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de Lopes

FUNDAMENTOS DA REGULAÇÃO

lffiffir
EDITORA
PROCESSO
Rio de Janeiro
2018
Editora Processo
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Mauricio Moreira Menezes
Melhim Namem Chalhub
Ricardo Calderón
Sergio Campinho

Capa: Sheila Neves Editoração Eletrônica: Deoclécio Serafim

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

LOPES, Othon de Azevedo.


L342f Fundamentos da regulação / Othon de Azevedo Lopes - Rio de Janeiro:
Processo, 2018.
345p. ; 23cm.

ISBN 978-85-93741-16-6

1. Fundamentos da Regulação. 2. Brasil. 3.Título

À minha mãe.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JlJ~hIÇA ~ "
BIBLIOTECA M. OSCAR sAlUt't\91 a eprodução (Lei 9.610/98) ~§(, À Raquel, a Pedro e a Francisco.
I presso no Brasil (
inted in Brazil \
que a atuação do poder administrativo-burocrático possa corres-
ponder e se coadunar com a dinâmica própria do sistema econômi- Capitulo 5
co, que exige contínuo crescimento de longo prazo.
As principais características, válidas também para o caso brasi-
desafios regulação nos marcos
leiro, com vistas a ampliar legitimidade das agências; são: a) deci- Estado Democrático de Direito
são por órgãos colegiados deliberativos formados por
com mandato fixo e não coincidentes; b) independência órgáo
regulador, inclusive com autonomia financeira e com delegação de
funções da Administração direta, configurando-se como autarquias
; c amp l'laça0
. . 390)
eSpeCIaIS - d o po d er regu1a d or, com o acúmulo- de
5.1. A regulação e a técnica
funções administrativas e de índole jurisdicional; d) criação de de-
veres especiais de prestação de contas e responsabilização que se o conceito de racionalidade foi introduzido por Max Weber
apresentam na publicidade das decisões da agência, na prestação
para explicar o capitalismo, o direito privado burguês e a domina-
de contas aos poderes Executivo e Legislativo e na participação de ção burocrática393 . Trata-se da ação racional dirigida a fins, com a
usuários, consumidores e investidores na elaboração de normas do seleção dos meios e a escolha de alternativas. A racionalização pro-
setor391 ; e) possibilidade de revisão de suas decisões pelo Judiciá- gressiva da sociedade, marcada pela ampliação das esferas sociais
rio; f) pluralidade de sua composição e dos seus órgãos deliberati-
submetidas à decisão racional e pela industrialização do trabalho,
vos; g) indicação de seus ocupantes por um ato político complexo depende da institucionalização do progresso científico e técnic0 394 .
pelo Executivo e com a aprovação do Parlamento; h) requisitos de
Subjacente a essa concepção de razão tecnológica está a de do-
formação técnica para investidura em órgãos deliberativos; e) ga-
minação metódica, científica e calculadora, dado que a racionaliza-
rantia contra demissibilidade ad nutum dos ocupantes de cargos
ção das relações sociais, segundo critérios de seleção correta de es-
nos órgãos colegiados deliberativos.
tratégias, de adequação tecnológica e de pertinente instauração de
Há um objetivo muito claro nessa configuração geral das agên-
sistemas sociais equivale à institucionalização política da domina-
cias reguladoras: fracionar competências antes atribuídas ao Exe-
cutivo e ao Legislativo e criar um âmbito de neutralização em rela- ção. Tanto é assim que determinados fins e interesses não são ou-
ção ao processo político-democrático com base no sufrágio. É, de torgados posteriormente à técnica, inserindo-se na construção do
certa forma, um insulamento burocrático pautado por uma racio- aparato técnico e projetando os interesses dominantes da própria
nalidade instrumental. Há, assim, uma regulação técnica dos me r- sociedade.
ca d os 392 ,com a es t ab'l' - d os marcos regu Iatorios
I lzaçao / que garantam Aliás, no capitalismo avançado, a dominação desloca seu cará-
os contratos e a distribuição de propriedade, vinculados aos inves- ter explorador e opressor, tornando-se racional. A legitimação des-
timentos efetivados no setor por entidades privadas, funcionando sa dominação assume um novo caráter com a crescente produtivi-
tais órgãos até mesmo como mecanismo contramajoritário de defe- dade e o controle da natureza, que proporcionam aos indivíduos
sa dos mercados. uma vida mais confortável.
A sociedade racionalizada se apresenta como uma organização
tecnicamente necessária. A racionalidade não é apenas uma crítica
390 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Agências reguladoras. Barueri: Manole, 2003,
p.95.
39~ MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Agências reguladoras e democracia. In: SALO- 393 WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbo-
MAO FILHO, Calixto. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros 2002 p. sa. V. 2. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 187 e sego
183. ' , 394 HABERMAS, JÜrgen. Técnica e ciência como 'ideologia'. Lisboa, Edições 70,
392 Idem. Ibidem, p. 191. 2001, p. 45.

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Por este meio, as formas tradicionais sujeitam-se cada vez mais às
à legitimação vigente, mas sim a própria legitimação. O poder polí-
condições de racionalidade instrumental ou estratégica: a organização
tico busca legitimidade pela adoção racional da anco- do trabalho e do tráfico econômico, a rede de transportes, de notícias
rando-se em soluções técnicas e na própria burocracia. e da comunicação, as instituições do direito privado e, partindo da
Nessa ordem de ideias, a ciência moderna e seu desdobramen- Administração das finanças, a burocracia estatal. Ele apodera-se,
to em tecnologia trazem consigo a dominação pela pouco a pouco! todas as esferas vitais: da defesa, do sistema esco-
ra de escolha dos indivíduos e pela ampliação lar, da . e _até da família; impõe tanto na cidade como no campo
poder político. É a natureza, entendida e uma urbamzaçao da forma de vida [ ... ]
que possibilita produtivistamente a melhoria das condições de vida
dos indivíduos, submetendo-os aos imperativos sistêmicos, em que A par dessa pressão por racionalização, que vem a partir de bai-
se destacam quatro impulsos de autoritarismo: 1) a fragmentação xo, há uma coação que vem a partir de cima, com a substituição das
de racionalidades sociais, como desenvolvimento de lógicas indios- legitimações tradicionais de dominação pela pretensão de veracida-
sincráticas de âmbitos parciais da sociedade, que não raro entram de das ciências modernas.
em conflito; 2) dominância do cálculo instrumental; 3) substitui- O último quarto do século XIX viu surgirem duas novas ten-
ção da coordenação informal por organização burocrática; 4) orga- dências evolutivas 398 : 1a) um incremento na atividade intervencio-
a
nização formal da ação, com ampla orientação reguladora do indi- n~sta ~o ~stado e 2 ) uma crescente interdependência da investiga-
çao tecmca, colocando as ciências como primeira força produtiva.
vídu0 39s . Essas tendências solapam o marco institucional típico de Estado Li-
O capitalismo, que se baseia num crescimento contínuo e de
beral.
longo prazo, institucionaliza a inovação, garantindo uma "extensão
396 O capitalismo não poderia estar abandonado a si mesmo ca-
permanente dos subsistemas da ação racional teleológica" , colo-
be.ndo ao Estado intervir e regular a longo prazo o processo ec~nô­
cando em xeque a legitimação tradicional. No capitalismo, a legiti-
m1CO e seu simbiótico vínculo com a produção tecnológico-cientí-
mação surge da base do trabalho social, inserindo-se a força de tra-
fica. A atividade estatal visa ao crescimento econômico assumindo
balho como mercadoria, com a promessa de equivalência nas rela-
a.política um caráter negativo, já que as instituições públicas são re-
ções de troca. A dominação se justifica não mais com mito ou reli-
gIdas crescentemente por uma orientação tecnológica e burocráti-
giões, mas com relações legítimas de produção. "O marco institu- ca, que objetiva principalmente prevenir riscos que possam amea-
cional da sociedade é só mediatamente político e imediatamente çar os sistemas sociais, especialmente o econômico.
econômico 397 .
11
A política não mais trata de problemas práticos da moral e da
A racionalização da sociedade ocorre a partir de baixo, com a ética, mas de questões técnicas que excluem a participação da
formação de mercados de bens e de trabalho, de um lado, e de ou- grande massa da população. A discussão é deslocada para aparatos
tro, com a empresa capitalista, promovendo em conjunto uma ex- burocráticos, tais como as agências reguladoras.
pansão horizontal dos subsistemas de ação racional teleológica. Outra marca do capitalismo é a cientificação da técnica. Nesse
Como acentua Habermas: ~~do de produção sempre houve pressão para intensificar a produ-
tIv1dade do trabalho com novas técnicas. Com a pesquisa industrial
de ponta, a ciência, a técnica e a revalorização do capital confluem
395 SCUILLl, David. The criticaI potential of the common Iaw tradition: theory of
p~ra um único sistema. A própria evolução do sistema social parece
societal constitutionalism: foundations of a non-marxist cirtical theory. In: Columbia
ditada pelo progresso técnico-científico.
Law Review 94,1994, p. 1.076/1.123.
396 HABERMAS, JÜrgen. Técnica e ciência como 'ideologia'. Lisboa, Edições 70,
2001, p. 64.
398 Idem. Ibidem, p. 68.
397 Idem. Ibidem, p. 65.
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A formação da vontade democrática não mais se refere a ques- ofuscação que sugere falsamente a realização de interesses. Por outro
tões práticas de moral e ética, mas instrumentais e estratégicas, lado, a ideologia de fundo, um tanto vítrea, hoje dominante, que faz
tornando as eleições em decisões plebiscitárias sobre diferentes da ciência um feitiço, é mais irresistível e de maior alcance do que as
equipes de administradores. "Em igual medida, a autocompreen- ideologias de tipo antigo, já que com a dissimulação das questões não
são culturalmente determinada de um mundo social da vida é subs- só justifica ô interesse parcial de dominação de uma determinada
tituída pela autocoisificação dos homens sob catego~ias classe e a necessidade parcial de emancipação por parte de
cional dirigida e do comportamento adaptativo"399. E nesse outra classe, mas também afeta o interesse emancipador como tal do
que se justificam as agências reguladoras compostas, em suas ins- gênero humano.
tâncias superiores, por técnicos com mandatos. _
Nessa linha, o homem não se concebe apenas como homo jaber, Na consciência tecnocrática sedimentam-se o ideal de neutra-
mas igualmente como homo fabricatus, integrando-se tal qual uma lidade e os modelos coisificados das ciências, que afastam discus-
peça nos sistemas sociais e nos dispositivos técnicos. Isso faz com sões éticas e políticas vazadas em linguagem comum, o que redun-
que a ordem moral e a ação comunicativa linguisticamente articu- da num marco institucior:,al de sistemas autonomizados regidos por
ladas, que pressupõem a interiorização de normas morais, éticas e uma ação instrumental. E a técnica tomando o lugar da práxis. O
jurídicas, sejam dissolvidas por modos cada vez mais amplos de cidadão acaba sendo tratado como mero cliente/consumidor, por
comportamento condicionados por tecnologias de disciplina soc;ial ser i?capaz de debater tecnicamente temas de regulação.
com vistas à produção e à repartição compensatória de bens. E o
E preciso distinguir tipos de racionalizaçã0 4ol : a dos sistemas de
controle por estímulos externos sobrepondo-se socialmente às nor-
ação racional dirigida a fins, em que o progresso científico e o tec-
mas vinculantes. A liberdade subjetiva também se vê cada vez mais
nológico já impeliram a um rearranjo em crescente escala das insti-
restrita pelo avanço de estímulos condicionados que atingem áreas
como comportamento eleitoral, consumo e tempo livre. tuições e de setores da sociedade; e a das interações linguistica-
Como já visto no paradigma Estado de Bem-estar Social, até mente mediadas pela desconstituição das restrições de comunica-
mesmo o conceito de luta de classes sociais perde, nesse cenário, o ção em nível institucional. Justamente nessa última apresenta-se a
seu sentido. No capitalismo estatalmente regulado, o antagonismo possibilidade de uma mais ampla emancipação em discussões pú-
aberto de classes acha-se pacificado. Há uma política de compensa- blicas, sem restrições e sem coações, "sobre a adequação e a desi-
ções que assegura a lealdade das massas dependentes do trabalho. derabilidade dos princípios e normas orientadoras da ação''402.
A oposição de classes não é anulada, mas fica latente com um inte- Informações científico-naturais só podem entrar no mundo da
resse comum na manutenção da fachada distributivo-compensado- vida como saber tecnológico, estratégico e instrumental, revelan-
ra, passando os conflitos para áreas subprivilegiadas que afetam do-se principalmente por produtos e prestações, e não por uma lin-
parcelas da população que não podem ser classificadas como clas- guagem natural de intelecção universalizável. Isso põe a questão de
ses sociais. como se pode dar essa tradução, controlando-a numa discussão ra-
O progresso técnico-científico, como primeira força produtiva, cional em termos de ação comunicativa e discursos sociais emanci-
torna-se o fundamento de legitimação. Nas palavras de Haber- padores partilháveis por cidadãos.
mas 400 : Noutro giro, não se pode deixar de perceber que o sistema de
trabalho das sociedades industriais e os processos de investigação
A consciência tecnocrática é, por um lado, 'menos ideológica' do que científica levam em conta sua transformação técnica e sua utilidade
todas as ideologias precedentes, pois não tem o poder opaco de uma econômica. Os métodos científicos revolucionaram os processos

399 Idem. Ibidem, p. 74. 401 Idem. Ibidem, p. 88.


400 Idem. Ibidem, p. 80. 402 Idem. Ibidem.

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de produção. "A ciência vincula-se com a produção e a Administra- cionários com formação técnico-científica e o volume de pesquisas
ção''403. Até mesmo a sociedade acabou por ser cien- geradas tarefas são provas disso.
tifização. As ciências, com o poder de disposição que lhes é ineren- Desde o começo do Estado Moderno, oriundo do tráfico mer-
te, transformam-se em poder técnico. A técnica, por sua vez, tam- cantil das economias territoriais e nacionais em formação e da ne-
bém pode ser entendida como referência à ciência e à sua LC!-IJCVI-r cessidade de uma Administração Central, houve necessidade de
dade de rendimento econômico, isto é, como recrutamento funcionários com formação jurídica. Eles tinham,
camente racionalizada sobre processos assim como os militares, um saber técnico mais próximo da arte do
Já a democracia consiste precipuamente em "formas institucio- que da ciência. Foi só na segunda metade do século XX que se atin-
nalmente garantidas de uma comunicação geral e pública que se giu uma nova fase da racionalização, em que "os burocratas, os mi-
ocupa das questões práticas: de como os homens querem e podem litares e os políticos orientaram-se, no exercício de suas funções
conviver sob as condições objetivas de uma capacidade de disposi- públicas, segundo recomendações estritamente científicas''407.
ção ampliada"40s. Max Weber 408 definiu claramente a relação entre saber especia-
Sobre a relação entre técnica e democracia, um primeiro ponto lizado e prática política. Os peritos serviam-se do saber técnico,
a ser ressaltado é o de que a burocracia deve ter como referencial dependendo, para a afirmação de uma dominação, da "imposição
de atuação e funcionamento, até mesmo técnico, a construção de interessada de um querer decidido"409. O agir político, a partir des-
uma sociedade livre e emancipada. Em outras palavras, não neces- se ponto de vista, não se fundamenta racionalmente, sendo a deci-
sariamente técnica e democracia convergem. Tampouco é verda- são decorrente de uma ordem de valores e convicções de fé.
deiro que ambas divergem. Formam, em realidade, uma tensão. Esse modelo decisionista pode ser colocado em questão. Num
Por isso, o cerne da relação entre técnica e democracia está segundo nível de racionalização da dominação, estudos sistemáti-
numa tensão entre o saber e o poder técnicos e o saber e o querer cos e a teoria da decisão proporcionam novas técnicas para a prática
práticos sobre questões éticas e morais. Dito de outro modo, entre política com o uso de estratégias calculadas e automatismo na de-
poder e vontade. Habermas explica essa dialética 406 : cisão, parecendo ~revalecer sobre as decisões dos líderes a coação
dos especialistas. E a construção de um modelo tecnocrático.
Essa dialética de poder e vontade realiza-se hoje de modo irrefletido, Há uma inversão de papéis entre políticos e especialistas, tor-
ao serviço de interesses para os quais não se exige nem se faculta uma nando-se os primeiros órgãos executores de técnicas, estratégias de
justificação pública. Só quando conseguíssemos levar a cabo esta dia- otimização e imperativos de controle, oriundas de desdobramentos
lética com consciência política, poderíamos controlar a mediação do de conhecimentos científicos. Eles seriam "como que o tapa-bura-
progresso técnico com a prática da vida sociat mediação essa que, até cos de uma racionalização ainda imperfeita da dominação, em que
agora, se impõe, em termos de história natural. Mas, porque isso é a iniciativa transitaria sempre para a análise científica e a planifica-
um assunto de reflexão, não incumbe apenas à competência dos espe- ção técnica"41O.
cialistas [ ... ] O Estado move-se da simples dominação política para uma in-
serção eficiente das técnicas disponíveis, transformando-se numa
Como ressaltado, nos Estados contemporâneos a cientifização Administração integralmente racional. Ocorre que as debilidades
da política é uma tendência. A composição da burocracia por fun-

407 Idem. Ibidem, p. 108.


403 Idem. Ibidem, p. 99. 408 WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbo-
sa. V. 2. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 529 e sego
404 Idem. Ibidem, p. 101.
409 HABERMAS COpo cit., p. 108).
405 Idem. Ibidem, p.l02.
410 Idem. Ibidem, p. 109.
406 Idem. Ibidem, p. 105.

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desse modelo tecnocrático são evidentes. Em primeiro lugar, es- 412
ca . A comunicação entre especialistas e as instâncias de decisão
quece-se que sob as vestes do conhecimento técnico-cientifico es- política para satisfação das necessidades práticas com as possibi-
tão interesses sociais que nele atuam. Em segundo, esse modelo su- lidades advindas da técnica ocorre no mundo da vida, em que se
põe um contínuo entre questões teóricas e práticas de moral e éti- dão as experiências indiferenciadas. A comunicação especializada
ca, porque nenhum poder de disposição técnico-científico pode fa- deve ganhar sentido num horizonte de tradições e valores pré-cien-
zer desaparecer questionamentos que tratam os tíficos.
valores, isto é, sobre necessidades sociais, situações objetivas Essa comunicação, porém, oferece problemas. Uma tradução
consciência, emancipação etc. adequada entre elas é uma dificuldade para as próprias ciências
Em verdade, com uma distinção entre o controle das recomen- particulares. Que dizer, então, da comunicação com a opinião pú-
dações técnicas por meio de resultados, e no contexto das situa- blica. Fica aí a possibilidade do mau uso ideológico de discussões
ções concretas, uma verificação moral e ética das técnicas poder- científicas que pretendem apoiar-se numa base popular. Tem-se o
se-ia constituir num exame pragmático e numa explicação racional risco de uma conexão em curto-circuito entre perícia técnica e pú-
da relação entre técnica e decisões práticas. blico influenciável por manipulações.
Nesse modelo, no lugar de uma estrita separação entre as fun- Um dos caminhos possíveis para a comunicação entre as instân-
ções do especialista e do político surge uma correlação crítica. Há cias de autoridade e os cientistas são os institutos de pesquisa, ca-
uma comunicação recíproca em que especialistas científicos acon- racterizados como "zona crítica da tradução das questões práticas
selham as instâncias decisórias, e as autoridades encarregam os para problemas que se põem em termos científicos e a retroversão
cientistas conforme necessidades práticas. Surge, então, um con- às informações científicas para respostas às questões práticas"413.
trole sobre o desenvolvimento de novas estratégias, a partir de ne- Isso pode ser mais bem compreendido a partir deste exemplo:
11'
cessidades e sobre os interesses sociais refletidos num sistema de
li! [... ] O grupo de investigação de Heidelberg informa sobre um exem-
11 valores pela comprovação das possibilidades técnicas e dos meios
plo muito instrutivo. O quartel-general da aviação americana apre-
I11
estratégicos para sua satisfação.
senta, através de pessoas preparadas, à seção de programas de um
Delineando três modelos da relação entre saber especializado e grande instituto de investigação, um problema de técnica militar ou
, . so, um d e 1es se re f ere necessanamen
po Ilt1CO, . te 'a d emocraCla
. 411 . O
organizativo delineado só em grandes traçosi o ponto de partida é
modelo decisionista "reduz em última instância o processo de for- uma necessidade vagamente formuladai uma formulação mais rigoro-
mação da vontade democrática a um procedimento regulado por sa do problema só surge no decurso de uma aborrecida comunicação
aclamação a favor das elites." Nesse processo, o aspecto irracional entre os oficiais de formação científica e o diretor do projeto. Com a
da decisão permanece intocado, de modo que a dominação pode identificação e a definição conseguida da posição do problema não se
legitimar-se, mas não se racionalizar. esgota, entretanto, o contatoi quando muito chegam para a conclusão
O modelo tecnocrático, que defende uma política cientificiza- de um acordo pormenorizado. Durante os trabalhos de investigação
da, traz o preço da democracia, tornando-a supérflua e desnecessa- existe, em todos os níveis, desde o presidente até os técnicos, um in-
riamente onerosa. No lugar da vontade popular aparece uma nor- tercâmbio de informação com os correspondentes cargos da institui-
malização supostamente inerente às coisas, que é o resultado da ção que fornece as instruções. A comunicação não deve interromper-
produção científica e do trabalho. se até se ter, em princípio, encontrado a solução do problema, pois só
com a solução em princípio previsível é que o objetivo do projeto fica
No modelo pragmatista, a tradução bem-sucedida das reco-
definitivamente circunscrito.
mendações técnicas para a prática dá-se mediante a opinião públi-

412 Idem. Ibidem, p. 114.


411 Idem. Ibidem, p. 113. 413 Idem. Ibidem, p. 117.

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Está demonstrado como se dá a comunicação entre a práxis e a Não se pode contar com instituições firmes para uma discussão
ciência. Forma-se uma rede, a partir do interesse a Tampouco um sistema de pesquisa em
autoridades, que não se pode romper até que a intenção esteja grande escala baseado na divisão de trabalho e num aparelho buro-
xada em modelos científicos formalizados. A compreensão situa- crático. Embora esses pressupostos não sejam favoráveis, isso não
cionaI está de tal forma vinculada a técnicas, que frequentemente afasta o ideal de "uma sociedade cientificada que só poderia cons-
os projetos de pesquisa são sugeridos aos titmr-se como sociedade emancipada na medida em que a ciência
Num giro de perspectiva, a tradução completa consiste numa e a técnica fossem mediadas pelas cabeças dos homens juntamente
solução tecnicamente adequada da situação problema, sendo leva- com a prática vital"416.
da à consciência e se retraduzindo para a situação histórica global É dentro desse cenário de mediação entre economia, ciência,
num contexto concreto de ação como questão prática de moral e técnica, ética, moral e democracia que se situa a questão aqui abor-
ética. dada. Os princípios jurídicos, vazados em linguagem natural e com
Não se pode deixar de destacar que essa tradução está institu- conteúdos de moral política, fornecem um loeus privilegiado para
cionalizada. No nível dos governos, constituem-se burocracias para o encontro entre saberes técnicos e científicos com saberes não es-
controlar o desenvolvimento da pesquisa científica. Têm-se aí lo- pecializados, possibilitando por procedimentos jurídicos a instau-
cais privilegiados para o desenvolvimento de uma dialética entre o ração de questionamentos e inquirições dirigidas aos especialistas
querer esclarecido e o poder autoconsciente. Então, "só na medida para justificar de forma universalizável, de acordo com valores de-
em que, apoiados no conhecimento do poder técnico, orientamos mocráticos, a normalização que propõem à sociedade. Guiados
nossa vontade historicamente determinada segundo a situação pela espinha dorsal principiológica, tanto institutos de pesquisa
dada, também podemos saber, inversamente, que ampliação que- como instituições democráticas podem valer-se desse canal para
/ . e em que d'lreçao.
remos, no f uturo, d o nosso sab er tecmco - "414
discussões éticas e morais, absorvendo os saberes técnico e cientÍ-
O processo de tradução entre a ciência e a p~lítica deveria fico como sugestões de possibilidades traduzíveis para a opinião
acontecer em última instância na opinião pública. E no horizonte pública e, por isso, submetidas a um debate legitimador.
dos cidadãos que falam entre si que surge a vontade política ilustra-
da pela razão. Há dois passos seguintes: "uma análise sociológica
desta autocompreensão, a partir da conexão dos interesses sociais, 5.2. A concentração econômica e a decisão democrática
por um lado, e da certificação das técnicas e estratégias disponí-
veis, por outro"41S. Essas etapas vão além da esfera dialogal dos ci- A essência do capitalismo de mercado é que os agentes indivi-
dadãos. Todavia, o resultado da vontade política ilustrada só pode duais possam tomar as próprias decisões. Em todas as economias
ganhar sentido na esfera pública de consciência dos próprios atores de mercado, o governo apresenta-se como ator relevante, definin-
políticos. do, entre outras coisas, tributos, investimentos públicos e a dispo-
Um fator que dificulta essa tomada de consciência na esfera nibilidade monetária. Nesses casos, as decisões governamentais
pública é que as informações científicas não mais se dirigem para têm influência sobre o comportamento dos agentes de mercado,
um público em que se possibilita uma discussão aberta, mas sim a mas não são uma limitação direta que impõe condições precisas de
um cliente que tem interesse específico na pesquisa e em seu des- escolha.
dobramento técnico. No papel de regulador, a marca da atuação estatal é procurar
interferir diretamente sobre a tomada de decisão dos agentes de

414 Idem. Ibidem, p. 121.


415 Idem. Ibidem, p. 122. 416 Idem. Ibidem, p. 127.

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mercado, valendo-se de seu poder coercitivo. A regulação econô- último setor derivava de investimentos públicos, como nas indús-
mica dirá respeito à formação de preços e à entrada e à trias de armamentos e espacial, com a formação de monopólios, em
mercados 417 . Num mercado regulado, a performance de eficiência atividades de capital e tecnologia intensivos. Nesses dois últimos
alo cativa e produtiva não é determinada apenas por forças de mer- setores, a regulação se mostra mais presente.
cado, mas também por pautas governamentais. Em outras palavras, Com efeito, o aparelho do Estado exerce várias funções dentro
há uma inevitável dinâmica econômica privada, do sistema econômico. A partir de duas perspectivas, podem ser
objeto de controle absoluto, ao lado de parâmetros ordenadas: a) pelo planejamento global com regulação do ciclo eco-
O capitalismo regulado pelo Estado refere-se aos processos de nômico como um todo e b) por criar condições para uma melhor
concentração econômica e à intervenção do Estado quando surge utilização do capital acumulado.
um hiato funcional. O espraiamento de estruturas oligopolistas sig- Os controles fiscal, financeiro, de conjuntura e as medidas pon-
nifica a derrocada do capitalismo competitivo. Em igual sentido, tuais destinadas a "regular investimentos e demandas em geral
ocorre o fim dessa espécie de capitalismo com a suplementação e a (créditos, garantias de preço, subsídios, empréstimos, redistribui-
parcial substituição do livre mercado pela intervenção estatal, em ção secundária de renda, contratos governamentais guiados pelas
111 1
determinados setores econômicos, pela regulação. Duas caracterís- políticas conjuntural, política indireta de mercado de trabalho
ticas marcam as economias dos países de capitalismo regulado pelo etc.)"419 são reações e estratégias num conjunto de metas que deve
Estado: a) processos de concentração econômica que redundam no visar globalmente à competição, ao crescimento permanente, à es-
surgimento de empresas nacionais e transnacionais com a organiza- tabilidade da moeda e ao equilíbrio do balanço de pagamentos.
ção de mercados para bens, capitais e trabalho e b) intervenção do Procurando tornar eficiente a utilização de capital, o Estado age
Estado no mercado quando se verifica falha ou fator de desestabi- desta forma 42o :
lização.
Assim como o alargamento das estruturas oligopolistas significa Enquanto o planejamento global manipula as condições de limite das
o fim do capitalismo competitivo 418 , a intervenção do Estado marca decisões feitas pela empresa privada, a fim de corrigir o mecanismo
o fim do capitalismo liberal. Todavia, o planejamento estatal não é de mercado e em relação aos efeitos disfuncionais secundários do
capaz de alterar diretamente o objetivo precípuo das empresas, mercado, o Estado de fato substitui o mecanismo de mercado, sem-
que é auferir lucros. Por isso, só secundariamente as empresas po- pre quando crie e melhore as condições para realização do capital:
dem perfilar-se aos programas públicos de regulação. através do fortalecimento da capacidade competitiva da nação, ao or-
Descrevendo o capitalismo avançado, na década de 60 vários ganizar blocos econômicos supranacionais, assegurando-lhes estratifi-
autores, tomando os Estados Unidos como exemplo, desenvolve- cação internacional, por meios imperialistas etc.; através da condução
de acordo com a política estrutural, do fluxo de capital rumo a seto-
ram um modelo trissetorial. O primeiro era um subsetor privado,
res negligenciados por um mercado autônomo; através da melhoria
em que a produção privada se orientava por um mercado competi-
da infraestrutura material (transporte, educação, saúde, recreação,
tivo, em geral formado por indústrias de trabalho intensivo. O se- planejamento urbano e regional, construção imobiliária etc.); através
gundo era um subsetor privado dominado por estratégias mercado- da melhoria da infraestrutura imaterial (promoção geral das ciências,
lógicas de oligopólios predominantemente de capital intensivo. O investimentos e pesquisa e desenvolvimento, estabelecimento de pa-
tentes etc.); através da elevação da produtividade do trabalho huma-
no (sistema geral de educação, escolas vocacionais, programas para
417 VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M. Econo- treinamento e reeducação etc.); através do alívio de custos sociais e
mics of regulation and antitrust. 4a ed. Boston: Massachusetts Institute ofTechnology,
2005, p. 357.
418 HABERMAS, JÜrgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janei- 419 Idem. Ibidem, p. 49.
ro: Tempo Brasileiro, p. 48. 420 Idem. Ibidem, p. 50.

220
221
materiais resultantes da produção privada (compensação de desem- É um processo que difunde lealdade, mas minora a participa-
prego, previdência social, reparação de danos ecológicos) o
çãoo Criamo-se e processos que são democráticos na sua
forma, porém, às decisões privadas de investimento corresponde
Com isso, para criar condições de uma melhor utilização do ca- um privatismo cívico, um absenteísmo político acompanhado de
pital, o Estado complementa mecanismos de mercado, uma orientação para o lazer, a carreira e o consumo oO acoplamen-
medidas como organização de blocos to do sistema político-burocrático à capacidade de produção dos
condução de fluxo de capital para mercados lne- entes regulados estabelece recompensas no âmbito do lazer, do di-
lhora de infraestrutura material e imaterial, elevação da produtivi- nheiro e da segurança, o que deixa muito clara a colonização e o se-
dade do trabalho humano (sistema geral educacional), alívio de questro dos laços de cidadania por relações precipuamente econô-
custos sociais da produção privada (previdência, seguridade, assis- micas orientadas especialmente para a produção e o consumo, com
tência social etc) o o consequente esmaecimento dos outros âmbitos de vivência so-
O Estado não mais se restringe à manutenção da ordem, mas se ciaL A tomada de decisões se desloca para estruturas burocráticas
encontra engajado na tarefa de regulação da economia com vistas a e empresariais o
," 1 ,
melhorar a utilização do capital e o planejamento global da econo-
mia0 Isso exige legitimação oAlém dos processos democráticos, há
a formação de "divisões administrativas a serem feitas largamente, 5.3. A perplexidade da regulação no Estado Democrático de
42
independentemente de motivações específicas dos cidadãos" 10 Direito
Essa forma de atuação do Estado permite-lhe coordenar um pro-
cesso de produção e distribuição de bens e serviços com alto poten- 5.3.1. A crise do Estado de Direito
cial agregador pela sua recepção pelos cidadãos, reduzidos principal-
mente ao papel de clientes da burocracia estatal e consumidores de O ponto central da crise no Estado de Direito, no âmbito de Es-
prestações e serviçoso Não só o Estado os fornece, mas principal- tado de Bem-estar Social e no Estado Regulador, está na decres-
mente os agentes regulados, a partir de critérios fixados dentro da
cente eficácia da lei parlamentar, com risco de supressão da divisão
máquina burocrática422 com vistas à manutenção da prestação de
de poderes, dentro de um Estado, submetido a tarefas contínuas e
utilidades e à estabilização do mercado num equilíbrio econômico
crescentes oA Administração clássica, no Estado de Direito, só ti-
de alto nível, ou seja, com constante crescimento oO resultado é um
nha necessidade de intervir quando as garantias e a ordem consti-
sistema econômico cada vez mais complexo e concentrado o
tucional estabelecida apresentavam-se ameaçadas, atendendo as
necessidades de uma sociedade referenciada num mercado autor-
421 POSNER (Opo cito, po 51)0 regulado oPara isso valia-se da lei geral e abstrata, estabelecendo ti-
422 Neste trecho de SUSTEIN confirma-se essa ideia (SUSTEIN, Cass Ro After the pos, articulados a conceitos jurídicos, aos quais se vinculavam con-
rights revolutions - reconceiving the Regulatory Stateo Cambridge: Harvard Univer~ity sequências jurídicas unívocas e determinadas 423 o O sentido da or-
Press, 1993, po 29): Além disso, na década de 60 e 70, o Congresso abandonou a fe do
dem era proteger a liberdade com o aparato estatal, especialmente
New Deal na autonomia administrativao A burocracia era o problema, não a soluçãoo
O Congresso muitas vezes se recusou, por exemplo, em fornecer cheques em branco do a da economia liberal. A configuração administrativa limitava-se a
New Deal para as agências reguladoras, permitindo-lhes para evitar "o comportamen- uma intervenção reativa, disjuntiva e pontual.
to ou agir" razoável no "interesse público "o A experiência tinha mostrado que a auto-
n;mia administrativa suscitava riscos de representação de autointeresse e facciosismo
que a moldura original originalmente buscava preveniro Como veremos, o resultado das
423 HABERMAS, Jürgeno Factidad y Validezo Trado Manuel Jiménez Redondoo Ma-
delegações abertas têm sido frequentemente mal direcionados regulamentos, bem como
dri: Editorial Trotta, 3 a edo, 200l, po 5160
falta ou excesso de regulamentação o

223
222
Ocorre que, no momento em que o legislador passou a recor- erigiu-se uma Administração ainda mais expansiva, em face da
rer à Administração para cumprir tarefas de planificação, con~ frouxidão E imprecisão dos seus parâmetros formais de controle.
figuração e de regulação e controle políticos, a lei em suas formas A dilatação do horizonte temporal, resultante da dinamicidade
clássicas revelou a sua insuficiência, dando espaço a uma orga- da economia} da ciência, com seu desdobramento tecnológico, in-
nização burocrática inquisitorial, ativa, instrumentalizadora, prag- clusive com o surgimento de riscos transgeracionais, exige árdua e
mática e sobretudo invasiva para satisfazer as constante capacidade analítica e de prognóstico dos experts. De
clientela. Surgiu uma organização provedora e fomentadora igual modo, a complexificação da sociedade potencializa o âmbito
fornecer infraestrutura} serviços} utilidades e planejadora da ges- de produção de riscos em todos sistemas sociais. Essa configuração
tão e evitação dos riscos} a quem cabia, ainda, a regulação e con- leva à inscrição de âmbitos de regulação e controle, apoiados no sa-
trole dos campos mais diversos da sociedade. O grau de comple- ber tecnológico} dentro do aparato administrativo na tentativa de
xidade e variabilidade de sua atividade passaram a impedir uma acompanhar a velocidade das mutações sociais e os âmbitos de sua
predeterminação normativa conclusiva} tornando restrita a produção.
aplicabilidade dos programas condicionais} "se ... } então} ... "} dos A rapidez e a intensidade da demanda produzida pelos sistemas
tipos normativos veiculados por lei. As formas jurídicas acabaram sociais e também pelas grandes corporações impõem uma configu-
por acolher leis-medidas} lei-diretoras} sem exatidão dos resulta- ração de regulação que só é possível no contínuo acompanhamento
dos visados e sem consequências} com penetração na linguagem e adaptação} como um navio que é obrigado a reformar-se em cur-
do legislador de remissões indeterminadas} semelhantes a cartas so. O resultado é a marginalização do legislador} em face do demo-
brancas e consistentes em cláusulas gerais e conceitos jurídicos in- rado tempo de maturação dos acordos gerais produzidos em ter-
determinados 424 . mos de legitimação democrática e também da variabilidade das ati-
N esse contexto} a demanda por eficácia na distribuição de di- vidades especializadas} infensa à generalidade inerente à atividade
llii', reitos sociais compeliu a que a Administração fosse obrigada a as- legislativa.
III! sumir funções dos outros dois poderes} seja para legislar} seja para O aumento de complexidade das atividades do Estado compor-
julgar casos em que se exigia pronta e eficiente intervenção estatal. ta a delimitação temporal de tarefas: no Estado Liberal/Estado de
Esse foi o legado do Estado de Bem-estar Social para o Estado De- Direito clássico} a domesticação da soberania estatal absolutista
mocrático de Direito: a desfiguração do esquema clássico da divi- com a manutenção da ordem necessária a uma sociedade burguesa;
são de poderes. no Estado de Bem-estar SociaC as compensações sociais para en-
A dinâmica de contato com um poder político-burocrático hi- frentar situações de pobreza produzidas pela marcha capitalista; no
pertrofiado} com diversos âmbitos de atuação} acabou por frag- Estado Democrático de Direito/Regulador} controle e previsão de
mentar a cidadania} retirando sua capacidade crítica. De igual situações coletivas de risco produzidas pela ciência e seu desdo-
modo} a neutralização da cidadania foi comprada com o preço dos bramento tecnológico e também pela economia. É dizer} uma su-
bens e serviços distribuídos pelo Estado de Bem-estar Social} tor- cessão que passa pela segurança} pelo bem-estar social e atinge a
prevenção.
nando aceitável uma participação pouco efetiva.
No contexto do Estado Liberal de Direito} a positivação do di-
Os efeitos de tal contexto para a divisão de poderes é evidente.
reito encerrava significativa parte das prestações estatais. Já o ce-
Ao lado de um Judiciário impulsionado a aventurar-se em tarefas
nário de Estado de Bem-estar Social e de Estado Regulador} o que
de legislação explícita} com a decorrente sobrecarga legitimatória}
se apresenta é um incessante crescimento de prestações estatais
materializadas em bens equivalentes ao dinheiro e da dependência
424 HABERMAS, JÜrgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Ma- de informações e conhecimento produzidos pelos experts. A de-
dri: Editorial Trotta, 3a ed., 2001, p. 517. pendência da base monetária ampliada e do saber levam ao Estado

224 225
a adaptar-se a um modo cognitivo de atuação que passa a ser um de uma ordem de conhecimentos organizados. É um processamen-
desafio para o modo contrafátic0 425 de estabilização to quase casos a serem decididos.
vas, inerente ao direito.
É, nesse cenário que emerge o ideal de uma Administração efi- 5.3.2. Os texto a
caz que se rege por uma
em que sobressai a preocupação com o É na produzida nos últimos anos qualifi-
belecimento de um poder administrativo encerra- car o paradigma atual Como o do Estado Regulador. Não raramente
do nos seus próprios objetivos. O que se tem é um distanciamento as expressões "Estado de Direito" e principalmente "Estado De-
da administração de critérios de validação normativos como legiti- mocrático de Direito" ficam em segundo plano 4Z7 . Isso assinala um
midade e justiça, mostrando dificuldades em lidar com questões deslocamento das posições e atenções do discurso que cerca a atri-
de razão práticas, vinculadas a padrões de correção morais, éticos e buição de poderes normativos. Sobrepõem-se a capacidade de pro-
jurídicos. As decisões sobre demandas de indivíduos com história dução de normas pelo Estado Com vistas à obtenção de utilidades
própria, única e singular dificilmente são compatíveis com critérios compensatórias, especialmente por meio de entes reguladores, às
de produtivismo burocrático. Essa negação de critérios normativos garantias formais, procedimentais e de legitimação do direito e da
produz um conjunto de decisões, fundadas em priorizações de tal democracia.
ordem desestruturadas e sem critérios adequadamente válidos, em O tema da regulação é marcado por superposições como as re-
que sequer é possível falar-se em objetivaçã0426 , que se dá a partir feridas no parágrafo anterior. O cenário do texto constitucional, no
entanto, não é favorável à crescente e irrefreável produção norma-
tiva por órgãos e autarquias do Executiv0 428 . Num rápido passar de
425 A estabilização contrafática de expectativas é típica do direito, contrastando com
a estabilização cognitiva, que é típica das ciências e da economia. A diferença pode ser olhos pela Constituição Federal, a legalidade e a tripartição de po-
entendida a partir do quadro abaixo (FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao es- deres estreitam os limites de tal fenômeno. O princípio da legali-
tudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 4 a ed., 2003, p. 102 e dade pode ser considerado um sobreprincípio, deixando suas mar-
seg.): cas em todo o texto constitucional, que lhe reserva sítios de positi-
Atitudes Garantia de durabilidade Exemplos Parâmetros
vação inegáveis, como o art. 5°, II, e o art. 37, o que dá lugar à as-
generalização de possibilidades, leis científicas, Que descrevem * Regularidades/ sertiva incessantemente repetida pelos publicistas de que a Admi-
Cognitivas por meio da observação (base. a normalidade/regularidade Normalidades nistração está adstrita à lei 429 .
empírica). Ex: se eu bato em do comportamento e nos per-
adaptáveis alguém, a experiência pode mitem controlar a contingên- * conteúdo
mostrar Que a tendência é de cia dos sistemas sociais (a ci- descritivo 427 Percebe-se principalmente na bibliografia de direito econômico, como em CYRl-
Que a outra pessoa revide. ência como iinstrumento de NO, André Rodrigues. Direito Constitucional Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar,
previsão). 2010, p. 38 e sego
Generalização não adaptativa: Normas: expectativas cuja * Normatividade
428 A alusão à criação de órgãos reguladores pelo art. 21, IX (telecomunicações) e art.
desilusões são admitidas como duração é estabilizada de 177, §2°, III (petróleo, gás e minerais nucleares) e algumas outras referências laterais
Normativas um fato, mas são consideradas modo contrafático, sendo * conteúdo
no texto constitucional mostram-se como argumentos de retórica e de conforto para a
irrelevantes para a expectativa independentes do cumpri- prescritivo admissão do poder normativo de tais entes, que deriva de imperativos dos sistemas
generalizada. Ex: a norma Que mento da ação empiricamente econômico e político. O assunto está desenvolvido no item 2.9.
proíbe o homicídio não deixa esperada
429 É o que se depreende do seguinte trecho elaborado pelo Prof. Tércio Sampaio
de valer mesmo Que várias
Ferraz (FERRAZ, Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz
pessoas a descumpram.
do princípio da eficiência. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O Poder normativo das
agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 276): Se olharmos a questão do
426 Idem. Ibidem, p. 522. ponto de vista da doutrina mais tradicional, haveria de reconhecer-se que, na configu-

226
227
Não só a legalidade põe perplexidades para o espraiamento da de, da isonomia e da intangibilidade das liberdades públicas, ex-
regulação no Executivo. O art. 84, IV} da Constituiç'ão pa·· pandidos em no se assegura a certeza e a segurança do
rece conferir ao Presidente da República competência privativa direito", conforme lições de Geraldo Ataliba 430 , assim como a sub-
para a expedição de decretos e regulamentos para fiel execução de missão à jurisdição.
lei. Como então outras entidades incrustadas no Poder Executivo Nessa ordem de ideias, o povo titulariza a res publica, realizan-
poderiam exercer atividade semelhante? do o apenas a vontade do povo. Quando o povo ou o gover-
Não se pode esquecer do art. 25 do Ato das Disposições no obedecem à lei, aquele está obedecendo a si próprio; e este,
titucionais Transitórias, que revogou expressamente os dispositi- àquele. Nesse paradigma reconhecem-se à lei as características ne-
vos legais que atribuíam a órgãos do Executivo poderes normativos. cessárias de abstração, isonomia, impessoalidade, generalidade e ir-
Tudo isso levanta sérias objeções sobre a competência normativa retroatividade 431 . O caráter de abstração e o de generalidade 43z es-
de agências ou outras entidades do Poder Executivo e torna move- tão de tal forma insculpidos na formação do pensamento jurídico
diço o tema. que se projetam, mesmo que impropriamente, como característica
Todavia, diante da marcha acelerada da economia e saber tec- da norma jurídica433 .
nológico-científico, o direito vê-se impulsionado para novos para- A lei seria, dentro de tal concepção, ato inaugural e primário,
digmas que impõem uma releitura do princípio da legalidade. O com poder único de inovação na ordem jurídica emanada do Poder
Legislativo, "órgão vertical do Estado e titular da representação po-
que ocorre é uma nova conformação da tripartição de poderes, re-
pular por excelência. "434 Além disso, a lei não poderia ser suprida
sultante da crise dos princípios do Estado de Direito.
por nenhuma outra manifestação estatal, judiciária e administrati-
va, o que redundaria na absoluta indelegabilidade de suas funções
5.3.3. O embate entre o Estado Democrático de Direito e a re-
verticais.
gulação

Uma visão clássica dos legados do Estado de Direito para o Es- 430 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
tado Democrático de Direito baseia-se "nos princípios da legalida- 1985, p. 93.
431 Idem. Ibidem, p. 97.
432 É o que se percebe do seguinte trecho (ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato
ração de tipos legais para atos normativos, a Administração está adstrita à Lei. Tanto
social. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 41): A matéria que se estatui é geral, como
que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 25) revogou, no prazo que
a vontade que estatui; eis o ato que eu chamo de lei. Quando digo que o objeto das leis
determina, todos os dispositivos legais que atribuíssem a órgão do Poder Executivo com-
é sempre geral, entendo que a lei considera os vassalos como corpo e as ações como abs-
petência assinalada pela Constituição ao Congresso, especialmente no que tange à
tratas, e nunca um homem como indivíduo nem uma ação particular.
"ação normativa". Assim, por exemplo, embora no passado, à luz da Constituição, fosse
433 Pode-se compreender melhor a observação com as seguintes lições do Prof. Tér-
possível sustentar que a imposição de penas administrativas pudesse resultar de regu-
lamentos, na Constituição vigente trata-se de expressa competência do Congresso (art. cio Ferraz (FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, de-
cisão, dominação. São Paulo: Atlas, 4 a ed., 2003, p. 121 e seg.):A nota de generalidade
48), caput, cc. art. 24, I). Afinal, como observa Celso Bastos (Comentários à Consti-
é um preconceito derivado da concepção de direito do século XIX, que identificou a nor-
tuição do Brasil, Saraiva, vol. 2°, p. 31): 'Quanto aos regulamentos delegados, encon-
ma jurídica com a lei. Ora, a lei contém um tipo de norma. É preciso reconhecer, porém,
tráveis em alguns países, também eles não se amoldam ao nosso direito, porque se trata
que é norma também a sentença do tribunal. [... ]
de transferir competência legislativa, o que só se pode fazer pela única via constitucio-
nalmente aceita, que é a da lei delegada. ' E para expedição de regulamentos o que resta A nota da abstração também resulta de um preconceito do liberalismo do século
é apenas a competência privativa do Presidente da República (regulamento para a fiel XIX. Seria impossível, porém, deixar de considerar, por exemplo, como jurídica, uma
execução de leis, art. 84, IV da CF). Nestes termos, a eventual competência conferida norma que prescrevesse a revogação de determinada outra apenas porque seu conteú-
a órgãos administrativos para elaborar e aprovar seu regimento interno diz antes res- do é concreto. O século XIX, com a noção de abstração, tentava contornar também o
peito ao próprio funcionamento, portanto a regras que disciplinam sua atenção no que mencionado risco de arbítrio.
diz respeito a seus membros e funcionários, não quanto a direitos dos administrados. 434 ATALIBA (Op. cit., p. 97).

228 229
Todos os demais atos normativos, para serem dotados de força porta-se como lei-quadro, fixando apenas limites que, em geral,
inovadora, deveriam ser imediatamente como são e "',"Ul\M

a lei, e essas normas seriam excepcionais e estariam listadas em nu- É precisamente pela dimensão da tarefa de demarcar o âmbito
merus clausus do art. 59 da Constituição Federal. As demais nor- do exercício do poder normativo dos entes reguladores e principal-
mas retirariam sua obrigatoriedade do fato de estarem contidas nos mente sua legitimidade e justificação que se precisa de um instru-
preceitos legais, devendo-lhe manter que mera pertinência procedimental/formal do
no caso dos regulamentos editados pelo princípio da legalidade.
para fiel execução das leis (art. 84, IV, da CF). As normas
trativas obrigariam apenas aos servidores públicos, só tendo efeito 5.3.4. O entre o ea
em relação aos cidadãos se apoiadas em lei 435 . regulatória
Sem dúvida, essa configuração de Estado de Direito se assenta
em nobres pressupostos, embora não se possa deixar de reconhecer
O garantismo esboçado no item anterior com os princípios típi-
que, após o advento do Estado de Bem-estar Social e com a com-
cos de Estado de Direito e Estado Liberal está esgarçado e tem du-
plexificação da sociedade, o Congresso deixou de ser o ator proe-
vidosa capacidade de rendimento nos seus objetivos, porque a so-
minente na edição de normas com poder de inovação na ordem ju-
ciedade complexa constrói âmbitos especializados que demandam
rídica, passando a conviver com uma crescente produção de regras
normalização e regulação constante e permanente, que não pode
por entes situados no Executivo, que quase sempre avançam no po-
ser atendida pelo Poder Legislativo.
der primário de vinculação dos administrados, que deveria ser ex-
clusivo da lei em função da fixação de parâmetros abertos 436 . Em verdade, o apego ao princípio da legalidade vale como de-
Embora constantemente se fale em observância dos limites le- núncia dos riscos e perigos de uma desenfreada atividade regrado-
437
gais , não há como considerar que se trata de uma situação con- ra. A legalidade é um princípio que densifica a preocupação com
fortável de validação normativa. Como Tércio Sampaio Ferraz re- isonomia e liberdade. As incessantemente referidas características
conhece, trata-se de um caso de validação finalística do ato admi- da lei se vinculam a isso.
nistrativo, que será legítimo "desde que alcance os objetivos esta- A generalidade e a impessoalidade se justificam como formas
belecidos em lei de forma proporcional. "438 A lei, nesse caso, com- de garantia de isonomia pela abrangência ampla da incidência da lei
e sua destinação inespecífica, possibilitando que a lei se transforme
em parâmetro de igualdade entre os cidadãos. De igual modo, a
435 Idem. Ibidem, p. 99.
abstração encontra seu fundamento na liberdade, já que comandos
436 Sobre a necessidade de competências regulamentares amplas, assim se manifesta
Egon Moreira (MOREIRA, Egon Bockman. Os limites à competência normativa. In:
vazados numa linguagem distante da concreção permitiriam a ma-
ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Ja- nutenção de um âmbito de escolhas para os cidadãos.
neiro: Forense, 2006, p. 187): O que há de inaugural em nosso ordenamento são com- Por isso, não é apenas a legalidade que está sob ataque. Junto
petências regulamentares amplas e dinâmicas, criadas por lei e por ela limitadas, diri- com ela padecem vários princípios republicanos, dado que a ativi-
gidas à disciplina jurídica de setores econômicos onde há o forte exercício de poder eco-
dade regulatória subverte toda essa preocupação garantista. As nor-
nômico por parte dos respectivos agentes, adicionado de características dinâmicas (tec-
nológicas, econômicas, sociais etc.). Logo, tais competências devem ser simultaneamen- mas editadas por entidades reguladoras põem em cena novas cate-
te mais largas e mais rápidas do que aquela de simples execução dos comandos legais, gorias e características. Não se pode mais falar em generalidade, e
alcançando a origem de novas hipóteses e mandamentos normativos [... l. a impessoalidade e a abstração ganham outro significado.
437 É exemplo LOSS, Giovani. Os limites à competência normativa. In: ARAGÃO,
Alexandre Santos. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Foren-
se, 2006, p. 167. princípio da eficiência. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O Poder normativo das agên-
438 FERRAZ, Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz do cias reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 283.

230 231
As normas oriundas da regulação não são de modo algum gené- rer uma efetiva usurpação desse poder por diversos níveis de auto-
ricas, pois os seus destinatários são pessoas que atuam num merca- ridades e uma dispersão dessa função. Cabe até mesmo falar, no
do específico. Aliás, a especialidade da regulação lê os seus destina- presente caso, de uma microfísica do poder, que principalmente
tários como papéis sociais, tais como o de fornecedor de produtos em razão de seus efeitos deletérios deve ser enfrentada a partir de
e serviços e consumidor de um mercado delimitado. seu potencial efetivo de coerçã0 439 .
Tampouco a impessoalidade e a abstração mantêm abordagem crítica a ser empreendida tem inequivocamente
originário. A impessoalidade significa não mais garantia de isono- caráter sociológico e histórico, tendo como vantagens teóricas, nas
mia, mas uma relação do cliente com a burocracia. A abstração não palavras de Antônio Hespanha, a produção de "um conhecimento
se vincula à liberdade. Muito ao contrário, remete a uma submissão crítico, distanciado e controlado dos mecanismos legislativos, re-
a uma linguagem especializada de conteúdo técnico-científico. duzindo este efeito ideológico que consiste em crer tanto na sua
Aliás, a necessidade de tipificação, com base em linguagem técnica [da lei] predominância como na inevitabilidade desta [da lei] ."440
de vivências que pertencem a uma biografia e a uma forma concre- A irrupção de forças que remetem ao dito Estado Regulador
ta de vida constitui uma coisificação do indivíduo. À concretude evidentemente implica deslocamento do eixo de produção norma-
das necessidades do cidadão sobrepõe-se a necessidade que tem a tiva por parte do Poder Público, passando a atividade legislativa a
concorrer com uma massa de atos administrativos normativos.
Administração de agrupar os casos que lhe são submetidos para
Acompanha essa mudança de ênfase um incremento de risco de
apreciá-los e, então, manifestar-se sobre o fornecimento de servi-
exercício ilegítimo do poder de coerção organizado do Estado. Isso,
ços e utilidades.
sem dúvida, remete a uma análise da regulação como um fenômeno
É uma completa subversão. O problema é que a legalidade, nes-
de instrumentalização do direito, com potencial efeito deletério,
se cenário, está sobrecarregada. Não há como estabelecer filtros de
em razão de seus pressupostos políticos, econômicos e técnicos.
validade das normas regulatórias apenas nos moldes da legalidade
clássica. Metaforicamente seria uma tarefa semelhante a verter um
oceano numa piscina.
5.4. Os poderes normativos das agências reguladoras e seus
Um estudo sobre regulação não pode ignorar essa aporia. Por
riscos
isso, não faz sentido abordar a regulação e a produção de normas
pelo Estado apenas a partir de sua validade jurídica formal. Pouco
Se há algo certo na temática da regulação são dúvidas e temores
contribuiria para o entendimento do tema abordá-lo sob a perspec-
que ela levanta. Nada mais natural, já que sua irrupção resultou da
tiva de pertinência das normas a um sistema jurídico. Ao lado da
criação de fissuras no princípio da legalidade e outras concepções
distribuição constitucional e juridicamente legítima de poderes
inerentes ao Estado de Direito e também ao Estado Democrático
está uma alocação de fato de poderes que inegavelmente tem sérias
de Direito.
consequências jurídicas e não pode ser incorporada ao ordenamen- Isso se explica pelas fortes pressões geradas em torno e dentro
to jurídico apenas a partir de critérios formais e procedimentais, do sistema econômico. Com o advento do Estado de Bem-estar So-
sob pena de evidente déficit de legitimidade e principalmente de cial, o Estado se viu obrigado a efetivar prestações compensatórias
esvaziamento de vários princípios jurídicos basilares do Estado De-
mocrático de Direito.
A efetiva alocação da produção de normas com sentido autôno- 439 Esse é um tema trabalhado por Foucault, como se pode perceber de sua obraMi-
crofísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal,
mo e primário não se mostra clara, já que a fixação de amplos limi-
2004.
tes para a validação do poder normativo dos entes reguladores não 440 HESPANHA, A. M. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In:
garante por si só legitimar a produção administrativa de regras. Ine- HESPANHA, A. M. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação
gavelmente, há um amplo campo de penumbra em que pode ocor- Calouste Gulbenkian, 1993, p. 29.

232 233
para estabilizar os conflitos de classe. Ao Estado como um geren- que impele a reconhecer a regulação (ou regulamentação). De igual
ciador de riscos 441 também se imputou a os mostra-se correto Tércio Ferraz443 ao considerar
tos disfuncionais do mercado. Tudo isso somado ao cuidado de rea- que, no plano dos fatos, a complexidade social e econômica justifi-
lizar as políticas redistributivas de Estado de Bem-estar Social num ca as chamadas delegações legislativas a partir de imperativos téc-
regime de mercado em que suas bases de relações de nicos e especiali~ados, para daí justificá-las por uma mutação cons-
de receitas e de dependência deveriam preservar-se. VUULC.lUd pelo princípio da eficiência. São de todo per-

É esse o contexto que leva à regulação e à sua mais avan- tinentes ao caso brasileiro as observações de García de Enterría e
çada - as entidades administrativas autônomas com o acúmulo das Tomás-Ramón Fernández de que "a complexidade técnica de mui-
funções normativas, executivas e judicantes. Ela é o resultado de
tos desses produtos normativos tampouco faria possível atribuir
uma confluência de imperativos sistêmicos do poder político-buro-
sua aprovação a um Parlamento de composição política, sem hábi-
crático e econômico numa interação extremamente conflituosa e
tos, sem conhecimentos, experiências, arquivos ou capacidade téc-
tensa.
nica"444. O Estado Democrático de Direito cedeu a tais forças, ha-
Diante desse movimento, o direito e suas estruturas, em virtu-
de de sua instrumentalização pelos sistemas referidos, viram-se vendo uma reconfiguração do equilíbrio entre os poderes para per-
obrigados a uma reacomodação. Isso explica as inúmeras perplexi- mitir constitucionalmente a atribuição de poder normativo de ca-
dades que se constroem em torno da regulação e a fluidez da teoria ráter inovador e primário a entes administrativos.
que a cerca, marcada por elementos diretamente incorporados da F orças e pressões externas ao direito oriundas dos referidos sis-
economia e da própria política. Em suma, o direito viu-se e se vê temas resultaram em inarredáveis e inevitáveis modificações. O
continuamente obrigado a absorver os impactos das funcionalida- grande problema é que não se pode naturalizá-las. Elas decorreram
des e disfuncionalidades desses sistemas, fornecendo-lhes como de construções sociais, e não de fenômenos naturais. O que se vê
prestação uma contínua fonte de normatização e normalização. são profundas imposições dos sistemas que atravessam o direito e
Tudo isso para marcar que têm razão os que se perfilam em re- colonizam o mundo da vida, das vivências cotidianas indiferencia-
conhecer a existência de uma regulação autorizada produzida por das. Não há como ser ingênuo e acreditar que o caráter contrafático
entes da Administração. Está certo Eros Grau ao dizer que a tripar- do direito possa resistir a tais modificações e negar por completo o
tição dos poderes está sob o influxo da realidade e que há uma in- poder normativo que acabou sendo atribuído a tais entes, reconhe-
terpenetração "entre o mundo do dever ser e o mundo do ser"442 ça-se, ao arrepio do texto constitucional e das instituições jurídicas
do Estado Democrático de Direito.
Há algo, no entanto, que precisa ser encarado: o potencial de
441 Sobre a simbiose da prestação de utilidades pelo Estado Social e o incremento de
coerção que cerca esse deslocamento de poder normativo. Poder e
riscos e potenciais de autoameaça: Essa mudança da lógica de repartição de riqueza na
sociedade da carência à lógica da repartição dos riscos na modernidade desenvolvida dinheiro se potencializam, ainda mais quando legitimados por dis-
está vinculado historicamente a (ao menos) duas condições. Em primeiro lugar, essa cursos de verdade oriundos da ciência e da técnica, que formam
mudança se consuma (como sabemos hoje) ali onde e na medida em que mediante o ní- um exponencial poder no âmbito da normatização regulatória. A
vel alcançado pelas forças produtivas humanas e tecnológicas e pelas seguridades e
regulações do Estado Social se possa reduzir objetivamente e excluir socialmente a mi-
regulação traz potenciais de rendimento e riscos extraordinários.
séria material autêntica. Em segundo lugar, essa mudança categorial depende ao mesmo
tempo de que ao fio de crescimento exponencial das forças produtivas no processo de
modernização liberem-se os riscos e os potenciais de autoameaça numa mediada desco- 443 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz
nhecida até o momento. (BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, do princípio da eficiência. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder normativo das
2002, p. 25) agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 281 e sego
442 GRAU, Eros. Direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 444 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo & FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de
183. direito administrativo. Trad. Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 201.

234 235
A coerção da regulação não resulta apenas do potencial uso da Palmilhados os riscos da regulação autônoma, algo sobre a fun-
força física, mas também do dinheiro e dos discursos ção normativa reguladora autorizada pode ser aduzido. Em especí-
Algo marcante - tanto em relação aos riscos como à coercibilidade fico, as funções administrativas e judicantes dos entes reguladores
inerente aos entes reguladores - é seus efeitos se espalharem por não serão enfrentadas neste trabalho. Não há grande perplexidade
toda a cadeia de produção e consumo que envolve o agente regula- no exercício dessas funções no âmbito do Executivo, que ordinaria-
do. Assim, se multada uma prestadora de o mente atos administrativos e exerce com habitualidade
multa não será absorvido integralmente pelo infrator que J I funções quase-contenciosas. No entanto, o exercício de função
do-se dos instrumentos de mercado, tentará repassar os ônus finan- normativa por entes da Administração é profundamente inquie-
ceiros da penalidade para seus fornecedores e seus consumidores. tante.
De igual modo, é lugar-comum, em relação ao sistema financeiro, Não que a divisão de poderes, mesmo nas suas fontes clássicas,
referir-se ao risco sistêmico para aludir a esse efeito de contamina- como em Montesquieu 447 , seja incompatível com uma distribuição
ção que se dá por intermédio das relações de mercado. No extre- de funções com interpenetração entre os poderes. É possível reali-
mo, ele pode acabar espalhando-se por todo o mercado regulado. zar uma leitura, como o faz Eros Grau 448 } de que Montesquieu não
Se o Estado Democrático de Direito é obrigado a conviver com defendia uma separação radical de poderes, mas uma delimitação
esses exércitos de Leviatãs contemporâneos, dotados de considerá- de funções e o equilíbrio entre elas.
veis poderes normativos e de coerção, deve-se preocupar com a le- Há uma dissociação entre Poder e função. O primeiro se refere
gitimação e a justificação dos seus poderes e, portanto, com os di- aos centros ativos típicos das funções estatais} formando corpos a
reitos dos cidadãos 445 . E mais: à dimensão da coercibilidade é ne- partir de critérios subjetivos. Constituem-se como decorrência da
cessário contrapor questões de princípios ainda mais acuradas 446 . tripartição de poderes: o Poder Legislativo} o Poder Executivo e o
Poder Judiciário. As funções se referem a um critério material de
atuação} que não necessariamente corresponde ao subjetivo} po-
445 Sem dúvida, uma das questões fundamentais do direito é a justificativa do uso da dendo estar presente em quaisquer dos três poderes. Elas podem
coerção, como assinala Dworkin: Uma teoria política do direito completa, portanto, in- ser a normativa} a administrativa e a judicante 449 .
clui pelo menos duas partes principais: reporta-se tanto aos fundamentos do direito
circunstâncias nas quais proposições jurídicas devem ser aceitas como bem fundadas ou De forma sintética} é possível conceber materialmente cada
verdadeiras - quanto à força do direito - o relativo poder que tem toda e qualquer ver- uma das funções segundo os seguintes critérios:
dadeira proposição jurídica de justificar a coerção em vários tipos de circunstâncias
excepcionais. Essas duas partes devem apoiar-se mutuamente. A atitude assumida por a) normativa - fixação de programas gerais e abstratos} forma-
uma teoria integral sobre a questão de até que ponto o direito é dominante, e quando lizados em normas jurídicas} especialmente em regras;
pode ou deve ser posto de lado, deve estar à altura da justificativa geral que o direito
oferece para o uso da coerção, que por sua vez provém de seus pontos de vista sobre os b) judicante - decisão de conflitos com a validação e a determi-
polêmicos fundamentos do direito. Uma teoria geral do direito, assim, propõe uma solu- nação do direito para o caso concreto} resultando na estabiliza-
ção a um complexo conjunto de equações simultâneas [... ] (DWORKIN, Ronald. Laws ção de expectativas de comportamentos;
Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. 110)
446 Isso significa entrar numa dimensão mais reflexiva e questionadora sobre o direito
com juízos de moral política que constituem o cerne dos princípios e dos direitos. A a brilhar os caminhos para o que salva, tanto mais questões haveremos de questionar.
questão da regulação é em boa medida uma questão técnica, o que permite propor, Pois questionar é a piedade do pensamento. (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e confe-
como abertura de horizontes hermenêuticos para a próxima parte do trabalho, o tre- rências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 38.)
cho final do ensaio A questão da técnica, de Heidegger: Questionando assim, damos
447 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin
testemunho da indigência de, com toda técnica, ainda não sabermos a vigência da téc-
Claret, 2002, p. 164 e sego
nica; de, com tanta estética, já não preservarmos a vigência da arte. Todavia, quanto
mais pensarmos a questão da essência da técnica, tanto mais misteriosa se torna a es- 448 GRAU, Eros (Op. cit., p. 173).
sência da arte. Quanto mais nos avizinharmos do perigo, com maior clareza começarão 449 Eros Grau constrói raciocínio semelhante (Idem. Ibidem, p. 176/7).

236 237
c) administrativa - execução do conteúdo teleológico do direi- calidade e os discursos de verdade que marcam as profissões libe-
to vigente por uma forma pragmática, estratégica, rais geraram a de uma burocracia para regrá-
e eficaz para atingir fins coletivos. las mediante o exercício de uma capacidade normativa de conjun-
tura.
O ponto de inflexão do tema do poder normativo no âmbito
Por isso, ao contrário do que defende Eros Grau, com base em
Administração, especialmente dos entes não , não sentido em apartar a função legislativa da norma-
mera edição de programas gerais e abstratos, mas na tiva apenas com base num critério subjetivo, ou seja, pertinência ou
que eles podem vir a ter de primariamente inovar, construindo não ao Poder Legislativo. Há uma grande diferença material entre
sentido autônomo dentro do sistema formal de regras jurídicas (or- a função normativa com força primária exercida no âmbito da Ad-
denamento). Numa concepção típica de Estado Democrático de ministração e aquela exercida no Poder Legislativo.
Direito, os programas gerais com força vinculativa inovadora são É nessa diferença material que reside a explicação para a im-
frutos de discussões e acordos dentro de um processo político legi- propriedade de se falar em delegação legislativa para o caso da fun-
timado pelo sufrágio, o que não se dá no âmbito da Administração. ção normativa dos entes reguladores. Como visto, o Poder Legisla-
No entanto, o influxo de imperativos especialmente do sistema tivo é inepto materialmente para deter uma capacidade normativa
econômico exige como prestação necessária e indispensável por de conjuntura, o que lhe impossibilita a transmissão dessa ordem
parte do direito uma capacl'da d e normatwa
. d e conjuntura
. 450 que
de competências. Disso resulta que, por forças de pressões sistêmi-
não pode ser fornecida pelos instrumentos clássicos do processo le- cas, a capacidade normativa dos entes reguladores torna-se uma
- 451 e sua nao
gislativo, dado o tempo d e sua maturaçao - . l'lza-
espeCla função a eles inerente.
452
çã0 . O que se tem nesse caso são demandas sistêmicas cognitiva- Nessa ordem de ideias, há efetivamente uma reconfiguração do
mente absorvidas pelo direito, resultando numa nova estruturação. princípio da legalidade que assume três formatos: a) garantia de
Algo semelhante ocorre com o poder regulador conferido às au- vinculação do Estado às definições exaustivas da lei (exigência de
tarquias de regulamentação profissional. A especificidade, a tecni- lex scripta, lex stricta, lex certa e lex praevia no direito penal) no
âmbito da reserva legal absoluta; b) garantia geral de que somente
450 Idem. Ibidem, p. 173. a lei terá poder normativo primário e inovador para gerar direitos e
451 Em Luhmann, o tempo é definido com base na diferença de passado e futuro, não obrigações; c) exceção à garantia anterior para os casos em que seja
como pontos de partida, mas como horizontes (PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Mo- necessária a capacidade normativa de conjuntura.
dernidade, tempo e direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 240). O dinheiro, por Eros Grau expõe corretamente uma cisão no âmbito da legali-
sua vez, como código da economia, não se relaciona ao tempo (ou, mais precisamente
dade 454 . Entretanto, sua vinculação à letra da Constituição e o fato
ao tempo-espaço) como um fluxo, mas exatamente como um meio de vincular tempo-es-
paço associando instantaneidade e adiamento, presença e ausência. (GIDDENS, An- de não atentar para a distinção material entre a função legislativa
thony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991, p. 32). Ainda de (função normativa exercida no âmbito do Poder Legislativo) e a
acordo com Giddens, o dinheiro é um mecanismo de desencaixe (Idem. Ibidem). Se função normativa, leva-o a fazer uma distinção entre reserva da lei
referido ao tempo, a capacidade de deslocamento (desencaixe) da instantaneidade do e reserva da norma, que esvazia drasticamente o princípio da lega-
presente para os horizontes do passado e do futuro pelo dinheiro é capaz de alongá-los
indefinidamente de forma mensurada, o que faz com que a economia se reproduza
lidade.
numa intensidade muito maior que a do sistema político-burocrático e a do direito. A reserva da lei (reserva legal absoluta) está positivada na
Daí a demanda sobrecarregada por normatização e decisões por parte do direito e do Constituição em seu art. 5°, XXXIX, no art. ISO, I, e no parágrafo
sistema político-burocrático, que resulta nessa normatização de conjuntura.
452 Márcio Iório Aranha também reconhece uma função normativa conjuntural do
Executivo. In: ARANHA, Márcio Iório. Manual de direito regulatório. 3" ed. Londres: 453 GRAU, Eros (Op. cit., p. 179).
Laccademia Publishing, 2015, p. 81. 454 Idem. Ibidem, p 183.

238 239
único do art. 170, parágrafo único. Não há crime, tributo ou exi- o primeiro passo para o fechamento dessa competência dá-se
gência de autorização para atividade econômica sem lei, ai com a exigência de autorização legislativa para o seu exercício. É
da como um ato legislativo específico. Em face de tais dispositivos o que impropriamente se chama de delegação, mas em verdade é
específicos, Eros Grau considera que o art. 5°, lI, mais geral, tem uma delimitação, uma configuração e um direcionamento para o
outra configuração, que permite falar em reserva da norma (reser- exercício da função, que por sua própria natureza conjuntural só
va legal relativa), pois esse dispositivo enuncia que pode ser exercida pela Administração. Esse é um poder que pre-
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em cisa ser moldado para ser exercido, o que gera um delineamento
de lei. A obrigação nessa última hipótese não deriva da lei como de competências com âmbitos distintos para o Legislativo e para
ocorre na reserva legal absoluta, mas em virtude dela, o que é com- a Administração. O Legislativo deve estabelecer sua conformação,
patível com a atribuição, explícita ou implícita, ao Executivo para, e a Administração desdobrá-l0 456 conforme as exigências conjun-
no exercício da função normativa, definir obrigação de fazer e não turais.
fazer que se imponha aos particulares - e os vincule 455 . Para tal ra- Os Estados Unidos têm longa experiência na utilização de tais
ciocínio, se existem dispositivos constitucionais que falam da re- instrumentos, denominando-os tradicionalmente de regulamentos
serva da lei, isto é, matérias que só podem ser tratadas pela lei, as delegados. No seu debate judicial, houve decisão sobre sua admis-
outras podem ser tratadas pela função normativa da Administra- são no primeiro quarto do século XIX457. Para tanto, já se exigia
ção, constituindo reserva de norma. que a lei autorizadora da competência regulamentar estabelecesse
O raciocínio é uma inversão radical, de 180°. A proteção do art. standards a serem observados e objetivos a serem alcançados. Foi
5°, II, da Constituição Federal, praticamente perde todo o seu sen- pela ampliação de entes regulatórios a partir do N ew Deal que o
tido. Se aceito o raciocínio de Eros Grau, qualquer assunto, excluí- tema ganhou impulso.
dos os temas tributários, penais e de livre iniciativa, pode ser obje- Os contornos atuais da delegation doctrine remontam aos ainda
to da função normativa com sentido primário da Administração. hoje aplicáveis casos Panama Refining Co. v. Ryan458 e A. L.A.
Certamente, não é esse o sentido que a Constituição dá a tal dispo- Schecheter Poultry Corpo V. United States 459 . Nos dois discutiu-se a
sitivo, assim como a reinscrição do princípio da legalidade no art. constitucionalidade do National Industrial Recovery Act (NIRA) ,
5°, :XXXIX, no art. 150, I, e o parágrafo único do art. 170 nada editado dentre as medidas do New Deal. No caso Panama Refi-
mais são do que reiterações e estabelecimentos de regimes mais rí- ning, a discussão travava-se em torno da seção 9, "c", do NlRA, que
conferia ao Presidente a competência de proibir o transporte de
gidos de legalidade. Aqui a lei não contém palavras desnecessárias.
petróleo entre os Estados-membros para estancar a crise de super-
Simplesmente reforça o sentido garantista do princípio da legalida-
produção de petróleo J tendo como guia a regra da Constituição
de, concebendo-o de forma mais rígida.
norte-americana de que todos os poderes legislativos são atribuídos
Como já aduzido, são três os formatos da legalidade, e a hipó-
tese discutida da função normativa de entes administrativos é uma
exceção vinculada aos imperativos sistêmicos que a originaram e 456 A alusão metafórica de Eros Grau é plenamente aplicável: a atribuição conferida
requerem como prestação uma normatização de conjuntura. Não é ao Executivo para aludido exercício poderia ser comparada ao tiro de partida que é
demais reafirmar, a regulação encerra grande potencial de coerção dado para que se desenrole uma corrida de 100 metros; a faculdade de correr veloz-
mente é própria a quem participa da prova, como é própria ao Executivo, repito, a fun-
e riscos, não havendo sentido em deixá-la aberta para toda e qual-
ção normativa regulamentar (Idem. Ibidem, p. 186).
quer hipótese. 457 BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras - poder normativo, consulta públi-
ca, revisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 100.
458 293 US 388, de 1935.
455 Idem. Ibidem, p. 184. 459 295 US 495, de 1935.

240 241
ao Congress0 460 , em face de vários objetivos vagos a serem atingi- Embora com nuances, já que se considerava que as delegações
dos pelo Chefe do Executivo, a Suprema as ser julgadas com senso e com vistas necessidades do
463
trizes por demais amplas e inidôneas para guiar a autoridade govern0 , permaneceu como princípio assumido pela Suprema
ca no exercício dos poderes aí conferidos, o que levou à declaração Corte o de ser indispensável a existência de standards como crité-
de inconstitucionalidade do dispositivo em questão. caso, rios de aferição de validade das delegações legislativas. É o que se
Schechter Poultry, que cuidava de Televísíon Association Inc. v. United Sta-
cola por preço abaixo do estabelecido, o tes 464 , Skinner v. Mild-America Pipeline CO. 465 e Mistretta v. Uní-
completo por razões análogas às do caso anterior. ted States. 466
Nos dois casos; a Suprema Corte considerou que a inconstitu- A experiência norte-americana dos regulamentos delegados rea-
cionalidade advinha não só da insuficiência de critérios para o exer- firma a viabilidade do exercício de função normativa no âmbito do
cício da competência pelo Executivo, mas também do não atendi- Poder Executivo, desde que se preocupe em circunscrever o seu
mento de requisitos de due process antecedentes às tomadas de de- âmbito com fixação de limites, conformações e objetivos. Autori-
cisões administrativas. É que as leis não estabeleciam que os inte- zações implícitas ou simples autorizações para o exercício de tais
ressados deveriam ser comunicados dos projetos normativos para poderes implicam formações de fendas descaracterizadoras por
lhes dar a oportunidade de serem ouvidos e de contribuírem para a completo do princípio da legalidade e de garantias mínimas do Es-
instrução do processo decisório. tado Democrático de Direito.
Após esses dois primeiros casos, al~umas decisões apontaram É certo que demandas oriundas dos sistemas econômico e polí-
um afrouxamento da Suprema Corte. E exemplo o caso National tico-burocrático geram a necessidade de uma normatização de con-
Broadcasting Company v. United States 461 , em que se aceitou a am- juntura no âmbito da Administração, mas de modo algum em razão
plitude do Communications Act, de 1934, com base em argumen- dos riscos e potenciais de coerção envolvidos há sentido para se
tos de interesse público, no sentido de que os poderes atribuídos à atribuir ao Executivo um poder amorfo e, por isso, de difícil con-
Federal Communications Commission de atuar em campo técnico trole. Há a necessidade de delimitação de competência, abrangen-
e de engenharia deveriam ser entendidos amplamente, abrangendo do pelo menos três dimensões: limites, conformações e diretrizes.
a regulação das relações contratuais das redes de radiodifusão com Os limites são basicamente interdições de competência. As confor-
seus afiliados locais, o que implicou a admissão de padrões legais mações, por sua vez, amoldamentos e obrigatoriedades de exercí-
elásticos para controle da delegação. cio de competências. Já as diretrizes são objetivos de interesse pú-
O caso Yakus v. United States 462 apresentou outras peculiarida- blico e da coletividade a serem atingidos com a normatização de
des. Aceitou-se uma certa amplitude nas diretrizes estabelecidas conjuntura.
pela lei para a delegação legislativa, considerando-se que só ocorre- Essa delimitação legal da função reguladora é apenas uma etapa
ria inconstitucionalidade nos casos em que a fluidez das disposi- inicia1467 . Não se pode esquecer que a regulação opera numa di-
ções fosse de tal ordem que impedisse verificar o atendimento (ou
não) dos comandos legais pelo órgão executor. Cuidava-se, pelos
fundamentos da decisão, em se preocupar se os condicionamentos 463 BRUNA COpo cit., p. 106).
legais eram suficientes e aptos para permitir o controle pelo Judi- 464 415 US 336, de 1974
ciário. 465 490 US 212, de 1989.
466 488 US 361, de 1989.
467 Marcelo Figueiredo salienta que o condicionamento não é mais apenas legal, mas
460 Artigo I, seção 1i artigo I, seção 1, § 18. também global, pelo ordenamento: Não obstante, portanto, condicionada pelo direito,
461 319 US 190, de 1943. a Administração Pública, em seu agir, como sabemos, não se revela simplesmente como
462 321 US 414, de 1944. mera executora das leis. Podemos compreendê-la no mundo contemporâneo, cada vez

242 243
mensão marcada pelo economicismo, pelo cientificismo e pelo tec-
nicismo, que têm alto potencial deletério para a vi- Capítulo 6
vências sociais com base na moral e em valores. A normatização
produzida nesse âmbito mostra-se impregnada de demandas sistê-
A crítica da regulação a
micas.
. comunidade de princípios
Constata-se a necessidade de um:
perspectiva que pode ser, sofisticada e cuidadosamente,
pela referência a um conjunto coerente de principios e diretrizes
políticas que insiram a produção de regras pela Administração num
plano reflexivo que procure legitimá-las e justificá-las a partir de A vasta literatura que se produziu nos últimos anos sobre a dis-
considerações de moral política, assunto que se encadeará no pró- tinção entre princípios e regras é demonstração elo quente da rele-
ximo capítulo. vância da problemática que cerca este antigo tema. Já no Código
Austríaco de 1811 falava-se em princípios gerais de direito e, em
muitos outros textos legais, eles se fizeram presentes, assim como
em trabalhos de dogmática jurídica e na jurisprudência468 .
Como assinalado no capítulo 1, o tema ganhou grande impulso
com a publicação, em 1967, do texto Is a lawa system of rules?, de
Ronald Dworkin. Um amplo debate iniciou-se a partir daí. A dis-
cussão empreendida foi e vai muito além da mera distinção entre
princípios e regras, significando, em verdade, uma outra aborda-
gem sobre o direito.
Vários lugares-comuns formaram-se no seu desenvolvimento.
O de que as regras se aplicam no tudo ou nada, enquanto os princí-
pios têm dimensão de peso. A de que regras têm estrutura de hipó-
tese de incidência e consequência, ao passo que princípios são va-
lorativos ou teleológicos, e assim por diante. É muito frequente
nesses estudos uma catalogação de critérios distintivos, o que tem
algum valor didático pela simplificação e pelo caráter sintético das
abordagens.
Compete, no entanto, tomar cuidado com a superficialidade
desse tipo de enfrentamento. A forte preocupação com os princí-
pios no direito não trata apenas da inserção ou da revalorização de
mais um elemento na teoria no direito. O mero confronto dos prin-
cípios com as regras acaba deslocando o foco e excluindo boa parte

mais complexo, como protagonista de um papel mais amplo, mais dilatado, tendo já 468 ATIENZA, Manuel & MANERO, Juan Ruiz. Sobre princípio y regIas. p. 101. In:
agora o ordenamento jurídico como limite, e não apenas a lei em sentido estrito (FI- Doxa. Disponível em http:\\www.cervantesvirtual.com\\servlet\\SirveObras\\pu-
GUEIREDO, Marcelo. As agências reguladoras. O Estado Democrático de Direito no blic\\12482196462352624198846\\cuaderno 10\\doxa1 0_04.pdf?portal=4". Aces-
Brasil e sua atividade normativa. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 292). so em 10.10.2010.

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