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TEXTOS A constru¢ao da masculinidade Paulo Roberto Ceccarell A psicanlise se preocupa muito com a sexualidade feminina. Mas 0 que se pode dizer sobre a sua contrapartida masculina? Aqui, algumas hipdteses e duas ilustrac6es tiradas da etnologia. “A proporedo em que masculino e feminino se misturam num individuo esta sujeita a flutuacdes muito amplas. (...) e aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é ‘uma caracte ica desconbecida que foge do alcance da anatomia.” Freud, A feminilidade modelo biolégico do masculine e do feminino € valido para a definigao celular; ‘mas seria ilus6tio pensar que a identidade sexual poderia ser definida a partir do biol6- gico, a despeito das esperancas daqueles que nele quisessem encontrar uma solugao para os problemas de identidade de género: isso seria ignorar que 0 essencial da sexualidade humana reside em sua di- mensio inconsciente 49 Quando tentamos definir em bases “s6lidas* os termos masculino e feminino, encontramo-nos numa situagio bastante incémoda. De fato, poucas pala- yras condensam contetidos tao pesados € tio dificeis Paulo Roberto Cecearll¢psicanasta, doutor em Pslecpaiogla Fundamental e Pseandise poi Universidad de Paris Vl posqulsador {42 PUC-SP pasqulcador e colsboradn em pesqulsas aa UNICAMP, Colaboradornoprjeto PRO-SEX (rojto Saxuabdat) co Hogpial das Cine do Ske Paulo, Pereurso a* 19 - 2/1997 TEXTOS de precisar quanto masculino e fe- minino, Falat, como se faz fre~ qiientemente, em “caracteristicas femininas’, como a graga, ou “mas- culinas”, como a coragem, é ater- se a definigdes tautologicas, limi: tadas a um sistema binario que re- pete indefinidamente, ainda que de formas variadas, 2s mesmas cépias. Com efeito, as mulheres da idade da pedra possufam a graca © 0 recato daquelas que Cervantes descreve em seu Don Quixote? A coragem era um atri- buto particular aos homens da pré-hist6ria, ou um a priori co- mum a todos e a todas sem o qual no seria possivel a sobreviven- cia individual e coletiva? Provavel- mente, foi somente a partir de um momento hist6rico dificil de pre- cisar que atributos tais como a “graca’, a “coragem’” € muitos ou- tros foram “sexualizados" sem que exista nenhuma relagio natural entre essas Categorias eo mascu lino/feminino. Identidade: estado de crise permanente Ao longo da historia tem-se podido constatar, ainda que social- mente limitadas, 0 que poderi mos chamar de “crises de identi- dade” relativas a0 masculino ¢ 20 feminino. Enquanto o final do sé- culo XIX foi mareado por uma sé- re de textos que podem ser qua lificados como difamat6rios para ‘© sexo feminino, no inicio do sé- culo XX observou-se uma crise generalizada da masculinidade, sobretudo em Viena. Por exemplo, quase concomitantemente & publi- cacio dos Trés Ensaios de Freud, Otto Weininger publica uma obra bastante interessante e original, Sexo e cardter, numa tentativa de precisar, através dos termos mais simples (chegando ao ponto de utilizar formulas matematicas), as diferencas entre homens e mulhe- res. A hipdtese de um hermafro- ditismo fundamental, ou seja a nogao de bissexualidade, € tao bem exposta por este autor, que alguns pesquisadores da época Ihe atribuiram a autoria desta nocao. Em uma nota acrescenta da aos. Trés Ensaios em 1924, Freud se apressa a esclarecer 0 equivoco.! O polémico trabalho de Wei- ninger, extremamente importante do ponto de vista histérico, teve numerosas reedicdes € influen- ciou toda uma geragao. Ainda que do ponto de vista ideolégico com- porte varias criticas - sobretudo no que diz respeito as mulheres gumas das hipdteses ali apresen- tadas merecem ser consideradas como avangadas para a época, pois constituem uma das primei- ras tentativas de sintetizar, de maneita global, um saber psico biolégico sobre o feminino e o Outras crises de identidade ja haviam ocorrido nos séculos XVII © XVIIL, Embora fossem conseqtién- cia da necessidade de mudar os valores dominantes € tenham acontecido em paises nos quais as mulheres gozavam de maior liber- dade, tais crises tiveram 0 mérito de questionar valores que, na épo- ca, eram considerados como ev déncias. De algum tempo para cA, tém- se observado algumas posicoes em relagao ao masculino e ao fe- minino que podem ser qualific: das como extremistas. E 0 caso, por exemplo, de algumas teo: socio-biolégicas, mais conhecidas nos paises de lingua inglesa, e também do diferencialismo femi nista, As primeiras, partindo do principio que a esséncia do femi- nino € do masculino é biologica mente determinada, explicam to- Crises de identidade relativas ao masculino e ao feminino questionam valores que, em sua época, sao considerados como evidéncias. masculino. No fundo, o que se apreende da obra de Weininger é que 0 tomarse mulher é muito mais facil do que a aquisicto da virilidade: esta tltima nunca é definitivamente adquirida, e deve ser constantemente (re)conquistada, sob pena de ver a feminilidade re- cuperar 0 terreno. 50 dos 0s comportamentos humanos em termo de hereditariedade g nética, conseqliéncia da nece dade de adaptacio. Desse ponto de vista, a dominacao da mulher pelo homem é compreendida como efeito natural de uma agre: sividade resultante da competi- io, entre os homens, para a po: se das mulheres.* As segundas - diferencialismo feminista - insis tindo nas diferengas corporais, preconizam a separacio dos se- Xos, propondo mesmo um incon: ciente feminino.’ De qualquer for- ma, as duas tendéncias valorizam um sexo em detrimento do outro. do, ativo/passivo, sto diretamen- te ligadas & oposicaio masculino/ feminino. Além disso, as posigoes te6ricas de Freud revelam que sua escuta nao era imune a seus pro- prios complexos inconscientes, & sua propria organizagao identifi- t6ria € ao discurso social de sua © significado das noyoes de masculino e feminino subordina-se a processos mais complexos do que a realidade anatémi Uma importante tentativa de lar 0 justo peso a0 complexo pro- cesso do “tomnar-se homem" foi fe ta por Stoller* Mesmo que alguns pressupostos deste autor se opo- nham a certas premissas freudia- nas, as questdes levantadas por ele nos levam a refletir sobre a dificuldade de chegar dita “po- ico masculina Masculino/feminino : uma primeira dificuldade O modelo freudiano do ma: culino do feminino, lacunar e fe~ chado num sistema simétrico bi- nario, reflete a dificuldade de Freud para falar destas nogdes. As referéncias dle Freud neste ponto se baseiam sem dtivida em Arist6- teles que afirma que as oposigoes “naturais” frio/quente, seco/timi- © as determinag6es instintuais. época. Assim, ao expressar-se so- bre a questao do masculino e do feminino, fala de “conceitos”, de “nogdes” € até mesmo de “quali- dade psiquicas". Em determi dos momentos, refere-se ao ma culino € ao feminino em termos de atividade e passividade; em outros observa que, tratando-se de seres humanos, esta relagio € insuficiente. Se a psicandlise se utiliza estes conceitos, diz Freud, ela nao pode elucidar a sua esséncia, O contetido dessas no¢ées nao comporta nenhuma distincao psicolégica.’ Seja como for, a posicao de Freud ao cha mar a atengao para a dificulda de de definir masculino e femi- nino € revoluciondria, na medida em que recusa toda amarra a rea lidade anatémica, subordinando assim a significacao dessas no- des a resultados de processos 51 bem mais complexos que as de- terminac6es instintuais. Finalmen- te, cabe lembrar que as teorias se- xuais infantis descritas por Freud se baseiam essencialmente no me- nino, e seguem a l6gica pénis-ca trado; na menina, Freud confessa nao conhecer “os processos cor- respondentes”” A dificuldade de um paralelo entre masculino/ativo € feminino/ passivo foi bem cedo percebida por Freud. Um exemplo: no famo- so Rascunho K sobre as neuroses de defesa, carinhosamente apeli- dado de “Um conto de fadas para o Natal”, Freud faz. uma liga: reta entre o feminino ¢ passivida- de; em “Novos comentarios sobre as neuropsicoses de defesa”, pu blicado no mesmo ano em que € redigido o Rascunho K, relaciona © masculino a atividade, e a neu- rose obsessiva ao sexo masculino. Embora 0 peso atribuido as expe- rigncias sexuais na etiologia da neurose obsessiva seja o mesmo que na histeria, Freud observa que na primeira, em vez de passivida- de, ocorre uma atividade sexual a partir de “atos de agressao execu- tados com prazer’." Entretanto, Jogo adiante no texto as coisas se complicam: Freud diz existir um subsirato de sintomas bistéricos li- gado A uma cena de passividade, a qual 6 anterior & acao gerado ra de prazer. Conclusao: por tras da atividade masculina, depara- ‘mo-nos com a passividade femi- nina; € o substrato de sintomas bistéricos do obsessive contém (08 mesmos conflitos desejo/an- gtistia que Freud elucidou na histérica, o que nos obriga a re- pensar a pertinéncia do par mas- culino/ativo, feminino/passivo. Os rituais obsessivos de um menino, descritos por Freud numa nota de pé de p: pouco mais adiante neste mesmo texto, podem entao ser compreen- didos como defesa contra o dese- jo de ser seduzido, logo de ser passivo. TEXTOS Da mesma forma, um leitura mais atenta da questio edipiana mostra que as coisas so muito mais complicadas do que parecem. Num primeiro momento, o desen- rolar do complexo de Edipo apre- senta, no menino € na menina, uma certa simetria, 0 que sugere a existéncia subjacente de uma atragio heterossexual natural e normativa. F isto que Freud des- cteve ao redigir 0 Caso Dora: na maioria das criangas obser uma inclinagao precoce da filha em relacao ao pai, € do filho em relagio 4 mie. Contudo, as notas de pé de pagina mais tarde acres- centadas ao texto revelam outra hist6ria: além da atracao de Dora por seu pai, encontramos também uma identificagao a este tltimo que se manifesta no amor homos- sexual de Dora pela Sra. K. A iden- tificacao masculina de Dora mos- tra que, na pulsao, nao ha nada naturalmente beterossexual. A partir dai, Freud se encontra numa posicao bastante desconfor- tavel, ou até contradit6ria: se por um lado 0 Edipo sugere uma hete- rossexualidade normal, por outro 08 fatos clinicos indicam o contri- tio. (Nao € por acaso que Freud acrescenta em 1915 uma série de notas aos Trés Ensaios na tentativa de precisar melhor o sentido dos termos “masculino” e “feminino”). Se a atragto heterossexual nao tem nada de natural, e ainda menos de inato, mio faz sentido pensar em uma masculinidade, ou uma femi- nilidade, que viriam ao mundo com © bebe: feminilidade e masculinid de sao subjetividades adquiridas in- dependentemente do sexo anatémi- co do sujeito? © papel do pai real Sem reabrir 0 debate - absolu- tamente legitimo - sobre a pertinén- cia da posicao falocéntrica defendi- da por Freud, cabe lembrar que para ele a questao fundamental é saber como se opera, na menina, a passa- gem da fase “masculina’” a “feminil dade normal Embora as teorias de Freud sobre a feminilidade tenham sido objeto de intimeros clebates e con- trovérsias, pouco se diz sobre a masculinidade. Sobre esta ques- ‘em que medida a realidade da pre- senca fisica do pai implica na sua presenca simbdlica."' Se feminino © masculino si as duas verten- tes do falo, nos referimos aqueles que, a partir da inscricao na fun- 620 filica, se posicionaram no sim- bélico como homem. O fato de possuir um pénis nao constitui em si uma garantia que permite a passagem “natural” da fase masculina a masculinidade. 10, observa-se um inquietante sil€ncio, como se o fato de pos. suit um pénis constituisse em si uma garantia, espécie de salvo- conduto, permitindo a passagem “natural” da fase masculina a mas- culinidade. Ainda que o menino deva passar pelas fases do desen- volvimento com seus diversos per- calgos, a questio do “tornar-se ‘menino” nunca foi objeto de gran- de altercacoes. Entretanto, este processo € bastante complexo. Nao se pode compreender a aquisicao da masculinidade sem analisar a relagio do filho com seu pai real, ou seja, com o persona- gem que permite ao sujeito - me- nino ou menina - dizer (ou nao) num segundo tempo, que ele de fato teve um pai. Nao nos referi- ‘mos aqui, evidentemente, a0 pai como fungio, 20 Nome-do-Pai, que certamente esteve presente, pois 0 sujeito se constituiu; 0 pro- blema tampouco é compreender 52 A referéncia ao pai real é cen- tral em Freud: a relacao pessoal que cada um tem com Deus refle- tea “relacao com o pai em came osso”?; da mesma forma, o prots- tipo do deménio forjado pelo su- jeito se origina na relagao com 0 pai; 0 superego sidico de Dos- toievski" € atribuido a um pai na realidade particularmente cruel ¢ violento. Ao pai cumpre também a ta- refa de substituir a mae na prote- 40 da crianga pelo resto da in- fancia contra os perigos do mun- do externo como lemos em 0 Fu- turo de uma ilusdo. Do pai prote- tor da infancia - 0 onipotente “pai her6i" profundamente admirado, por vezes idolatrado, mas também temido - ficard a “nostalgia do pai’, sentimento que coincide com a necessidade de protecao ligada a0 desamparo humano;* € a origem do pai como protetor se encontra no pai da horda priméria.!” Ou seja, 0 pai que protege a crianca no inicio da vida reatualiza o pai que, na aurora da humanidade, protegia os membros da horda contra os perigos do mundo exte- rior. No entanto, a partir de um determinado momento - ao longo da era glacial, continua Freud - quando as mudangas do meio ambiente superara a capacidade protetora do pai e este tiltimo nao cumpria mais seu papel, o pai pro- tetor passou a configurar © alvo por exceléncia da angustia do gru- o: foi a interiorizacio do medo do real como “angiistia do pai” ria, Na historia de cada sujeito, 0 desejo de morte do pai se origina bem antes da situacao edipiana, no momento em que ele aparece na cena do real fazendo “do des- prezar uma experiéncia da qual inguém est4 ao abrigo”."* Identificacao e masculinidade A relacio do menino como pai €, como se sabe, marcada pela am- bivaléncia. No complexo de Edipo em sua forma mais completa, posi- tiva e negativa, sob a égide da bis- E a interiorizagio do medo do real como “angistia do pai” que possibilita a maturagio do desejo de morte, conferindo-lhe a0 mesmo tempo, sua fungdo simbélica. que possibilitou a maturagao do desejo de morte contra ele confe- tindo-lhe, 20 mesmo tempo, sua funcao simbélica. Para Freud, o complexo paterno que culmina com o assassinato do pai - “o cri- me principal e primevo da huma- nidade”” - constitui o ponto onde se nem ontogénese ¢ filogénese, a histéria de cada um € a Hist6ria da humanidade: 2 morte do pai que cada crianga tem que levar a cabo nada mais € que a reatuali- ago da morte do pai primevo pelas “criancas” da horda prima- sexualidade constitucional, duas vertentes se opdem e se conjugam: de um lado, uma atitude afetuo: para com o pai; de outro, uma hos- tilidade igualmente intensa em re- lagio a ele, que se quer eliminar como rival. Ao final do complexo, estas tendéncias - que deverdo ser recalcadas - se agrupario para produzir uma identificagio: para aspirar a ser como o pai, é neces- sario parar de temé-lo, Entretan- to, no caso do recalcamento falhar, as tendéncias pulsionais afetuosas retornam como mogoes intolera- 53 veis para 0 ego, exatamente por reatualizar a “atitude afetuosa fe- minina para com o pai”, reativan- do no mesmo movimento, a amea- ca de castracao. £ isto que nos rela ta Freud através dos casos do Ho- mem dos lobos, do Homem dos ra- tos, dle Schreber e de Pequeno Hans: boa parte dos problemas psiquicos apresentados por estes sujeitos si devia ao retorno de elementos calcados percebidos pelo ego do su- jeito como “femininos”. Talvez por esta mesma razio, a parandia, as sim como algumas formas de pe versio, exibem uma “preferén pelo sexo masculino: a projecao de mog6es homossexuais nao-in- tegradas permite ao sujeito tratar um perigo pulsional interno como se fosse externo. A angtistia de castraglo, “no interesse de preservar sua mascu- linidade"®, levara o menino a re- calcar a hostilidade dirigida ao pai. Pode acontecer que 0 deslo- ‘mento para um objeto substitu- tivo constitua a tinica possibilida- de encontrada para lidar com a hostilidade. E 0 que acontece na fobia: gracas ao objeto fébico, a crianga pode dar livre vazao & hostilidade nascida da rivalidade com 0 pai, mas também a afeic20 dirigida a0 pai, pois 0 objeto te- mido é também procurado.®* Pode acontecer também, quando o pai io se torna o alvo da angistia da ctianga, que o mundo seja per- cebido como uma ameaga. Na ori- gem da angiistia de algumas pes- s0as, que se traduz por um “medo de tudo”, um desamparo estrutu- ral, encontra-se uma imagem de pai que nunca foi percebida como sendo, por um lado, © pai que proibe - sabe-se de onde o perigo vem - €, por outro lado, o pai que protege: nestes sujeitos, a “nostal- gia do pai” nao se constituiu. Outro elemento a considerar na construgio da masculinidade é ‘© modo como o pai investe o fi- Iho, € 0 desejo do pai por ele. ‘Tornar-se pai € correr 0 risco de TEXTOS pressentir, tal como Laio, aquele que vai desejar sua morte; aceitar que seu filho seja seu sucessor, legar-lhe sua fungdo, pressupoe que © pai saiba que o lugar que ele ocupa foi ocupado anterior- mente por outro, € que seu filho, assim como ele, 36 0 ocupara de modo transit6rio, Ser apenas um elo na cadeia de geragdes signi ca no apenas descobrir-se mor- tal, mas também compreender sua morte como consequiéncia de uma lei universal, e nao como uma pu- nico retardada por desejos edipia- nos proibidos. Isso que dizer que na relacao pai/filho se reatualizam também as ambivaléncias que mar- caram a relagao deste pai como seu proprio pai. Finalmente, a relacao com o pai serd, de alguma forma, 0 protétipo das relagdes do sujeito com outros homens, Uma falha do pai em sua fun- 20 de objeto identificat6rio - pro- vavelmente devido a conflitos identificat6rios deste pai com o seu proprio pai, um conflito trans- generacional - impede que o filho experiencie 0 complexo de Edipo em sua forma completa, o que tera conseqiiéncias na construgio de sua masculinidade, A clinica nos informa destas vicissitudes. Trat e de pessoas que, embora sem- pre tenham tido uma pratica hete- rossexual, apresentam, sob as mais diversas formas, fantasias homossexuais que podem ser de- finidas como ego-distonicas: em- bora as pulsdes homossexuais te- nham acesso a consciéncia, sao como totalmente insuportaveis, ¢ a realizacao des- tas fantasias seria simplesmente inconcebivel. Quase sempre a pro- cura de anilise se deve ao medo desta “homossexualidade” vivida como um sintoma.® A andlise re- vela que em muitos destes casos a homossexualidade em questo é a mesma do periodo edipiano, que niio péde set “vivida” com o pai, Se estas fantasias - que traduzem uma busca de masculinidade - s40 120 i suportaveis para 0 sujeito, € por serem vivenciadas como na relaglo edipiana, logo proibida mie mas com 0 pai. (Dei para outra ocasiio a discussao ‘mais detalhada deste ponto.) desta dinamica: de um lado, 0 sen- timento que se estabelece bem cedo e que se traduz por: “eu sou menino” ou “eu sou menina”; de outro lado, 0 sentimento, bem mais complexo, cuja dinimica s6 Na retacao pai/filho se reamalizam as ambivaléncias que marcaram a relagdo deste pai com seu proprio filho: assim se forma o protétipo das relagdes do sujeito com os outros homens. De maneira geral, alguns fan- tasmas ndo-integrados a0 ego € que podem ser sentidos como pas- sivos, logo ligados a feminilida- de, devem ser compreendidos como 0 retorno da corrente afetuo- sa em relacio ao pai, que reativa- ria uma vez mais a ameaca de cas tragao: é por isto que a posicao masculina € tao freqiientemente ameacada ¢ que a feminina, se- gundo Freud biologicamente des tinada as criancas do sexo femini no,” € tao temida pelos homens, Isto se torna particularmente cla- adolescentes: entre os me- ninos € comum a fantasia de que se um deles tem na relacao ho- mossexual 0 papel passivo, é “mu- Iher"; entre as meninas, a homos- sexual nao é comparada a um ho- mem. A distincio entre duas mo- dalidades identificatérias que fre- qiientemente aparecem superpos- tas pode ajudar na compreensao se completaré na adolescéncia, que se traduz por “eu sou mascu- lino" ou “eu sou feminina”.* A antropologia é rica em ob- servagoes € conclusoes que mos- tram que 0 trajeto em diregao masculinidade deve ser construi- do, 0 que feito através de rituais proprios a cada cultura, e também que o risco de perder esta mascu- linidade est sempre presente. As ‘observacdes de Herdt® sobre a “evolugao” dos meninos em dire- do & masculinidade entre os Sam- bia da Nova Guiné vao neste sen- tido. Durante os dois primeiros anos de vida, meninos e meninas vivem exclusivamente com suas mies, até que progressivamente 0 pai aparece no universo da crian- ca. A primeira etapa do longo per- curso inicidtico do menino, que culminara com a aquisicio da masculinidade, comeca em torno dos sete anos de idade, através de um ato concreto de separacio. A certa altura, de maneira radical e abrupta, 0 menino € separado - por vezes literalmente arrancado - da mac e, sob a presstio de seve- ras sangdes, impedido de dirigi Ihe a palavra, de tocé-la e até mes mo de olhd-la: € por este e outros feito através de rituais de felagio precisos, rigidamente controlados pelas leis do incesto. Tais rituais constituem verdadeiros segredos, ¢ devem imperativamente ser es- condidos das mulheres ¢ das crian- gas. Os rituais de iniciagao-aqui- sicao da masculinidade, que se pra- ticam entre os dez e os quinze anos, silo divididos em varias etapas até que, no inicio da idade adulta, aquele que recebia o esperma se torne por sua vez doador. Quanto A\dquirir a masculinidade implica © tisco de perdé-la. Para que isto no aconteca, intimeros tabus e rituais sio observados. expedientes que 0s rituais - ¢ isto vale para toda e qualquer cultura - realizam aquilo que os pais nao conseguem, ou nao podem, fazer. Para os Sambia, 0 modelo masculino identificatério € 0 do guerreiro capaz de matar, ea mas- culinidade, que nada tem a ver com a possessio do pénis, nao é natural muito menos inata: nao se acredita, que 0s individuos do sexo ‘masculino possuam os mecanismos end6genos necessarios para a pro- dugao de esperma, 0 que consti- tui, para os Sambia, a base mesma do desenvolvimento masculino. Os meninos devem entio, para torna se homens, ingerir esperma. Isto é meninas, por possuirem os 6 ios capazes de produzir o sangue menstrual, a “aquisicao” da femini- lidade € tida pelos Sambia como um processo continuo que come- ca no nascimento e se completa na matemidade, sem que isto coloque maiores problemas. Tudo que a meninas tém a fazer € passar al- guns dias num universo feminino €, mais tarde, frequentara familia de seus futuros sogros. “Adquirir” a masculinidade implica o risco de perdé-la. Para que isto nao aconteca, intimeros iis € tabus - por exemplo, no tocar as excrecoes da mulher, res- peitar os espacos exclusivamente 35 femininos, ete. - sao observados. Os contatos com as mulheres sao a tal ponto temidos (justamente pelo medo de perder a masculini- dade) que a simples possibilida- de deles provoca verdadeiras cri- ¥es de panico. ‘A sociedade Semai, na Maldsia Central apresenta caracteristicas diametralmente opostas. Embora 0s estudos de R. Dentan® sobre esta sociedade merecessem ser longa- mente mencionados, para nossos propdsitos nos ateremos somente a dois aspectos: 1- a sociedade Semai cultiva qualidades ndo-competitivas, e a agressividade € considerada coisa intolerivel;, 2.- 08 Semai nao fazem nenhu- ‘ma press2o para que os meninos se tornem mais duros que as meninas. A partir destes dados, a ques- tao da “natureza” da masculinida- de nio mais se coloca; e saber quem é mais viril, o guerreiro Sam- bia ou o homem Semai, nao faz nenhum sentido, Da mesma forma ‘0s recalcamentos que cada um des- tes sujeitos serao obrigados a fazer devem ser compreendidos a partir dos suportes simbélicos do mascu- lino e do feminino préprios a cada sociedad, Na Grécia antiga, encontramos rituais de “aquisic&o” da masculini- dade pelos quais esta tiltima é trans- mitida corpo-a-corpo. Sob a forma de pedagogia, verdade © sexo se vuniam a fim de transmitir um “saber ptecioso”: 0 sexo servia de suporte iniciético a0 conhecimento. Entre- tanto, esta pedagogia s6 se aplica- va aos meninos, que deviam, quan- do © momento chegava, tomar-se cidadios: nada de similar existia para as meninas.** Em nossos dias, os “rituais” reservados pelo exército aos re- crutas nada deixam a desejar aos antigos rituais iniciéticos quando a dureza e a crueldade da disci- plina imposta. Isto & particular- mente yerdadeiro nos Marines americanos, entre os quais, para se TEXTOS © fantasma de nao aleangar a posi¢ao masculina é constante: ndo por acaso sao necessdrias tantas experiéncias para salvaguarda-la do perigo de contaminacao pela feminilidade. ter acesso ao grupo dos homens, dos “verdadeitos’, € necessario despo- jar-se de toda contaminagao femini- na, A “filosofia” dos Marines é sufi- cientemente clara: “Para se criar um grupo de homens, mate a mulher que esté neles.”"” A tudo isto, mui- tos outros dados pocem ser acres- centados - 0 modo como desde 0 infcio da vida meninos ¢ meninas sio tratados de maneira diferente e as conseqiiéncias daf oriundas bora nao se possa negar as mudan- cas evidentes que se vem operando na sociedade contemporinea no que diz respeito as relagdes mascu- Jino/feminino. Masculinidade: uma constante construgao trajeto que leva o menino da posico masculina 1 masculiniclade - resultado de um longo percurso que se constréi em um espago politico € social, através de diversos rituais € provas de iniciagio - é extremamen- te complexo, € 0 fantasma de nao a aleangar é uma presenga constante. Por esta razdo, é fragil e constante- ‘mente ameacada: tem de se “forcar”, de alguma forma, seu desenvolvi- mento, sob pena de que ela nio se manifeste.™ Nao € por acaso que tantos tabus, proibicoes e ex- pedientes sao necessarios para sal- vaguardar a masculinidade do pe- rigo de contaminagao pela femi- nilidade. A relagao do sujeito com seu proprio pai, ou com aquele que as- sume este papel, sera decisiva para o modo como ele tera acesso As tepresentagdes simbélicas do masculino: a identificacio ao pai nos «4 a chave para a compreen- sido da masculinidade. E no encon- tro com o pai, seja qual for 0 re- gistro em que este se encontre - através dos avatares dos proces- sos identificat6rios do filho, dos investimentos do pai em relacao ao filho, das particularidades do sistema social no qual o sujeito se encontra inserido - que se deve procurar compreender a aquisicao da masculinidade bem como suas diferengas ‘qualitativas’ A construcao da masculinidade €um trabalho constante e a presen- ga do pénis - central na formacao imagindria do Bu e determinante para 0 trajeto identificatorio assim como para a construcio dos ideais - nao constitui nenhuma garantia tangivel contra o fantasma cle cas- tragao. 36 22, NoTAS Fred, Tre ono in. §. Ria de Janeiro, Tiago voli ps 13 E.0, Wilson, Soda: The New Sybase ‘ard Unvesty Pres, 197, On Human Nate, Harvard University Press, 1978 “T-kinson "le nitonalne fein, n Nl ‘uastone fmt 13, 1984 Solr, kechercbe stents sexuelle, a fi, Gallimard, 1976 Para una dicussto das {esas de Staller, vero intereseantc trabalho de ‘A-Oppenheimer, Le cots di sexe, Pas, PUP, 180) Freud, “Femintidade”, E58, vol 20, p12 15,8 Freud, “A pscogtnese de aso de ho rmossenlini uma tlhe 28.90) XVM Freud expoe «diicukide de se encontrar um Sige saat par “msc” e-Feni no" nur eens ot Ge od acest em 1915 208 rs ensaie(op. ck, p28) bean mums out na de oped ms ong, {Gp Vl de"O mater cago” ESB, ol 201, p.126 es) SFeud,"Aonpningto genta nfl ESB, vo XIX p. 180 SFr, "Novos cements sobre a neuropsio- feride dasa" ESB, vol 11,9194 PR Coccrll "Le easel ie 0 tremare, Tepigue, 55,1994 Si Freud, "Fomine" oy p15, Exe pio ¢ amplaents dace por Lacan em su serine nds indo, As forages so 5S Freud, Tov eT, £5.18, vo XI, p. 176 S Feud, Uns New demonine dso XVI, ESB, vol XIK pL 5. 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