrooge, com um entusiasmo inconfundível,
dando tapinhas nas costas do outro. — Bob, meu bom rapaz, desejo-lhe um
Natal mais feliz do que os que tenho lhe proporcionado nesses muitos anos! Vou
aumentar seu salário e fazer o possível para ajudar sua família necessitada. Ainda
hoje à tarde, vamos discutir os seus assuntos, Bob, tomando uma boa jarra de
vinho quente. Você fica responsável pela lareira, Bob Cratchit, e não me escreva
mais nem um i antes de sair para comprar outro balde de carvão.
Scrooge saiu melhor do que a encomenda. Fez tudo o que havia prometido e
muito mais; e para o Tiny Tim, que não morreu, foi um segundo pai.
Transformou-se em um dos melhores amigos, dos melhores patrões, dos
melhores homens que a boa velha cidade, ou qualquer outra boa velha cidade,
vila ou aldeia já tivessem visto nesse bom velho mundo. Algumas pessoas
acharam graça na modificação por que ele havia passado, mas ele não se
importou nem um pouco com isso, deixou que rissem, pois era sábio o bastante
para saber que jamais aconteceu nada de bom neste planeta sem que no começo
aparecesse alguém para dar risada; e, sabendo perfeitamente que esse tipo de
gente não tem mesmo capacidade de discernimento, achou que era uma boa
coisa elas criarem rugas em torno dos olhos de tanto rir, e não em decorrência de
outros motivos menos atraentes. Seu próprio coração também ria, e, para ele,
aquilo era o bastante.
Ele nunca mais teve notícias dos Espíritos, porém a partir daquele momento
viveu sob o Princípio da Abstinência Absoluta. E a seu respeito sempre se
afirmou que, caso se pudesse dizer que algum homem vivo detinha a capacidade
de festejar o Natal, esse homem era Scrooge. E que tal verdade possa ser dita
sobre nós, e de cada um em particular! E sendo assim, como bem observou Tiny
Tim, que Deus nos abençoe, que abençoe a todos nós!
FIM